Classe média, endividamento e perda de relevância social

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A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou recentemente uma pesquisa que destacava as dificuldades da classe média em vários países do mundo, de classe relevante e fundamental para o crescimento das economias, a classe média está se tornando um grande fardo para os países, nesta pesquisa, a organização recomenda que os países atuem diretamente com o intuito de auxiliar este grupo social, que se encontra em um de seus piores momentos da história do capitalismo.

Para entrarmos da discussão sobre a classe média e analisarmos os dados da pesquisa da OCDE, faz-se necessário que definamos o que é classe média para esta instituição que, como trabalha com inúmeros países, precisa de um critério claro para compará-los, para esta instituição, classe média é o grupo de pessoas que vive em lares onde a renda fica entre 75% e 200% da média nacional do país, acima disso, são considerados de renda alta e abaixo, são considerados de baixa renda.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem uma definição diferente de classe média, para esta instituição o critério para definir como classe média, é a quantidade de salários mínimos (R$ 998), onde a classe média compreende as classes B (renda entre 10 e 20 salários) e C (renda familiar entre 4 e 10 salários mínimos).

Países desenvolvidos tem uma classe média maior que os países em desenvolvimento, segundo a OCDE, na Brasil temos 44% da população descrita como classe média, na China este número está na casa dos 48% da população, um salto gigantesco em um país que a pouco mais de quarenta anos, quando iniciou sua nova estratégia de desenvolvimento econômico, grande parte da população estava em situação degradante, muitos deles morrendo de fome e inanição.

A sociedade contemporânea está realmente envolta em uma crise complexa e de difícil superação, onde o crescimento econômico se reduz rapidamente, a violência aumenta de forma acelerada, a imigração sofre um incremento diário, o desemprego estrutural avança e gera preocupações e ressentimentos e os governos estão perdidos e fragilizados nestes ambientes de medo e desesperança, o resultado é um incremento dos suicídios, ansiedades, depressões e síndromes variadas.

Segunda pesquisa da OCDE, quase 40% dos lares de classe média em 18 países europeus membros da instituição, estão financeiramente vulneráveis, sendo que este índice varia de 12% na Noruega a 70% na Grécia. Outro dado importante destacado pela pesquisa, mais de um em cada cinco lares de classe média gasta mais do que ganha gerando, com isso, um altíssimo risco de endividamento excessivo, em países como a Estônia e a Polônia este índice esta em 10% enquanto outros países membros, como o Chile e a Grécia, estes valores estão em 50% da população, retratando uma forte vulnerabilidade e riscos prementes.

O Brasil não faz parte da OCDE, recentemente o governo manifestou o interesse em ingressar neste grupo de países, mesmo assim fomos inseridos na pesquisa, com dados que chegam a 27% dos lares de classe média gastando mais do que ganha, diante disso, percebemos o alto endividamento das famílias brasileiras desta classe social, o que preocupa os formuladores de política econômica, pois retarda a recuperação da economia nacional, depois de cinco anos de baixo crescimento econômico e recessão, com perdas de mais de 9% do Produto Interno Bruto (PIB).

As novas tecnologias estão transformando estruturalmente o mundo do trabalho, a inteligência artificial está impactando sobre todos os setores, desde os serviços, o comércio, o setor industrial, a agricultura e outras atividades extrativas, todos estão sendo influenciados e precisam se adaptar a estas novas máquinas inteligentes que estão afetando, principalmente, as classes médias, deslocando seus membros para outras posições sociais, sendo que a maioria está sendo destruída por estas novas tecnologias, criando um contingente imenso de desempregados e subempregados.

Segundo a OCDE, os governos deveriam atuar diretamente para evitar uma redução mais acentuada neste grupo social, a classe média é composta por trabalhadores e profissionais autônomos, com formação mais rebuscada, mais afeitos aos conhecimentos científicos e dotados de uma bagagem cultural mais intensa e estruturada, formando um grupo de compradores de mercados sensíveis e mais elaborados, com os de artes, de teatro, de concertos, de musicais, de museus, de turismo, dentre outros, a fragilização desta classe traria graves impactos sobre setores importantes da economia.

