Declínio da democracia e avanço do neofascismo, por Liszt Vieira

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As análises de crises políticas de um país que focalizam apenas os aspectos internos ou externos, por mais brilhantes que sejam, serão sempre parciais

“Um espectro ronda o mundo, e desta vez não é o comunismo, mas uma nova direita que avança na Europa, nos EUA e América Latina”
(Enzo Traverso).

Liszt Vieira – A Terra é Redonda – 19/08/2024

Para analisar algum conflito político em qualquer país – como é o caso agora na Venezuela – não basta uma análise endógena, da situação eleitoral e da correlação de forças internas do país. É necessário levar em conta o fator exógeno, a pressão internacional que, hoje, é ainda mais forte do que outrora.

Analisar a crise política de um país ignorando os fatores externos que influenciam a situação política interna é um equívoco que vem sendo cometido por muitos que denunciam a fraude na eleição da Venezuela, considerada por eles como ditadura.

Os estudiosos da democracia e seu declínio sempre enfatizam que os governos autoritários, sejam ou não ditadura, acabam com os freios e contrapesos essenciais a uma democracia. E alertam: a democracia atualmente não termina com uma ruptura violenta de um golpe militar, ou de uma revolução. O autoritarismo se implanta com o enfraquecimento lento e constante das instituições, como o judiciário e a imprensa, e a destruição gradual das normas políticas tradicionais.

Mas essa visão tradicional de declínio da democracia também está em declínio. Muitas vezes, as instituições tradicionais, como o judiciário e a imprensa, apoiam o enfraquecimento da democracia e a implantação da ditadura. Essas instituições não estão suspensas no ar, fora e acima da luta de classes. No Brasil, por exemplo, o Judiciário condenou Lula sem provas, com o apoio da imprensa, para impedir sua candidatura a presidente em 2018. E parte do Judiciário e da imprensa demonstrava simpatia pelo golpe militar que Jair Bolsonaro tentou organizar e acabou não conseguindo.

Os diversos escritores e cientistas políticos que discutem o declínio da democracia no mundo nem sempre questionam os supostos básicos da democracia: a busca do bem comum, da justiça social, da igualdade, o voto livre e consciente do cidadão, sujeito de direitos, que escolhe – livre de pressões – quem representa seus interesses.

Numa sociedade de massas, tem peso enorme a manipulação do voto pela mídia, redes sociais, internet, e pelo uso e abuso de fake news que disputam e muitas vezes prevalecem sobre a realidade na conquista do voto. Isso leva grande número de eleitores a votarem contra seus próprios interesses. Pior ainda nos lugares, como o Rio de Janeiro e Baixada Fluminense, onde metade das cidades está controlada pelas milícias que impõem seus candidatos sob a ameaça de morte.

Na realidade, os regimes democráticos, dominados por uma elite política e econômica, foram em geral incapazes de atender às necessidades da maioria da população que se tornou presa fácil de fake news e do discurso religioso, principalmente evangélico. Nossa civilização, tributária do Iluminismo, está em crise. Muita gente não quer mais saber dos fatos da realidade. Quer ouvir o discurso que coincide com suas crenças. Hoje, os dogmas doutrinários rivalizam e às vezes superam os princípios científicos.

Neste segundo semestre de 2024, há quem preconize o fim da democracia no Brasil – e não só – com a vitória de Donald Trump na eleição presidencial de novembro próximo nos EUA. Em seu artigo no jornal GGN, Luis Nassif lembrou o jornalista Pedro Costa Júnior, segundo o qual “o Brasil passa a depender diretamente do resultado das eleições dos Estados Unidos. Uma vitória de Donald Trump selará o destino da democracia brasileira. Por isso mesmo, o movimento contra Alexandre de Moraes é apenas o primeiro lance dessa conspirata. E os mesmos grupos de mídia, que atuaram decisivamente para a ascensão de Jair Bolsonaro, repetem o mesmo movimento”.

