Carta póstuma de um professor, por Antônio Simplício de Almeida Neto.

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Antônio Simplício de Almeida Neto – A Terra é Redonda – 26/10/2024

O que é essa tal BNCC, senão uma proposta curricular precária dirigida à formação precária do proletariado precarizado?

Prezado Antonio,

Escrevo desde aqui, do outro lado do espelho. Confesso que nunca imaginei que faria algo desse tipo, ato inusitado, para dizer o mínimo, mas é que soube por alguns colegas dos idos tempos, que você se tornou historiador, professor de história e, como se não bastasse, está formando novos professores dessa disciplina na Unifesp. Quem diria? Gostaria de ver essa cena.

Não vou negar que sinto uma pontinha de orgulho, mas seria leviano afirmar que tive alguma influência sobre suas escolhas. Salvo engano, lá se vão quase 50 anos desde nosso último encontro…, você era um garoto miúdo, imberbe, entrando na adolescência sem muita vontade, estava na 7ª série, acho. Eu já era um senhor respeitável, veterano, professor austero, envergando o jaleco branco de algodão, óculos de armação grossa e escura, calvície avançada e cabelos alinhados com brilhantina Glostora.

Talvez fique surpreso em saber que estou morto. Infarto fulminante. Ocorreu em 1987. Estava em casa, assistindo televisão, tranquilo em minha poltrona, sozinho, de pijama. Meu corpo foi achado pelo porteiro do prédio em que eu residia, ali no centro antigo de São Paulo, depois de dois dias do funesto evento. Eu não desci para pegar o jornal diário, ele interfonou, bateu na porta, silêncio, usou a chave reserva que eu lhe confiara para alguma emergência. O Elias era um cara batuta. Foi ao meu enterro.

Contudo, não escrevo para falar desse trágico e inevitável episódio, pois todos morremos um dia, não é mesmo? Na verdade, eu resolvi escrever porque soube (aqui nesse não-espaço atemporal, nós sabemos de muitas coisas…) que você localizou uma fonte documental, um trecho de entrevista que dei a uma estudante de licenciatura em história lá da FEUSP, na disciplina Prática de ensino de história, com aquela professora… Elza Nadai (que está entre nós), e que fez estágio comigo em 1979, quando eu já estava me aposentando.

Parece que a estudante registrou em seu relatório: “Em conversa com o professor [eu!] pude observar toda uma desilusão a respeito do ensino. Leciona desde a década de 40, acredita firmemente que ser professor é virtude inata, não se aprende através de técnicas. Disse-me que já utilizou vários métodos para lecionar e atualmente utiliza aquele que a classe merece, isto é, aulas expositivas, pois [eles, os alunos] não têm nível para outra coisa.”. Vamos e venhamos, Antonio, o relatório da estudante é carregado de representações típicas de quem nunca lecionou. Esse papo de “desilusão a respeito do ensino”, valha-me Zeus!

Quero ver entrar numa sala de aula cheia de adolescentes insolentes, várias turmas e turnos, arrocho salarial, idade avançando, rotina pesada, pais torrando a paciência, direção autoritária… Seria mais apropriado falar em desencanto com o ensino e com a escola. De qualquer forma, foi mesmo incrível essa minha resposta! Eu e meu sarcasmo!… O pessoal daqui ficou perplexo e houve quem me chamasse de déspota esclarecido (aqui, apesar da imaterialidade, ainda mantemos o bom humor).

Lembro bem de quando conversei com aquela jovem estudante de história, arrogante como ela só, insinuando que eu não sabia lecionar, querendo me expor na frente dos alunos. Ah, a juventude impetuosa! Aliás, ela também morreu, num acidente de moto na Rio-Santos, a caminho de Trindade. Viva fosse, aposto que seria eleitora do excrementíssimo (adorei esse neologismo!) ex-presidente Jair Bolsonaro.

Aliás, também fiquei sabendo que numa de suas aulas, você mencionou minha metodologia catequética como exemplo a não ser seguido: ditado de perguntas e de respostas a serem decoradas para a prova. Cá entre nós, passados tantos anos, admito que minhas aulas não eram lá muito dinâmicas. Não querendo me justificar, o fato é que eu não era historiador, com formação superior em história e tudo mais, e sequer fiz licenciatura. na verdade, eu estudei direito, mas nunca tive muito jeito para advogar, e, como gostava muito de história, acabei me tornando professor como um bico, e fui ficando.

