Ônibus rápido e carro congestionado é democracia

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Autor: Enrique Peñalosa – Entrevista à Flávia Marreiro – FSP – 02/10/13

Ex-prefeito de Bogotá, o economista Enrique Peñalosa, 59, entusiasma-se com o fato de os protestos de junho terem colocado a mobilidade urbana em pauta no Brasil, porque a questão simboliza “liberdade” e “equidade”.

Responsável por implementar o amplo sistema de corredores de ônibus da capital colombiana há mais de uma década, faz defesa enfática da expansão das faixas de ônibus em São Paulo pelo prefeito Fernando Haddad (PT).

“Quando um ônibus passa ao lado de carros engarrafados, temos um símbolo de democracia. O interesse coletivo está acima do particular”, afirma Peñalosa.

Leia trechos da entrevista concedida à Folha:

O prefeito de São Paulo acelerou a implementação de faixas exclusivas para ônibus, mas há críticas à falta de ajuste das linhas e às interferências de carros. O que acha?

Enrique Peñalosa – Não posso entrar nos detalhes técnicos de São Paulo, pode haver erros na implementação técnica, mas admiro o prefeito por dar importância aos corredores de ônibus. O mais importante em uma discussão é a estratégia. Pode haver erros na tática, mas não na estratégia. A dificuldade para solucionar o problema do transporte não é técnica nem econômica.
Podem fazer mais duas ou três linhas de metrô, e não vai consertar o trânsito, pode-se fazer mais vias, e não vai consertar. Os ônibus com faixa exclusiva e os metrôs podem consertar o problema da mobilidade, mas não dão jeito no trânsito. A única maneira de dar um jeito no trânsito é com restrições ao uso dos carros. E a restrição mais óbvia de todos é a de estacionamento. Em São Paulo ainda há muitas ruas em que os carros podem estacionar.
Com metrô ou sem metrô, nunca será possível resolver o tema da mobilidade sem um bom sistema de ônibus.

A prefeitura deve revisar ou não a decisão de permitir que táxis com passageiros utilizem os corredores e faixas?

Não se deve permitir os táxis. Pode ser que em algumas situações isso não seja um problema, e teriam de ser estudados os detalhes técnicos, mas, a princípio, nada que provoque a mais mínima demora aos ônibus deve ser permitido. Um táxi leva uma pessoa e um ônibus pode levar até cem passageiros: o segundo tem direito a cem vezes mais espaço.
Além do mais, em sociedades tão desiguais como as nossas, se damos privilégios aos táxis terminaremos com um sistema onde os ricos têm um táxi com contrato permanente, ou quase permanente.

O sr. é defensor da expansão do uso da bicicleta. Por que é mais que uma causa de classe média ou de fim de semana?

O transporte é diferente de todos os demais desafios que temos na nossa sociedade. Diferentemente da saúde ou da educação, tende a piorar à medida que nos tornamos mais ricos. Se amanhã São Paulo exibir o dobro da renda per capita atual, haverá melhora nesses itens, mas o transporte vai ser pior, a não ser que mudemos de modelo.
Quando falamos de bicicletas, não estamos falando que vão substituir os ônibus, os trens nem nada disso. Mas as bicicletas podem chegar a ter uma porcentagem importante das viagens. Hoje em São Paulo menos de 1% da viagens são feitas em bicicleta. Se chegarem a ser 10%, seria uma revolução. As ciclovias protegidas não são um detalhe arquitetônico simpático, mas um direito.
De novo, estamos falando de democracia. Quando um ônibus passa ao lado de carros engarrafados, temos um símbolo de democracia. O interesse coletivo está acima do particular.
[Bicicleta] não é uma pauta [de classe média]. Em Bogotá, os que mais usam são os mais pobres, que economizam: uma pessoa que ganha salário mínimo e consegue usar bicicleta economiza entre 15% e 20% de sua renda.

O aumento da passagem em São Paulo foi o estopim das manifestações de massa de junho, e uma proposta central foi a gratuidade do transporte. O sr. acha viável?

É interessante que os protestos surjam ao redor da mobilidade porque a mobilidade é uma nova expressão de liberdade. Tem a ver com equidade. Mais importante do que a luta pela gratuidade, agora, é lutar por uma distribuição mais democrática do espaço viário, que dê mais e melhor espaço aos pedestres, mais corredores de ônibus, ciclovias protegidas. É a luta mais importante agora.
É importante subsidiar o transporte público, na melhor das hipóteses com recursos cobrados do uso do carro, porque quem mora mais longe do trabalho em geral é mais pobre. Mas transformar o transporte em totalmente grátis é muito difícil. Não conheço nenhuma parte do mundo em que isso tenha sido feito em larga escala.

Um keynesiano-estruturalista no tempo da globalização.

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Autor: Entrevista com o economista Luiz Carlos Bresser Pereira.

Véspera da homenagem que esta associação fez a Luiz Carlos Bresser-Pereira em seu IV Encontro Internacional, São Paulo, 21 de agosto de 2012.

a) Por que você resolveu estudar economia?
Em 1955 eu estava começando o terceiro ano de Direito na USP, e, de repente, caiu-me nas mãos os textos dos intelectuais nacionalistas do ISEB sobre a industrialização Brasileira e o pacto desenvolvimentista que Getúlio Vargas estava liderando. Decidi então que não buscaria mais ser juiz de direito; eu seria um economista ou um sociólogo do desenvolvimento. A decisão pela economia aconteceu quando, em 1962, logrei que Antonio Delfim Netto me aceitasse no programa de doutorado da Faculdade de Economia e Administração da USP.

b) Em que momento você teve contato com as ideias de Keynes? Qual foi sua reação a elas?
Eu primeiro me tornei um economista estruturalista e, em seguida, também um keynesiano. Comecei a estudar a história do pensamento econômico em 1959, quando fiz o concurso para a FGV. E continuei a estuda-lo nos Estados Unidos em 1960, quando fiz meu MBA. Ao mesmo tempo que lia meus mestres, Arthur Lewis, Myrdall, eu lia Marx, Keynes, Kalecki e Schumpeter. Primeiro, dei aulas de desenvolvimento econômico, a partir de 1968, e, a partir de 1970, macroeconomia, quando criei o Departamento de Economia na Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.

c) Que pessoas você considera seus mentores no estudo de economia?
Meus mestres de economia brasileira foram Ignácio Rangel e Celso Furtado; meus mestres de teoria econômica geral, Marx e Keynes.

d) Você se considera um economista Keynesiano ou Pós Keynesiano? Como você se diferencia de Keynesianos como Stiglitz e Krugman?
Eu sou um economista keynesiano-estruturalista. A teoria econômica está dividida em escolas, mas felizmente existe uma Teoria Econômica Básica onde estão os princípios da teoria do desenvolvimento capitalista e da teoria microeconômica clássicas e da macroeconomia keynesiana que estão de alguma forma presentes em um bom texto introdutório de Economia. Stiglitz e Krugman são antes neoclássicos; mas, como aprenderam essa Teoria Econômica Básica e são profundamente inteligentes e criativos, esquecem seus modelos hipotético-dedutivos quando analisam a realidade econômica, e podem ser considerados neokeynesianos. Um verdadeiro keynesiano deve pensar historicamente. Deve construir modelos históricos, não construir castelos matemáticos sem correspondência na realidade. Nos últimos 20 anos eu logrei elaborar uma crítica da teoria econômica neoclássica que me parece original e decisiva. Ao invés de simplesmente afirmar que os modelos neoclássicos não são realistas, eu expliquei por que eles não são nem podem ser realistas. Essas ideias estão no paper, “Os dois métodos e o núcleo duro da teoria econômica” que eu demorei 15 anos para escrever. Eu parto de uma classificação de ciências em metodológicas e substantivas, estas, por sua vez, dividindo-se em ciências naturais e ciências sociais ou históricas. As primeiras usam o método hipotético-dedutivo, porque não tem objeto empírico de estudo; elas ajudam a pensar. Já as ciências substantivas devem usar o método empírico-dedutivo ou histórico-dedutivo se forem ciências sociais como é a economia. A teoria econômica neoclássica ignorou essa distinção e, com os axiomas do homo economicus, das expectativas racionais e dos rendimentos decrescentes, tornou-se uma “ciência” hipotético-dedutiva, cujo critério de verdade não é a aderência à realidade mas uma certa coerência lógica. Ora, uma ciência substantiva que não adere à realidade é uma falsa ciência; é mero exercício lógico-matemática destituído de validade. De acordo com esta minha visão, a microeconomia marshalliana livrada da teoria subjetiva do valor juntamente com a teoria dos jogos não constituem o microfundamento da Economia mas são a base de uma ciência metodológica como é também a Econometria: a Teoria da Tomada de Decisão Econômica. Temos, assim, três ciências complementares, uma substantiva, que analisa os sistemas econômicos – a Economia ou Economia Política –, que usa o método histórico, e duas metodológicas que usam o método hipotético-dedutivo: a Teoria da Tomada de Decisão Econômica e a Econometria.

e) Como sua opção teórica se relaciona com sua visão política do mundo? Por que? Você se considera um socialdemocrata?
Eu sempre me considerei um desenvolvimentista de centro-esquerda. Quero uma sociedade mais desenvolvida e mais justa que caminhe na direção do socialismo no longo prazo Sempre fui, portanto, um socialdemocrata. Mais do que compatíveis, a teoria estruturalista do desenvolvimento e a macroeconomia keynesiana são teorias históricas instrumentais para que alcancemos esses objetivos – para que administremos o capitalismo mais competentemente e com mais justiça que os liberais. Atualmente estou ajudando a construir uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento que une a visão keynesiana e estruturalista.

