Intervenções cambiais do Banco Central

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Valor Econômico
Autor: Márcio G. P. Garcia

Apesar de toda a incerteza sobre o futuro da economia mundial, o cenário dominante atual é que os piores temores sobre a crise econômica parecem ter passado. Este cenário, que propicia o retorno do apetite dos investidores internacionais por ativos mais arriscados, com maiores retornos esperados, tem contribuído para melhorar a conta financeira (capital) do balanço de pagamentos brasileiro. Simultaneamente, a retomada do crescimento mundial vem se concentrando mais pesadamente na Ásia, em especial na China, acarretando aumento da demanda por nossas exportações de commodities, melhorando também a balança comercial. Tais movimentos voltaram a trazer para o centro da política econômica a questão do que fazer para mitigar a apreciação cambial que vem ocorrendo, prejudicando o desempenho das exportações, sobretudo de manufaturas.

Algumas medidas ineficazes ou insensatas vêm sendo propostas para mitigar o influxo de dólares, como controles de entrada de capitais estrangeiros e taxação das exportações de commodities, embora não se saiba se o governo lançará ou não mão delas. As principais medidas que vêm sendo utilizadas há anos, e deverão crescer ainda mais de importância, são as intervenções esterilizadas pelo Banco Central do Brasil (BC) nos mercados cambiais, ainda que o BC sempre advirta, corretamente, não ter um alvo para a taxa de câmbio.

Intervenções cambiais esterilizadas são compras ou vendas de divisas estrangeiras pelo BC sem que ocorra alteração no estoque de moeda (nem na taxa de juros). Na sua forma mais simples, uma operação esterilizada de compra de divisas envolve duas operações das mesas do BC. Inicialmente, o BC compra dólares e paga em reais, assim acumulando reservas internacionais e aumentando a base monetária. Simultaneamente, o BC conduz operações de mercado aberto que visam o enxugamento da liquidez adicional gerada pela operação de compra de câmbio: o BC vende títulos públicos de sua carteira, assim fazendo retornar a seu valor inicial a base monetária (e também a taxa de juros).

Ressalte-se a diferença entre intervenções esterilizadas e não-esterilizadas: estas últimas expandem (compra de divisas) ou contraem (venda de divisas) a base monetária, alterando, portanto, a taxa de juros. Não há dúvidas quanto à eficácia de intervenções cambiais não-esterilizadas em mover a taxa de câmbio, pelo menos por algum tempo. Países que têm metas, explícitas ou não, para a taxa de câmbio, recorrem, via de regra, a intervenções não-esterilizadas.

Intervenções esterilizadas podem afetar a taxa de câmbio via dois canais teóricos: o canal de sinalização e o canal de equilíbrio de portfólio. No canal de sinalização, o pretenso efeito sobre a taxa de câmbio adviria de sinais implícitos de futuras mudanças em políticas governamentais. Este canal não parece relevante quando se adota o sistema de metas para inflação, no qual há muitas formas de o BC passar ao mercado informações que julgue conveniente divulgar.
No canal de equilíbrio de portfólio, mudanças nas taxas de retorno alteram a taxa de câmbio. Segundo a lógica deste hipotético efeito, ativos denominados em dólares e reais não são substitutos perfeitos. Inicialmente, os dealers de câmbio detêm seus respectivos estoques desejados de moeda estrangeira. Então, o BC realiza a compra esterilizada, reduzindo os estoques dos dealers para níveis abaixo dos desejados (às taxas de retorno vigentes, os dealers passam a ter demasiados ativos em reais e poucos ativos em dólares). Assim sendo, os dealers vão ao mercado para recompor seu estoque, comprando dólares e pagando em reais, causando a depreciação do real, a qual, por sua vez, causa a diminuição do retorno esperado dos ativos em dólares. No novo equilíbrio de portfólio, com o dólar mais apreciado, os novos retornos esperados são compatíveis com a nova quantidade relativa de ativos em dólares e reais.
A literatura empírica sobre a capacidade de intervenções esterilizadas afetarem a taxa de câmbio é bastante controversa. Detecta efeitos que variam entre diferentes países, e mesmo entre diferentes episódios, ao longo do tempo, em um mesmo país. Estudos empíricos em mercados emergentes têm sido pessimistas quanto à eficácia de intervenções esterilizadas em alterar a trajetória da taxa de câmbio.

O advento dos derivativos financeiros veio a tornar ainda mais complexa a operação das intervenções esterilizadas. Por exemplo, ao decidir atuar no mercado cambial, o BC tem ainda que decidir se vai atuar no mercado à vista (mercado composto pelo BC e por bancos autorizados a operar com câmbio) ou no mercado de derivativos cambiais, usualmente via swaps cambiais. Em princípio, o locus de atuação do BC seria indiferente, produzindo o mesmo resultado independentemente de onde o BC intervenha. Na prática, contudo, pode ser relevante a escolha do mercado no qual o BC intervirá. Um exemplo ilustra o problema.
Uma das formas com que investidores estrangeiros lucram com a diferença entre os juros altos no Brasil e os juros mais baixos nos EUA, em operação conhecida como carry-trade, é vendendo contratos futuros de dólar na BM&F Bovespa. A pressão vendedora de dólar futuro deprime o preço do dólar futuro, reduzindo o forward premium (diferença entre os preços do dólar futuro e do dólar à vista). Como a taxa de juros interna não se altera, sobe o cupom cambial (a taxa de juros em dólar no Brasil), gerando oportunidade de arbitragem para os bancos, que passam a trazer dólares tomados por empréstimo no exterior. Neste caso, em qual mercado deve o BCB intervir? No mercado futuro (onde começou a pressão vendedora de dólar futuro), no mercado à vista (onde surgiram os dólares spot (à vista) que apreciaram o BRL), ou em ambos os mercados? Se em ambos, em qual proporção? Esta é uma questão extremamente relevante de política econômica para a qual não se dispõe de respostas claras, teóricas ou empíricas.

Mais ainda, calibrar o tamanho das intervenções é também um grande problema. Em entrevista recente, o diretor do BC Mário Torós rebateu a ideia de que o BC deva aumentar suas intervenções de compra no mercado spot para além do fluxo cambial: “De forma geral, o resultado final desse tipo de atuação (quando a compra, pelo BC, supera o volume de dólares ingressados no dia), é uma circularidade. Você compra, puxa o cupom, entra capital especulativo, o fluxo de dólares aumenta, você vai e compra esse fluxo maior. Por definição, você estará sempre comprando o fluxo”. … O governo sabe se sua política está afetando ou não o ingresso de capitais especulativos na medida em que a atuação do BC no mercado está sendo de tal maneira que a taxa de juros do cupom cambial se mantém no nível da taxa de juros do mercado internacional (mais um pequeno prêmio) (Valor Econômico, 14/8/2009).

Subentende-se da declaração do diretor do BC que não há um objetivo de comprar um volume definido a priori, devendo o BC absorver o excesso do fluxo que ocorreria na ausência de sua intervenção. Tal objetivo é compatível com o já alto nível de nossas reservas cambiais (as quais, em nível menor, já se demonstraram suficientes para enfrentar a crise de 2008) e o alto custo fiscal das mesmas. Em suma, embora não seja claro que as intervenções esterilizadas do BC em mercados cambiais possam alterar a trajetória de longo prazo da taxa de câmbio, é quase certo que continuarão a ocorrer.

Márcio G. P. Garcia, é PhD por Stanford e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, escreve mensalmente às sextas-feiras (http:// www.econ.puc-rio.br/mgarcia

O ponto crítico da civilização

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Autor: Lester Brown
Mercado Ético.

Tem aumentado a preocupação com os pontos críticos da natureza. Cientistas já questionam, por exemplo, a capacidade de recuperação das espécies em risco de extinção. Biólogos marinhos, por sua vez, estão preocupados com o fato de que a pesca excessiva dará início ao colapso dessa indústria.

Sabemos que existiram pontos críticos em civilizações antigas, pontos em que a população foi dominada pelas forças naturais que as ameaçavam. Por exemplo, em algum ponto, o acúmulo de sal relacionado à irrigação do solo esgotou a capacidade agrária dos Sumérios. Com os Maias, os efeitos danosos do desmatamento associados à perda da fertilidade do solo tornaram-se irreversíveis.

Porém, os pontos críticos que levam ao declínio e ao colapso de uma sociedade nem sempre são facilmente previstos. De forma geral, os países desenvolvidos podem lidar com novas ameaças de forma mais efetiva do que os países em desenvolvimento. Por exemplo, enquanto os governos de países industriais têm sido capazes de manter os índices de infecção do HIV entre adultos abaixo de 1%, muitos governos de países em desenvolvimento têm falhado nesse controle e agora estão lutando com altos índices de infecção. Isto é mais evidente em alguns países sul-africanos, onde 20% ou mais adultos estão infectados.

Uma situação semelhante existe com o crescimento populacional. Enquanto a taxa se mantém estável em quase todos os países industrializados, exceto os Estados Unidos, observa-se o contrário em quase todos os países da África, Oriente Médio e do subcontinente indiano – onde a taxa populacional é crescente. Esses 80 milhões de pessoas a mais no mundo por ano nascem, exatamente, em países onde os sistemas naturais já estão se deteriorando, em face da excessiva pressão populacional. Nestes países, o risco de falência do Estado também está crescendo.

No entanto, alguns assuntos parecem superar até mesmo as habilidades de governança das nações mais avançadas. Quando alguns poucos países detectaram a redução nos níveis de água dos lençóis subterrâneos, era lógico esperar que seus governos rapidamente elevassem a eficiência racional do recurso e estabilizassem o crescimento da população, para estabilizar os aqüíferos. Infelizmente, nenhum país – desenvolvido ou em desenvolvimento – o fez. Dois Estados em falência, onde o resultado da extração excessiva da água soma-se à falta de uma política de segurança hídrica, são o Paquistão e o Iêmen.

Embora a necessidade de cortar as emissões de carbono seja evidente já há algum tempo, nenhum país conseguiu se tornar uma nação “carbono-neutra”. Até mesmo as sociedades tecnologicamente mais avançadas enfrentam muita dificuldade política para isso. Poderiam, assim, os crescentes níveis de dióxido de carbono na atmosfera, provarem-se tão incontroláveis para a nossa civilização quanto os níveis de sal no solo foram para os Sumérios no ano 4.000 A.C.?

Outro ponto de pressão sobre os governos é a redução da oferta de combustível fóssil. Embora a extração mundial de petróleo tenha excedido, em 20 anos, a descobertas de novas reservas, somente a Suécia e a Islândia possuem algo que remotamente assemelhe-se a um plano para lidar efetivamente com uma retração da oferta.

Este não é um inventário exaustivo de problemas não resolvidos, mas apresenta uma noção da quantidade deles. Analiticamente, o desafio é avaliar os efeitos de pressionar cada vez mais o sistema natural global. O resultado desse estresse ficou evidente na atual questão da segurança alimentar, o ponto fraco de muitas civilizações antigas que entraram em colapso.

Além da dificuldade de adaptação ao crescimento constante da demanda por alimentos, várias tendências convergentes estão tornando as coisas ainda mais difíceis para agricultores ao redor do mundo. Os pontos críticos delas são a queda dos níveis dos lençóis freáticos, o uso indevido de terras cultiváveis e ocorrências climáticas extremas, incluindo ondas de calor, secas e enchentes. Como os problemas não resolvidos se acumularam, os governos mais fracos estão começando a sucumbir.

Para agravar a situação, os Estados Unidos, maiores produtores mundiais de trigo, aumentaram dramaticamente sua participação na safra de grãos utilizando o etanol como combustível – saltando de 15%, em 2005, para mais de 25% em 2008. Esse esforço mal orientado para reduzir a dependência do petróleo ajudou a conduzir os preços mundiais de grãos a elevações constantes até meados de 2008, criando uma insegurança alimentar mundial sem precedentes.

Os riscos desses problemas acumulados (e suas conseqüências) dominarão cada vez mais os governos, levando à falência generalizada do Estado e, finalmente, ao fim da civilização. Os países que estão no topo da lista de Estados em falência não são particularmente uma surpresa. Incluem, por exemplo, Iraque, Sudão, Somália, Chade, Afeganistão, República Democrática do Congo e o Haiti. E a lista cresce cada vez mais a cada ano, levantando questões perturbadoras: quantos Estados em falência serão submetidos a isso antes do fim completo da civilização? Ninguém sabe a resposta, mas é uma pergunta que precisamos fazer.

Estamos numa corrida entre os pontos críticos da natureza e nossos sistemas políticos. Podemos desativar poderosas usinas de carvão antes que o derretimento da calota de gelo da Groelândia se torne irreversível? Podemos reunir vontade política pelo fim do desmatamento na Amazônia antes que as crescentes queimadas cheguem a um ponto sem retorno? Podemos ajudar os países a estabilizarem a população antes que se tornem Estados em falência?

Temos tecnologias para restaurar os sistemas naturais de suporte da Terra, para erradicar a pobreza, para estabilizar a população, para reestruturar a economia energética mundial e o clima. O desafio agora é construir vontade política para fazê-lo. Salvar a civilização não é um esporte para espectadores. Cada um de nós possui um papel de liderança a representar.