Isso era muito comum naquela época, anos 1940, 1950. De modo que, eu ia fazendo como me dava na veneta. Lembra de uma aula que dei para sua turma sobre os fenícios? Eu achava esse assunto fascinante, mas vocês não suportavam, eu ditei uma pergunta/resposta e mencionei “embarcação trirreme”, e desenhei na lousa um perfil meio tosco de um barco e três níveis de remos, para que entendessem o que era aquela expressão. Esse era o máximo de didática a que eu chegava. Já a professora Neide, com quem você teve aula na 5ª série, que era bem mais jovem (soube que morreu de Covid-19…), ingressou no magistério nos anos 1970, cursou história, licenciatura, tudo bonitinho, era adorada pelos alunos, até a voz dela era modulada para aquela faixa etária.

E tem mais…, só aqui, no além-túmulo, compreendi que naqueles anos 1970 a escola pública vivia uma verdadeira metamorfose, os filhos da classe trabalhadora (para usar a expressão do velho Marx, cuja fama revolucionária descobri aqui) passaram a frequentar os bancos escolares, era gente com outros costumes, pouco cultivados, pais sem estudo. E isso era muito complicado para professores como eu, acostumados a lecionar para os filhos da classe média, “gente como a gente”, sabe? E aí começou a chegar aquela “gente diferenciada”, como diz o pessoal de Higienópolis, alunos sem material didático, sem uniforme, não faziam o dever escolar, desorganizados, alguns vinham por causa da merenda escolar(!), modos pouco civilizados. Posso parecer preconceituoso, mas… eram horrorosos!

A bem da verdade, e da minha finada reputação, meu entendimento correspondia a certo zeitgeist, como se diz por aí. Era o espírito da época, de modo que muitos professores e autoridades educacionais compartilhavam dessa minha percepção. Lembro vivamente da Keila, professora de Música que, além de não ensinar música, era extremamente preconceituosa com qualquer estilo que não fosse o erudito; do professor Constantino, de Língua Portuguesa, que humilhava os alunos que não entregassem trabalhos impecáveis (como os do filho dele, que era seu colega de turma); do professor Juvêncio, de Educação Física, que submetia os estudantes fisicamente inábeis a um corredor polonês formado pelos hábeis (fascista!, diriam hoje); do professor Salim, de Ciências, que passava álcool na mesa e demais objetos da sala de aula, e sequer tocava no giz, com medo de se contaminar (tinha nojo dos alunos). Olhando à distância, até que havia uma fauna pitoresca.

Sabe, Antonio, devo reconhecer que foi muito difícil para aquele veterano professor que se considerava parte da elite intelectual, porque leu alguns livros a mais, e que supunha dar aula para os filhos da sua classe social, seus iguais, ter de civilizar a massa ignara, ensinar os filhos das “classes perigosas”, e ainda ser colocado numa condição salarial e de trabalho… proletária. O ressentimento – a chave que decifra o Brasil – bateu forte. Sei que você não tem um olhar complacente com o passado, coisas da formação acadêmica, mas é que aquela estagiária me pegou num mau momento.

Mudando de assunto, estou… (ia dizer “preocupado”, mas o fato é que nada mais me preocupa) estupefato, por assim dizer, pois soube que vocês estão às voltas com uma nova proposta curricular, um monstrengo chamado BNCC, que retirou a disciplina história do currículo e que, ainda por cima, houve historiador que colaborou na elaboração desse documento, dando tiro no próprio pé! E que, como se não bastasse, há historiadores discutindo “a BNCC de história que queremos”! Vanitas vanitatum et omnia vanitas! O que pequenas vantagens fazem com os seres humanos, não é mesmo? Mas o que me deixa perplexo, meu caro, não é a vaidade, pois também já cometi meus pecadilhos, mas saber que alguns de vocês, que alegam ter consciência histórica, entraram nessa barca furada.

