Desenraizamento institucional, por Oscar Vilhena Vieira

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Nesta semana assistimos a mais um festival de deslealdades com o nosso combalido Estado de Direito

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 01/06/2024

O ambiente institucional brasileiro vem passando por um preocupante processo de degradação na última década, que se reflete numa dificuldade cada vez maior de a lei servir como instrumento de determinação de condutas e estabilização de expectativas. E onde a lei não impera, prevalecem o arbítrio, a violência, o oportunismo, o mandonismo e uma perversa forma de extrativismo institucional.

A fragilidade do direito brutaliza a vida das pessoas, especialmente daquelas que estão mais
vulneráveis ao crime, ao arbítrio e à negligencia do Estado ou mesmo à ação predatória de algumas poderosas corporações. A fragilidade da lei deteriora a eficácia das políticas públicas, das instituições democráticas e, por consequência, a confiança na democracia. A fragilidade da lei, por fim, reduz a eficiência dos mecanismos de mercado, inibe investimentos e emperra processos de desenvolvimento econômico e social mais sustentáveis e equitativos.

É fato que a lei jamais foi levada muito a sério entre nós. A indecente e persistente desigualdade, a perversa “cordialidade”, o patrimonialismo têm conspirado incessantemente contra um enraizamento mais profundo do império da lei nessas paragens. O pacto constitucional de 1988, no entanto, favoreceu algum avanço no fortalecimento de nossas instituições. Esse processo positivo, ainda que ambíguo, começou a descarrilhar a partir de 2013, desaguando na tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, em 8 de janeiro de 2023. Se é verdade que sobrevivemos, ainda que por um triz, o processo de degradação do Estado de Direito não foi interrompido.

Importa lembrar que direito não tem força própria. Sua efetividade depende, primariamente, dum delicado equilíbrio entre aqueles que têm poder na sociedade. Sem que os poderosos se convençam de que é mais vantajoso resolver suas disputas e conflitos por intermédio das regras do jogo, o Estado de Direito não para de pé. Quando esse equilíbrio político não é alcançado ou se rompe, a vida social, política e econômica se degradam.

A efetividade do governo das leis também depende da disposição daqueles que habitam as suas instituições em cumprir com suas responsabilidades de elaborar, implementar e aplicar as leis de maneira correta e consistente. Quando as instituições responsáveis pela produção e aplicação do direito não cumprem com suas atribuições, o direito deixa de ser um instrumento crível para contribuir com a coordenação pacífica da sociedade. Sem que os detentores do poder vejam vantagem em resolver seus conflitos de acordo com as regras do jogo, o Estado de Direito não sobrevive.

Nesta semana assistimos a mais um festival de deslealdades com o nosso combalido Estado de Direito patrocinadas por maiorias parlamentares, governadores de estado e até ministro do Supremo. A resistência às câmeras policiais, a implosão de acordos de delação, o jogo perverso de vetos são apenas exemplos dessa insurgência contra o direito, por parte de quem jurou defender e garantir a Constituição e as leis.

Essa completa falta de cerimônia, manipulação ostensiva e desrespeito à legalidade têm aprofundado uma perigosa sensação de anomia —de ausência de regras—, gerando um ambiente em que prevalecem apenas as lógicas da dominação, do arbítrio e do ardil. Romper esse círculo viscoso de degradação da legalidade é hoje nosso maior desafio. Sem o enraizamento do império da lei, dificilmente alcançaremos soluções para os outros enormes desafios que temos pela frente.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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