Adaptado do Capítulo 1, “Entering a New World”, Lester R. Brown, Plano B 3.0: Mobilizing to Save Civilization (Nova Iorque: W.W. Norton & Company, 2008), disponível para download gratuito e para compra no site do Earth Police Institute.

Lester R. Brown é considerado um dos mais influentes pensadores mundiais. Formado em ciências agrícolas, dedica-se à pesquisa e ao debate dos grandes temas ambientais e econômicos desde os anos 70, quando fundou o World Watch Institute. É também fundador do Earth Policy Institute.

Cresce o risco de nova contração

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Valor Econômico
Autor: Nouriel Roubini

A Economia mundial está começando a se recuperar da pior recessão e crise financeira desde a Grande Depressão. No quarto trimestre de 2008 e nos primeiros três meses de 2009, o ritmo de contração na maioria das economias avançadas era semelhante à queda livre do PIB que os países registraram nos estágios iniciais da Depressão. No entanto, no final do ano passado, as autoridades econômicas, que até aquele momento estavam agindo tardiamente, enfim começaram a usar a maioria das armas disponíveis em seus arsenais.

Os esforços deram frutos, e a queda livre da atividade econômica se atenuou. Existem agora três questões em aberto quanto às perspectivas. Quando a recessão mundial vai acabar? Que forma tomará a recuperação econômica? Existem riscos de recaída?

Quanto à primeira questão, parece que a economia mundial chegará ao fim da queda no segundo semestre de 2009. Em muitas economias avançadas (Espanha, Estados Unidos, Itália, Reino Unido e em alguns países da zona do euro) e em alguns emergentes (principalmente na Europa), a recessão não se encerrará formalmente antes do final do ano, já que os brotos verdes da recuperação ainda estão cercados de ervas daninhas. Em algumas outras economias avançadas (Alemanha, Austrália, França e Japão) e na maioria dos mercados emergentes (China, Índia, Brasil e outras partes da Ásia e América Latina), a recuperação já começou.

Quanto à segunda questão, o debate se trava entre aqueles -a maioria do consenso econômico- que antecipam uma recuperação em forma de V, com rápida retomada de crescimento, e aqueles -como eu- segundo os quais a recuperação será em U e se manterá anêmica e abaixo da tendência por ao menos dois anos, após um par de trimestres de rápido crescimento alimentado por reposição de estoques e recuperação da produção ante os níveis quase tão desfavoráveis quanto os da Grande Depressão.
Existem diversos argumentos que apontam para uma recuperação fraca e em forma de U. O emprego continua a cair acentuadamente nos Estados Unidos e em vários mercados -em economias avançadas, o desemprego estará acima dos 10% em 2010. Isso é má notícia não só em termos de demanda e prejuízos bancários mas também em termos de capacitação profissional, um fator chave para o crescimento da produtividade em longo prazo.

Segundo, temos uma crise de solvência, e não apenas de liquidez, mas ainda não começou uma redução real no endividamento, porque os prejuízos das instituições financeiras foram socializados e transferidos aos balanços dos governos. Isso limita a capacidade de empréstimo das instituições financeiras, a capacidade de gasto dos domicílios e a capacidade de investimento das empresas.

Terceiro, nos países que operam com deficit em conta corrente, os consumidores precisam começar a cortar gastos e poupar mais, em um momento em que as pessoas endividadas enfrentam um choque de patrimônio causado pela queda nos preços das casas e dos mercados de ações e pela retração na renda e no emprego.

Quarto, o sistema financeiro -a despeito do apoio das autoridades- continua severamente danificado. A maior parte do sistema bancário paralelo desapareceu, e os bancos tradicionais estão sobrecarregados com trilhões de dólares em prejuízos inesperados com empréstimos e títulos, enquanto ainda se mantêm perigosamente subcapitalizados.

Quinto, os lucros fracos (causados por dívidas elevadas e riscos de inadimplência, crescimento baixo e persistentes pressões deflacionárias sobre as margens de ganhos empresariais) restringirão a disposição das companhias de produzir, contratar trabalhadores e investir.

Sexto, o endividamento do setor público por meio do acúmulo de pesados deficits fiscais ameaça dificultar a recuperação nos gastos do setor privado. Os efeitos das políticas de estímulo, além disso, se dissiparão no começo do ano que vem, o que vai requerer maior demanda privada para sustentar o crescimento.

Sétimo, a redução nos desequilíbrios mundiais implica em que os deficits em conta corrente de economias perdulárias, como a dos EUA, vão reduzir os superávits das economias que poupam em excesso (Japão, Alemanha, China e outros emergentes). Mas, caso a demanda interna não se expanda rapidamente o bastante nos países superavitários, resultará em recuperação mais lenta do mundo.

Recessão em forma de W
Também existem duas razões para que exista risco ascendente de uma recessão de duplo mergulho, em forma de W. Para começar, existem riscos associados às estratégias de saída para o grande relaxamento da política monetária e de estímulo fiscal: as autoridades serão criticadas por agir e também por não agir. Caso decidam levar a sério os grandes deficits fiscais e decretem aumento de impostos, corte de gastos e redução da liquidez excessiva, poderão solapar a recuperação e levar a economia a uma estagdeflação (recessão e deflação).

Mas, caso mantenham grandes deficits orçamentários, os ativistas dos mercados de títulos públicos punirão as autoridades econômicas. As pressões inflacionárias subirão, os rendimentos dos títulos públicos de longo prazo terão de subir e as taxas de empréstimo dispararão, gerando estagflação.

Outro motivo para temer uma recessão de duplo mergulho é que os preços de petróleo, energia e alimentos agora estão subindo mais rápido do que os fundamentos econômicos justificam e podem ser propelidos a alta ainda maior pela liquidez excessiva em busca de ativos e pela demanda especulativa.

No ano passado, o petróleo a US$ 145 por barril marcou um ponto de inflexão para a economia mundial, ao criar termos negativos de comércio internacional e um choque na renda disponível para as economias importadoras da commodity. A economia mundial não suportaria outro choque contrativo caso especulação semelhante conduza o preço do petróleo a um rápido retorno para a marca dos US$ 100.

Em resumo, a recuperação deve ser anêmica e abaixo da tendência nas economias avançadas e existe forte risco de uma recessão de duplo mergulho.

O autor é professor de Economia na Escola Stein de Administração de Empresas na Universidade de Nova York.

A crise financeira um ano depois

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Valor Econômico
Autor: Jeffrey D. Sachs

Um ano depois do início da crise, ela parece estar sanada. Mas o desemprego continua em alta

Já transcorreu quase um ano desde que a economia mundial balançou à beira da calamidade. No espaço de três dias, de 15 a 18 de setembro de 2008, o Lehman Brothers apresentou seu pedido de falência, o controle da mega-seguradora AIG foi assumido pelo governo dos EUA e o Merrill Lynch, ícone falido de Wall Street, foi absorvido pelo Bank of America numa transação intermediada e financiada pelo governo dos EUA. Sobreveio o pânico e o crédito parou de circular. Companhias não conseguiam capital de giro, quanto mais recursos para investimentos de longo prazo. Uma depressão parecia possível.

Hoje, a tempestade foi domada. Meses de ações emergenciais promovidas pelos principais bancos centrais do mundo impediram o colapso dos mercados financeiros. Quando os bancos pararam de fornecer liquidez de curto prazo a outros bancos e companhias industriais, os bancos centrais preencheram a lacuna. Consequentemente, as principais economias evitaram um colapso do crédito e da produção. A sensação de pânico diminuiu. Os bancos estão mais uma vez emprestando uns aos outros.

Apesar de o pior ter sido evitado, muitas aflições persistem. A crise culminou no colapso dos preços dos ativos no fim de 2008. Famílias ricas e de classe média em todo o mundo se sentiram mais pobres e, portanto, reduziram suas despesas radicalmente. Os preços de alimentos e de petróleo nas alturas se somaram às aflições e, por conseguinte, à depressão econômica. Empresas não conseguiam vender a sua produção, o que acarretou cortes de produção e demissões. O desemprego crescente agravou a perda de riqueza familiar, arremessando famílias em profundo perigo econômico e levando a reduções adicionais nos gastos dos consumidores.

O grande problema agora é que o desemprego continua aumentando nos EUA e na Europa, já que o crescimento é lento demais para gerar suficientes postos de trabalho novos. Deslocamentos continuam sendo sentidos por todo o mundo.

Seguiu-se um enorme debate em torno do chamado “gasto de estímulo” nos EUA, Europa e China. Esse gasto tem como objetivo usar os maiores gastos ou incentivos fiscais do governo para compensar a queda no consumo das famílias e no investimento empresarial. Nos EUA, por exemplo, praticamente um terço do pacote de estímulo de US$ 800 bilhões consiste em redução de impostos (para estimular gastos de consumidores); um terço é composto por despesas públicas em estradas, escolas, energia elétrica e outros tipos de infraestrutura; e um terço assume a forma de transferências federais a governos locais e estaduais para serviços de saúde, seguro-desemprego, salários para escolas.

Os pacotes de estímulo são controversos, pois aumentam o déficit orçamentário e, consequentemente, implicam na necessidade de reduzir gastos ou elevar impostos no futuro próximo. A pergunta é se eles estimulam a produção e a geração de empregos com êxito no curto prazo, e, caso afirmativo, se fazem o suficiente para compensar os inevitáveis problemas orçamentários que virão.

A real eficácia desses pacotes não está clara. Suponhamos que o governo conceda uma redução de imposto para aumentar o salário líquido dos consumidores. Se os consumidores decidirem poupar essa redução em vez de estimular o consumo. Nesse caso, o estímulo terá pouco efeito positivo sobre o gasto da família, mas agravará o déficit orçamentário.

Uma avaliação inicial dos pacotes de estímulo sugere que o programa da China funcionou bem. A queda acentuada nas exportações da China para os EUA tem sido compensada por uma queda expressiva nos gastos do governo chinês com infraestrutura, digamos, na construção de metrôs nas maiores cidades da China.

Nos EUA, o veredicto é menos claro. O corte de impostos foi mais provavelmente economizado que gasto. O componente de infraestrutura ainda não foi gasto devido a longas demoras para transformar o pacote de estímulo dos EUA em projetos de construção reais. A terceira parte – a transferência para governos locais e estaduais- quase certamente tem sido bem sucedida, na manutenção das despesas com escolas, saúde e desempregados.

Em suma, os efeitos do estímulo sobre os gastos nos EUA provavelmente têm sido positivos, mas reduzidos, e sem um efeito decisivo sobre a economia. Além disso, temores em torno do enorme déficit orçamentário dos EUA, agora na casa dos US$ 1,8 trilhão (12% do PIB) por ano, tendem a aumentar, não só gerando enormes incertezas no meio político e nos mercados financeiros, mas também diminuindo a confiança dos consumidores.

Quando a crise se aprofundou há um ano, Barack Obama inseriu na campanha presidencial o tema de uma “recuperação verde”, baseada num surto de investimentos em energias renováveis, novos veículos elétricos, edifícios “verdes” ambientalmente eficientes e agricultura ecologicamente segura. No calor da batalha contra o pânico financeiro, a atenção das políticas públicas se afastou daquela recuperação verde. Agora, os EUA precisam retornar a essa ideia importante.

As políticas públicas do governo nos EUA e em outros países ricos deveriam estimular aqueles investimentos por meio de incentivos especiais. Esses incentivos incluem um sistema de teto e mercado para emissões de gás estufa, subsídios para pesquisa e desenvolvimento em tecnologias sustentáveis, tarifas do tipo “feed-in” (que visam estimular tecnologias de geração de energia limpa alternativa) e incentivos reguladores para energia renovável e outros atrativos para a absorção de tecnologias. “verdes”.

O mundo rico também deveria fornecer aos países mais pobres subsídios e empréstimos a juros baixos para comprar tecnologias energéticas sustentáveis, como energia solar e geotérmica. Fazê-lo se somaria à recuperação global, melhoraria a sustentabilidade ambiental de longo prazo e aceleraria o desenvolvimento econômico. A crise ainda pode ser uma oportunidade para sair de uma rota de bolhas financeiras e consumo excessivo rumo a uma rota de desenvolvimento sustentável. Na verdade, aproveitar essa oportunidade é a única receita para crescimento genuíno que nos resta.

Jeffrey D. Sachs é professor de Economia na Universidade Columbia e consultor especial do secretário-geral das Nações Unidas para as Metas de Desenvolvimento do Milênio.

A importância da educação

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Valor Econômico
Autor: Fabio Giambiagi

Acaba de ser publicado o livro “Educação básica no Brasil” (Campus/Elsevier), com 12 capítulos, incluindo um do Prêmio Nobel de Economia do ano 2000, o professor James Heckman, que nos honrou com a co-autoria de um ótimo artigo escrito junto com os professores Araújo, Cunha e Moura. Como fui apenas um dos quatro organizadores do livro e os méritos cabem aos autores, que escreveram excelentes capítulos, sinto-me à vontade para elogiar o conteúdo. Penso que os interessados podem ter na leitura das páginas um diagnóstico e um roteiro acerca dos desafios a serem enfrentados pela educação brasileira. A maior contribuição do livro é a de mostrar o que vem sendo feito de inovador e começando a revelar os primeiros resultados nessa área, no Brasil e no mundo. Capítulos como os de Fernandes e Gremaud, destacando o papel da avaliação e do aprimoramento de indicadores; de Menezes-Filho e Ribeiro sobre os determinantes da melhoria do rendimento escolar; de M.Neri sobre como a educação é percebida pela população; e de C.Ferraz sobre as experiências de SP e PE com a adoção de incentivos por desempenho na remuneração de professores, sem prejuízo dos demais capítulos que não há espaço para resumir, apontam caminhos promissores para a ocorrência futura de novos avanços na matéria. Como em tantas outras áreas no Brasil, houve melhoras, mas há uma árdua tarefa pela frente.