f) Qual a sua maior contribuição para o desenvolvimento do pensamento keynesiano ou heterodoxo?
Enumero três: (1) o modelo histórico de desenvolvimento, distribuição e progresso técnico com a inversão do modelo clássico de distribuição, eu está em Lucro, Acumulação e Crise (1986); (2) a teoria da inflação inercial, com Yoshiaki Nakano, que está em Inflação e Recessão (1984); e (3) a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, que está em Globalização e Competição (2010).

g) Olhando os seus escritos acadêmicos pode-se perceber uma mudança no foco de interesse entre os anos 1990 e 2000. Com efeito, na década de 1990 você parecia estar mais interessado com questões relacionadas a eficiência na governança do Estado; ao passo que na década de 2000 seu interesse passa a ser a “macroeconomia da estagnação brasileira”. O que motivou essa mudança de foco?
Minha preocupação com o a eficiência do aparelho do Estado decorreu de haver sido nomeado Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-98). Quando, em 1999, voltei para a vida acadêmica, voltei a dedicar-me ao desenvolvimento econômico e à macroeconomia, e as juntei não na “macroeconomia da estagnação brasileira” (esse é apenas o título de um livro meu de 2007 sobre a economia brasileira), mas na macroeconomia estruturalista do desenvolvimento.

h) No ano de 2002, você publicou um paper com o Nakano intitulado “Uma estratégia de desenvolvimento com estabilidade”. Aparentemente esse paper marca a retomada do seu interesse por questões relacionadas ao desenvolvimento econômico, com ênfase na “semi-estagnação brasileira”. A linha de raciocínio ali exposta vai culminar com seu livro “A Macroeconomia da Estagnação”, publicado em 2007. Fale sobre o desenvolvimento de suas ideias entre o paper de 2002 e o livro de 2007.
Depois que, com o uso da teoria da inflação inercial o Brasil logrou estabilizar sua alta inflação inercial eu pensei que se desenvolveria de forma extraordinária. Por isso, fiquei decepcionado com a política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso. Nos quatro anos e meio que permaneci em seu governo manifestei sempre ao presidente meu desacordo com a política ortodoxa que estava sendo praticada baseada em altas taxas de juros e taxa de câmbio sobreapreciada. Comecei a fazer minha crítica ainda em 1999, no trabalho, “Incompetência e confidence building por trás de 20 anos de quase-estagnação da América Latina”. Quando, em 2001, meu velho companheiro de estudos e trabalhos, Yoshiaki Nakano, também se desligou do governo, convidei-o para escrever, sucessivamente, dois papers, “Uma estratégia de desenvolvimento com estabilidade” e “Crescimento econômico com poupança externa”. Em seguida eu continuei a trabalhar na crítica da poupança externa e da tese da restrição externa ao mesmo tempo que orientava duas teses de doutorado sobre a taxa de câmbio (de Paulo Gala e de Lauro Gonzales). Em seguida, escrevi um outro modelo fundamental, o da doença holandesa, no qual apareceu o conceito de equilíbrio industrial. Esses desenvolvimentos teóricos foram essenciais para que eu publicasse em 2007 “Macroeconomia da Estagnação”. Terminado o livro, desenvolvi o terceiro modelo da macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, o modelo da tendência à sobreapreciação cíclica e crônica da taxa de câmbio que, em seguida, me permitiu escrever o livro teórico para mim fundamental, “Globalização e Competição”.

i) Você é o responsável pela criação do conceito “novo-desenvolvimentismo”. Conte-nos um pouco sobre o processo de criação desse conceito. É verdade que o termo “novo-desenvolvimentismo” foi ideia do Nakano?
Depois de termos escrito os dois papers acima referidos eu fiquei convencido que começávamos a definir uma nova abordagem para o desenvolvimento econômico e a macroeconomia. Disse isso ao Nakano e perguntei que nome poderíamos dar para as novas ideias. Ele sugeriu “novo desenvolvimentismo”. Eu imediatamente aceitei e na quinta edição de meu livro Desenvolvimento e Crise no Brasil (2003)discuti o novo desenvolvimentismo no último capítulo. Só, porém, em 2006 eu teria um artigo que me satisfez sobre o tema: “O novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional”.

j) Nos últimos anos você tem desenvolvido um novo conceito “a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento”. Qual a relação da mesma com o “novo-desenvolvimentismo”? Por que razão você considera a “macroeconomia estruturalista do desenvolvimento” uma nova escola de pensamento econômico?
Sempre defini o novo desenvolvimentismo como uma estratégia nacional de desenvolvimento, como a instituição fundamental para o desenvolvimento econômico; a teoria que justifica esse conjunto de políticas econômicas é a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento. Esta macroeconomia não é uma criação apenas minha. Outros economistas têm dela participado. Agora estou escrevendo um livro que deverá se chamar Structuralist Development Macroeconomics and New Developmentalism com você, José Luiz Oreiro, e com Nelson Marconi. São ideias novas. Um conjunto de modelos novos que renovam o estruturalismo e o keynesianismo. Por isso entendo que estamos criando no Brasil uma nova escola de pensamento. Uma escola que já tem participação internacional, como pudemos ver com a aprovação das 10 Theses on New Developmentalism que foi subscrita originalmente, em 2010, por 80 economistas de todo o mundo.

k) Quais são os princípios teóricos fundamentais da “macroeconomia estruturalista do desenvolvimento”? Qual a relação da mesma com o pensamento Keynesiano ou Pós-Keynesiano?
Na macroeconomia estruturalista do desenvolvimento temos três modelos principais: a crítica à política de crescimento com poupança externa e à tese de que os países em desenvolvimento enfrentam uma restrição externa; o modelo da doença holandesa com duas taxas de câmbio de equilíbrio e o conceito de taxa de câmbio de equilíbrio industrial – aquela taxa que torna competitivas as empresas utilizando tecnologia no estado da arte mundial; e o modelo da tendência à sobreapreciação cíclica e crônica da taxa de câmbio. Esses modelos colocam a taxa de câmbio pela primeira vez no centro da teoria do desenvolvimento. Essa é uma teoria keynesiano-estruturalista que analisa países em desenvolvimento de renda média no quadro histórico da globalização. É uma teoria que ao enfrentar problemas novos, em certos casos crítica o pensamento keynesiano e o pensamento estruturalista antigos. Por exemplo, para a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento a crônica falta de dólares ou a “restrição externa” deriva muito mais de uma taxa de câmbio cronicamente sobreapreciada e, em consequência, de déficits em conta corrente injustificáveis, do que das elasticidade renda das importações e das exportações.

l) Como você avalia a Associação Keynesiana Brasileira?
Sinto-me honrado em ser um de seus patronos. Seus dirigentes são todos amigos próximos meus. Entendo que ela já está dando uma contribuição importante para o desenvolvimento do pensamento econômico brasileiro.

Há um sentimento mudancista

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Autor: Entrevista com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – Revista Época – 25/29 de Março de 2013.

Aos 81 anos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é uma das cabeças mais privilegiadas do país. As características que o tornaram um dos principais intérpretes do Brasil contemporâneo continuam intactas: arsenal teórico de cientista social, experiência de político e governante, invejável rede de contatos mundo afora e inesgotável curiosidade para perscrutar o que pode vir por aí. FHC foi o escolhido para estrear a série de entrevistas que ÉPOCA começa a fazer, a partir desta semana, com líderes brasileiros. Antenado nos movimentos da política, da economia e da sociedade, no Brasil e no mundo, FHC, ao falar da eleição presidencial, diz que “um sentimento mudancista” começa a ganhar corpo no país, a despeito dos índices de aprovação recordes da presidente Dilma Rousseff. Em meio a críticas à gestão econômica do governo – por tentar reviver o modelo nacional-desenvolvimentista do passado –, FHC afirma que o desafio da oposição nas eleições será dar a esse sentimento um conteúdo e uma mensagem capaz de atingir os eleitores.

ÉPOCA – Como o senhor vê o cenário atual, com Eduardo Campos,
Marina Silva e Aécio Neves praticamente já colocados como candidatos, além da presidente Dilma Rousseff, candidata à reeleição?
Fernando Henrique Cardoso – Estão se desenhando aí quatro candidatos. Provavelmente, segundo turno. Sempre houve segundo turno depois que saí. É provável que haja de novo. Como vai ser, sabe Deus! Falta muito tempo. Porque isso foi precipitado, não entendo. Nunca vi o governo precipitar a eleição.

ÉPOCA – O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou Dilma para abafar, no PT, as expectativas de que ele pudesse ser candidato?
FHC – Ele não precisaria. Fez porque gosta de campanha.

ÉPOCA – Por que ninguém tem um projeto alternativo?
FHC – Projeto é uma ideia complicada. O que está aí está se esgotando. Começam a despontar críticas. Há um sentimento mudancista, mas ainda sem dar conteúdo à mudança. Não sei se no povo. Mas entre as pessoas que leem jornal, sim. Inclusive empresários. Para vencer a eleição, tem de chegar embaixo.