O fascismo clássico destruiu a democracia de fora pra dentro. O neofascismo usa a democracia, faz o jogo da democracia para ganhar a eleição e destruir a democracia a partir de dentro. É exatamente o que Jair Bolsonaro tentou no Brasil. Só não conseguiu porque o governo de Joe Biden pressionou contra, enviou diversas vezes altos diplomatas ao Brasil para dizer que confiava no sistema eleitoral e dar recado aos militares: Nada de golpe! Não interessava a Joe Biden um ditador aliado de Donald Trump. Não fora isso, talvez o golpe militar houvesse prosperado. Tinha o apoio de diversos generais – Villas Boas, Braga Netto, Pazuello etc. – e muitos coronéis e outros oficiais, principalmente da Marinha.

Mesmo com a derrota de Donald Trump, a política externa beligerante dos EUA não deve mudar muito. É verdade que um governo Kamala Harris não vai fortalecer o movimento mundial de extrema direita, e terá importantes diferenças na política interna. Mas, quando se trata de ir ou não à guerra, o presidente dos EUA, seja quem for, não apita muito. Isso é decisão do complexo industrial-militar.

Há um elemento importante a ser considerado quando falamos de regimes autoritários neofascistas.

Não se trata apenas de restrições à liberdade individual e política, de censura à imprensa e à cultura, de repressão aos partidos, às organizações populares e aos movimentos sociais. O neofascismo é negativista no que se refere às mudanças climáticas e suas desastrosas consequências.

Em todo o mundo, os princípios do desenvolvimento sustentável, para usar um eufemismo, nem sempre são observados – desenvolvimento econômico com proteção ambiental, diversidade cultural e redução drástica da desigualdade social. A crise climática ameaça a possibilidade de sobrevivência da humanidade no planeta. Mas os grandes interesses econômicos ligados ao combustível fóssil – petróleo, gás, carvão – continuam predominando sobre a transição energética, que acabará sendo adotada depois de grandes desastres e catástrofes climáticas levando à morte e ao empobrecimento de grande parte da população mundial.

Outro ponto importante a ser considerado é o fato de o neofascismo se alimentar da crise do neoliberalismo e seus dogmas de Estado mínimo, privatização de serviços públicos, transformação de direitos em mercadoria. O neoliberalismo entrou em crise em todo o mundo capitalista. A crise é menor nos países que não abriram mão do investimento público do Estado, como ocorre nos próprios EUA, onde o governo investe principalmente em infraestrutura e tecnologia.

Mas já se tornou evidente que o neoliberalismo começa a se despedir da democracia liberal em favor de governos autoritários de índole neofascista, levando consigo as instituições liberais que, como sói acontecer, apoiam ditaduras quando seus interesses econômicos estão ameaçados.

Estamos no alvorecer de um novo período histórico em que a hegemonia unilateral dos EUA perde força em favor de um multilateralismo, principalmente com a ascensão econômica da China. Como ocorreu no passado, essa passagem não se dá sem guerras. Já há quem fale em nova guerra mundial que estaria sendo estimulada por alguns governos, como os EUA provocando a Rússia com o cerco da OTAN – que levou Moscou a invadir a Ucrânia alegando defesa própria – e Israel, provocando guerra no Oriente Médio.

Esse pano de fundo internacional não pode ser ignorado quando analisamos a crise política de um país, por mais complexa que seja a situação. No caso da Venezuela, o petróleo tem sido negligenciado na discussão sobre a crise de legitimidade e a fraude eleitoral. Afinal, os EUA vão tão longe buscar petróleo, na Arábia Saudita, considerada a ditadura mais sangrenta do mundo, mas ignorada ou até mesmo tratada muitas vezes pela imprensa como democracia. Se os militares venezuelanos, vizinhos dos EUA, resolvessem deixar todo o petróleo nas mãos de empresas americanas, na mesma hora a mídia diria que a Venezuela é um exemplo de democracia.

Assim, as análises de crises políticas de um país que focalizam apenas os aspectos internos ou externos, por mais brilhantes que sejam, serão sempre parciais. Afinal, como reconhecia Marx, leitor de Hegel, a verdade está na totalidade.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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