Cidades são hostis para idosos e economia prateada é balela, diz Alexandre Kalache

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Projeção do IBGE de maioria da população com 60 anos ou mais não é novidade e preparação está atrasada, diz médico

Entrevista de Lucas Lacerda – Fola de São Paulo – 26/08/2024
São Paulo

O médico Alexandre Kalache viu com estranheza o burburinho causado pelos dados de projeção da população do Censo 2022 divulgados na última quinta-feira (22). Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a maior parcela da população brasileira em 2070 será de idosos. “Descobriram a pólvora. Já estou dizendo isso há muitos anos.”

Já em 2050, cerca de um terço da população do Brasil terá mais de 60 anos, diz o especialista, segundo dados do próprio IBGE. As condições atuais de preparação para o envelhecimento em saúde, educação, mobilidade e trabalho, para ele, são ruins.

As cidades são hostis a idosos, diz Kalache, e a economia prateada, nome para o mercado voltado ao grupo com mais de 60 anos, é uma balela. O retrato atual da velhice, para o médico, é moldado pela desigualdade e exibe grandes parcelas de idosos endividados, responsáveis pelo sustento da família e com problemas crônicos de saúde.

O enfrentamento desse quadro deve começar agora, não apenas com quem já atingiu a maioridade, mas ainda na escola, para que adultos e idosos do futuro ao menos retardem o acúmulo de problemas. Mas ele vê uma prioridade quase nula de governantes e candidatos com a questão.

Médico gerontólogo, Kalache se diz um observador do envelhecimento. Essa foi a chave para um projeto que ele considera um legado dos anos como diretor de envelhecimento e saúde na OMS (Organização Mundial da Saúde).

Ele mapeou, a partir da visão dos porteiros de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, ações para tornar as cidades mais amigas dos idosos —e de habitantes de todas as idades, ele faz questão de destacar à Folha.

Qual a sua primeira impressão sobre a projeção do IBGE para 2070?

Quase um terço da população terá 60 anos ou mais já em 2050, são dados do próprio IBGE. Estranhei quando vi o barulho feito em relação a 2070, quando na verdade é logo ali. Vi com estranheza isso, descobriram a pólvora. Já digo há muitos anos: o grupo que mais cresce no Brasil é o de quem tem 60 anos ou mais, porque as taxas de fecundidade caíram abaixo do nível de reposição há 25 anos.

Como avalia a qualidade de vida rotineira de um idoso hoje no Brasil?

Os países hoje envelhecidos são os desenvolvidos, enriqueceram antes de envelhecer. Já o Brasil vai envelhecer muito antes de uma parcela substantiva da população ter recursos razoáveis. Pobreza e desigualdade são nossos principais problemas.

Temos uma ilusão de que o envelhecimento é cor-de-rosa, de que existe essa economia prateada.

Sim, o grupo “60+” consome, mas falamos de salário mínimo. Conseguem comer e até colocar comida na mesa para os netos. A pandemia mostrou isso: a cada vez que morria um velhinho, sua família ficava na miséria.

E como o senhor avalia isso daqui a 46 anos?

Só se pode examinar o envelhecimento sob a perspectiva do curso de vida. Os idosos de 2050 hoje são adultos com vidas pesadas, trabalho insatisfatório, serviço de transporte público massacrante e que não têm acesso a opções saudáveis de alimento, que não são baratas, nem acessíveis.

Precisamos investir primeiro em saúde e, em segundo, em conhecimento. Se este é o único grupo da população que cresce, precisamos fazer o possível e o impossível por ele. É disso que vão depender a produtividade e a competitividade do país.

Como está a qualidade de vida dos nonagenários, que serão 3% da população em 2070?

É difícil encontrar, a partir dos 80 anos, quem não tenha ao menos duas ou três condições de saúde que não matam, mas dificultam [a vida]. A pessoa chega aos 90 com nove décadas de má alimentação, sedentarismo e consumo de álcool. Estamos com uma massa de adultos que vai chegar à velhice de forma precária.

É difícil reverter algo aos 70 ou 80 anos, mas eu sempre digo “comece já”. Quanto mais cedo, melhor, mas nunca é tarde demais, sempre vai ter algum lucro. Quem vai ter 90 anos em 2070 tem 25 hoje e precisa caprichar para acumular um capital de saúde, de conhecimentos e financeiro, para chegar bem aos tais cem anos.

Os problemas nas cidades vão de gargalos no transporte ao padrão de calçadas. Como atendemos hoje os idosos, que são 10% da população?

Nossas zonas urbanas são hostis às pessoas idosas. Os ônibus, construídos em chassis de caminhão, são muito altos. Na maioria dos casos, a não ser que você esteja no Jardim Paulista [em São Paulo] ou no Alto Leblon [no Rio], eles não são adaptados, são difíceis de entrar, porque o degrau é muito alto e você já não tem mais aquela força que te empurra para a frente para subir.