ÉPOCA – O povo sente que o desemprego está em baixa, e a renda aumentou. Não há sensação de crise.
FHC – Nem sei se é necessário crise. De vez em quando, as pessoas querem aerar. Querem mudar. Meio irracionalmente. Quando tem uma basezinha que não é irracional, o problema se agudiza. Como você vence a eleição? Numa situação em que o eleitorado é fluido e os partidos não seguram nada, depende do desempenho. Depende da mensagem. Na política, não adianta só ter ideia. Tem de fulanizar. Não adianta sentar aqui três meses com um clube de sábios e escrever um projeto. Tem de tocar nas pessoas. E a pessoa tem de ser capaz, ela mesma, de inspirar isso. Precisa ter alguém que expresse esse sentimento e diga: “Vou fazer isso, me sigam”.

ÉPOCA – Como foi Fernando Henrique num momento e Lula noutro?
FHC – Exatamente. Dilma não precisou. Agora precisa. Não só porque começa a haver cansaço. É porque o mundo está indo muito depressa.

ÉPOCA – O senhor acha que Aécio pode cumprir esse papel?
FHC – Se não achasse, não o teria apoiado.

ÉPOCA – E o Eduardo Campos?
FHC – A pior coisa que pode acontecer no país é não haver alternativa. Ainda que seja contra minha escolha, é preciso haver a possibilidade de mudar. Quanto mais pessoas digam alguma coisa, melhor. Independentemente de ser bom ou mau para meu partido, é melhor para o Brasil. Não sei o que Eduardo fará. Está pintando que será candidato. Se for, acho bom para o país. Porque ele e a Marina dizem coisas. Quem será capaz de galvanizar, veremos. No ponto de partida, Aécio tem uma base maior. Tem apoio em Minas e tem uma estrutura partidária mais ampla que o Eduardo. Veremos o que acontece.

ÉPOCA – O PSDB paulista ficará com Aécio? E José Serra?
FHC – De tudo que ouço do Serra, ele diz que não tem essa pretensão. Nem mesmo de ser presidente do partido. Tenho de acreditar no que ele me diz. O candidato do PSDB será apoiado pelo PSDB de São Paulo. Não tem muita alternativa.

ÉPOCA – O senhor não teme que Serra saia do partido?
FHC – É especulação. Ele nunca me disse isso.

ÉPOCA – Qual será a mensagem de Aécio?
FHC – Não posso falar por ele. Ele é que dará a mensagem.
Aécio transmite uma coisa importante, a contemporaneidade. É jovem. Isso você não fala. Você é.

ÉPOCA – Que mensagem hoje seria inspiradora neste momento mudancista?
FHC – Perguntaram-me uma vez qual seria um bom slogan para o PSDB. Não dá para falar como o Obama: “Yes, we can”. Tem de ser: “Yes, we care”. Nós prestamos atenção a você. Não é que farei mais hospitais. Meu hospital terá cuidado com você. É preciso insistir que o governo olhará para toda essa gente que está melhorando de vida. Isso não é palavra. Tem de ter também imagem e gesto.

ÉPOCA – O governo Lula expandiu os programas sociais de seu governo. Por que o senhor não fez essa expansão?
FHC – Não tínhamos recursos. E atacamos tudo: reforma agrária, educação, saúde. As grandes mudanças estruturais estavam lá.

ÉPOCA – Mas o Bolsa Família virou marca do governo seguinte.
FHC – Sim. Mas aí tem o jogo político. E talvez um pouco de timidez de usar a política social como base da política eleitoral.

ÉPOCA – O senhor se arrepende dessa timidez?
FHC – Não posso dizer que me arrependo. É meu jeito. Dizem que sou vaidoso, arrogante e não sei o quê. Tudo conversa… Na verdade, sempre tive muito acentuado o sentido do que é público, do que é privado, do que é partido.

ÉPOCA – O senhor não reconhece que, além de uma questão eleitoral, havia também um impulso para responder ao anseio social?
FHC – Lula simboliza isso. Ele vem de baixo, é um líder operário. Sem dúvida. Não estou tirando o mérito dele. A César o que é de César. Desde que eu também tenha meu cesarzinho (risos).

ÉPOCA – O que há de errado na economia do país?
FHC – Todo mundo reiterou que, no governo Lula, houve continuidade na política econômica. Até a crise de 2008, sim. Com a crise, a política anticíclica adotada foi correta. Aí o governo pressentiu que havia uma espécie de licença para fazer o que quisesse. E isso se agravou nos anos Dilma, com a volta da ideia de que você pode fechar mais a economia, apoiar certas empresas, promover uma política industrial apoiando certas áreas. Voltamos a uma visão nacional-estatista. A política fiscal foi abandonada, como se fosse uma persistência do que eles chamavam de neoliberalismo. Essa incompreensão do que acontecia no mundo já ocorrera antes. Nos anos 1990, quando se tratava de ajustar a economia para lidar com a globalização, eles entendiam que era uma questão de ideologia, o tal neoliberalismo. Não foi só o PT, mas quase todo mundo, por uma posição mais antiquada que propriamente ideológica. Confundiram uma mudança do sistema produtivo, com novas tecnologias e novos métodos de transporte, com ideologia. Meu governo ajustou a economia brasileira à situação do globo. Agora, também está havendo um equívoco de percepção. Quando houve a crise de 2008, eles disseram: “Então vamos voltar. A crise nos dá o direito de fazer o que nós queríamos ter feito antes”.

ÉPOCA – Voltar para onde?
FHC – Para um Brasil anterior a 1990. Estamos agora na realidade do Ernesto Geisel (presidente brasileiro entre 1974 e 1979). No momento em que o mundo vai sair da crise, o Brasil está voltando nas suas concepções quanto ao desenvolvimento da economia. Isso me preocupa. Novamente, os Estados Unidos sairão na frente, sobretudo com a revolução energética que estão fazendo.

ÉPOCA – Neste momento, Dilma está voltando atrás em algumas políticas e começou com algumas privatizações.
FHC – Pela força das circunstâncias. Ela é capaz de entender o erro. Vê o número e se assusta. Mas aí, quando vai consertar, tem de fazer coisas que não são da alma dela. Então, tem uma inconsistência. Ela não fala que é privatização, nem fala que é concessão. Fala que é PPP (Parceria Público-Privada). Ela até recuperou uma ideia da Idade Média, o lucro justo. Entendo essa reação, o capitalismo é irritante. Qualquer pessoa sente raiva disso aí. Mas essa é a lógica do sistema – tem de acumular mais, senão não cresce. O capitalismo não é justo. Quem tem de ser justo não é o mercado, é o Estado. Se você é neoliberal, deixa por conta do mercado e comete injustiças. Se você não é, usa o Estado para tentar evitar que o capitalista arrase tudo.

ÉPOCA – Por que o brasileiro é tão relutante em reformar o Estado?
FHC – O livro do Raymundo Faoro Os donos do poder diz que isso vem de longe. Claro que Faoro exagera. Fala que tudo é o Estado, a corporação, o privilégio, desde Portugal. Não é bem assim. Há uma luta permanente entre mais e menos Estado. E ganha sempre o lado do mais Estado. De certa maneira, meu período foi quase um ponto fora da curva. A gente estava modernizando o Estado e aceitando algumas regras do mercado. Agora, o Estado ficou mais resistente. Quanto mais você vai para lugares de menor desenvolvimento no Brasil, mais tem Estado. Mas as pessoas não percebem algo também verdadeiro: quando o Estado intervém demais, aumenta a concentração. A concentração de renda, provavelmente, cresceu muito recentemente.

ÉPOCA – Mas há duas maneiras de o Estado intervir. No desenvolvimentismo, ele subsidia empresas e cria estatais. A partir dos anos 1990, o Estado passou a tratar mais de saúde, educação e políticas sociais. Essa mudança é inexorável ou voltaremos ao passado?
FHC – Acho que não. Sabe por quê? No meio dessa mudança, está a democracia. Com a Constituição de 1988, foi desenhado um futuro social-democrata. Nenhum governo pode olhar apenas para a economia. O que tentou resolver só a economia foi o Fernando Collor – e não deu certo. Os governos têm de olhar para os dois lados. Tem de olhar para educação, saúde, reforma agrária. Há uma massa demandante, que tem voto. No fundo, qual a base ideológica do governo Dilma? É o desenvolvimentismo. É crescer o PIB. O meio ambiente atrapalha. A regulação atrapalha. É um pouco a volta do capitalismo selvagem. Ela parece não perceber que o crescimento do PIB não depende só do governo, mas tem ciclos. Infelizmente, tocou a ela um ciclo mau. Como tocou a mim também. Ao Lula, tocou um ciclo bom.

ÉPOCA – Como será esse embate entre essas forças contraditórias?
FHC – A linha de força aponta na direção de que esses elementos de corporativismo perderão força. Levaremos mais tempo para fazer o que poderíamos fazer mais depressa. Mas temos caminhos. Temos uma sociedade forte. Somos mais ricos em termos relativos e mais fortes que nossos irmãos aqui da região. Temos um sistema empresarial vigoroso. A ideologia não prevalece sobre a realidade. Ela atrapalha.