Noto, pelo pouco que acompanho à distância, que os mentores desse documento curricular são ardilosos e mais sofisticados que os milicos et caterva de outrora. Enredaram vocês direitinho… Foi um crime curricular perfeito! Como se usassem uma enorme rede de arrasto, e capturassem toda a educação básica (incluindo o Ensino Médio), as disciplinas escolares, seus conteúdos e materiais didáticos, o ensino superior (privado e público), cursos de capacitação e treinamento, e até esses cacarecos eletrônicos, que não havia no meu tempo, como plataformas e softwares (nem sei o que é isso…). Esse pessoal das fundações privadas não dorme no ponto! Como se dizia antigamente, enquanto vocês iam com o milho, eles voltavam com o fubá.

Agora, o surpreendente é que os professores da sua geração, e alguns da geração anterior, que tanto lutaram para democratizar o ensino e formar alunos críticos, entraram nessa barca furadíssima, que não só liquidou com a disciplina História no Ensino Médio e vem depreciando a formação dos futuros professores de História, como está privando os alunos da educação básica – os filhos da classe trabalhadora! – de ter acesso ao conhecimento qualificado de História. Isso para não falar da criação desses… xenomorfos curriculares, como Empreendedorismo e Projeto de Vida, que remetem à EMC e à OSPB de outrora. Enfim, tudo aquilo deu nisso?!! Tantos debates sobre resistência, brechas e dobras, inclusão, conscientização, antirracismo, decolonialidade, seminários, congressos e publicações, para dar numa… janela de oportunidade$ e negócio$?!

Veja que curioso, meu caro, não sei se vai lembrar, mas noutra fonte documental que você utilizou em suas pesquisas, havia um trecho de uma Ata de reunião pedagógica do ano de 1970, de uma escola estadual da Vila Brasilândia, periferia de São Paulo, em que o diretor disse aos professores que eles deveriam formar os estudantes “de acordo com o nível do bairro, [e cujo objetivo] não será [seria] a intelectualização, mas sim dirigida para o trabalho.”

Essa frase soa perturbadora, não? Eu não lecionei nessa escola, mas naquela época eu teria considerado normal, pois era o jogo jogado. Agora que estou em outra dimensão e vejo tudo em outra perspectiva, parece-me que aquele diretor era um… visionário! Sim, um visionário! 50 anos depois seu vaticínio se cumpriu! O que é essa tal BNCC, senão uma proposta curricular precária dirigida à formação precária do proletariado precarizado?

Por essa, nem o Paulo Freire (também o vi circulando por aqui) esperava… E sabe o que mais me impressionou? É que esse golpe curricular aconteceu à luz do dia, foi arquitetado lentamente e amplamente anunciado, e ainda contou com a ajuda efusiva de setores acadêmicos, sob a alegação de estarem dando o melhor de si ou de “resistirem por dentro”. Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece!!

Por essas e outras é que não tenho nenhuma vontade de retornar, reencarnar, baixar, corporificar, descer, essas coisas… Além de andar meio desencantado, desde os anos 1970…, se ao menos eu acreditasse em vida após a morte…, poderia alimentar alguma esperança de realização plena em outro nível de existência. Mas não tem jeito, Antonio, vocês terão de se haver com o “horizonte de expectativas” do seu tempo presente, como escreveu o tal do Koselleck (eita, sujeito complexo! Também morreu.). Creia, o abacaxi e o pepino que vocês cultivaram e colheram terão de ser descascados por vocês e pelas próximas gerações.

E com isso vou me despedindo, com essa menção ao trabalho duro que espera os futuros professores de História. Ou você tinha a ilusão de que haveria vida eterna? Não se iluda, meu querido, “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, como cantou o vivíssimo Gilberto Gil. Quando menos se espera…, babau!, passamos dessa para o… nada.

Bem…, creio que não mais nos falaremos e tampouco nos veremos, de modo que lhe desejo força nesses anos de vida que lhe restam. Já deve ter percebido que “o caminho é deserto” (essa é do Braguinha, um cara porreta!) e o lobo mau está à espreita, às vezes, dissimuladamente, participando de um evento acadêmico.

Adeus!

Professor Hélio Vieira[1]

*Antonio Simplicio de Almeida Neto é professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Autor, entre outros livros, de Representações utópicas no ensino de história (Ed. Unifesp).

Nota

[1] Esse texto foi publicado anteriormente no e-book Cartas do Ensino de História, organizado por ALMEIDA NETO, Antonio Simplício de; SOARES, Olavo Pereira; MELLO, Paulo Eduardo Dias de. São Carlos/SP: Pedro & João Editores, 2023.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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