A importância da educação pode ser medida pelos dados de um dos capítulos, escrito por C.Moura Castro. Nele, mostra-se que no Brasil, indivíduos com o ensino fundamental ganham em torno de 2 vezes o que ganha um indivíduo sem escolaridade; os que têm ensino médio completo recebem um terço (1/3) a mais que aqueles que possuem apenas o fundamental; e os graduados com ensino superior têm rendimentos equivalentes a mais de 3,5 vezes o de quem tem apenas o ensino médio. Estudar, portanto, é importante para o país e para os indivíduos, pois, de um modo geral, à maior educação estão associados níveis maiores de rendimento e de bem-estar.

O Brasil se atrasou, historicamente, em relação a outros países que ou já tinham feito seu “dever de casa” na matéria há muito tempo – como os EUA – ou se dedicaram intensamente à educação nas últimas décadas – com destaque para alguns asiáticos. F.Barbosa Filho e S. Pessôa mostram que no começo da década atual, o número médio de escolaridade da população economicamente ativa dos países de língua inglesa, com destaque para os EUA, era o dobro em relação ao Brasil.

A tabela, retirada do primeiro capítulo do livro, de autoria do professor F Veloso, complementa essa informação, decompondo o dado do percentual da população com 25 anos ou mais de idade com ensino médio completo. Apesar dos avanços dos últimos anos, o Brasil fica mal na foto. No conjunto da população, o indicador já é constrangedor: enquanto que apenas 30% da população adulta tem ensino médio completo no Brasil, o percentual atinge níveis de 80% a 90% na Alemanha ou os EUA. Porém, é no avanço ao longo do tempo que se nota mais nosso atraso relativo, quando se comparam os percentuais daqueles que concluíram o ensino médio entre grupos populacionais específicos. Uma medida é comparar esse indicador para dois grupos etários: o de 25 a 34 anos e o de 55 a 64 anos. Aquele indica qual o grau de educação dos jovens, enquanto que o último mostra a “fotografia” do grupo que foi jovem três décadas antes. É uma forma de medir o progresso de um país entre gerações. Veja-se o que aconteceu com a Espanha: no grupo de 55 até 64 anos, apenas 27% têm ensino médio completo, mas entre os mais jovens, o percentual atinge 64%. Não é à toa que a Espanha de hoje é apenas uma pálida lembrança do país dos anos 70. No Chile – que experimentou grandes progressos nos últimos 30 anos – tais percentuais são de 32% e 64%, respectivamente. E o que mais impressiona: não apenas os mais idosos da Coréia do Sul têm níveis de educação similares aos dos jovens do Brasil de hoje, mas – pasmem – o percentual de jovens que concluiu o ensino médio na Coréia atingiu incríveis 97%.

Fabiana de Felício apresenta outros dados para compor o quadro: a taxa de conclusão do ensino fundamental aos 16 anos de idade no Brasil era de 61% em 2007, o que é pouco. Por outro lado, tinha sido de apenas 34% em 1997. Ao mesmo tempo, a escolaridade média das pessoas com 15 anos ou mais era de 7 anos em 2007, o que também é pouco, informação essa que, porém, vem acompanhada de duas boas notícias: a primeira é que houve uma melhora importante, pois o número de anos de estudo desse grupo era de 5 em 1987; e a segunda é que a faixa de 15 a 30 anos já tinha alcançado 9 anos de estudo em 2007.

O quadro em geral retratado nos diversos capítulos – que não temos como expor em detalhes, mas que poderá ser melhor percebido mediante a leitura do livro – é de avanços lentos, mas graduais, acentuados nos últimos 15 anos. Se o esforço dedicado ao tema – por méritos compartilhados pelas gestões de Paulo Renato de Souza sob FHC e de Fernando Haddad no Governo Lula – for mantido, o Brasil daqui a algumas décadas poderá ser melhor do que o país em que nos tocou viver. Resta esperar que haja persistência nesses avanços e, de preferência, que eles se acelerem na próxima década.

Fabio Giambiagi é economista.
E-mail: fgiambia@terra.com.br.

Vantagem do atraso

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Autor: César Benjamin – Folha de São Paulo

O SISTEMA produtivo dos países ricos ocupa a ponta tecnológica e é relativamente homogêneo. Neles, o aumento da produtividade depende, principalmente, da invenção de técnicas novas, um processo caro, lento e difícil. Nos grandes países intermediários, porém, como a China e o Brasil, convivem setores que apresentam níveis de produtividade muito desiguais. Essa desvantagem nos confere uma vantagem dinâmica: deslocando trabalhadores dos setores mais atrasados para os mais modernos ou modernizando setores atrasados, eleva-se a produtividade média da economia pela simples difusão de técnicas já conhecidas, um processo, em geral, muito mais fácil.
Um dos segredos do crescimento chinês é, justamente, a capacidade de usar essa vantagem do atraso. São imensos os ganhos de eficiência que nossa economia pode ter dessa maneira. Um exemplo extremo é o da matriz de transportes. No Brasil, a modalidade rodoviária -a mais cara- realiza a quase totalidade dos transportes de passageiros e a grande maioria dos de carga, com cerca de 40 mil empresas e mais de 300 mil transportadores autônomos. Os custos de operação dessa rede se aproximam de 20% do PIB, mais do dobro do percentual que se verifica nos Estados Unidos.
Um estudo da CNT e da Coppe (UFRJ), realizado em 2002, estimou que as empresas brasileiras mantinham US$ 118 bilhões parados, em excesso de estoque, por causa da inconfiabilidade do sistema de transportes. Não podiam operar “just in time”. Isso mostra a importância da infraestrutura: ela transmite eficiência (ou ineficiência) ao conjunto da economia.
O Brasil deveria aproximar a sua matriz de transportes daquela que prevalece nos EUA: 20% em rodovias, 40% em ferrovias, 40% em hidrovias e cabotagem. Não só estamos muito longe disso (a cabotagem, por exemplo, tornou-se residual, apesar de termos sete regiões metropolitanas no litoral) como tendemos a nos distanciar desse objetivo: os investimentos em transportes, além de insignificantes (em média, 0,2% do PIB na última década), concentram-se justamente em rodovias.
Estamos em um círculo vicioso: o transporte rodoviário apresenta baixas barreiras à entrada (basicamente, a habilitação e o caminhão), o que gera um permanente aumento da oferta, que tende a reduzir o preço dos fretes. Resulta daí uma elevada barreira à saída, pois as dívidas dos caminhoneiros se estendem no tempo. As barreiras à entrada em ferrovias e hidrovias, ao contrário, são muito elevadas.
Deixando o setor entregue a decisões atomizadas, o modo rodoviário tende a se expandir. A soma de comportamentos racionais em termos microeconômicos aprofunda a irracionalidade macroeconômica. Para sair dessa armadilha, é preciso planejar, uma função típica de Estado, demonizada aqui há mais de 20 anos. O último Plano Viário Nacional foi elaborado ainda durante o regime militar.
Sucessivos governos dizem que não têm 2% do PIB para investir em transportes, quantia mínima necessária durante, ao menos, dez anos. São os mesmos governos que pagam mais de 8% do PIB em juros, desnecessariamente, há muito mais tempo. A alteração da matriz de transportes não exige que inventemos nada.
Mas, se realizada, teria em nossa economia o mesmo efeito de uma revolução tecnológica. Estaríamos aproveitando uma vantagem do atraso. Para isso, porém, o nosso sistema político deveria ser capaz de identificar grandes objetivos nacionais e sustentar decisões de longa maturação. Nunca estivemos tão distanciados disso. Em anos eleitorais, faremos novas operações tapa-buracos.

CESAR BENJAMIN, 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de “Bom Combate” (Contraponto, 2006).

Redistribuir o tempo de trabalho

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Folha de São Paulo – 20/08/2009
Autor: Márcio Pochmann

“O tempo não para. Eu vejo o futuro repetir o passado”
(Cazuza)

A VANÇOS técnico-científicos deste começo de século criam nas sociedades modernas condições superiores para a reorganização econômica e trabalhista. De um lado, o aparecimento de novas fontes de geração de riqueza, cada vez mais deslocadas do trabalho material, impõe saltos significativos de produtividade. Isso porque o trabalho imaterial liberta-se da existência prévia de um local apropriado para o seu desenvolvimento, conforme tradicionalmente ocorre em fazendas, indústrias, canteiros de obras, escritórios e supermercados, entre tantas outras formas de organização econômica assentadas no trabalho material.

Com a possibilidade de realização do trabalho imaterial em praticamente qualquer local ou horário, as jornadas laborais aumentam rapidamente, pois não há, ainda, controles para além do próprio local de trabalho. Quanto mais se transita para o trabalho imaterial sem regulação (legal ou negociada), maior tende a ser o curso das novas formas de riqueza que permanecem -até agora- praticamente pouco contabilizadas e quase nada repartidas entre trabalhadores, consumidores e contribuintes tributários.
Juntas, as jornadas de trabalho material e imaterial resultam em carga horária anual próxima daquelas exercidas no século 19 (4.000 horas). Em muitos casos, começa a haver quase equivalência entre o tempo de trabalho desenvolvido no local e o realizado fora dele. Com o computador, a internet, o celular, entre outros instrumentos que derivam dos avanços técnico-científicos, o trabalho volta a assumir maior parcela no tempo de vida do ser humano.

De outro lado, a concentração das ocupações no setor terciário das economias. No Brasil, 70% das novas ocupações abertas são nesse setor. Para esse tipo de trabalho, o ingresso deveria ser acima dos 24 anos de idade, após a conclusão do ensino superior, bem como acompanhado simultaneamente pela educação para toda a vida.
Com isso, distancia-se da educação tradicional, voltada para o trabalho material, cujo estudo atendia sobretudo crianças, adolescentes e alguns jovens. Tão logo concluído o sistema escolar básico ou médio, iniciava-se imediatamente a vida laboral sem mais precisar abrir um livro ou voltar a frequentar a escola novamente.
Para que os próximos anos possam representar uma perspectiva superior à que se tem hoje, torna-se necessário mudar o curso originado no passado. Ou seja, o desequilíbrio secular da gangorra social. Enquanto na ponta alta da gangorra estão os 10% mais ricos dos brasileiros, que concentram três quartos de toda a riqueza contabilizada (“Os Ricos no Brasil”, Cortez, 2003), há apenas 6% da população que responde pela propriedade dos principais meios de produção da renda nacional (“Proprietários: Concentração e Continuidade”, Cortez, 2009).

Em contrapartida, a ponta baixa da gangorra acumula o universo de excluídos (“Atlas da Exclusão Social no Brasil”, Cortez, 2004), que se mantêm historicamente prisioneiros de brutal tributação a onerar fundamentalmente a base da pirâmide social. No mercado nacional de trabalho também residem mecanismos de profundas desigualdades, como no caso da divisão do tempo de trabalho entre a mão de obra.
Em 2007, por exemplo, a cada 10 trabalhadores brasileiros, havia 1 com jornada zero de trabalho (desempregado) e quase 5 com jornadas de trabalho superiores à jornada oficial (hora extra). Além disso, 4 em cada grupo de 10 trabalhadores tinham jornadas de trabalho entre 20 e 44 horas semanais, e 1 tinha tempo de trabalho inferior a 20 horas por semana.

O pleno emprego da mão de obra poderia ser alcançado no Brasil a partir de uma nova divisão das jornadas de trabalho, desde que mantido o nível geral de produção. A ocupação de mais trabalhadores e a ampliação do tempo de trabalho dos subocupados poderia ocorrer simultaneamente à diminuição da jornada oficial de trabalho e do tempo trabalhado acima da legislação oficial (hora extra).

Com redistribuição do tempo de trabalho o reequilíbrio da gangorra social, torna-se possível.

MARCIO POCHMANN, 47, economista, é presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.
Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy).