ÉPOCA – O governo Dilma elegeu como prioridade, até para efeito de propaganda, a erradicação da miséria. Mas não é uma vergonha um país como o Brasil ainda ter tantos analfabetos?
FHC – O Brasil vem numa conquista progressiva da redução da miséria. Segundo o (economista) Ricardo Paes de Barros, a virada começou em 1999. Foi resultado da estabilização, em alguma medida da melhoria da educação e de outras políticas. Claro que um pouco disso também é jogo de palavras. Tem muita miséria ainda. Sobretudo, o emprego oferecido é de baixa qualidade. Com a ascensão da China, não houve o cuidado necessário com o desenvolvimento tecnológico e a indústria. Ela passou de 28% do PIB, nos anos 1980, para 20% no meu governo. Agora caiu para 12%. Isso é uma coisa preocupante, pela qualidade do emprego que a manufatura gera, apesar de extração de petróleo, da produção de soja também dependerem de saber.

ÉPOCA – Por que nossa classe política resiste a entender que o valor da economia moderna não está, necessariamente, no produto em si, mas no conhecimento que o gera? Parece que tudo se resolve com mais dinheiro, mais emprego, mais fábrica, mais máquina…
FHC – Tem razão. Pega a indústria do petróleo. Do jeito que estava indo, não ia mal não. Estava criando, também, base tecnológica. A Petrobras tem geólogos, cria gente preparada, exporta tecnologia. A grande revolução agrícola brasileira dependeu de quatro fatores: Embrapa, tecnologia, empresários e mudanças no sistema de financiamento. Estas últimas fui eu que fiz. Foi uma luta danada, para separar a agricultura da dívida do Banco do Brasil. A base foi a capacidade tecnológica da Embrapa para aproveitar solos antes não usados, desenvolver sementes e técnicas de plantio. A ideia de economia primária ou secundária é antiga. Em lugar de se preocupar com os 12% da indústria no PIB, devíamos nos preocupar com o resto. Qual o coeficiente tecnológico da indústria? Essa é a chave da questão. E isso leva à educação de novo. O governo percebeu isso. Criou o programa Ciência sem Fronteiras. Mas, entre perceber e fazer, há uma distância. Há a mania de grandiosidade. Tínhamos nos Estados Unidos, no ano passado, 8.500 bolsistas. O governo disse que vamos passar para 100 mil em quatro anos. Claro que não conseguiremos. Isso é mania de grandeza.

ÉPOCA – Estamos perdendo a oportunidade do pré-sal?
FHC – Para que mudar a lei? Estava funcionando. Para obter mais recursos? Por que o pré-sal é mais fácil de obter? Era só mudar o que a lei permitia quanto à participação. Foi mudada a legislação com o propósito de aumentar o controle do governo sobre tudo. Mudaram para se apropriar politicamente. O Bolsa Escola virou Bolsa Família. Dizem que o PSDB não tem programa. Mas não é isso. O programa do PSDB foi apropriado. Quem não tem programa mais é o PT, porque o programa que eles tinham, de socialismo no século XXI, ética na política, acabou. É de espantar que o Congresso jamais tenha discutido o pré-sal. Quando fiz a quebra do monopólio, houve um debate imenso. Agora, tudo foi feito a frio.

ÉPOCA – Por quê?
FHC – Primeiro, porque a expansão da economia e das políticas sociais anestesiou muita coisa. Segundo, porque o governo Lula tomou, implicitamente, a decisão de não mexer com o Congresso. Ele não precisava do Congresso para praticamente nada. Não fez nenhuma mudança constitucional. Nunca entendi uma coisa: para que uma base de sustentação tão grande? Para não fazer nada? Eu precisava da base porque precisava de três quintos do Congresso para as reformas. O governo Lula só precisava de 51%. Não precisava de mensalão. Foi um erro de cálculo.
E, claro, também havia vontade de domínio, de hegemonia.

ÉPOCA – Mas, politicamente, os petistas foram espertos.
FHC – Fazendo o advogado do diabo, respondo que não sei se foram espertos apenas politicamente.

ÉPOCA – Há alguns anos, o Brasil tinha condições de assumir algum tipo de protagonismo na economia verde. Por que não aproveitamos a oportunidade?
FHC – Não entendemos o que significava essa questão do aquecimento global e da ecologia. O Lula inventou o diesel de etanol. Quando veio o pré-sal, esqueceram tudo. O Lula fingiu que o país tinha conquistado autonomia, botou a mão no petróleo, imitou o Getúlio. Não existe autossuficiência até hoje. Preocupa-me essa facilidade de ver um futuro grandioso e abandonar tudo. Não é assim. Tem de ter método, mais constância.

ÉPOCA – Falta uma estratégia para nós?
FHC – Não temos nenhuma. Apostamos, mesmo na política externa, em alvos que não eram os principais. O governo disse: “Vamos ter uma cadeira no Conselho de Segurança”. Só que não haveria mudança. Vamos fazer diplomacia Sul-Sul? Tudo bem. Mas e o resto? E a América Latina? Perdemos espaço no mundo. A gente tem de pensar como será o mundo daqui a 20 anos. Os americanos fazem isso a toda hora, e os chineses devem fazer igual. Levam a sério e fazem escolhas.

ÉPOCA – Qual deveria ser a estratégia do Brasil?
FHC – É difícil imaginar, assim, de repente. Num mundo globalizado, dificilmente você poderá ter a posição de autarquia, de fazer tudo, como nosso passado. Nossa economia ainda é fechada. Vamos abrir mais? E o que vamos preservar? Será que não dava para repensar nossa estratégia pelo menos na América do Sul? Vamos abrir e não ter medo da competição?

ÉPOCA – O Mercosul foi uma roubada?
FHC – Tornou-se isso, mas não era inicialmente. Não avançou. Também não ousamos. Quando veio a Alca, ficamos todos com medo. Eu inclusive, porque o Brasil não sabia o que queria. Quando os americanos desistiram, fingimos que não queríamos. Mas eles é que não queriam mais. Fizeram acordos bilaterais com todo mundo, menos com a gente. Hoje, não temos nada.

ÉPOCA – É uma questão de definir claramente: teremos menos indústria e mais agronegócio?
FHC – Nosso problema, não só na indústria, é passar da quantidade para a qualidade. O grande X da questão é a educação. É o “software”. Porque o “software” é mais difícil que o “hardware”. Dominamos o “hardware”, mas não o “software”. O X da questão é como ser mais competitivo, ter mais qualidade. É preciso melhorar a produção. Tem de investir mais na educação, na ciência, na tecnologia. O mundo moderno é do conhecimento e da inovação. Nunca entendi por que nós nunca discutimos, a sério, o que se ensina no Brasil. E quanto tempo se leva para ensinar. Ou para aprender. Uma aula antes levava 50 minutos. A criança agora se concentra em sete. Quando vai para a aula, ela não aguenta. Está errada a criança ou está errado o modo de ensinar? Foi um erro de cálculo”

ÉPOCA – A equação americana mistura um ambiente favorável a negócios, conhecimento e capital. Nosso problema já foi o capital. Agora está em criar o ambiente favorável a negócios e conhecimento…
FHC – E entender que esse ambiente precisa de regras. Agora estão mudando a regra dos portos. Mudam do dia para a noite com medida provisória. Não deve ser esse o processo de mudança. O Estado tem de regular. Mas não pode mudar a regra do jogo a toda hora. Isso gera instabilidade. Não temos uma cultura de longo prazo. Tem um aperto qualquer, o governo fica nervoso, a presidente fica aflita e muda as regras.

ÉPOCA – O senhor disse que o segredo da prosperidade americana está nas universidades. Quão distantes estamos desse modelo?
FHC – Muito. Aqui, você tem ilhas não corporativas. E instituições como a Fapesp e, até certo ponto, o CNPq. Mas é uma confusão. O tempo todo, a universidade brigava comigo porque não tenho mentalidade corporativa. Vetei a criação de universidades onde não era necessário, apenas para dar emprego. Dei mais atenção ao ensino fundamental. Não adianta criar mais do mesmo. Tem de melhorar. Em várias partes, houve mudanças boas no sistema educacional primário e secundário. Mas os sindicatos são contra. Aqui em São Paulo, foi criado um modelo em que, dependendo do desempenho dos alunos, a escola, no conjunto, ganha mais. O sindicato é contra, porque não quer distinguir pelo mérito.

ÉPOCA – Como implantar a meritocracia?
FHC – Só brigando muito. É até curioso: o PT nasceu contra o corporativismo. Lula dizia que a verdadeira anistia do trabalhador era acabar com a CLT. Mas criou uma tremenda burocracia sustentada pelo governo. É fascinante ver como, em vez de mudar a cultura dominante, ele foi absorvido por ela. No clientelismo, no corporativismo, no jogo da política.

ÉPOCA – O senhor disse que o PT se apropriou do discurso e das políticas do PSDB. Como o PSDB deve se colocar daqui para diante?
FHC – Vamos fazer melhor. É da quantidade para a qualidade. Tem de assegurar, para essa gente que está subindo, mais.

ÉPOCA – Como se faz para essa mensagem chegar ao eleitor?
FHC – Pergunte aos políticos. Estou aposentado.

ÉPOCA – Que diferenças o senhor vê entre seu modo de lidar com a política quando presidente e o do PT?
FHC – Eu tinha um propósito: fazer reformas. Meu objetivo era esse. Você tem de fazer escolhas. Fiz a escolha, fiquei com o PFL. Não era suficiente. Forcei o PMDB a entrar. Mas escolhi quem do PMDB eu iria nomear. No segundo mandato, quando você perde força, tem de entrar mais nas negociações com os partidos.