Percebemos este processo de redução da classe média mais nitidamente em países desenvolvidos, muitos destes eram caracterizados por uma economia de base industrial, onde os empregos gerados pagavam salários bastante atrativos, gerando uma massa de trabalhadores bem remunerados e com uma estrutura de consumo e de gastos pessoais mais rebuscados, movimentando variados setores econômicos e produtivos.

Nos últimos vinte anos, percebemos um movimento de diminuição dos setores industriais nestes países, a indústria passou a buscar locais mais vantajosos para produzir seus produtos, com isso, os países asiáticos entraram nos redares destes setores industriais, principalmente devido ao baixo preço de sua mão de obra e facilidades fiscais e tributárias, isto sem falar das fragilidades regulatórias destes países, que facilita a produção de forma e reduz os custos produtivos.

A classe média apresenta um estilo de vida diferenciado, como por exemplo, moradia melhor, boa educação, planos de saúde e melhores condições de vida, estes produtos ou serviços passaram por um forte incremento dos preços, a inflação nestes mercados foi maior, como suas rendas e seus salários não acompanharam este aumento, muitas famílias estão em situação financeira difícil. Outro produto que passou por grande aumento nos preços nos últimos anos foi a moradia, como a classe média sempre teve bons empregos e estes são localizados, na sua grande maioria em cidades e localidades centrais, os alugueis são mais caros e demandam uma parcela substancial da renda, entre os anos de 1995 e 2015, os aluguéis aumentaram de um quarto da renda das famílias para quase um terço, comprometendo a saúde financeira destas famílias.

Por outro lado, as mudanças destas empresas, do ocidente para os países orientais, principalmente a China, gerou um grande impacto sobre os países industrializados do ocidente, gerando uma massa de milhões de desempregados, gerando uma destruição em série no sistema econômico, além de afetar os trabalhadores, os impactos se expandiram para os governos, com quedas assustadoras em suas arrecadações fiscal e tributária, tornando precários os serviços públicos e aumentando o contingente dos trabalhadores que passam a usufruir destes serviços, isto porque com a redução da classe média, muitos trabalhadores passam a demandar mais serviços públicos de saúde, segurança e educação, demandando dispêndios maiores dos prefeitos e dos governos estaduais, justamente num momento de queda na arrecadação dos governos, degradando mais a sociedade e as políticas públicas.

Ao analisarmos as várias crises que afetam as classes médias mundiais, encontramos um incremento de seu endividamento, anteriormente este grupo social destacava recursos para consumos de bens variados, com a freada brusca das economias globais depois da crise imobiliária dos Estados Unidos de 2008, esta classe se viu em situação de insolvência, suas dívidas cresceram demasiadamente e seus empregos foram reduzidos, gerando passivos impagáveis e afastando-os do mercado de consumo, levando muitos governos a adotar políticas específicas para resgatar esta classe social.

A tecnologia da chamada indústria 4.0, marcada por uma automatização cada vez mais acelerada, gera impactos crescentes sobre os indivíduos em escalas internacionais, trabalhadores competem entre si nas mais variadas regiões do mundo, um ambiente de competição e concorrência cresce de forma acelerada, obrigando os indivíduos a se capacitarem exaustivamente, buscando cursos e estudos técnicos e tecnológicos, leituras e atualizações, obrigando-os a mergulharem no mundo da informação, sob pena de serem retirados do mercado de trabalho de forma definitiva e condenados a obsolescência.

A classe média sente de forma acelerada todos estes movimentos da economia globalizada, como uma classe altamente conservadora e centrada em um consumo de parcela substancial de sua renda, seus movimentos impactam diretamente sobre a economia como um todo, com desemprego em alta e renda em queda, seus rendimentos cadentes a levam a reduzir o consumo de forma acelerada e a se voltar para partidos e políticos com pensamentos mais à direita, descritos como mais conservadores, influenciando o crescimento dos partidos de extrema direita na Europa e em outras regiões do mundo, como nos Estados Unidos, com a ascensão de Donald Trump, passando pela Turquia de Recep Tayyp Endorgan  e até mesmo no Brasil de Jair Bolsonaro.

