Bolsonaro defende o autoritarismo, não os valores militares, diz historiadora

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Para Heloisa Starling, ditadura levou à associação entre Forças Armadas e práticas violentas, mas entre os princípios militares está a compaixão

Naief Haddad – SÃO PAULO – Folha de São Paulo – 20/08/2018

Historiadora com extensa produção sobre o período republicano do Brasil, Heloisa Starling diz que é preciso dissociar o candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro (PSL) dos valores militares.

Entre esses valores, afirma ela, está a compaixão das campanhas humanitárias. “O que Bolsonaro defende são princípios autoritários.”

A historiadora Heloisa Starling em seu apartamento, em Belo Horizonte – Alexandre Rezende/Folhapress

A professora de história da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) também comenta a hipótese de a candidatura Lula (PT) ser impugnada. Para ela, caso consiga transferir grande quantidade de votos para o vice, Fernando Haddad, Lula vai se equiparar a Getúlio Vargas no poder de mobilização da sociedade.

Starling aponta ainda falta de nomes de peso político na disputa. Ciro Gomes (PDT) e Geraldo Alckmin (PSDB) “se apresentam mais como gestores do que como lideranças capazes de pensar o país”.

Brasil: uma Biografia”, livro seu e de Lilia Schwarcz, foi lançado em 2015. Acabou de sair uma reedição com um texto complementar. Por quê?

Os editores da Inglaterra e dos EUA pediram uma atualização para falar do impeachment [de Dilma Rousseff]. Não faria sentido que esse complemento saísse lá fora e não no Brasil.

Mas há outra razão. Quando lançado, o livro terminava falando do Brasil como um país de democracia consolidada. O problema era consolidar a república. Dois anos depois, [esse quadro] não era mais assim. Tinha um erro ali porque a democracia entrou em crise.

Se você olhar a bibliografia até aquele ponto, verá que os principais autores diziam que a democracia brasileira era recente, mas estava estabilizada. Houve, então, necessidade de retomar a discussão e dizer: “Olha, não é bem assim”.

O que quer dizer com crise da democracia? 

Existe a emergência de setores favoráveis a governos autoritários, setores de extrema direita.

O segundo ponto é o desequilíbrio na distribuição dos poderes. Há uma grande retração do Executivo. O Legislativo, por razões de corrupção, fisiologismo, incompetência, também se retraiu.

O Montesquieu [filósofo francês que viveu entre 1689 e 1755] tinha razão: o poder é intrusivo. Se não tiver limite, cresce e invade as outras áreas. É o caso do Judiciário. O equilíbrio democrático pressupõe que Judiciário, Legislativo e Executivo freiem uns aos outros. Quando dois deles ficam muito frágeis, o poder vai embora. É um problema para a democracia porque atinge a liberdade e a Constituição.

Há ainda um outro elemento, que é a disseminação em setores da sociedade da convicção de que a política não vale a pena e que as pessoas devem se voltar para si mesmas, exigindo que os seus interesses pessoais sejam garantidos. Esse é um caminho para governos autoritários.

Há nesta corrida eleitoral um candidato, Jair Bolsonaro (PSL), que é capitão reformado e defende os valores militares. Pode comentar esse anseio dos militares pelo poder político?

Eu não considero que o Bolsonaro defenda os valores militares, que são de outra natureza, como coragem ligada à defesa da pátria diante do inimigo externo e compaixão que conduz à realização de campanhas humanitárias. O que ele defende são princípios autoritários.

O fato de termos vivido a ditadura militar nos levou a associar as Forças Armadas às práticas violentas e autoritárias. Eu acho que não é isso.

O que acontece é um desvio perigoso. Durante nossa história republicana e a partir do momento em que as Forças Armadas se entendem como gente, existe um traço permanente que é o intervencionismo militar. Sair do seu campo profissional específico para se meter na política.

Há uma consequência imediata desse intervencionismo na vida pública nacional: militar é treinado para a guerra. Então na hora que ele se transfere para política, é difícil encontrar um militar que aja de forma não-autoritária porque se você é treinado para o conflito da guerra, faz uso da violência e não pode discordar de ordens, você tem de obedecer. Afinal, sua vida está em risco.

As Forças Armadas intervêm na história política brasileira de duas maneiras: ou por meio de golpes ou com candidaturas. Lembre-se das candidaturas de Eurico Gaspar Dutra, general, ou do Henrique Teixeira Lott, marechal, um posto de oficial general também, só que na Aeronáutica. Bolsonaro não se encaixa nesse perfil, é uma novidade.