Petróleo pode ser uma maldição – Valor Econômico

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Autor: Moisés Naím

Um país petrolífero autoritário tem menos probabilidade de se mover na direção da democracia que uma autocracia sem recursos
O petróleo é uma maldição. Gás natural, cobre e diamantes também são nocivos para a saúde de um país. Daí decorre uma constatação que é tão poderosa quanto anti-intuitiva: países pobres, mas ricos em recursos, tendem a ser subdesenvolvidos não apesar das suas riquezas minerais e em hidrocarbonetos, mas em virtude da sua riqueza de recursos. De uma forma ou de outra, o petróleo – ou ouro, ou zinco – torna o país pobre. Esse fato é difícil de acreditar e exceções, como Noruega e EUA, são geralmente usadas para argumentar que petróleo e prosperidade para todos podem de fato caminhar juntos.
A raridade dessas exceções, no entanto, não só confirma a regra como também mostra o que é preciso fazer: democracia, transparência e instituições públicas eficientes. Essas são precondições importantes para aspectos mais técnicos da receita, incluindo a necessidade de manter a estabilidade macroeconômica, gerenciar as finanças públicas prudentemente, investir parte dos lucros inesperados no exterior, estabelecer “fundos para dias chuvosos”, diversificar a economia e assegurar que a moeda local não alcance uma cotação elevada demais.
Tudo isso parece simples, e com Brasil, Gana e outros países provavelmente em vias de se tornarem grandes protagonistas do petróleo, podemos ter a expectativa de testemunhar alguns raros casos de teste dessas recomendações.
Infelizmente, para a maioria dos países subdesenvolvidos, as defesas sugeridas são tão utópicas quanto a meta mais ampla que elas ajudariam a alcançar. Países que já possuem essas vantagens institucionais não precisam se preocupar com a maldição dos recursos. Para os demais, a exemplo de uma doença auto-imune, a maldição mina a capacidade dos governos de construir defesas contra ela. Poder concentrado, corrupção e o dom dos governos de ignorar as necessidades das suas populações tornam a maldição algo difícil de se resistir.
Juan Pablo Pérez Alfonzo, ministro do Petróleo da Venezuela no começo da década de 1960 e um dos fundadores da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), foi o primeiro a chamar a atenção para o problema. O petróleo, ele disse, não é ouro negro: é o excremento do diabo.
Desde então, a constatação de Pérez Alfonzo tem sido rigorosamente testada – e confirmada – por economistas e cientistas políticos. Eles documentaram, por exemplo que, desde 1975, as economias de países subdesenvolvidos ricos em recursos naturais cresceram em ritmo mais lento que as dos países que não podiam depender da exportação de minérios e matérias primas. Mesmo quando ocorre crescimento alimentado por aqueles recursos, ele raramente gera os costumeiros benefícios sociais plenos do crescimento.
Uma característica comum dessas economias é que elas tendem a ter taxas de câmbio que estimulam importações e inibem a exportação de quase tudo exceto sua principal commodity. Não que seus líderes não percebam a necessidade de diversificar. Os países ricos em petróleo investiram em outros setores mas poucos desses investimentos tiveram êxito, pois a taxa de câmbio retarda o crescimento da agricultura, da produção fabril, do turismo e demais setores.
Depois, há a intensa volatilidade das commodities exportadas. Nos últimos 24 meses, por exemplo, o preço do petróleo disparou, subindo de menos de US$ 80 por barril para US$ 147, depois caiu para US$ 30, e mais uma vez se deslocou para cima, para US$ 60, em meados de 2009. Esses ciclos têm efeitos devastadores. A expansão provoca excesso de investimento, assunção de risco temerária e endividamento demasiado. A recessão leva a crises bancárias e cortes orçamentários draconianos que prejudicam os pobres, que dependem de programas governamentais. Ademais, o crescimento impulsionado pelo petróleo não gera empregos em volumes proporcionais à sua participação na economia. Em muitos desses países, o petróleo e o gás natural respondem por mais de 80% das receitas governamentais, ao passo que esses setores geralmente empregam menos de 10% da força de trabalho. Isso aumenta a desigualdade econômica.
Talvez de forma ainda mais significativa, a maldição do petróleo gera políticas perversas. Considerando que os governos desses países não precisam tributar a população para acumular receitas fiscais gigantescas, seus líderes podem se dar o luxo de ser insensíveis e de se esquivar de prestar contas aos contribuintes, que por sua vez mantêm vínculos tênues e não raro parasitários com o Estado. Esses governos, com sua capacidade de dispor de imensos recursos financeiros praticamente de acordo com a sua vontade, inevitavelmente se tornam corruptos.
Assim que assumem o poder, esses governos ricos em petróleo são difíceis de desalojar, gastando vastos recursos públicos para comprar ou reprimir adversários políticos. Estatisticamente, um país petrolífero autoritário tem muito menos probabilidade de se mover na direção da democracia que uma autocracia carente de recursos. Governos ricos em petróleo nos países em desenvolvimento gastam duas a dez vezes mais com suas forças armadas que países pobres ou de renda mediana e são mais propensos a declarar guerra. A maioria dos países exportadores de petróleo que não possuem sólidas instituições democráticas antes de começarem a exportar petróleo cria uma atmosfera inóspita para a democracia.
Isso explica porque fundos soberanos, fundos de estabilização do petróleo e outras soluções tentadas pelos países ricos em petróleo para evitar os efeitos da volatilidade, excesso fiscal, endividamento, taxas de câmbio inibidoras de exportação e outros efeitos nocivos, raramente funcionam. Eles são atacados antes dos dias chuvosos ou são desperdiçados em investimentos medíocres.
Assim, estarão perdidas todas as esperanças para países pobres com ricos recursos naturais? Não necessariamente. Chile e Botsuana se destacam como casos de sucesso em continentes onde a maldição dos recursos provocou destruição. Como eles conseguiram se proteger ainda é um mistério. Desvendar o segredo do seu escape da maldição dos recursos poderá salvar milhões do excremento do diabo. Mas ninguém fez isto até agora.
Moisés Naím é editor-chefe da revista “Foreign Policy”, onde uma versão deste artigo será publicada em breve.

Reduzir a meta de inflação: uma boa ideia?

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Autor: José Luis Oreiro e Luiz Fernando de Paula – Valor Econômico – 18/08/2009

Existem poucas evidências em favor da tese de que a taxa de inflação deve ser a mesma para todos.
Alguns economistas ortodoxos estão lançando a ideia de que o Conselho Monetário Nacional (CMN) deve reduzir a meta de inflação a partir de 2011. O argumento fundamental é que a crise econômica mundial, ao atuar no sentido de reduzir as pressões inflacionárias latentes na economia brasileira em 2008, abre uma janela de oportunidade para que a taxa de inflação brasileira possa, no pós-crise, convergir para a média internacional. Sustenta-se que a convergência da taxa de inflação para a média mundial seja um objetivo desejável, cujos benefícios de longo prazo superariam em muito o custo que toda a desinflação (decorrente da requerida elevação, ainda que temporária, da taxa de juros) gera em termos de perda de produto e de emprego, pelo menos no curto prazo.
Os problemas causados pela inflação são claros quando a taxa de inflação é alta (superior a dois dígitos, por exemplo), pois recursos escassos da economia são alocados de forma ineficiente para o mercado financeiro, ocorre uma variação excessiva nos preços relativos, impõe-se um imposto inflacionário que recai majoritariamente sobre os mais pobres e, normalmente, inicia-se um processo cumulativo que pode levar à hiperinflação. No entanto, os custos da inflação não são tão claros quando a inflação é baixa, ou seja, para uma taxa de inflação de um dígito por ano. Com efeito, os estudos empíricos sobre os efeitos da inflação sobre o bem-estar não são conclusivos e, em alguns casos, apontam para a existência de uma relação positiva entre inflação e crescimento no longo prazo.
Os potenciais benefícios de uma inflação baixa incluem a facilitação dos ajustamentos no mercado de trabalho, pois, na medida em que os salários nominais são rígidos para baixo, a inflação permite que uma redução no salário real seja empreendida sem que haja cortes no nível de emprego. Alguma inflação também é importante para manter a economia distante de um problema ainda maior, a deflação, cujos efeitos nocivos sobre o sistema econômico foram mais do que comprovados pela Grande Depressão de 1929.
Deve-se mencionar que existem poucas evidências empíricas para suportar a tese de que países em desenvolvimento devam ter a mesma taxa de inflação que países desenvolvidos. A relação entre inflação e crescimento foi analisada a nível empírico por M. Sarel em “Nonlinear effects of inflation on economic growth” (IMF Staff Papers 43, 1996). Segundo esse autor, tomando-se uma amostra de países desenvolvidos e em desenvolvimento até 1990, pode-se mostrar a existência de uma relação não-linear entre inflação e crescimento, de tal forma que haveria uma relação positiva entre ambas as variáveis para níveis de inflação abaixo de 8% ao ano e uma relação fortemente negativa entre ambas a partir desse valor.
A metodologia de Sarel foi replicada por Padilha (2007) em sua dissertação de mestrado desenvolvida na Universidade Federal do Paraná. Tomando uma amostra de 55 países desenvolvidos e em desenvolvimento com dados até 2004, o trabalho em consideração tinha por objetivo reavaliar a relação entre inflação e crescimento do artigo de Sarel e discutir as diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Os resultados apontam que, para o conjunto dos países em desenvolvimento, a taxa de quebra na relação entre crescimento e inflação é de 5,1%, ao passo que para os países desenvolvidos a relação de quebra se reduz apenas 2,1%. Os resultados são estatisticamente significativos e apontam uma diferença de cerca de três pontos percentuais entre a inflação “ótima” para países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Deve-se ressaltar que os resultados de Sarel, atualizados por Padilha, não justificam o inflacionismo, ou seja, o aumento deliberado e contínuo da taxa de inflação com vistas a se explorar o trade-off de curto prazo entre inflação e desemprego (via curva de Phillips). O que os resultados desses trabalhos parecem apontar é para a possibilidade de que a curva de Phillips de longo prazo seja negativamente inclinada abaixo de um certo nível crítico de inflação, tal como racionalizado recentemente em Thomas Palley (“The economics of inflation targeting: negatively sloped, vertical, and backward-bending Philips curves”, 2006). Acima desse nível crítico de inflação, a curva de Phillips seria vertical, em consonância com boa parte da literatura teórica e empírica convencional sobre o tema. Dessa forma, bancos centrais devem ter um cuidado especial, principalmente nos países que adotam o regime de metas de inflação, com a fixação da meta de inflação de longo prazo, para não escolher o “trecho errado” da curva de Phillips de longo prazo.
Em função dessas considerações, acreditamos que a revisão da meta de inflação de 2011 para baixo de 4,5% ao ano não seja uma boa ideia. O regime de metas de inflação brasileiro precisa de uma série de reformas – substituição do índice cheio pelo core inflation, aumento do prazo de convergência da inflação para além do ano-calendário, adoção de cláusulas de escape, desindexação dos preços administrados, e extinção das LFT’s para aumentar a eficácia da política monetária -, mas a redução da meta numérica de inflação não é uma delas.
Essas questões são examinadas no livro “Política Monetária, Bancos Centrais e Metas de Inflação: teoria e experiência brasileira”, organizado por nós em conjunto com Rogério Sobreira (EBAPE/FGV) e publicado recentemente pela Editora da Fundação Getúlio Vargas. Nesse livro foram reunidos trabalhos acadêmicos de 23 economistas de diversas linhas teóricas e de diferentes centros de pesquisa e ensino de economia do país. A abordagem teórica adotada é eclética e plural, o que proporciona ao leitor um amplo panorama dos temas tratados por professores e pesquisadores brasileiros de diferentes instituições de ensino superior e de pesquisa do Brasil.

José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB e Membro da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: jlcoreiro@terra.com.br.

Luiz Fernando de Paula é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Uerj e Vice-Presidente da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: luizfpaula@terra.com.br.

Indústria já se preocupa com o pós-Copenhague

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Autor: Sérgio Leo

Grandes empresários, especialmente nos setores de aço e cimento concluíram que a movimentação para a próxima conferência do clima e meio ambiente, em Copenhague, em dezembro, tem grande potencial de interferência em seus negócios futuros. Estão preocupados. Decidiram influir nas posições do governo brasileiro. A Federação da Indústria do Estado de São Paulo (Fiesp) deve, em breve, divulgar posição comum à indústria paulista. Cresce, no setor privado, o temor de retaliações a pretexto do combate ao aquecimento global.

O sistema multilateral, que tem na Organização Mundial de Comércio (OMC) um xerife contra o protecionismo, está enfraquecido e sem prestígio com alguns dos maiores atores globais, como os Estados Unidos. O setor privado teme que, nessas condições, sejam facilitados eventuais abusos protecionistas embarcados em legítimas medidas de proteção do meio ambiente.

Esse receio deve se materializar nos documentos que a indústria prepara para influenciar na posição do governo brasileiro para a reunião de Copenhague. A conferência na capital dinamarquesa ambiciona arrancar dos países maiores compromissos com metas para controle de emissões de gases causadores do efeito estufa. Mesmo que fracasse, deve ser seguida de medidas nacionais, na Europa e Estados Unidos, por exemplo. Empresas como as de cimento e de aço teriam dificuldades para adaptar-se sem grande esforço e perda de investimentos recentes, analisam executivos desses setores.

Não há uma posição fechada da indústria. Ainda que seja geral a cobrança por maior agilidade dos órgãos de licenciamento ambiental, há, entre os empresários brasileiros, os que defendem maior compromisso com a redução da emissão de gases-estufa. O Brasil não pode mais alinhar-se automaticamente com países emergentes como Índia e China na defesa de padrões antiquados de eficiência energética e produtiva. A posição defensiva tradicional na discussão sobre meio ambiente não tem mais acolhida nem na Fiesp, o que torna mais interessante acompanhar essa discussão e ver que sugestões resultarão das reuniões entre os empresários.

