Cessar-fogo na Baixada Santista, por Djamila Ribeiro

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Temos que seguir alertas para a realidade sangrenta do nosso país

Djamila Ribeiro, Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

Folha de São Paulo, 23/02/2024

A diplomacia brasileira trabalha pelo cessar-fogo na Palestina desde o início da guerra. A morte em massa de crianças, mulheres e homens civis e a destruição de comunidades inteiras vêm intensificando os apelos.

Contudo, o confronto desigual e massacrante prossegue, fundado em um suposto direito de defesa ilimitado que vem sendo exercido pelo extermínio de civis, em nome da famigerada “Guerra ao Terror”.

É verdade que muito se tem dito sobre essa guerra. Como brasileira e paulista, gostaria de chamar a atenção para outra guerra mais próxima —para a qual também devemos pensar em um cessar-fogo. Descendo a serra do Mar há um banho de sangue em curso que tem resultado em consequências drásticas para toda a população, em especial a negra.

Refiro-me aos índices recordes de letalidade policial na Baixada Paulista desde a morte de um policial da Rota, no início do mês. Dezenas de pessoas foram mortas por forças policiais, em uma retaliação infinita que ultrapassa os envolvidos no confronto e vitimam comunidades inteiras.
Segundo dados oficiais —os quais, em tempos de cólera, são passíveis de uma ainda maior subnotificação—, em menos de dois meses deste ano já são mais de 50 pessoas mortas pela PM na região. O número representa o triplo do registrado na cidade de São Paulo, que tem quase seis vezes mais habitantes que a Baixada.

Some-se a isso mais de 700 presos, bem como mais de 250 mandados de prisão em aberto, incontáveis feridos e três policiais mortos. E, repito, apenas em janeiro e fevereiro de 2024. Uma verdadeira guerra em curso, que engana parte da população, pois promete segurança e entrega terror para todos os envolvidos.

Fosse uma atuação estatal eficiente, a Polícia Militar não estaria preocupada em vingar-se matando pessoas, independentemente de quem sejam. Não é essa a função da polícia e, além de desumanizante, gera violência que se volta contra os agentes. O Brasil é um dos países em que mais policiais morrem no mundo e a política da bala —histórica em comunidades periféricas— tem sido um enorme fracasso, que produz mortes de agentes do Estado.

Quanto à população, é importante dizer que, embora não haja um alvo oficial definido para pessoas negras por parte do Estado, é esse grupo social que vem sofrendo consequências radicalmente desproporcionais como resultado do confronto. Tanto vêm sendo essas as pessoas sumariamente julgadas e executadas quanto são a maioria absoluta de moradoras das comunidades afetadas pelo ambiente de profunda insegurança e medo.

Sou uma mulher negra santista, tenho irmãos e sobrinhos negros que vivem em bairros periféricos na Baixada. Meu sobrinho é um bom menino, quer ser fotógrafo e modelo; jamais se envolveu com droga, trabalha e estuda. Mas nada disso importa para as balas perdidas e execuções sumárias. As mulheres da família não podem imaginar vê-lo sair de casa sem ficarem com o coração apertado, com medo que lhe aconteça alguma violência em qualquer esquina.

Em conversa com Claudio Silva, o Claudinho, que é ouvidor da Polícia Militar, tomei ciência de casos muito preocupantes. Crescem as mortes de civis denunciadas pela população como execução sumária. Um exemplo foi a morte de José Marcos Nunes da Silva, catador de materiais recicláveis que, segundo sua família, não tinha envolvimento com crime e implorou desarmado para não morrer, sem sucesso.

Uma investigação independente e rigorosa do Ministério Público há de revelar muitos outros casos. Há que se debater ainda o papel de membros do poder público para determinar a interrupção desse morticínio, já que não só se omitem como comandam essas operações. Serão essas pessoas responsabilizadas?

O desenvolvimento social na região começa com um cessar-fogo, acompanhado de políticas públicas de moradia, emprego, educação, saúde, assistência social e saneamento básico, entre outras, que visem a construção da humanidade e do bem-estar da população local. Esta, embora nada tenha a ver com os agentes envolvidos nessa guerra, paga o preço salgado por ser constituída de pessoas negras, pobres e desconsideradas pelas políticas de Estado.

Dito isso, que sigamos com a pressão pela paz na Palestina e alertas para a realidade sangrenta do nosso país, que também precisa de um cessar-fogo.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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