Como assim? Ele é um capitão, não se tem notícia de um capitão, que é um grau intermediário na hierarquia militar, candidatar-se à Presidência. Além disso, ele tem uma história militar sobre a qual há muitas dúvidas.

Existiu um outro capitão do Exército com papel na vida política brasileira: Luís Carlos Prestes. Mas com uma trajetória militar e um tipo de reconhecimento dentro das Forças Armadas muito diferente, tanto por conta do seu talento como engenheiro, quanto da sua participação em ações militares de dimensões quase épicas, como a marcha da coluna Prestes.

Bolsonaro pode ter adesão de parte das Forças Armadas, sobretudo na tropa, mas não representa os valores militares. Tampouco subverte a hierarquia das Forças Armadas. Imagino os generais, almirantes e brigadeiros votando no Dutra ou no Lott, mas não consigo imaginá-los apoiando um capitão como Bolsonaro.

Existe um risco real para a democracia em uma eventual vitória dele? Sim. Ainda não vi o Bolsonaro defender nenhum valor democrático. Todas as propostas que tem feito são referentes à supressão de direitos, à disseminação de violência e à extinção de instituições fundamentais.

Como avalia a estratégia do PT de manter o Lula candidato, mesmo na prisão? É um plano que mantém Lula nas manchetes, dá a ele alta visibilidade, mas é de alto risco. O que PT e Lula vão fazer no dia seguinte à eleição se a estratégia der errado?

Se olhar para a história do Brasil, há uma situação parecida. Quando Getúlio Vargas renuncia para não ser deposto por seus ministros militares, no final do Estado Novo [1945], ele se isola. É quase como se estivesse exilado em São Borja (RS). Aí vem a campanha eleitoral, e Vargas tem dificuldade de decidir quem apoiar. Acaba escolhendo Dutra, que é do partido dele, o PSD.

Faltava meia hora para o encerramento do último comício do Dutra quando chegou ao palanque um emissário de Vargas, com uma declaração de apoio ao Dutra. Ainda restavam cinco dias de campanha, tempo suficiente para inundarem o país de cartazes, com a foto de Vargas e um texto direto: “Ele disse: Vote em Dutra!”. A rigor, não precisava nem da foto: “Ele”, com maiúscula, todo mundo sabia quem era. O Dutra ganha.

Foi a única vez na história do Brasil em que se conseguiu fazer transferência de votos em um espaço de tempo curto com tanta competência.

A população era menor, mas, guardadas as devidas proporções, há semelhança com o alto risco do Lula. A diferença é que Vargas estava em um autoexílio, e Lula está preso. Conseguirá transferir tantos votos para o Haddad? Essas eleições vão mostrar se o Lula está no mesmo patamar de Vargas.

No mesmo patamar em relação à influência? Na capacidade de mobilizar a sociedade e de ser uma liderança política de magnitude. Embora o Vargas não estivesse preso, estava em situação de isolamento, afastado da cena principal. Não são situações iguais, mas há elementos que são análogos ao que estamos vivendo hoje.

Uma característica incomum desta eleição é a indefinição. A um mês e meio do primeiro turno, quatro ou cinco candidatos aparecem com chances razoáveis de avançar para o segundo turno. Além disso, o percentual de eleitores indefinidos é alto. Lembra-se de momento semelhante na história da democracia brasileira? Não. Fala-se muito da primeira eleição depois da ditadura, em 1989, mas existem diferenças: eram muitos candidatos, mas não havia indefinição, e sim disputa política.

As pessoas diziam que iriam votar em Lula, Ulysses, Brizola… Havia o eleitor envergonhado: dizia-se indeciso, mas ia votar no Collor. E não existia esse traço totalitário de rejeição à política. A sociedade debatia opções em torno do conjunto de candidatos.

Hoje, ao lado dessa profunda indefinição, é preciso considerar que talvez o país nunca tenha visto um grupo de candidatos tão inexpressivos como lideranças políticas.

Ciro Gomes, como ex-governador e ex-ministro, e Geraldo Alckmin,também como ex-governador, não têm esse peso? Acho que nenhum dos dois. Tanto não têm peso que se apresentam mais como gestores do que como lideranças capazes de pensar o país. Podem ser mais ou menos conhecidos da população, o que não quer dizer que sejam expressivos. Não me refiro ao grau de conhecimento do personagem.

Marina Silva tem duas eleições presidenciais, é conhecida. Mas desapareceu ao longo desse processo recente de crise, que seria um momento interessante para que se apresentasse como liderança capaz de apresentar um projeto para o país.

 

 

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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