Os Estados Unidos já criam injustificadas barreiras ao aço brasileiro, para proteger a ineficiente indústria local. Com argumentos ecológicos, poderão levantar mais obstáculos, especialmente num governo do Partido Democrata, tradicionalmente mais sensível às pressões protecionistas. O setor privado já constatou que Copenhague não é um convescote de ONGs ambientalistas, mas um marco a partir do qual novos desafios – e ameaças, segundo alguns – surgirão para as empresas brasileiras que não estiverem preparadas para um mundo menos tolerante com as causas do aquecimento global.

Os ambientalistas e especialistas que se queixavam da timidez do Itamaraty na discussão sobre meio ambiente que se preparem. Por mais progressista que venha a ser a posição dos industriais, deverá haver recomendações para maior cautela no governo, ao assumir compromissos de redução de emissões e ajustamento da matriz produtiva às metas que sairão de Copenhague.

Nacionalismo de ocasião
Depois de firmado o acordo sobre Itaipu com o Brasil, o Paraguai regularizou, discretamente, a situação dos brasilguaios e ainda há críticos da política externa que, sem notar continuaram cobrando ação do governo brasileiro nesse tema. Na Bolívia, o Brasil discute ampliação de vendas e negócios, enquanto a Petrobras lucra com a compra do gás do país andino – até reduziu a demanda.
Esses exemplos mostram que se deve ter cuidado nas análises apressadas – muitas vezes de inspiração eleitoral – sobre a “excessiva generosidade” do governo em relação aos países vizinhos. Novo foco de exploração política será a “invasão” de leite importado do Uruguai. Depois de meses retendo as vendas do vizinho, que representam um quarto das importações de leite no Brasil, Brasília liberou a entrada de leite uruguaio, mas, agora, produtores brasileiros querem barrar o produto, em prejuízo dos consumidores.
Outro foco de equívocos deve ser, em breve, a ação do governo boliviano para remover famílias de brasileiros que atravessaram a fronteira e, ilegalmente, instalaram propriedades na zona fronteiriça. Por questões de segurança nacional, raros países autorizam a posse de terras na fronteira por estrangeiros, especialmente dos países vizinhos.

O governo de Morales, sempre em consultas com o governo brasileiro, ofereceu condições e indenização para que os brasileiros deixem as terras onde estão. Mas, sem querer deixar aos bolivianos sua posses, brasileiros ameaçam resistir com violência. Vão querer transformar seus interesses em causa nacional. Sempre haverá quem queira aproveitar isso politicamente.

Sergio Leo é repórter especial do Jornal Valor Econômico.

O perigo da utopia

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Autor: José Luís Fiori

“…a geopolítica do equilíbrio de poderes e a prática do imperialismo explícito deixaram de fazer sentido devido a uma série de novos fatos históricos […] esta abordagem das relações internacionais não tem mais espaço no mundo em que vivemos, do pós-colonialismo, da globalização, do sistema político global, e da democracia […] com a globalização, todos os mercados estão abertos e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado […] Resulta ainda daqueles fatos que a guerra entre grandes países também não faz mais sentido […] No Século XX, as guerras entre as grandes potências não faziam sentido porque todas as fronteiras já estavam definidas.” – Luiz Carlos Bresser-Pereira, em “O mundo menos sombrio”, Jornal de Resenhas, nº 1, 2009, USP, p. 7

Na segunda metade do Século XX, em particular depois de 1968, tornou-se lugar comum a crítica dos “novos filósofos” europeus, que associavam a utopia socialista ao totalitarismo. Mas não se ouviu o mesmo tipo de reflexão, depois da década de 80, quando a utopia liberal se tornou hegemônica e suas ideias tomaram conta do mundo acadêmico e político. Logo depois da Guerra Fria, Francis Fukuyama popularizou a utopia do “fim da história” e da vitória da “democracia, do mercado e da paz”. E apesar dos acontecimentos que seguiram, suas ideias continuam influenciando intelectuais e governantes, sobretudo na periferia do sistema mundial. Basta ver a confusão causada pelo anúncio recente da decisão americana de ampliar sua presença militar na América do Sul. Com a instalação ou ampliação de sete bases militares no território colombiano, que deverão servir de “ponto de apoio para transporte de cargas e soldados no continente e fora dele” (FSP, 05/08/09).
O governo americano justificou sua decisão com objetivos “de caráter humanitário e de combate ao narcotráfico”. A mesma explicação que foi dada pelo governo americano, por ocasião da reativação da sua IV Frota Naval, na zona da América do Sul, no ano de 2008 : “Uma decisão administrativa, tomada com objetivos pacíficos, humanitários e ecológicos” (FSP, 09/07/08). Uma das funções dos diplomatas é participar deste jogo retórico que às vezes soa até um pouco divertido. E cabe aos jornalistas o acompanhamento destes debates sobre distâncias, raio de ação dos aviões, ameaça das drogas etc. Todavia, os intelectuais têm a obrigação de transcender este mundo da retórica e dos números imediatos e também o mundo das fantasias utópicas, o que às vezes não acontece, e não se trata – evidentemente – de um problema de ignorância.
Pense-se, por exemplo, na utopia liberal do “fim das guerras”, que já não fariam mais sentido entre os grandes países, e contraponha-se este tese com a história passada e a história dos Séculos XX e XXI. Segundo a pesquisa e os dados do historiador e sociólogo americano, Charles Tilly, “de 1480 a 1800, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos, a cada 14 meses. A era nuclear não diminuiu a tendência dos séculos antigos a guerras mais frequentes e mais mortíferas [aliás], desde 1900, o mundo assistiu a 237 novas guerras, civis e internacionais [enquanto] o sangrento Século XIX contou 205 guerras” (Charles Tilly, Coerção, capital e Estados europeus , Edusp, 1996, p. 123 e 131).
Mesmo na década de 1990, durante os oito anos da administração Clinton, que foi transformado na figura emblemática da vitória da democracia, do mercado e da paz, os EUA mantiveram um ativismo militar muito grande. E, ao contrário da impressão generalizada, “os Estados Unidos se envolveram em 48 intervenções militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria, período em que ocorreram 16 intervenções militares” (Bacevich, 2002: p:143). E mais recentemente, os “fracassos” militares dos EUA, no Iraque e no Afeganistão – ao contrário do que dizem – aumentaram a presença militar dos EUA na Ásia Central e o cerco da Rússia e da China, envolvendo, portanto, preparação para a guerra entre três grandes potências. Em tudo isto, fica clara a dificuldade intelectual dos liberais conviverem de forma inteligente com o fato de que as guerras são uma dimensão essencial e co-constitutiva do sistema mundial em que vivemos, e que portanto não é sensato pensar que desaparecerão. Ao contrário do que pensam os liberais, a associação entre a “geopolítica do equilíbrio de poderes” e as guerras não se restringe ao Século XIX – já havia sido identificada na Grécia – e o sonho do “governo mundial” das grandes potências existe pelo menos desde o Congresso de Viena, em 1815, sem que isto tenha impedido o aumento do número dos Estados e das guerras nacionais.
Neste tipo de sistema mundial, por outro lado, é muito difícil acreditar na possibilidade do “fim do imperialismo”, e ainda menos neste início do Século XXI, em que as grandes potências – velhas e novas – se lançam sobre a África e sobre a América Latina disputando palmo a palmo o controle monopólico dos seus mercados e das fontes de energia e matérias-primas estratégicas. E soa quase ingênua a crença liberal nos “mercados abertos”, num mundo em que todas as grandes potências impedem o acesso às tecnologias de ponta, não aceitam a venda de suas empresas estratégicas e protegem de forma cada vez mais sofisticada seus produtores industriais e seus mercados agrícolas. Neste ponto, chama atenção a facilidade com que os economistas liberais confundem os mercados de petróleo, armas e moedas, por exemplo, com os mercados de chuchu, queijos e vinhos.
Em tudo isto, o importante é que a utopia liberal também pode ter consequências nefastas, sobretudo para os países que não estão situados nos primeiros escalões da hierarquia de poder do sistema mundial. Se as utopias de esquerda levaram – em muitos casos – ao totalitarismo, a utopia liberal e sua permanente negação do papel poder e da preparação para a guerra, na história do capitalismo e das relações internacionais, leva, com frequência, os intelectuais e dirigentes destes países mais fracos à uma posição de servilismo internacional.

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” (Editora Boitempo, 2007). Escreve mensalmente às quartas-feiras.

A América do Sul na política externa brasileira

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Autor: Marcelo Coutinho

O debate sobre política externa deve enxergar o longo prazo, ajustando-se às condições da nova década
A política externa brasileira passou por dois grandes paradigmas e alguns interstícios mais ambíguos, como na Era Vargas. Essas referências respeitaram evoluções internacionais e domésticas que fizeram variar a maneira como definíamos nossa identidade, interesses nacionais e recursos que nos capacitavam a alcançá-los. Embora os enfoques mudassem significativamente, a América do Sul sempre foi objeto de atenção especial da nossa diplomacia. Hoje, a difusão do poder internacional e a modernização dos padrões de cooperação recomendam alianças flexíveis e multifacetadas. No entanto, para evitar dispersões contraproducentes, convém não esquecer que, se a geometria é variável, a geografia continua permanente.

A primeira referência paradigmática da política exterior brasileira foi a do Barão do Rio Branco, cujo legado predominou durante toda a República Velha e caracterizou-se pelo alinhamento com os EUA e o arbitramento internacional que tornou nossas fronteiras inquestionáveis. Ainda caudatária das fortes desconfianças entre o Império brasileiro e as novas repúblicas hispano-americanas no Século XIX, a região era vista com suspeição até depois da Primeira Guerra Mundial, pois temíamos uma frente sul-americana antibrasileira e essa preocupação nos levou a uma aliança preferencial com os EUA, com o apoio do Chile.

A segunda referência foi a política externa independente de Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Araújo Castro do início dos anos 1960, cuja definição é autoexplicativa e foi posteriormente recuperada pelo pragmatismo responsável de Azeredo da Silveira na segunda metade dos anos 1970, mas cujos rudimentos já estavam presentes no segundo governo Vargas e no governo Kubitschek. Nesses períodos abandonamos dogmas elitistas e passamos a diversificar nossas relações, mais orientados agora pela maximização dos interesses genuinamente nacionais. Criamos, por exemplo, a Alalc (1960) e a Aladi (1980). Até que os objetivos brasileiros na América Latina deixassem de refletir claramente a visão de Washington, passamos por algumas recaídas ideológicas de subordinação e realinhamento automático com a grande potência, que acabou por nos distanciar da região ou estabelecer com ela um quase “imperialismo por procuração”, nos termos do “key-country” (“para onde for o Brasil também irá a América Latina”, Nixon, 1971).
Cada vez mais consciente da sua condição de país latino-americano a partir do pós-guerra, o país elaborou a duras penas, ao passar das décadas, um consenso entre as elites nacionais de que a região é o aspecto mais importante das nossas relações internacionais, não sendo ela excludente com as ambições universalistas.
A latino-americanização ou sul-americanização da política externa ocorreu não como fórmula defensiva de evitar coalizões antibrasileiras na vizinhança ou mesmo fora dela, mas como forma positiva de nos desenvolvermos, ao mesmo tempo em que constituíamos uma plataforma regional para nossas demandas e inserção globalizada.

O crescimento do Brasil no cenário internacional e as mudanças políticas na região fizeram com que este consenso com respeito à integração regional estivesse ameaçado, pela primeira vez desde o último grande retrocesso, observado no governo Castelo Branco. Tendo em vista que o centro gravitacional do mundo está se pulverizando em múltiplos polos de poder para além dos EUA, começaram a aparecer defensores de um descolamento brasileiro da América Latina. A tese de menos Mercosul segue por esta linha. No entanto, tal contestação da centralidade política e econômica da América do Sul para o país entra em forte contradição com a crescente relevância que as regiões assumem no mundo, seja no comércio ou em questões de segurança e meio ambiente.

O Brasil conseguiu agregar valor às suas exportações graças à América Latina. O regionalismo estrutural está para a indústria brasileira hoje como o nacional-desenvolvimentismo esteve para os anos dourados. Em um contexto de maior imprevisibilidade, assegurar um ambiente de paz e cooperação no espaço onde vivemos e no âmbito de democracias com apelo social, pode ser ingrediente do sucesso. Assim sendo, o debate sobre política externa deve enxergar o longo prazo, ajustando-se às condições da nova década, mas sem nos descarrilar da história. Não obstante as diferenças, estamos ocupando o lugar deixado pelos Estados Unidos na região, que outrora foi da Inglaterra e, antes dela, da Espanha. Como “uma potência doce”, o Brasil faz isso sem ser violento ou imperialista. A pergunta é se devemos continuar com o espírito de comunidade, “socio y no patrón”, ou concorrermos com a voracidade chinesa, a grande potência emergente no Século XXI.

O aumento das expectativas com relação ao Brasil e a reierarquização mundial, que nos colocará algumas posições à frente, têm estimulado progressivamente o país a assumir novos compromissos e a abrir múltiplas frentes de trabalho. É positiva a forma como adotamos relações internacionais variáveis de acordo com os interesses em questão, formando inúmeros grupos e parcerias. Isso não chega a ser uma novidade.

Mas a diferença de agora é que podemos de fato consolidar os avanços acumulados nas últimas décadas desde que não se abra mão dos princípios clássicos da política externa brasileira como o de não intervenção e respeito aos direitos humanos e a democracia. Nenhum tipo de pragmatismo pode ser mais importante do que esses princípios, que em nada se confundem com o viés ideológico ocidentalista do período oligárquico ou da Belle Époque, quando alguns imaginavam ser superiores aos vizinhos.

