Autor: Rafael Cariello
MAL ECLODIU, a crise de 2008 forçou o governo dos EUA a fazer pesados investimentos em áreas cruciais da economia, como o setor bancário e a indústria automobilística. Para muitos observadores, assistia-se à volta de um modelo intervencionista que parecia superado desde a chegada ao poder do republicano Ronald Reagan, em 1980.
A mesma débâcle agravou, nos meses seguintes, os deficits orçamentários recordes dos países europeus, logo forçados a cortar gastos e benefícios públicos. Há quem avalie que, em consequência dessas decisões, o próprio Estado de bem-estar social encontra-se em risco. As reformas liberalizantes advogadas por Reagan e pela ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher teriam por fim alcançado a Europa continental.
Como se pode ver, essas análises são contraditórias -e apressadas. Buscam compreender o momento atual nos termos das duas grandes ondas político-ideológicas do século 20, hegemônicas.
A história desses dois modelos de intervenção estatal -o social-democrata, entre as décadas de 30 e 70, e o liberal, nos dois decênios finais do século- é narrada pelo cientista social britânico Tony Judt (1948-2010) no último livro que publicou em vida, “Ill Fares the Land” (algo como “o mal consome a terra”, título retirado de um verso do poeta Oliver Goldsmith).
Desde a Grande Depressão, e com mais força a partir da Segunda Guerra Mundial, a social-democracia conquistou o apoio de políticos da centro-direita à centro-esquerda, nos EUA e na Europa. Com a exceção de grupos radicais nos dois extremos do espectro ideológico, todos pareciam concordar quanto à necessidade de o Estado se fazer presente em amplos setores da economia, do transporte público à siderurgia, sem abrir mão da democracia representativa.
Por décadas, o modelo funcionou bem, até entrar em crise, nos anos 70. Nos dois decênios finais do século 20, a palavra de ordem era abrir espaço para o mercado. Reduzir o Estado ao mínimo, retirando-o não só da atividade produtiva mas também, em muitas áreas, de seu papel regulador.
Intervenções estatais passaram a ser responsabilizadas por males sociais e econômicos de toda espécie -invertendo a lógica antiliberal que surgira com a crise da década de 30. Nenhum dos dois modelos “puro-sangue” parece mais angariar simpatias gerais e irrestritas -embora estas ainda se inclinem, no julgamento de Judt, para um excessivo antiestatismo.
De todo modo, o que no passado parecia pertencer ao domínio inexorável da história, a um processo de desenvolvimento linear, passa hoje à esfera da técnica e da política. O que as narrativas contraditórias do pós-crise nos EUA e na Europa demonstram é que a presença do Estado na economia e na prestação de serviços de segurança social está em disputa, sujeita a ajustes de grau, mas não de natureza.
Tony Judt toma partido nesse embate e constrói, em “Ill Fares the Land” [Penguin USA, 256 págs., R$ 47], um sofisticado libelo contra os excessos da desregulamentação e do desmonte do Estado, ao sair em defesa da social-democracia e dos serviços de proteção social.
Sua estratégia é apresentar cada argumento como uma síntese pragmática e moderada dos embates ideológicos do passado. “Conseguimos nos libertar da crença de meados do século 20 -nunca universal, mas certamente bastante difundida- de que o Estado é possivelmente a melhor resposta para qualquer problema. Agora precisamos nos livrar da noção oposta”, ele diz. A de que “o Estado é -sempre e por definição- a pior opção possível”.
“Se não fomos capazes de aprender nada mais com o século 20, devíamos ao menos ter entendido que quanto mais perfeita a resposta [a nossos problemas], mais terríveis e assustadoras foram as suas consequências.”
“Ill Fares the Land” pretende apresentar, a uma geração que não viveu os traumas da Grande Depressão e da Segunda Guerra, as razões que permitiram tornar quase consensual a defesa da forte presença do Estado em diversos setores da economia -bem como a criação de amplos sistemas públicos de educação, saúde e segurança social.
Para Judt, os líderes e os burocratas americanos e europeus logo compreenderam, com o fim da guerra, que era preciso a todo custo evitar os níveis inauditos de insegurança social e econômica enfrentados desde a crise de 1929 e nos anos seguintes, que os conduziram até o maior conflito militar da história.
Foi essa sensação de medo que fomentou o nazismo, lembra Judt. Os vencedores da guerra, dos dois lados do Atlântico, compreenderam o que era preciso fazer para impedir o seu ressurgimento. É nesse contexto que surge o Estado de bem-estar social, sociedades de classe média e sistemas de “seguros” públicos contra infortúnios.