ÉPOCA – O senhor questionou por que o PT queria uma base tão grande. Não havia uma paranoia de que o governo fosse derrubado?
FHC – A paranoia vem com o desejo de hegemonia. Para eles, as elites vão derrubar, a imprensa vai derrubar. O tempo todo eles estão tomando o Palácio de Inverno. É patético.

Senso prático de Dilma supera ideologia

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Autor: Entrevista Com o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva – Valor Econômico -27/03/2013

Lula: “Se alguém tiver um produto brasileiro e tiver vergonha de vender, me dê que eu vendo. Não tenho nenhuma vergonha de continuar fazendo isso”
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu o Valor num hotel na zona sul de São Paulo depois do seminário “Novos Desafios da Sociedade”, promovido pelo jornal. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Como está sua saúde?
Luiz Inácio Lula da Silva: Agora estou bem. Há um ano vou à fisioterapia todos os dias às 6h da manhã. Minha perna agora está 100%. Estou com 84 quilos. É 12 a menos do que já pesei mas é oito a mais do que cheguei a ter. Não tem mais câncer, mas a garganta leva um bom tempo para sarar. A fonoaudióloga diz que é como se fosse a erupção de um vulcão. Tem uma pele diferenciada na garganta que leva tempo para cicatrizar. Quando falo dá muita canseira na voz. Já tenho 67 anos. Não é mais a garganta de uma pessoa de 30 anos.

Valor: O senhor deixou de fumar e beber?
Lula: Não dá mais porque irrita a garganta.

Valor: Dois anos e três meses depois do início do governo Dilma, qual foi seu maior acerto e principal erro?
Lula: Quando deixei a Presidência, tinha vontade de dar minha contribuição para a Dilma não me metendo nas coisas dela. E acho que consegui fazer isso quando viajei 36 vezes depois de deixar o governo. Fiquei um ano imobilizado por causa do câncer. Estou voltando agora por uma coisa mais partidária. Sinceramente acho que no meu governo eu deixei muita coisa para fazer. Por isso foi importante eleger a Dilma, para ela dar continuidade e fazer coisas novas. O Brasil nunca esteve em tão boas mãos como agora. Nunca esse país teve uma pessoa que chegou na Presidência tão preparada como a Dilma. Tudo estava na cabeça dela, diferentemente de quando eu cheguei, de quando chegou Fernando Henrique Cardoso. Você conhece as coisas muito mais teóricas do que práticas. E ela conhecia por dentro. Por isso que estou muito otimista com o sucesso da Dilma e ela está sendo aquilo que eu esperava dela. Foi um grande acerto. Tinha obsessão de fazer o sucessor. Eu achava que o governante que não faz a sucessão é incompetente.

Valor: A presidente baixou os juros, desonerou a economia, reduziu tarifas de energia e apreciou o câmbio. Ainda assim não se nota entusiasmo empresarial por seu governo ou sua reeleição. A que o senhor atribui a insatisfação? Teme-se que esse governo não tenha uma política anti-inflacionária tão firme ou é pela avaliação de que o governo Dilma seja intervencionista?
Lula: Não creio que haja má vontade dos empresários com a presidente. Passamos por algumas dificuldades em 2011 e 2012 em função das políticas de contração para evitar a volta da inflação. Foi preciso diminuir um pouco o crédito e aí complicou um pouco, mas Dilma tem feito a coisa certa. Agora tem conversado mais com setores empresariais. Acho que os empresários brasileiros, e eu vivi isso oito anos assim como Fernando Henrique também viveu, precisam compreender que uma economia vai ter sempre altos e baixos. Não é todo dia que a orquestra vai estar sempre harmônica. O importante é não perder de vista o horizonte final. O Brasil está recebendo US$ 65 bilhões de
investimento direto. Então não dá para se ter qualquer descrença no Brasil nesse momento. Nunca os empresários brasileiros tiveram tanto acesso a crédito com um juro tão baixo. Vamos supor que a Dilma não tivesse a mesma disposição para conversar que eu tinha. Por razões dela, sei lá. O dado concreto é que, de uns tempos para cá, a Dilma tem colocado na agenda reuniões com empresários e partidos políticos.

Valor: Os empresários acham que ela é ideológica demais…
Lula: O que é importante é que ela não perde suas convicções ideológicas, mas não perde o senso prático para governar o país. Ela não vai governar o país com ideologia. Se alguém ainda aposta no fracasso da Dilma, pode começar a quebrar a cara. Ela tem convicção do que quer. Esses dias liguei para ela e disse para tomar cuidado para não passar dos 100%. Porque há espaço para ela crescer. Vai acontecer muito mais coisa nesse país ainda. Não adianta torcer para não ter sucesso. Não há hipótese de o Brasil não dar certo.

Valor: A queixa é de que tudo que eles [os empresários] precisam têm que falar com a presidente porque os ministros não têm autonomia para decidir, ela não delega. É isso?
Lula: Se isso foi verdade, já acabou. Sinto, nos últimos meses, que a Dilma tem feito muito mais reuniões. Tem soldado muito mais o governo. A pesquisa mostra que o governo vem crescendo e vai chegar perto dela nas pesquisas. E os ajustes vão acontecendo. É a primeira vez que a gente tem uma mulher. O papel dela não é tão fácil quanto o meu porque 99% das pessoas que recebia eram homens, e homem fala coisa que mulher não pode falar, conta piada. Não há hábito do homem ainda perceber a mulher num cargo mais importante. Mas os homens vão ter que se acostumar. Uma mulher não pode se soltar numa reunião onde só tenha homem. Então acho que as pessoas têm que aprender a gostar das outras pessoas como elas são. A Dilma é assim e é assim que ela é boa para o Brasil. A mesma coisa é a Graça [Foster]. É uma mulher muito respeitada também. Não brinca nem é alegre, mas cada um tem seu jeito de ser.

Valor: Seu governo viabilizou projetos essenciais para o rumo que a economia pernambucana tomou, como o polo petroquímico e a fábrica da Fiat. A pré-candidatura Eduardo Campos, que agrega adversários fidagais de seu governo, como Jarbas Vasconcelos e Roberto Freire, e anima até José Serra, é uma traição?
Lula: Não. Minha relação de amizade com Eduardo Campos e com a família dele, que passa pela mãe, pelo avô e pelos filhos, é inabalável, independentemente de qualquer problema eleitoral. Eu não misturo minha relação de amizade com as divergências políticas. Segundo, acho muito cedo pra falar da candidatura Eduardo. Ele é um jovem de 40 e poucos anos. Termina seu mandato no governo de Pernambuco muito bem avaliado. Me parece que não tem vontade de ser senador da República nem deputado. O que é que ele vai ser? Possivelmente esteja pensando em ser candidato para ocupar espaço na política brasileira, tão necessitada de novas lideranças. Se tirar o Eduardo, tem a Marina que não tem nem partido político, tem o Aécio que me parece com mais dificuldades de decolar. Então é normal que ele se apresente e viaje pelo Brasil e debata. Ainda pretendo conversar com ele. A Dilma já conversou e mantém uma boa relação com ele.
“Ainda é cedo para falar de Eduardo candidato, mas se ele for não é da minha índole tentar demover candidaturas”

Valor: O Fernando Henrique teve como candidato um ministro e o senhor também. O senhor acha que ainda é possível demover Eduardo Campos com a proposta de que ele se torne um ministro importante no governo Dilma e depois seu candidato? É possível se comprometer com quatro anos de antecedência?
Lula: Somente Dilma é quem pode dizer isso. Não tenho procuração nem do Rui Falcão [presidente do PT] nem da Dilma para negociar qualquer coisa. Vou manter minha relação de amizade com Eduardo Campos e minha relação política com ele. Até agora não tem nada que me faça enxergá-lo de maneira diferente da que enxergava um ano atrás. Se ele for candidato vamos ter que saber como tratar essa candidatura. O Brasil comporta tantos candidatos. Já tive o PSB fazendo campanha contra mim. O Garotinho foi candidato contra mim. O Ciro também. E nem por isso tive qualquer problema de amizade com eles. Candidaturas como a do Eduardo e da Marina só engrandecem o processo democrático brasileiro. O que é importante é que não estou vendo ninguém de direita na disputa.

Valor: Já que o senhor tem uma relação tão forte de amizade com ele, vai pedir para Eduardo Campos não se candidatar?
Lula: Não faz parte da minha índole pedir para as pessoas não se candidatarem porque pediram muito para eu não ser. Se eu não fosse candidato eu não teria ganho. Precisei perder três eleições para virar presidente. Eu não pedirei para não ser candidato nem para ele nem para ninguém. A Marina conviveu comigo 30 anos no PT, foi minha ministra o tempo que ela quis, saiu porque quis e várias pessoas pediram para eu falar com ela para não ser candidata e eu disse: “Não falo”. Acho bom para a democracia. E precisamos de mais lideranças. O que acho grave é que os tucanos estão sem liderança. Acho que Serra se desgastou. Poderia não ter sido candidato em 2012. Eu avisei: não seja candidato a prefeito que não vai dar certo. Poderia estar preservado para mais uma. Mas Serra quer ser candidato a tudo, até síndico do prédio acho que ele está concorrendo agora. E o Aécio não tem a performance que as pessoas esperavam dele.