Como enfrentar isso?

Desenvolvendo uma sociedade que seja —embora eu hesite em usar o termo— amiga do idoso, porque precisa ser amiga de todo mundo. Meu legado como diretor de envelhecimento e saúde na OMS foi exatamente esse. Comecei o projeto em Copacabana, bairro onde nasci e cresci, que tem a maior porcentagem de idosos da América Latina.

Em 2005, lancei um estudo improvisado, ouvindo as pessoas idosas. A resposta para “quem é seu melhor amigo” era o porteiro, que atende, monitora a região do prédio, avisa familiares da rotina. Treinamos 6.000 porteiros e disso saiu um livro com soluções criadas por eles. Além dos riscos com ônibus, vivemos numa sociedade violenta na qual o idoso é alvo fácil.
E tem a violência doméstica…

Só sabemos da pontinha do iceberg, porque a maioria dos casos sequer é relatada pelo medo de denunciar o próprio filho ou neto. Além disso, violência gera ansiedade, um mal para todo mundo, mesmo para o rico dentro do carro blindado, trancado em casa com medo de milícia e traficante.

Há muito mais ansiedade nos Estados Unidos do que em países mais pobres, mas menos desiguais, como Portugal, Grécia e Costa Rica, e isso é o segredo para envelhecer mal.

Algum exemplo nacional ou internacional que poderia ser replicado?

Lembra daquele estudo de Copacabana? Com apoio do governo do Canadá, reunimos pesquisadores, gerontólogos e planejadores urbanos e concebemos o protocolo de Vancouver para cidades amigas dos idosos, com dimensões como cidadania, transporte, moradia, participação na sociedade, acesso a serviços.

Oficialmente, segundo a OMS, 32 cidades brasileiras se arvoram como cidades amigas, mas a organização não tem meios de monitorar isso. Em Porto Alegre, por exemplo, nós vimos a tragédia de maio. O que havia de preparado para políticas municipais para idosos? Praticamente zero.

Se falarmos de bairro legal com bom transporte público, em São Paulo houve um avanço muito grande na mobilidade urbana. A rede de metrô é eficiente e é uma malha. Já a do Rio, depois que se entra, ok, mas é uma linha só. Mesmo assim não somos democráticos, privilegiamos a classe que tem mais influência no poder público.

Quanto à moradia, você tem exemplo ilhados de cohousing, que ajudam uma população envelhecida e muitas vezes isolada, sem família, que gostaria de viver junto a outras pessoas idosas. Mas há quem diga que não quer viver em um gueto, mas com todos os grupos etários. Tudo isso depende de de esforços públicos.

Estamos em ano de eleições municipais. Como vê o tema dos idosos entre candidatos de grandes cidades como São Paulo?

Políticos sofrem de idadismo internalizado. A maioria é do sexo masculino, e homem tem horror a envelhecimento. Acham que são para sempre ex-atletas. Não é, não, você é o velho de hoje. Fizemos no coletivo Velhices Cidadãs um levantamento com os partidos e, de cerca de 30, só 2 mencionam envelhecimento. Não querem saber, e isso pode vir a custar votos daqui a dois e quatro anos. Dos idosos e dos familiares deles.

Qual é a prioridade imediata?

Sou velho o suficiente para lembrar do final desastroso da guerra da Coreia. Na época, o Brasil tinha uma renda que era dez vezes a da Coreia do Sul. O que fizeram que nós não fizemos? Educação, educação e educação. É a chave, sobretudo no ensino público.

Entre os jovens que ainda temos estão os nem-nem, que não estudam nem trabalham. Nossa sociedade desigual deixa ao deus-dará este jovem, material humano que vai envelhecer. Mas também não há políticas adequadas para quem está mais perto da velhice, volto, a dizer, por causa do idadismo.

Essa ideologia perversa de não gostar do velho porque ele só dá trabalho

O idoso brasileiro em 2070 será parecido com os da geração atual?

Ele está sendo delineado hoje. Como eu disse, você envelhece de acordo com as oportunidades que está ou não tendo nas fases anteriores à velhice. Se não preveniu hipertensão, se não tem acesso a exames, a remédios, se mora mal, se tem um transporte inadequado, estamos perdendo tempo. O velho de 2070 já é adulto hoje. É um desafio global, e o século 21 será caracterizado pela revolução da longevidade.

Algo que não perguntamos?

O recado é: pare de reclamar que você e o país estão envelhecendo. Envelhecer é um marco civilizatório, é bom. Morrer cedo é que não presta.

Raio-X
Alexandre Kalache, 78
É médico gerontólogo, especializado em envelhecimento e políticas multissetoriais, pesquisador e professor universitário. Foi diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da OMS entre 1994 e 2008, e é presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil. Vive entre o Rio de Janeiro, Londres, no Reino Unido, e Granada, na Espanha, onde leciona na Escola Nacional de Saúde Pública.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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