As novas tecnologias, pela primeira vez, estão impactando fortemente sobre esta classe social, anteriormente as tecnologias destruíam empregos em setores marcados por muito dispêndio de força física, eram os chamados trabalhadores braçais, que eram substituídos pelas máquinas e os equipamentos e esta substituição não gerava a comoção e os medos contemporâneos, isto porque esta classe média sempre se consolidou por ser um grupo social organizado, dinâmico, politizado e formador de opinião. Neste momento os trabalhadores sofrem a concorrência não de simples máquinas e tecnologias, mas da chamada inteligência artificial, robôs inteligentes e pensantes, que organizam o pensamento e não se restringem apenas a reproduzir atividades repetitivas e programadas, estes novos equipamentos estão substituindo os trabalhadores que, na maioria das vezes, tem suas origens na chamada classe média.

Segundo especialistas em tecnologia, os novos empregos estão para serem criados, mais de 60% dos empregos da próxima década ainda não existem, serão criados com a rapidez da tecnologia e obrigarão os trabalhadores a se adaptar a esta nova realidade, com isso, seu tempo consigo próprio e com seus familiares tende a se reduzir de forma acelerada, com fortes perspectivas de desequilíbrios emocionais crescentes e acelerados, obrigando a sociedade a repensar este modelo de organização social.

Teóricos das mais variadas correntes do pensamento econômico, desde Joseph Stiglitz, passando por Paul Krugman, ambos norte-americanos e ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, ou por teóricos mais liberais e ortodoxos como o indiano Raghuram Rajan e o economista Lawrence Summers, todos acreditam que a economia global está num momento de desaceleração e o capitalismo internacional atravessa um período de instabilidades, incertezas, medos e desesperanças generalizadas.

Neste ambiente internacional marcado por grande liquidez e fortes estímulos monetários, onde os Bancos Centrais se utilizam de políticas monetárias bastante generosos e, mesmo assim, as economias estão presas a um baixo crescimento econômico e a um alto desemprego ou subemprego, onde os cidadãos não consomem, mesmo com incentivos fiscais e monetários abundantes. A explicação para este cenário perturbador pode estar no medo e na insegurança que a Quarta Revolução Industrial está gerando no mundo do trabalho, levando os trabalhadores a reduzir seu consumo e aumentar sua poupança, com medo de momentos de instabilidades e desempregos de um futuro próximo.

Diante deste cenário, a sociedade ruma para um momento crítico, de um lado a tecnologia aumenta de forma acelerada a produção, produz-se em escalas cada vez maiores e, de outra, o consumo cai vertiginosamente em decorrência do desemprego e do medo daqueles que estão empregados, levando a sociedade a uma crise estrutural. O economista norte-americano Lawrence Summers chamou este cenário de estagnação secular, termo novo e bastante significativo para definir uma crise estrutural do sistema, algo que o economista alemão Karl Marx, que no século XIX, em 1867, na sua publicação clássica, O Capital, destacou como tendência inexorável do capitalismo capitalista, esta obra sempre foi rechaçada e muito criticada pelos liberais ou neoliberais de plantão.

Na França, os chamados coletes amarelos estão agitando a sociedade, este movimento começou no final do ano passado, movimenta milhares de pessoas e consegue se mobilizar depois de um tempo considerável, grande parte destes manifestantes são oriundos de cidades que se desindustrializaram no leste e no norte do país, são regiões que vem passando por um período de forte empobrecimento, levando seus cidadãos a insatisfação e levando-os a votarem em políticos de direita ou de extrema esquerda, como Marine Le Pen, presidente do extremista ex-Frente Nacional, agora Reunião Nacional.

A globalização, marcada por um aumento na concorrência global e no desenvolvimento de novos modelos de produção, acabou gerando mais recentemente uma forte resistência em países industrializados, estas resistências estão atreladas a grupos de classe média, setores que perderam seus empregos e viram sua renda e seus salários serem reduzidos de forma generalizada, aumentando a pobreza e a insatisfação social, em alguns casos a sublevação social, com inseguranças, mortes e, em casos extremos, a guerras civis.