O mundo não se move pela lógica Norte-Sul ou Sul-Sul. O mundo se globaliza. No entanto, a maleabilidade requerida pelo jogo complexo montado pela evolução do sistema internacional contemporâneo ainda respeita algumas leis básicas da geografia, das distâncias, fronteiras, culturas e territorialidades. As regiões são cada vez mais centrais nesse tabuleiro e em qualquer outro que venha a ser montado porque elas são permanentes. Podem adotar novas configurações, mas são constantes em inúmeros aspectos práticos. Mesmo que alguém considerasse desejável, não há como mudar de vizinhança nesse caso. Aliás, uma boa vizinhança, diga-se de passagem. Sem guerras e mais cooperativa do que muitas outras no mundo. Portanto, antes de sermos Brics ou G-20 financeiro seremos sempre latino-americanos.
Marcelo Coutinho é fundador e coordenador do Observatório Político Sul-Americano (OPSA), do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e professor de Relações Internacionais da UnB.

Para pensador francês, globalização gerou “desapropriação democrática”.

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A CRISE ECONÔMICA mostra que os dirigentes políticos sofreram nos últimos anos uma “desapropriação democrática” gerada pela globalização, e por isso estão hoje relegados à condição de “impotência pública”.
A opinião é de um dos maiores pensadores europeus, o filósofo e intelectual francês Luc Ferry, que fala com a autoridade de quem atuou tanto na esfera acadêmica como no setor privado e no governo.
Antes de chefiar um grupo de reflexão socioeconômica no governo do presidente Nicolas Sarkozy, deu aulas na prestigiosa École Normale Supérieure, foi consultor de multinacional e ministro da Educação entre 2002 e 2004, no governo Jacques Chirac.

SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL

Em entrevista à Folha por e-mail, Luc Ferry previu um fortalecimento das instâncias de governo e traçou semelhanças entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu colega francês, Nicolas Sarkozy, e o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi. O filósofo também rebateu críticas de que teria se alienado ao vestir a camisa de um governo.

FOLHA – O sr. crê que a globalização mudou a maneira de governar e de fazer política?
LUC FERRY – Sim. No universo globalizado em que estamos mergulhados, as ferramentas tradicionais das políticas nacionais se tornam cada dia menos relevantes. O maior fenômeno desta virada de século é a impotência pública, o fato de nossos políticos terem perdido praticamente todo o poder diante de um desenvolvimento globalizado que lhes escapa por toda parte. É o grande problema da política moderna: a questão hoje não é mais somente o que fazer, mas principalmente como recuperar o controle, como recuperar um pouco de poder e de margem de manobra. É o que eu chamo de desapropriação democrática. Há 50 anos essas interrogações não existiam, e as políticas funcionavam num plano essencialmente nacional.

FOLHA – O sr. acredita que as instâncias de governo sairão fortalecidas da atual crise econômica global?
FERRY – Sim, claro. Isso será necessário para resolver o problema duplo levantado pela crise. Primeiro: como reatar com um crescimento acarretado pela riqueza verdadeira, e não pelo endividamento. Segundo: como recuperar o controle sobre um mundo globalizado que nos escapa por todos os lados, tanto no plano econômico como no ecológico. É esse o grande desafio do G20 [grupo das 20 maiores economias do mundo], e é por isso que o grupo tem um longo caminho pela frente.

FOLHA – A crise revelou alguma falha estrutural no funcionamento das sociedades modernas?
FERRY – Antes de mais nada, é preciso refletir sobre a natureza da crise, pois há muita besteira sendo contada por aí. Ao contrário do que se diz, não se trata de uma crise financeira, mas de uma crise econômica no sentido tradicional. A visão ingênua pela qual existem uma “boa economia”, a economia “real” e uma economia “ruim”, a economia especulativa, não resiste à análise. Os países ocidentais mais industrializados, os Estados Unidos particularmente, conheceram nos anos 90 uma forte bipolarização do mundo do trabalho. Nessa época, criou-se um cenário onde havia, de um lado, trabalhadores altamente qualificados e bem-remunerados e, do outro, uma massa de trabalhadores mal paga por ser menos qualificada. Ou seja, a globalização fez as classes médias minguarem. O problema é que eram elas que geravam o crescimento e que mais consumiam. Foi nesse cenário que surgiu nos EUA o recurso ao endividamento maciço dos lares mais populosos e menos ricos, os famosos “subprimes”. A partir daí não foram mais os salários das classes médias que geraram crescimento, mas o endividamento dos pobres. Em outras palavras, a riqueza passou a ser aumentada não mais a partir da riqueza em si, mas a partir de dívidas! E assim multiplicaram-se nos EUA, nos últimos 15 anos, sistemas de empréstimo de alto risco. Foi no contexto dessa nova lógica econômica que a crise financeira veio se inserir. Demorou até os créditos de risco serem transformados em títulos que acabaram espalhados por bancos do mundo todo e viraram, com o apoio das agências de classificação de risco, produtos financeiros de difícil leitura. É evidente que esse processo só aconteceu graças à cumplicidade de banqueiros, incluindo o banco central americano, que sabia muito bem o que estava acontecendo. Mas o importante é que o mundo financeiro, por mais culpado seja, não está na raiz da crise, que é antes de mais nada uma crise da economia real. O que é evidentemente bem mais grave…

FOLHA – Como o sr. explica o fato de Lula, mesmo após dois mandatos repletos de denúncias contra seu partido e seus aliados, ainda ter popularidade tão alta?
FERRY – Pode se dizer a mesma coisa de [Silvio] Berlusconi na Itália ou de [Nicolas] Sarkozy na França. Boa parte da imprensa os vive criticando, e mesmo assim ganham eleições. De onde vem essa defasagem entre a população e a imprensa? A mídia, na sua essência, precisa ser crítica. Como se diz na França, não se pode escrever uma boa matéria para falar dos trens que chegam na hora. Esse é, de fato, o papel da mídia, mas isso pode acabar a distanciando do povo. A população não tem a obrigação de sempre criticar e, paradoxalmente, às vezes entende melhor que os observadores profissionais a dificuldade de ser político.

FOLHA – O que o sr. acha dos presidentes Sarkozy e Barack Obama, que divulgam abertamente sua vida privada?
FERRY – É antes de mais nada um bom tema de reflexão para os jornalistas. Afinal de contas, são eles que correm atrás dos furos relacionados à vida privada dos políticos. O público adora e dá audiência, só isso.

FOLHA – Como o sr. avalia a onda de esperança global gerada pela chegada ao poder de Obama?
FERRY – Há 50 anos, Obama nem sequer teria sido aceito em uma universidade em seu país. E hoje ele é presidente. É normal que essa mudança absoluta exerça um fascínio, não? A esperança é formidável, éramos milhões a contar os dias para a saída de [George W.] Bush. Afinal, Obama vem de uma família de muçulmanos, o que significa que ele pode melhor do que ninguém ajudar a evitar o famoso conflito de civilizações, principal ameaça que pesa sobre o século 21.

FOLHA – O debate sobre a burca [véu muçulmano que cobre inteiramente o corpo da mulher] na França traz à tona a questão do relativismo cultural: impor um modo de pensar como sendo melhor que outro não contribui para acirrar o choque de civilizações previsto por Samuel Huntington?
FERRY – Muita gente atribui um monte de besteiras a Samuel Huntington sem ter lido seu livro (“O Choque das Civilizações e a Recomposição da Nova Ordem Mundial”), que na verdade é ótimo. Em primeiro lugar, ele nunca estimulou o choque de civilizações, muito pelo contrário. Ele sempre recomendou que o governo americano praticasse o diálogo e a moderação diante do islã. Huntington inclusive se opôs à Guerra do Iraque. Mas é fato que existe, sim, um verdadeiro choque com o islã radical, e a burca, ao contrário de uma opinião comum totalmente errada, não tem nada de símbolo religioso. Ela não consta em lugar nenhum na lista das obrigações determinadas pela religião muçulmana às mulheres. A burca é um sinal de vínculo ao fundamentalismo. Ela significa que as mulheres não devem ter lugar na esfera pública e que elas devem ficar em casa. Se saírem, elas têm de se dissimular. Devemos aceitar essa concepção do lugar da mulher? Respondo tranquilamente não, cem vezes não. E eu não digo isso porque defendo uma tradição cultural ocidental, mas porque penso que as mulheres simplesmente fazem parte da humanidade. Nesse tema, o relativismo é sempre cúmplice dos totalitarismos.

FOLHA – Um filósofo que, como o senhor, se associa a um governo não acaba perdendo sua liberdade de pensar e falar?
FERRY – Enquanto se é membro de um governo, é preciso ater-se ao princípio de solidariedade, o que obviamente ofusca a liberdade de expressão. Mas ninguém é obrigado a entrar num governo, nem a ficar nele. Nada impede de ir embora, mas quando se decide permanecer, é preciso ser coerente com seu compromisso.
Muitos pensadores franceses, inclusive alguns dos maiores, como [Alexis de] Tocqueville, [André] Malraux e Victor Hugo encararam esse desafio inerente à vida política. Por quê? Simplesmente porque aquele que não se compromete pode se gabar de ter mãos puras, mas na verdade ele não tem mãos. Tenho paixão por filosofia, é sem sombra de dúvida a vocação da minha vida.
Mas eu não poderia ter passado a vida inteira como professor de universidade sem ter a curiosidade de observar de perto a realidade histórica e sem participar, ainda que modestamente, da construção da história. É apaixonante, e aprende-se muito sobre a realidade, da qual o filósofo jamais deve se afastar.

Economia global pode entrar na Terceira Grande Depressão

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Historiador da Universidade Harvard prevê estagnação não tão profunda quanto a da década de 1930, mas longa, com um período de baixo crescimento dos EUA e deflação em vários países
Para o historiador, a decisão de permitir a continuidade de instituições “grandes demais para quebrar” vai contra um dos benefícios das crises financeiras: o fim de modelos que não funcionam e a criação e transformação de novos caminhos, bem-sucedidos. O professor de Harvard afirma que a crise pode levar a uma aceleração de um processo, que já vem acontecendo, de declínio dos Estados Unidos e ascensão da China como nova potência. “Seria perfeitamente familiar, do ponto de vista histórico”, diz. Em uma ou duas décadas, os PIBs dos dois serão
equivalentes, aposta. O livro, que figurou na lista de mais vendidos do “New York Times”, será lançado no Brasil nesta semana. Leia abaixo a entrevista concedida por Ferguson à Folha, por telefone.

FOLHA – Em uma palestra sobre seu livro, o senhor disse que acabou a “era da alavancagem”. Em que era estamos entrando agora?
NIALL FERGUSON – Temo cada vez mais que estejamos entrando na Terceira Depressão, não tão severa quanto a de 1929-33, mas provavelmente tão longa quanto a de 1873-1878. Temos pela frente um período de crescimento baixo na maior economia do mundo, os EUA, e também um ou dois anos de deflação em muitas economias.

FOLHA – Olhando historicamente, existe alguma diferença entre essa Terceira Grande Depressão e as anteriores, para a população?
NIALL FERGUSON – Uma das grandes diferenças é que os atuais sistemas de bem-estar social e de apoio aos desempregados são muito melhores que os anteriores. Os governos tiveram um papel muito mais ativo na condução da economia, então vimos ações extraordinárias dos bancos centrais para injetar liquidez no sistema -e também enormes déficits dos governos enquanto tentam impulsionar a economia. Isso vai ser diferente e é por isso que não estamos vendo um colapso severo como o dos anos 30. Mas não dá para conseguir tudo. Estamos começando a ver os limites das respostas monetárias e keynesianas a esta crise.

FOLHA – O senhor fala em “destruição criativa”. Da quebra dessas empresas, vamos ter um novo tipo de economia. Que nova economia vai emergir dessa depressão?
FERGUSON – Há duas coisas diferentes. Primeiro, vai ser uma economia mundial em que países como China, Índia e, claro, o Brasil terão um papel muito maior, com os EUA, a Europa e o Japão menos dominantes. O segundo ponto importante é que as economias desenvolvidas, particularmente os EUA, não serão capazes de reavivar o antigo modelo de securitização [em que dívidas são aglutinadas, transformadas em títulos e vendidas como investimento], de bancos de investimento e de crédito ao consumidor. O que vamos ver nos EUA e também na Europa é um retorno a um modelo financeiro mais antiquado. Digo isso com alguma hesitação, porque neste momento os governos desses países estão falando em novas regulações que parecem mirar em reviver esses dinossauros e mantê-los vivos. Em outras palavras, medidas estão sendo tomadas para impulsionar instituições que eram vistas como “grandes demais para quebrar”. E eu concordo com os que dizem que, se algo é grande demais para quebrar, é grande demais mesmo, e provavelmente não deveria existir. Mas a tendência da nova regulação é a de manter esses dinossauros vivos, o que vai criar mais problemas. O que mais precisamos neste momento é um retorno a instituições financeiras menores e menos vulneráveis, mas o que vamos pegar é um tipo de megassuperbanco nacionalizado.