Valor: Quem é o adversário mais difícil da presidente: Aécio, Marina ou Eduardo?
Lula: Não tem adversário fácil. O que acho é que Dilma vai chegar na eleição muito confortável. Se a gente trabalhar com seriedade, humildade e respeitando nossos adversários e a economia estiver bem, com a inflação controlada e o emprego crescendo, acho que certamente a Dilma tem ampla chance de ganhar no primeiro turno.

Valor: Como vai ser sua atuação na campanha de 2014? Vai atuar mais nos bastidores, na montagem das alianças, ou vai subir em palanque em todos os Estados?
Lula: Eu quero palanque.

Valor: Vai subir em Pernambuco e pedir votos para Dilma?
Lula: Vou. Vou lá, vou em Garanhuns, vou no Rio, São Paulo, na Paraíba, em Roraima…

Valor: Seus médicos já liberaram?
Lula: Já. Se eu não puder eu levo um cartaz dela na mão (risos). Não tem problema. Acho que ela vai montar uma coordenação política no partido e eu não sou de trabalhar bastidores. Eu quero viajar o país.

Valor: Nem às costuras de alianças o senhor vai se dedicar?
Lula: Não precisa ser eu. O PT costura.

Valor: Quais são as alianças mais difíceis? Como resolver o problema do Rio?
Lula: No Rio tem uma coisa engraçada porque nós temos o Pezão, que é uma figura por quem eu tenho um carinho excepcional. Nesses oito anos aprendi a gostar muito do Pezão, um parceiro excepcional. E tem o Lindbergh.
Vai que precisam de um velhinho para fazer as coisas [em 2018] mas não é da minha vontade, já dei minha contribuição”

Valor: Ele disse que vai fazer o que o senhor mandar…
Lula: Não é bem assim. Eu não posso tirar dele o direito de ser candidato. Ele é um jovem talentoso, um encantador de serpentes, como diriam alguns, com uma inteligência acima da média, com uma vontade de trabalhar, como poucas vezes vi na vida. Ele quer ser. Cabe ao partido sempre tratar com carinho, porque nós temos que ter sempre como prioridade o projeto nacional. Ou seja: a primeira coisa é a eleição da Dilma. Não podemos permitir que a eleição da Dilma corra qualquer risco. Não podemos truncar nossa aliança com o PMDB. Acho que o PT trabalha muito com isso e que Lindbergh pode ser candidato sem causar problema. Acho que o Rio vai ter três ou quatro candidaturas e ele, certamente, vai ser uma candidatura forte. Obviamente Pezão será um candidato forte, apoiado pelo governador e pela prefeitura. Na minha cabeça o projeto principal é garantir a reeleição de Dilma. É isso que vai mudar o Brasil.

Valor: Aqui em São Paulo o candidato é o Padilha?
Lula: Olha, acho que a gente não tem definição de candidato ainda. Você tem Aloizio Mercadante, que na última eleição teve 35% dos votos, portanto ele tem performance razoável. Tem o Padilha, que é uma liderança emergente no PT, que está em um ministério importante. Tem a Marta que eu penso que não vai querer ser candidata desta vez. Tem outras figuras novas como o Luiz Marinho, que diz que não quer ser candidato. Tem o José Eduardo Cardozo, que vira e mexe alguém diz que vai ser candidato e você pode construir aliança com outros partidos políticos. Para nós a manutenção da aliança com o PMDB aqui em São Paulo é importante.

Valor: Isso passa até pelo PT aceitar um candidato do PMDB?
Lula: Se tiver um candidato palatável, sim. Nós nunca tivemos tanta chance de ganhar a eleição em São Paulo como agora. A minha tese é a mesma da eleição de Fernando Haddad. Ou seja, alguém que se apresente com capacidade de fazer uma aliança política além dos limites do PT, além dos limites da esquerda. Como é cedo ainda, temos um ano para ver isso. Eu fico olhando as pessoas, vendo o que cada um está fazendo. E pretendo, se o partido quiser me ouvir, dar um palpite.

Valor: Em 2012, em São Paulo, o senhor defendeu a renovação do partido, com um candidato novo. Essa fórmula será mantida para o governo do Estado?
Lula: Hoje temos condições de ver cientificamente qual é o candidato que o povo espera. Por exemplo, quando Haddad foi candidato a prefeito, eu nunca tive qualquer preocupação. Todas as pesquisas que a gente trabalhava, as qualitativas que a gente fazia, toda elas mostravam que o povo queria um candidato como ele. Então era só encontrar um jeito de desmontar o Russomanno, que em algum lugar da periferia se parecia com o candidato do PT. Na época eu não podia nem fazer campanha direito. Estava com a garganta inchada. Eu subia no caminhão para fazer discurso sem poder falar, mas era necessário convencer as pessoas de que o candidato do PT era o Haddad, não era o Russomanno. Quando isso engrenou, o resto foi mais tranquilo. Para o governo do Estado é a mesma coisa. Não é quem sai melhor na pesquisa no começo. É quem pode atender os anseios e a expectativa da sociedade.

Valor: E quem pode?
Lula: Não sei. Temos que ter muito critério na escolha. A escolha não pode ser em função só da necessidade da pessoa, de ela querer ser. Tem que ser em função daquilo que é importante para construir um leque de aliança maior. Temos que costurar aliança, temos que trazer o PTB, manter o Kassab na aliança e o PMDB. Precisamos quebrar esse hegemonismo dos tucanos aqui em São Paulo, porque eles juntam todo mundo contra o PT. Precisamos quebrar isso. Acho que temos todas as condições.

Valor: Desde que deixou a Presidência, o senhor tem sido até mais alvejado que a presidente. Foi acusado de tentar manter a chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo. Agora foi acusado de ter suas viagens financiadas por empreiteiras. Como o senhor recebe essas críticas e como as responde?
Lula: Quando as coisas são feitas de muito baixo nível, quando parecem mais um jogo rasteiro, eu não me dou nem ao luxo de ler nem de responder. Porque tudo o que o Maquiavel quer é que ele plante uma sacanagem e você morda a sacanagem. É que nem apelido: se eu coloco um apelido na pessoa e a pessoa fica nervosa e começa a xingar, pegou o apelido. Se ela não liga, não pegou o apelido. Tenho 67 anos de idade. Já fiz tudo o que um ser humano poderia fazer nesse país. O que faz um presidente da República? Como é que viaja um Clinton? A serviço de quem? Pago por quem? Fernando Henrique Cardoso? Ou você acha que alguém viaja de graça para fazer palestra para empresários lá fora? Algumas pessoas são mais bem remuneradas do que outras. E eu falo sinceramente: nunca pensei que eu fosse tão bem remunerado para fazer palestra. Sou um debatedor caro. E tem pouca gente com autoridade de ganhar dinheiro como eu, em função do governo bem-sucedido que fiz neste país. Contam-se nos dedos quantos presidentes podem falar das boas experiências administrativas como eu. Quando era presidente, fazia questão de viajar para qualquer país do mundo e levar empresários, porque achava que o presidente pode fazer protocolos, assinar acordo de intenções, mas quem executa a concretude daquilo são os empresários. Viajo para vender confiança. Adoro fazer debate para mostrar que o Brasil vai dar certo. Compre no Brasil porque o país pode fazer as coisas. Esse é o meu lema. Se alguém tiver um produto brasileiro e tiver vergonha de vender, me dê que eu vendo. Não tenho nenhuma vergonha de continuar fazendo isso. Se for preciso vender carne, linguiça, carvão, faço com maior prazer. Só não me peça para falar mal do Brasil que eu não faço isso. Esse é o papel de um político que tem credibilidade. Foi assim que ganhei a Olimpíada, a Copa do Mundo. Quando Bush veio para cá e fomos a Guarulhos, disse a ele que era para tirarmos fotografia enchendo um carro de etanol. Tinham dois carros, um da Ford e um da GM, e ele falou: “Eu não posso fazer merchandising”. Eu disse: “Pois eu faço das duas”. Da Ford e da GM. E o Bush tirou foto com chapéu da Petrobras. Sem querer ele fez merchandising da Petrobras. Você sabe que eu fico com pena de ver uma figura de 82 anos como o Fernando Henrique Cardoso viajar falando que o Brasil não vai dar certo. Fico com pena.

Valor: O senhor acha que São Paulo corre risco de perder a abertura da Copa porque o Banco do Brasil não vai liberar dinheiro sem garantias?
Lula: Sinceramente não acredito que as pessoas que fizeram o sacrifício para chegar onde chegaram vão se permitir morrer na praia agora. A verdade é que o Corinthians precisa de um estádio de futebol independentemente de Copa do Mundo. São Paulo não pode ficar fora da Copa. Acho que seria um prejuízo enorme do ponto de vista político e simbólico o Estado mais importante da Federação, com os times mais importantes da Federação – com respeito ao Flamengo – esteja fora da Copa do Mundo. É impensável. Eles que tratem de arranjar uma solução.

Valor: O senhor voltará à política em 2018?
Lula: Não volto porque não saí.

Valor: Voltará a se candidatar?
Lula: Não. Estarei com 72 anos. Está na hora de ficar quieto, contando experiência. Mas meu medo é falar isso e ler na manchete. Não sei das circunstâncias políticas. Vai saber o que vai acontecer nesse país, vai que de repente eles precisam de um velhinho para fazer as coisas. Não é da minha vontade. Acho que já dei minha contribuição. Mas em política a gente não descarta nada.

