Solução para o problema vai na contramão das alternativas setorizadas propostas por figuras como Milei e Bukele
Sylvia Colombo, Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.
Folha de São Paulo, 06/10/2024
Não é de hoje que a expressão “crime organizado” circula nas campanhas eleitorais nacionais e regionais, impulsionando candidatos de extrema direita e propostas cada vez mais belicosas como soluções para o problema.
Na América Latina, a situação não é diferente, e vemos diversos políticos que colocam a democracia em risco ao prometer enfrentar o problema sem se importar com as consequências para ela. Exemplos disso são Nayib Bukele, em El Salvador, Javier Milei, na Argentina, e Daniel Noboa que, em alta de popularidade, desponta como o favorito para ser reeleito presidente do Equador nas eleições que ocorrerão no início do próximo ano.
Uma possível vitória de Donald Trump nos Estados Unidos em novembro reforçaria essa tendência, dando força a mais propostas como as que hoje encantam a ex-esquerdista Xiomara Castro, de Honduras, e a ministra argentina Patricia Bullrich. Ambas querem criar em seus países prisões de segurança máxima inspiradas no modelo de El Salvador.
Entretanto, quando permitimos, como mídia e sociedade, que o crime organizado ocupe uma caixinha isolada, separada de temas tradicionais como saúde, educação e até mesmo de problemas específicos como roubo de celulares, estamos tratando o problema de forma setorizada, sem enxergá-lo pelo que realmente é: um ator central nesses processos.
Essa foi a conclusão a que cheguei após ler o ensaio “How Organized Crime Threatens Latin America” (Como o Crime Organizado Ameaça a América Latina), de Javier Corrales, professor do Amherst College (em Amherst, Massachusetts), e Will Freeman, do Council on Foreign Relations, publicado na edição mais recente do Journal of Democracy, da Johns Hopkins University Press.
Ambos os acadêmicos nos lembram que, embora estejamos muito preocupados com figuras caricatas que surgem a cada eleição e atuam tanto dentro quanto fora do sistema, há um personagem muito mais perigoso, enraizado nas teias do poder, capaz de minar a democracia em tempo recorde. Quando isso acontecer, aquelas figuras serão apenas o rosto de uma destruição que compromete valores, ameaça os direitos humanos e civis e nos fará retroceder no tempo.
Para os autores, “os cartéis de drogas e seus chefes substituíram generais sedentos de poder, guerrilheiros marxistas e elites empresariais predatórias como as forças mais inimigas da democracia”.
Além disso, algumas organizações criminosas atualmente possuem inteligência e recursos muito maiores do que os atores políticos do passado e sabem interagir de outras formas com governos, não necessariamente tirando-os do poder, mas os manipulando de maneira habilidosa.
Os acadêmicos concluem: “Se as democracias da América Latina não conseguirem desenvolver meios para conter o poder do crime organizado, elas se verão corroídas de várias maneiras: grupos criminosos com influência sobre territórios intimidarão candidatos e protegerão outros; autoridades civis frustradas sentir-se-ão tentadas a conceder poder excessivo aos militares; presidentes de caráter autoritário adotarão políticas de combate ao crime que corroem as liberdades civis e a separação constitucional dos Poderes; as instituições do Estado continuarão a funcionar mal sob a influência do crime organizado, que corrompe e distorce”, dizem.
Apontar uma solução para essa questão não é simples, mas envolve os pilares do que entendemos como democracia. Diante de suas falhas, é preciso atuar com ainda mais democracia, criando mais organismos de transparência, renovando a independência entre os Poderes e envolvendo a sociedade numa democracia contínua e participativa.