Um exemplo interessante para que entendamos as dificuldades do emprego na sociedade contemporânea, se analisarmos a quantidade de empregos gerados pelas maiores empresas da economia mundial, as empresas de tecnologia, e compararmos com as empresas mais importantes dos anos 80 e 90, as montadoras de automóveis e olharmos para seus valores de mercado, perceberemos números assustadores e preocupantes. O valor de mercado da empresa Netflix é de US$ 170 bilhões, esta empresa de streaming possui 5,4 mil funcionários no mundo, quando comparamos com as montadoras FCA, Renault, Mitsubishi e Nissan, que juntas valem US$ 85 bilhões, ou seja, metade do valor da Netflix, e possuem mais de 200 mil funcionários no mundo, percebemos a discrepância entre a terceira e a quarta revolução industrial.

Os tormentos dos trabalhadores são os ecos de uma crise interminável do sistema capitalista de produção, seu motor principal está no crescimento do consumo, que motiva os investimentos e a produção se efetiva, gerando empregos variados e crescentes em toda a cadeia produtiva, a premissa sempre foi de que novos investimentos gerassem empregos em ascensão e, num segundo momento levasse a um incremento da produtividade do trabalho, traduzida pelos economistas como desenvolvimento econômico. Neste momento, o sistema esta reagindo de forma diferente, os investimentos produtivos estão gerando menos empregos na economia, a produção cresce mais com o incremento de máquinas e tecnologias do que da contratação de novos funcionários, gerando na classe trabalhadora mais incertezas e inseguranças que reduzem o consumo imediato e levam as empresas a vendas menores e lucros cadentes.

Existem inúmeras propostas para reverter esta condição degradante da classe média global, onde podemos destacar: tornar o sistema tributário mais justo, lidar com o crescente aumento do custo de vida, principalmente em setores sensíveis aos gastos da classe média, como moradia e educação, melhorar a formação de lares de classe média, reduzir os riscos de excesso de endividamento e melhorar o acesso a oportunidades de negócios, estas medidas auxiliariam na recuperação de uma classe central para a sociedade, para o bom funcionamento da economia e para a estabilidade social.

No caso brasileiro, diante de uma situação de recuperação lenta, uma política importante para melhorar as condições da classe média seria o crescimento econômico e uma melhora nas perspectivas de desenvolvimento econômico. Sem crescimento temos uma piora na concentração da renda e um incremento na desigualdade, faz-se necessário crescermos com urgência e adotarmos as medidas sugeridas pelas instituições, muitas delas medidas políticas severas, mas fundamentais para melhorar o sistema econômico brasileiro.

O ambiente é perturbador, estamos diante de uma classe social fundamental para o crescimento econômico e o equilíbrio social, seus filhos são de uma geração mais educada, mais informada e melhor capacitada intelectualmente, mas as perspectivas futuras são sombrias, seus filhos tem menos chances de conseguir o mesmo padrão de vida de seus pais, estamos diante de um dos mais cruéis paradoxos do sistema capitalista, uma contradição que leva os indivíduos, das mais variadas regiões do globo, a questionar o sistema e a democracia e, sem democracia, os horizontes podem ser assustadores.

Num ambiente de perturbações autoritárias e preocupações com a continuidade democrática, como nos está sendo retratada por inúmeros teóricos na atualidade, desde Steven Levitt, passando por Yascha Mounk, Umberto Eco, Madeleine Albright, dentre outros, uma classe média assustada e amedrontada pode ser uma grande fonte de instabilidades crescentes, cultivando tendências e sentimentos autoritários que podem levar os países a constrangimentos e inseguranças, o grande diferencial do momento, é que estes retrocessos não se restringem a países periféricos, mas estão alicerçados em economias industrializadas, dotadas de conhecimento e de capacitação técnica, o mundo definitivamente não é, na contemporaneidade, um lugar seguro.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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