Valor: Que análise o senhor faz do julgamento do mensalão?
Lula: Não vou falar por uma questão de respeito ao Poder Judiciário. O partido fez uma nota que eu concordo. Vou esperar os embargos infringentes. Quando tiver a decisão final vou dar minha opinião como cidadão. Por enquanto vou aguardar o tribunal. Não é correto, não é prudente que um ex-presidente fique dizendo “Ah, gostei de tal votação”, “Tal juiz é bom”. Não vou fazer juízo de valor das pessoas. Quando terminar a votação, quando não tiver mais recursos vou dizer para você o que é que eu penso do mensalão.

Consumidor “irracional” pode arruinar a economia, diz Nobel

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FSP/02/08/2012
Autor: Daniel Kahneman – Psicólogo – Nobel de Economia em 2002

O psicólogo israelense-americano Daniel Kahneman, 78, ganhou o Nobel de Economia em 2002 por décadas de trabalho em uma matéria na qual é pioneiro, a economia comportamental.
No ano passado, ele lançou “Thinking, Fast and slow”, best-seller instantâneo, que chega às livrarias brasileiras este fim de semana como “Rápido e devagar: duas formas de pensar” (ed. Objetiva). Nele, o Nobel explica diversos conceitos de autoengano, de confiança excessiva e defende um “paternalismo libertário”, aonde empresas e governos deveriam cutucar, alertar cidadãos e consumidores a tomar as melhores decisões para si.
No livro, o professor de Princeton também descreve o sistema 1 do pensamento(o rápido), a intuição, automático, que decide se você gosta de uma pessoa logo após conhecê-la, com associações instantâneas, e o sistema 2 (devagar), que representa a razão, o autocontrole e a inteligência.
Abaixo, trechos da entrevista que ele concedeu à Folha.
*
Folha – O senhor fez uma pesquisa com vários diretores financeiros [CFOs] de grandes empresas, em que eles deveriam prever o retorno das ações no índice da Standard & Poor’s no ano seguinte. Em 67% dos casos, eles erraram. A intuição dos experts não conta?
Daniel Kahneman – Fazer previsões em ambientes imprevisíveis é impossível. Ou, como eu chamo, uma ilusão.
Intuitivamente, é claro que gostamos de investir com “especialistas”, mesmo que as estatísticas comprovem que um programa de computador tenha o mesmo resultado. O mercado das ações é inerentemente imprevisível.
Se o mundo das finanças fosse previsível, todos tirariam as mesmas vantagens e os riscos e as recompensas desapareceriam.
Ser muito informado, ter a informação média de um leitor do “New York Times”, pode ajudar suas apostas só no curto prazo.
Em Wall Street, a maioria ignorou os resultados da pesquisa. Se você se considera um especialista, você têm uma superconfiança em seu conhecimento. Mas é um sentimento subjetivo.
Essa confiança excessiva e o sistema 2 preguiçoso ajudaram a ampliar a crise hipotecária e financeira nos EUA?
Todos queriam tirar vantagem do crédito, mas sem ler as letras miúdas. Sei que o governo Obama anda estudando como mudar as regras para que contratos sejam mais compreensíveis, de leitura mais fácil. Os gastos em cartões de crédito são sempre padronizados e dificultam muito a comparação entre empresas. Estas adoram deixar qualquer comparação impossível.
Sempre discuti a necessidade de se proteger as pessoas de suas próprias escolhas. Hoje, é bem difícil dizer que elas não precisam de proteção.
Quando pessoas desinformadas perdem seu dinheiro, elas podem arruinar a economia mundial, então decisões irracionais têm efeitos muito maiores quando combinados com a racionalidade de agentes corruptos dentro do sistema e a regulação e supervisão um tanto ausentes no sistema financeiro.
No Brasil, muitas pessoas com inédito acesso a crédito já estão se endividando mais do que podem. Como “cutucá-las”?
As pessoas se endividam mais quando pagam com cartão do que quando pagam com dinheiro. Com as cédulas, tudo é mais racional, palpável. Muitos americanos não calculam os juros que estão pagando e que vão pagar no futuro. Não sabem o total do que vão pagar, e imagino que aconteça o mesmo no Brasil. As empresas gostam de esconder em letras miudinhas essas informações.
As autoridades brasileiras deveriam, além de usar regras contra o empréstimo predatório, exigir contratos e contas de cartões mais claros, que as taxas de juros fiquem mais expostas.
Nos EUA, até os democratas suspeitam de qualquer interferência do governo. Como elas encaram esses cutucões?
As pessoas mantêm a sua liberdade, quem quiser cometer erros, vai poder cometê-los, mas permite-se que eles consigam fazer a decisão mais correta para seus interesses. Republicanos e democratas aprovaram programas parecidos para facilitar quem aceita descontos direto do salário para planos de pensão.
Em vez de ter que assinar e optar por um plano de poupança na folha de pagamento, as pessoas seriam inscritas automaticamente na dedução, tendo que assinar ou optar para sair dele se assim quiserem.
Algum governo já transformou essas descobertas em política pública?
O Reino Unido foi um passo adiante e o governo do David Cameron, que é conservador, criou uma “Unidade de Insights [sacadas] Comportamentais” em Downing Street [residência do primeiro-ministro]. Já falei algumas vezes lá e dei minhas ideias.
Uma coisa que eles já fizeram é de informar a sonegadores e a contribuintes como um todo qual a porcentagem de pessoas naquela cidade ou região que estão com o pagamento em dia de seus impostos.
É um cutucão, trabalha com a psicologia social. “Se todo mundo está pagando, eu também preciso pagar”. Mantêm a liberdade, mas atua na maneira como você vê os seus pares. As campanhas contra lixo na rua em Nova York e no Texas apelam para esse mesmo sentimento de que os outros estão observando você.
Uma pesquisa sua já concluiu que ter uma renda anual de US$ 75 mil seria o mínimo para a felicidade. Mas se seus vizinhos e amigos ganharem mais que isso?
Nossa pesquisa chegou à conclusão que, com um renda de US$ 75 mil, a felicidade emocional é possível. Abaixo disso, uma doença, uma separação, um problema podem se tornar muito mais graves. A partir desse valor, não há muitas mudanças, mas abaixo dele, tudo fica mais difícil e instável. A inveja não está presente todo o tempo no jeito com que avaliamos nossa vida e nossa satisfação.
Latinoamericanos e brasileiros em particular sempre se saem bem nesses rankings internacionais sobre felicidade, com renda bem inferior.
Acho que há um erro comum nessas pesquisas. Os latinoamericanos sempre respondem enfaticamente o quanto são felizes, quando perguntados se são felizes, mas o mesmo acontece quando questionados sobre tristeza e infelicidade. Os resultados são sempre extremos. Talvez os latinoamericanos expressem muito mais suas emoções do que em outras partes do mundo, sejam positivas ou negativas.
Ainda sobre intuição, o sr. fala dos enganos no planejamento de obras públicas. O sr. cita o novo parlamento de Edinburgo, que custaria US$ 50 millhões em 1997, valor que saltou para US$ 550 milhões, quando completado em 2004.
Todas as grandes obras recentes, de museus a estádios de futebol, acabam estourando os orçamentos porque seus planejadores não são pagos para ser pessimistas. Seus planos só contemplam o melhor cenário possível. É natural, até porque querem que seus projetos sejam aprovados, mas é o que eu chamo de falácia do planejamento. Nós ignoramos a possibilidade do imprevisto, ao menos que tenha ocorrido recentemente algum, e depois exageramos a possibilidade de que volte a ocorrer.
Dá para se melhorar a intuição?
O sistema 1 não é fácil de mudar, funciona a partir da memória automática. Ele incorpora a memória da pessoa. Se ela tiver lido mais, estudado mais, for mais sofisticada, o sistema 1 terá essas mesmas vantagens. Mudanças de atitude em um país ou mesmo em uma vizinhança, afetarão o sistema 1.
As decisões das pessoas a longo prazo têm mudado muito em tempos de incerteza e crise nos países desenvolvidos e de desaceleração nos emergentes?
As pessoas fazem decisões sempre pensando no curto prazo. Essa é a norma, o futuro é distante demais. Inclusive quanto a planos de poupança e aposentadoria. A crise afeta as decisões do presente apenas.

Proteger indústria e ajudar setores é política míope.

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Autor: MARIANA CARNEIRO – Folha de São Paulo

EDMAR BACHA, ECONOMISTA

Economista afirma que focar apenas as vendas no mercado interno é pensar pequeno

O economista Edmar Bacha, um dos formuladores do Plano Real
Depois de se dedicar a debates como o combate à inflação, o economista Edmar Bacha, 70, quer saber por que a indústria brasileira está encolhendo.
Um dos formuladores do Plano Real, Bacha reuniu 35 especialistas para ir além da explicação câmbio & juros, que, segundo diz, não são o problema verdadeiro.
O resultado será publicado no livro “Desindustrialização: O Que Fazer?”, organizado com a também economista Mônica de Bolle. Nesta entrevista, Bacha antecipa à Folha parte do diagnóstico sobre a desindustrizalização.

Quando o Brasil começou a se desindustrializar?
De 1980 até 2004/2005, houve um processo paulatino de perda da participação da indústria no PIB. E isso não preocupa.
Porque, quando se comparava o Brasil com outros países, a participação da indústria era muito maior. Havia um excesso de indústria. O que discutimos é o que ocorre a partir de 2005, com especial preocupação a partir de 2010.