O mesmo se aplica aos EUA, sempre ciosos em prestar vênias ao liberalismo econômico e à livre-iniciativa. Entre o New Deal de Roosevelt, nos anos 30, e a Presidência de Lyndon Johnson (1963-69) -que se atribuiu o objetivo de pôr fim à miséria no país mais rico do planeta-, a forte presença do Estado em setores estratégicos e as políticas promotoras de relativa igualdade social apresentaram ao mundo o “american way of life”. A típica família de classe média norte-americana dos anos 50 e 60 posa em sua casa de subúrbio para um retrato de época.
O processo não foi freado nem mesmo sob o único governo republicano (1953-1961) a interromper as quase quatro décadas de proeminência do Partido Democrata na política norte-americana.
“Foi um presidente republicano, Dwight Eisenhower, quem autorizou o gigantesco projeto das estradas interestaduais, supervisionado pelo governo federal”, argumenta o historiador, ao se referir ao pesado investimento em infraestrutura de que a iniciativa privada não teria sido capaz, sozinha, de realizar. “Apesar de toda a mesura retórica feita à competição e aos livres mercados, a economia americana naqueles anos dependia largamente de proteção contra a competição estrangeira, bem como de padronização, regulação, subsídios, ajustes de preços e garantias governamentais.”
O leitor conservador e desconfiado dos argumentos de um “socialista” britânico pode conferir a justeza da descrição em “Going Home to Glory – A Memoir of Life with Dwight D. Eisenhower, 1961-1969” [Simon & Schuster, 336 págs., R$ 63], escrito por David Eisenhower e Julie Nixon Eisenhower. Os insuspeitos autores, casados um com outro, netos dos conhecidos ex-presidentes republicanos, compõem uma memória dos anos de aposentadoria do general que liderou os Aliados contra o nazifascismo.
Entre partidas de bridge e golfe, o ex-presidente se esforça, segundo a narrativa de seus herdeiros, para impor uma linha moderada ao Partido Republicano dos anos 60. “A não ser em assuntos morais e ciências exatas, posições radicais estão sempre erradas”, defende Eisenhower.
Os amantes da política americana encontram na obra a descrição do empenho do general para fazer de seu irmão Milton o candidato republicano à sucessão de Johnson. “Seu principal problema”, no entanto, “era o comprometimento político ambíguo”, diziam os opositores mais conservadores. Milton, que trabalhara sob o comando de Roosevelt, “havia contribuído de maneira entusiasmada com o New Deal”. Por razões mais ou menos voluntárias, também o seu irmão dera continuidade àquela obra.
Como hábil advogado de sua causa, Tony Judt é capaz de reconhecer exageros na intervenção estatal. As opções estatizantes de meados do século nem sempre conduziram a bons resultados, admite ele. O crescente controle e “planificação” da vida em sociedade são seus principais exemplos: intervenções urbanísticas autoritárias, conjuntos habitacionais impessoais, intromissão ineficiente em setores da economia que seriam mais bem servidos pela iniciativa privada.
Parece hoje inacreditável que o Estado britânico tenha se encarregado, por décadas, até da venda de café e sanduíches servidos em estações ferroviárias (não seria justo, no entanto, responsabilizar a burocracia estatal pela má qualidade da comida no Reino Unido).
Mas nada se compara, segundo o historiador, às distorções promovidas desde os anos 1980 pelos governos “mercadistas”. Judt recorre a estudos estatísticos para fazer um elogio da igualdade social, alcançada sobretudo nos países com maior intervenção estatal, carga tributária e gasto público.
Quanto maior a desigualdade de renda, maior a incidência de problemas de saúde e patologias sociais. “Há uma razão para o fato de os índices de mortalidade infantil, expectativa de vida, criminalidade, população carcerária, doença mental, desemprego, obesidade, subnutrição, gravidez na adolescência, uso de drogas, insegurança econômica, acúmulo de dívidas e ansiedade serem piores nos EUA e no Reino Unido do que na Europa continental.”
Eis, de acordo com Tony Judt, os males que consomem a terra. Antes de morrer, no auge de sua produtividade, um dos principais acadêmicos do século 20 deixou como herança um manifesto sobre a necessidade de contê-los, com a ajuda do Estado, de maneira moderada e cautelosa. “Avanços incrementais a partir de circunstâncias insatisfatórias são o melhor que podemos esperar, e provavelmente tudo o que devemos procurar.”
O que as narrativas contraditórias do ?pós-crise nos EUA e na Europa demonstram é que a presença do Estado na economia e na prestação de serviços ?de segurança social ?está em disputa
Como hábil advogado de sua causa, Tony Judt é capaz de reconhecer exageros na intervenção estatal. As opções estatizantes de meados do século nem sempre conduziram a bons resultados