FOLHA – Então, nesse caso, o curso natural da história não está sendo respeitado e pode ser a semente de uma nova crise mais para a frente?
FERGUSON – O perigo de intervir desse modo é acabar com um tipo de “década perdida”, no estilo japonês, em escala global. Minha esperança é que serão tomadas medidas para quebrar esses gigantes perigosos, como o Citigroup e o Bank of America. Se essas instituições forem divididas e houver novas instituições, aí pode haver razões para otimismo. Senão, as perspectivas são bastante ruins.

FOLHA – Seu livro vai até a origem do dinheiro. Sempre é feita a comparação da economia de agora com a da década de 30, mas, sob um ponto de vista mais amplo, com que outros pontos da história a atual era pode ser comparada?
FERGUSON – Há muitos paralelos. Parte do objetivo do livro é mostrar como a história financeira explica a geopolítica. Pense no declínio dos impérios português e espanhol, que nos 1600 pareciam os protagonistas da economia global. O declínio da Espanha foi claramente financeiro, porque a disponibilidade de prata do Novo Mundo teve o efeito de minar a saúde institucional do império espanhol e abrir o caminho para novas potências financeiras. Primeiro a Holanda, e depois, claro, a Inglaterra. A França era um império poderoso no século 18, mas, financeiramente, um império fraco, que em última análise caiu exatamente por isso -a Marinha britânica era muito maior, porque os franceses não tinham um mercado de “bonds”, não tinham a capacidade de se financiar naquela escala. No século 20, é o Reino Unido que está em problemas, como consequência de dívida e baixo crescimento, especialmente depois de 1945. Então seria perfeitamente familiar, de um ponto de vista histórico, se essa crise financeira levasse a uma aceleração da mudança dos Estados Unidos para a China. Nós já vimos nos últimos dez anos que a liderança parece estar mudando em direção à China. Embora isso leve tempo e seja imprevisível -já que a China pode sempre entrar em dificuldades-, é razoável dizer que em 10 ou 20 anos os PIBs da China e dos EUA não serão diferentes.

FOLHA – O senhor cria a “Chimérica” no seu livro, o que é isso?
FERGUSON – Meu argumento é que, para entender a economia mundial, é necessário entender a relação entre a China e a América [EUA]. A China exportadora, a América importadora. A China poupadora, a América gastadora. Essa relação esteve no centro da economia global nos últimos dez anos, e o interessante é perguntar se a crise levará ao fim da “Chimérica”. A China tem reclamado cada vez mais do modo como os EUA lidam com a crise.

FOLHA – A China tem falado constantemente numa alternativa ao dólar.
FERGUSON – Isso tem se tornado tão frequente de Pequim que parece que eles realmente querem dizer isso. Eles têm US$ 1,5 trilhão em títulos em dólar e ficam muito nervosos com os EUA tomando medidas que podem enfraquecer o dólar e, assim, suas reservas. Isso pode parecer o fim desse casamento. Quando cunhei essa expressão, pensei na palavra quimera, uma criatura mítica. Não acho que seja uma relação estável.

FOLHA – É possível ver uma trajetória linear na evolução econômica do mundo ou é algo errático? Estamos indo em alguma direção ou não?
FERGUSON – O paralelo que eu traçaria é um que me bateu quando eu estava na Bolívia, observando os Andes. Olhando as linhas das montanhas, dei-me conta de que estava olhando algo parecido com os índices do mercado financeiro, os picos, as quedas bruscas, os pontos agudos. E acho que essa analogia é válida. Na economia, as coisas quebram, no sentido de seleção natural, existe a sobrevivência, inovações ou mutações acontecem, novas instituições são criadas. São as bem-sucedidas que sobrevivem e se multiplicam. A diferença é que, ao contrário do mundo natural, temos intervenção de reguladores e legisladores, o que previne o processo natural de acontecer. Uma das maiores diferenças entre evolução natural e evolução financeira é que essa pode ser interrompida, os dinossauros podem ser salvos da extinção, e os mamíferos, impedidos de herdar a Terra. É um pouco isso o que está acontecendo, com instituições que deveriam ter quebrado, mas interviemos para mantê-las vivas.

FOLHA – Mas um dos argumentos é que, se quebrassem, o sofrimento para a população seria enorme, como nos anos 30. Não faz sentido?
FERGUSON – Isso é correto, e o Fed [banco central dos EUA] fez um bom trabalho em evitar a catástrofe. Se os bancos tivessem quebrado em setembro passado, estaríamos numa situação muito pior. Mas existem diferenças entre medidas temporárias e reformas de longo prazo. As medidas iniciais foram tomadas para prevenir o pânico. Mas, uma vez que isso foi feito, temos de dizer: depois do que você fez, não há a menor possibilidade de continuar como antes. Quando vimos o Goldman Sachs, que recebeu todo tipo de benefício, voltando aos negócios como sempre, os bancos sobreviventes simplesmente voltando ao que eram antes, tudo isso é muito frustrante. O Goldman vai ter em 2009 o mesmo lucro de 2007, ou maior. É difícil acreditar que os contribuintes colocaram seus recursos para prevenir uma depressão, não para que os bancos tivessem um ótimo ano de 2009.

FOLHA – Isso pode levar a reações mais agressivas da população?
FERGUSON – Isso é parte da dificuldade do público de distinguir entre milhares e milhões. Quando você tenta explicar para as pessoas o que está acontecendo, é complicado, porque, para elas, é difícil distinguir 1 milhão de 1 bilhão. Um dos objetivos do meu livro é encorajar o “alfabetismo financeiro”, para que o leitor comum não se sinta intimidado quando ler palavras como derivativos, trilhão. A ideia de que os mestres do universo de Wall Street precisam nos explicar o que está acontecendo é absurda. Está muito claro que a crise financeira foi causada por um grosseiro erro de cálculo e de administração pelas pessoas que geriam os bancos. E o fato de que muitos deles continuam a comandar os bancos é profundamente irritante.

Jornal Folha de São Paulo – 13/07/2009

Crescimento contínuo das despesas correntes é ‘assustador’

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O ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga está preocupado com o forte aumento das despesas correntes do governo. Pelo que observa “do crescimento quase que contínuo que se vê nos gastos públicos”, com alta expressiva do dispêndio com pessoal, aposentadorias e custeio da máquina, Arminio diz que é “obrigado a concluir” que há sinais de descontrole da situação fiscal do país.
“Não é um descontrole explosivo ano a ano, mas, como é via de mão única para cima, o que se vê com o passar dos anos é assustador. Tem que parar”, afirma ele, que é sócio da Gávea Investimentos. A alta dos gastos correntes tira espaço do investimento e empurra para cima os juros, explica.
Para Arminio, o ideal é que o Brasil mantenha superávits primários mais próximos de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) ainda “por uns anos”. A questão é que a dívida bruta ainda é elevada como proporção do PIB, “especialmente quando se leva em conta o alto nível dos juros”, diz. Em maio, a dívida bruta estava em 61,9% do PIB. Países com classificação de risco semelhante à do Brasil tem o indicador na casa de 34%, segundo números da Standard & Poor’s (S&P).
“Vejo muitas vantagens em se manter por mais alguns anos um superavit primário capaz de reduzir a relação dívida/PIB, e assim reduzir o prêmio de risco Brasil e alavancar o crescimento.” Se promover uma economia mais forte para pagar os juros da dívida por alguns anos, o país terá uma folga que permitirá reduzir o superávit em anos de recessão como o atual, avalia. Ao mesmo tempo, completa Arminio, isso requer um esforço fiscal maior quando a economia cresce acima da média.
Depois de atingir 4,1% do PIB em 2008, o superávit primário deve ficar neste ano em 2,2% do PIB, segundo os analistas ouvidos pelo BC. Para 2010, a previsão é de um esforço fiscal de 3% do PIB. Mas há vários economistas que preveem superávits inferiores a esses, dada a tendência de crescimento acelerado das despesas correntes e da incerteza quanto ao ritmo de retomada da expansão das receitas.
A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail de Nova York, quando Arminio voltava da China. Segundo a “Dow Jones”, ele foi nomeado um dos 14 integrantes do recém-estabelecido conselho consultivo internacional do fundo soberano chinês China Investment Corporation, que tem US$ 200 bilhões. Os membros vão aconselhar o fundo sobre o ambiente econômico internacional, governança corporativa, estratégia de desenvolvimento e política de investimento.
Valor: O superávit primário neste ano será bem menor que em 2008. O resultado é conjuntural ou aponta para uma deterioração estrutural das contas públicas?
Arminio Fraga: Em parte é conjuntural, mas a Receita Federal acaba de anunciar mais um ano de aumento na carga tributária, que está em torno de 36% do PIB. O lado da despesa é que assusta mais, e muito, e não de hoje.
Valor: As despesas correntes do governo central aumentaram muito de janeiro a maio. Os gastos com pessoal cresceram 22,63%, ou R$ 11,432 bilhões em termos absolutos. Como o sr. avalia essa trajetória de gastos correntes?
Arminio: Aí está realmente um problema sério, que precisa ser abordado com certa urgência, de forma transparente e detalhada. Não dá para a relação gasto corrente /PIB continuar crescendo indefinidamente, pois isso come espaço do investimento e pressiona as taxas de juros para cima.
Valor: O investimento federal cresceu 25% no período, mas para apenas R$ 9,276 bilhões – menos que o aumento com os gastos de pessoal. Por que a União ainda investe tão pouco, mesmo com o PAC?
Arminio: Porque o gasto corrente ocupa o espaço.
Valor: Qual o impacto da política fiscal atual sobre as perspectivas futuras de crescimento do país?
Arminio: Vejo dois problemas. O primeiro eu já mencionei: o “crowding out” do investimento prejudica crescimento. O segundo, pouco discutido, diz respeito à eficiência do setor público, que me parece uma questão igualmente grave.
Valor: Hoje, o superávit primário necessário para estabilizar a relação dívida/PIB é bem menor do que no fim dos anos 90 e começo da atual década. Isso indica que o problema de solvência está fora do radar dos investidores?
Arminio: A questão da solvência de longo prazo requer uma visão mais estrutural das coisas. Penso que nossa dívida bruta ainda é alta como proporção do PIB, especialmente quando se leva em conta o alto nível dos juros. Vejo muitas vantagens em se manter por mais alguns anos um superavit primário capaz de reduzir a relação dívida/PIB, e assim reduzir o prêmio de risco Brasil e alavancar o crescimento. Isso leva a uma recomendação prática muito clara: temos que ter um superávit primário mais para 4% do PIB por uns anos. Essa folga permite uma queda em anos de recessão, como o atual, e requer um superavit maior quando se cresce acima da média.
Valor: O governo definiu um mecanismo de reajuste do salário mínimo que leva em conta a inflação nos últimos 12 meses e o PIB de dois anos anteriores. Isso pode levar a mais um reajuste superior a dois dígitos em 2010. Como o sr. vê esse mecanismo de correção?

Arminio: Preliminarmente, esta conta seria menos problemática sem o vínculo com os cálculos da Previdência, tema relacionado ao início da nossa conversa. Como não é assim, me parece que por ora seria razoável apenas proteger o salário mínimo contra perdas reais e no máximo dar aumentos equivalentes ao crescimento do PIB per capita.
Valor: O sr. vê sinais de descontrole da situação fiscal no país?
Arminio: Do que foi dito até aqui, e da observação do crescimento quase que contínuo que se vê nos gastos públicos, sou obrigado a concluir que sim. Não é um descontrole explosivo ano a ano, mas como é via de mão única para cima, o que se vê com o passar dos anos é assustador. Tem que parar.
Valor: Os princípios da lei de responsabilidade fiscal estão de algum modo ameaçados?
Arminio: A LRF foi um marco fundamental – sem ela, o país provavelmente já teria quebrado. Mas ainda vejo muita despesa permanente sendo criada sem real fonte de receita equivalente. E falta um mecanismo mais global de limitar a relação dívida/PIB.

Valor: A herança fiscal que o próximo governo vai receber será um peso muito grande?
Arminio: Sem a menor sombra de dúvida – para não falar de uma certa politização do Estado, que não sei bem medir, mas que parece real.

A crise enfraquecerá países que estavam ascendendo nas duas últimas

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Professor titular do Instituto de Economia (IE) da UFRJ, José Luis Fiori coordena o Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional e o Núcleo de Estudos Internacionais do IE. Recentemente publicou, em parceria com Carlos Medeiros e Franklin Serrano, o livro “O Mito do Colapso do Poder Americano”, no qual detalha algumas das ideias resumidas nesta entrevista.

P: As primeiras medidas da administração Obama para combater a crise econômica, somadas às iniciativas da administração Bush, serão suficientes para debelar a crise?

R: No meio desta confusão, acho que só existem três coisas que podem ser afirmadas com algum grau de certeza. A primeira é que, faça o que faça, o governo americano será absolutamente decisivo para a evolução da crise em todo mundo. A segunda é que neste momento todos os governos envolvidos estão fazendo a mesma aposta e adotando as mesmas estratégias monetárias e fiscais, e aprovando “pacotes” sucessivos (e até agora impotentes) de ajuda à estabilização e reativação do sistema financeiro e de estímulo à produção e ao emprego, junto a um aumento generalizado – mas ainda disfarçado – das barreiras protecionistas. E todos os governos estão se propondo aumentar o rigor da regulação dos seus agentes e mercados financeiros. A terceira coisa que se pode afirmar com toda certeza é que ninguém, absolutamente ninguém sabe se estas políticas darão certo.

P: Este novo consenso poderia ser considerado uma vitória do pensamento keynesiano, e uma retirada definitiva da ortodoxia monetarista e neoliberal?

R: Do meu ponto de vista, os keynesianos também não têm uma teoria capaz de dar conta da complexidade desta nova situação mundial, e por isto tampouco sabem o que vem pela frente, nem conseguem antecipar se as “políticas keynesianas” que estão em curso alcançarão os resultados propostos. Além disto, um grande número considera insuficientes os recursos que têm sido desembolsados, e criticam a forma em que vem sendo feita a limpeza dos ativos podres do bancos, que em geral é considerada pouco ousada e pouco precisa, além de ser perversa ao premiar com recursos públicos o setor financeiro responsável pela crise. O problema é que, na maioria das vezes, os keynesianos têm uma enorme dificuldade de tratar com os interesses e as lutas do mundo real. E compartilham com os liberais uma espécie de “erro inverso”: Os liberais acreditam na possibilidade e na eficácia da eliminação do poder político e do estado do mundo dos mercados, enquanto os keynesianos acreditam na possibilidade e na eficácia da intervenção corretiva do estado no mundo econômico. Mas estão sempre imaginando um estado homogêneo e onisciente, capaz de formular políticas econômicas sábias, justas e eficazes, desde que não sejam “atrapalhadas” pelo mundo real. Ou seja, em última instancia, ortodoxos e keynesianos compartilham a mesma dificuldade de entender e incluir, nos seus modelos, projeções e recomendações às contradições e às lutas políticas próprias do mundo econômico.
P: E o que você vê quando olha para esta crise através desta “janela” do poder?
R: A vôo de pássaro, é possível ver que esta crise envolve interesses e poderes nacionais e internacionais, econômicos e políticos, gigantescos e contraditórios. Por isto mesmo, não tem nenhuma solução técnica possível, e do meu ponto de vista tampouco tem nenhuma solução política à vista. Ainda assistiremos infinitas tentativas e erros, e uma luta contínua e prolongada em torno de cada uma destas iniciativas. Portanto, tudo indica que será uma crise longa e profunda que atuará como um “tsunami darwinista”, liquidando os mais fracos em todos os níveis. E o que é mais chocante é que esta mesma crise acabará provocando no final uma gigantesca transferência e centralização de riqueza e poder, sobretudo por se tratar de uma crise que apareceu como culminação de um longo período de 30 anos onde também ocorreu, por outro caminho, uma enorme concentração e centralização de poder e capital. Por fim, na hora da volta do sol poucos estarão na praia, e com certeza quem estará na frente serão os EUA.Mas o que é mais surpreendente é que, apesar de a crise não ter sido provocada intencionalmente, ela também enfraquecerá países que estavam ascendendo nas duas últimas décadas e desafiando de alguma forma a ordem internacional estabelecida. É como se a crise recolocasse todos os “sublevados” no “seu devido lugar”, como costumam dizer os “donos do poder”, em todas as latitudes do mundo.
P: Mas você acha que tudo isto acontecerá sem que haja resistência?

R: Não, não acho. Haverá resistência e haverá desintegração social, mesmo que elas não assumam a forma de uma resistência consciente. E se a crise se prolongar por muito tempo, deverão se multiplicar as rebeliões e as guerras civis, sobretudo nas zonas de fratura do sistema mundial. E não é impossível que em algumas destas rebeliões se recoloquem objetivos socialistas. Mas com certeza não haverá uma mudança de “modo de produção” em escala mundial, nem tampouco uma “superação” hegeliana do sistema inter-estatal capitalista. Pelo contrário, do meu ponto de vista, nesta hora de “estreitamento de oportunidades” haverá uma fuga para frente e uma intensificação da corrida imperialista que já estava em curso nestes últimos 20 anos.

P: Sua visão não é excessivamente pessimista?
R: Não creio, creio que é apenas uma leitura capitalista do próprio capitalismo, com suas lutas de poder e suas contradições político-econômicas que atravessam e dão ritmo ao movimento cíclico e expansivo de acumulação e destruição periódica do próprio capital.
P: Agora bem, mudando um pouco de assunto, quais são as suas expectativas com relação à política externa dos Estados Unidos, sob a presidência de Obama?
R: Se só nos fixarmos nas pessoas e seus discursos, creio que não haveria muito que esperar de novo da política externa do governo Obama. As figuras centrais que estão no comando da política externa, como no caso da política econômica, são conhecidos que já governaram durante os oito anos da administração Clinton, que promoveu cerca de 48 intervenções militares ao redor do mundo, ao contrário do que se imagina que foi a década de 90.Por outro lado, os programas de campanha da senhora Hillary, como o do próprio Obama, foram explicitamente intervencionistas e comprometidos com a manutenção do poder global dos EUA. Porque não se pode esquecer que os EUA têm uma infra-estrutura global de poder militar pela qual devem zelar, seja qual for o seu governo: são os seus acordos militares com cerca de 130 países, suas 700 bases militares situadas ao redor de todo o mundo e finalmente seus mais de meio milhão de soldados servindo ou lutando fora do território americano. Os EUA devem enfrentar dificuldades e contradições crescentes para administrar este poder global, mas não há a menor possibilidade de os americanos recuem ou abandonem estas posições de poder por sua própria conta, com ou sem Barack Obama.
P: Mas então não se deve esperar nenhum avanço em relação à era Bush? E de onde poderiam vir?
R: Com certeza haverá mudanças, e o mais provável é que elas vão crescendo com o tempo e pragmaticamente. Mas neste ponto é necessário ter em conta que os reveses do período Bush aumentaram as divisões internas e criaram uma verdadeira fratura exposta e permanente dentro da sociedade e da elite norte-americana. Deste ponto de vista, a eleição e o próprio governo Obama podem e devem ser considerados como um momento importante, mas absolutamente inicial ou incipiente de um longo processo de realinhamento interno de forças e interesses dentro do establishment norte-americano, como ocorreu no início dos anos 50, e na década de 70, depois das Guerras da Coréia e do Vietnã. São momentos em que se formam novas coalizões de poder e podem se definir novas estratégias internacionais.De qualquer maneira, não há dúvida que, frente a um quadro de tamanha complexidade, foi um grande passo à frente o afastamento do fanatismo religioso do comando da política externa americana, e sua substituição por um projeto de experimentação progressivo e realista de soluções negociadas, sempre que possível, com as várias potencias envolvidas em cada um destes conflitos mais quentes, que deverão ir sendo administrados mesmo sem ter uma solução definitiva.
P: Esta crise atual pode representar o fim da era norte-americana e a inauguração de um novo ciclo hegemônico?
R: Eu não leio a história do sistema mundial como uma sucessão de ciclos hegemônicos, uma espécie de ciclos biológicos dos estados que nascem, crescem, dominam o mundo, e depois decaem e são substituídos por um novo estado que percorreria o mesmo ciclo anterior até chegar à sua própria hora da decadência. A melhor analogia para pensar o sistema mundial é como um “universo em expansão” contínua, onde todos os estados que lutam pelo “poder global” – em particular, a potência líder ou hegemônica – constituem um núcleo inseparável, complementar e competitivo, em permanente estado de preparação para a guerra. Por isto, são estados que estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. E as potências que uma vez ocupam a posição de liderança não desaparecem nem são derrotadas por seu “sucessor”. Elas permanecem e tendem a se fundir com as forças ascendentes criando blocos cada vez mais poderosos de poder, como aconteceu, por exemplo, no caso da Holanda, Grã Bretanha e Estados Unidos, que na verdade foram alargando sucessivamente as fronteiras do poder anglo-saxônico. Além disto, neste sistema inter-estatal capitalista em que vivemos, crises econômicas e guerras não são, necessariamente, um anúncio do “fim” ou do “colapso” dos estados e das economias envolvidas. Pelo contrário, na maioria das vezes fazem parte de um mecanismo essencial da acumulação do poder e da riqueza dos estados envolvidos dentro do sistema inter-estatal capitalista. As crises e guerras que estão em curso neste inicio do século XXI ainda fazem parte de uma transformação estrutural, de longo prazo, que começou na década de 1970 e que aponta, neste momento, para um aumento da “pressão competitiva” mundial e para uma nova “explosão expansiva” do sistema mundial – como a que ocorreu nos longos séculos XVI e XIX – que contará com um papel decisivo do poder americano.
P: Mas não foi exatamente na década de 70 que se começou a falar em “crise da hegemonia americana”?
R: Exatamente, foi na década de 70 que se começou a falar da crise da hegemonia do poder americano, e do início do fim da “era americana”. E no entanto, a resposta que os EUA deram à sua própria crise teve um papel decisivo na transformação de longo prazo da economia e da política mundial. Basta dizer que foram estas mudanças lideradas pelos EUA que trouxeram de volta ao sistema mundial, depois de 1991, as duas velhas potências do século XIX, a Alemanha e a Rússia, além de trazer para dentro do sistema a China, a Índia, e quase todos os principais concorrentes dos Estados Unidos deste início de século. A crise de liderança dos Estados Unidos, depois de 2003, serviu apenas para dar uma maior visibilidade a este processo que já estava em curso, com novas e velhas potências regionais atuando de forma cada vez mais “desembaraçada” na defesa dos seus interesses nacionais e na reivindicação de suas “zonas de influência”.
P: Você acha que a atual crise econômica afetará a centralidade do dólar como moeda de referência internacional?

R: Não creio que o papel internacional do dólar seja afetado ou alterado como conseqüência desta crise. Basta você olhar para a chamada “fuga para o dólar” que se acelerou depois de setembro de 2008, como resposta à crise financeira americana. Este processo fica ininteligível enquanto não se entenda o funcionamento do sistema monetário internacional que meu colega Franklin Serrano apelidou, já faz alguns anos, de sistema “dólar-flexível”. Desde a década de 1970, os EUA se transformaram no “mercado financeiro do mundo”, e o seu Banco Central (FED), passou a emitir uma moeda nacional de circulação internacional, sem base metálica, administrada através das taxas de juros do próprio FED, e dos títulos emitidos pelo Tesouro americano, que atuam em todo mundo, como lastro do sistema “dólar-flexível”. Por isto, como diz Serrano, a quase totalidade dos passivos externos americanos é denominada em dólares e praticamente todas as importações de bens e serviços dos EUA são pagas exclusivamente em dólar, configurando um caso único em que um país devedor determina a taxa de juros de sua própria “dívida externa”. Uma mágica poderosa e uma circularidade imbatível, porque se sustenta no poder político e econômico norte-americano. Agora mesmo, por exemplo: para enfrentar a crise, o Tesouro americano emitirá novos títulos, mas estes títulos serão comprados pelos governos e investidores de todo mundo, porque seguem sendo uma aplicação segura para todo o mundo e inclusive a China, como diz o influente economista Yuan Gangming, ao garantir que “é bom para a China investir muito nos EUA; porque não há muitas outras opções para suas reservas internacionais de quase US$ 2 trilhões, e as economias da China e dos EUA são interdependentes”.

P: Depois da polarização EUA/URSS e da dominação isolada dos EUA, o que vem agora? A China poderá ocupar o vácuo de poder deixado por um EUA economicamente debilitado?
R: Apesar da violência desta crise financeira, e dos seus efeitos em cadeia sobre a economia mundial, não deverá haver uma “sucessão chinesa” na liderança política e militar do sistema mundial. Pelo contrário, do ponto de vista estritamente econômico, o mais provável é que ocorra um aprofundamento da fusão financeira em curso desde a década de 90, entre a China e os Estados Unidos. Assim

Não creio. Nada do que está acontecendo tem a ver com qualquer tipo de vitória ou derrota teórica. Trata-se de uma reação emergencial e pragmática frente à ameaça de colapso do poder dos estados e dos bancos, e como conseqüência, dos sistemas de produção e emprego. Foi uma mudança de rumo inesperada e inevitável, que foi imposta pela força dos fatos, independente da ideologia econômica dos governantes que estão aplicando as novas políticas, e que na sua maioria ainda eram ortodoxos e liberais até anteontem. É como se estivéssemos assistindo a versão invertida da famosa frase da senhora Thatcher: “there is no alternative”. Só que agora, do meu ponto de vista, esta nova convergência aconteceu sem maiores discussões teóricas ou ideológicas e sem nenhum entusiasmo político, ao contrário do que aconteceu com a “virada” liberal-conservadora dos anos 80/90, que atravessou todos os países e todos os planos da vida social e econômica. A ideologia econômica liberal não previu e não consegue explicar a crise que ela provocou, e como conseqüência não tem nada para dizer nem propor neste momento. Por isto mesmo, as idéias ortodoxas e liberais saíram do primeiro plano, mas não morreram nem desapareceram; pelo contrário, permanecem atuantes em todas as frentes e trincheiras de resistência às políticas estatizantes que estão em curso. Uma resistência que tem crescido a cada hora que passa, dentro e fora dos EUA, apesar de ainda não ter sido devidamente identificada e diagnosticada.

Formatura Administração Unirp – Março/2009

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Para entender a crise financeira

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Como o governo americano contribuiu para a criação da atual crise financeira.