O que mudou?
A partir de 2005, o Brasil foi beneficiado por uma enorme entrada de dólares, provinda da melhoria dos preços das commodities que o Brasil exporta e de uma entrada muito forte de capitais. É uma grande bonança externa. E o efeito colateral dessa bonança é a desindustrialização.

É como uma doença?
Eu não acho que, necessariamente, seja uma doença. Você apenas alterou o padrão de produção da economia. Não tem ninguém doente. Veja o Brasil de hoje. A mão de obra está muito bem, superempregada e com salários muito altos, como nunca teve. Só quem não está empregando é a indústria. A indústria realmente vai mal, mas o Brasil vai muito bem.
Mas economistas sustentam que o crescimento está travado porque o setor industrial está em crise.
A economia está em pleno emprego. Por que a popularidade da Dilma está tão alta? Do ponto de vista do bem-estar, as pessoas estão muito bem. Há um problema que a economia não cresce. Mas o estrangulamento do crescimento ocorre porque os investimentos dos setores competitivos estão travados.

Que setores poderiam crescer e estão parados?
A construção civil, todo o complexo agromineroindustrial. Mas esses setores dependem muito de infraestrutura, e o que ocorre é que estamos travados por falta de infraestrutura, por falta de mão de obra qualificada.
Não vale a pena o governo tentar recuperar a indústria?
Não através do protecionismo, do crédito subsidiado, nem de medidas pontuais.
Estamos falando de recuperar a capacidade de concorrer e de termos uma indústria produtiva. Afora imposto, e de fato os impostos são extremamente elevados, uma das maiores travas para recriar a indústria é a política do conteúdo nacional.
O governo, em vez de resolver, está ampliando. Eu sou a favor de acabar com a política de conteúdo nacional.
Mas o governo diz querer incentivar produtores locais.
É uma política míope, que resolve o problema localizado à custa de criar danos maiores para a economia.
No pré-sal, por exemplo, a consequência dessa política, será que a gente não vai chegar ao pré-sal. Pergunta ao Carlos Ghosn, da Renault, por que ele não produz carro de boa qualidade no Brasil.
Tendo que comprar tudo aqui dentro não dá. Protegem a indústria de componentes para criar o que chamam de “densificação da estrutura produtiva”. O que é preciso é se integrar às cadeias produtivas internacionais.

Como?
Não tem que fazer todas as partes do produto aqui. O comércio internacional é crescentemente intrafirmas -multinacionais exportando para elas mesmas-, intrassetorial -exporta-se seda e importa-se algodão- e intraproduto -cada componente é feito num local e a montagem é feita noutro.
É assim que a Ásia está se estruturando e é assim que o México está crescendo.

Qual o efeito para o Brasil?
Aqui, esse suposto nacionalismo fez com o Brasil se tornasse o país mais colonizado do mundo. A participação de multinacionais no PIB é extraordinariamente elevada. E por que elas não exportam? Porque é caro produzir aqui. E por que é caro? Porque têm que comprar tudo aqui dentro, não podem se integrar mundialmente, não podem fazer o que fazem na China. A gente não deixa.
Mas a China também paga salários mais baixos.
A indústria concorre com a natureza, e ela é pródiga. Portanto, nosso ponto de partida é mais alto. Somos como nos EUA. Eles sempre foram um país de salários elevados, têm agricultura e mineração pujante e conseguiram desenvolver sua indústria.
Mas eles também estão buscando retomar as indústrias que perderam.
A desindustrialização não é só brasileira. O mundo inteiro, exceto a China, está se desindustrializando. É como se de repente descobrissem a existência de Marte. A China é como se fosse Marte. Estava fechada, com um terço da população mundial, e agora se abriu. Temos que arrumar um lugar para ela.

Mas, se é um fenômeno mundial, por que o Brasil deveria atuar? E como teria êxito?
Não estamos dizendo para deixar a indústria cair. No Brasil, há um problema específico, a participação da indústria no PIB está caindo mais do que em outros países. Não é que não tenhamos que nos mexer. Ao contrário. Isso é um problema, mas o que está sendo feito é errado.
Temos sugestões, e uma delas é mudar a estrutura de importação, diminuindo os impostos para a compra de bens de capital e componentes. Tornar as indústrias mais produtivas para que se integrem à cadeia mundial, em vez de olharem apenas para o mercado interno. As avaliações sobre o problema são muito chã, é o câmbio, é não sei mais o quê…

Então não é câmbio valorizado e juros altos?
As pessoas acham que mexendo nisso vão resolver o problema. Isso é um equívoco. É preciso entender como isso ocorreu. Não é um monte de gente malévola que apreciou o câmbio e botou os juros na lua.
Mas, ao focar juros e câmbio, perde-se a dimensão dos problemas reais e substantivos, que provocam a perda de competitividade.

Quais são esses problemas?
Quando houve a bonança, não teve jeito, houve muito ingresso de capital e o câmbio apreciou. O que fazer? Pôr uma barreira e não deixar entrar nenhum tostão? Fazer igual a Cristina Kirchner? Vai dizer isso para as empresas que precisam de capital e estão lançando ações.
Se existe uma bonança, vamos saber administrá-la. Frequentemente ela é tão boa que as pessoas deixam de fazer o dever de casa. E, quando acabam, só tem um buraco lá.
Economistas do governo afirmam que a bonança permitiu a emergência da classe C.
Poderia ter sido melhor. Mas eu não sou contra isso e não acho que o modelo foi apenas consumista. O investimento cresceu neste período. Mas também é fato que a reação à crise a partir de 2008 só aumentou o consumo.

A reação à crise agravou a desindustrialização?
A desindustrialização não veio porque as pessoas consumiram. Se, em vez de consumir, tivéssemos investido, importaríamos mais ainda. Não acho que veio daí.
As pessoas dizem que o investimento está fraco porque a indústria está fraca. Mas foi justamente quando a indústria enfraqueceu que o investimento aumentou, entre 2005 e em 2011, quando passou de 15% para 20% do PIB.

Qual é a sua explicação?
A indústria é só 15% do PIB. E os outros 85%, que vão muito bem? O Eike Batista deve ter investido.
Então, quais são os problemas reais da indústria?
A indústria é excessivamente tributada no Brasil, comparada com as indústrias estrangeiras. Isso é um problema. Outro é que a indústria tem pouca flexibilidade de comprar insumos de fora por causa dessa política de requisito nacional e das altas tarifas cobradas na entrada de bens de capital e insumos.

O governo está tentando manter um modelo de indústria que não funciona mais?
Eles têm uma mentalidade que talvez coubesse em 1950 e que já foi exagerado em 1970. Hoje é um absurdo. Querem pensar em indústria no país em função desse mercadinho interno que a gente tem, que é só 3% do PIB mundial.
É também pensar pequeno a estratégia de curto prazo. Ficar tentando resolver o problema de cada setor, um a um.
Está com problema o setor de componentes da indústria automobilística? Azar.

O governo não deveria salvar certos setores, como têxteis e calçados?
Existem muitas indústrias de tecidos no Brasil que vão bem. Muitos dizem: a indústria de calçados vai acabar. Mas nesse grupo tem uma empresa chamada Alpargatas [fabricante das Havaianas]. Há muitas empresas que dão a volta por cima. O processo de criação destrutiva é a maneira pela qual o capitalismo se desenvolve e permite a incorporação de novas formas de fazer as coisas.
Essa política protecionista, de escolha de vencedores, constrange a capacidade produtiva a ficar aqui dentro, nesse rame-rame. É preciso olhar além da avenida Paulista [em alusão à Fiesp].

Indiano prega ‘capitalismo consciente’ contra a crise.

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Autor: Rajendra Sisodia entrevistado por Eleonora Lucena

Criar uma rede harmônica entre clientes, trabalhadores, fornecedores. Pensar no objetivo maior da empresa. Com essas linhas, o indiano Rajendra Sisodia, 53, defende a implantação do “capitalismo consciente” nas empresas.
Professor de marketing e negócios da Universidade de Bentley (Boston, EUA), ele virou guru de empresários como Abilio Diniz. Para Sisodia, a ideia “pode soar romântica, mas é bem prática”.

Lembra como o grave caso da exploração de trabalhadores da Foxconn, fornecedora da Apple, prejudicou a imagem da companhia norte-americana. Ele conversou com a Folha por telefone.
*
Folha – O que é o capitalismo consciente?
Rajendra Sisodia – É uma abordagem um pouco diferente da tradicional, que diz que o capitalismo é apenas sobre fazer dinheiro e ter lucros. É um conceito com propósitos mais profundos. Por que o seu negócio existe? O que o seu negócio está fazendo para o mundo ficar melhor? Grandes companhias têm grandes propósitos.
Como isso se traduz para empregados, clientes, fornecedores?
É preciso reconhecer que há interdependência nos negócios. Todos os negócios têm fornecedores, clientes, empregados, comunidades, mas tendem a vê-los de forma separada, como forma de meios para um fim. O negócio consciente tentar reconhecer essa interligação. Se os empregados estão bem, felizes, geralmente os clientes também estão bem. Se os fornecedores não são bons parceiros, no longo prazo a empresa não será capaz de produzir bons produtos. Se qualquer uma dessas partes está infeliz ou está sendo maltratada, ao logo do tempo isso pode destruir o negócio inteiro.
O que o sr. diz para as lideranças empresariais?
Precisamos de líderes empresariais que se importem com o propósito do negócio e com o impacto que ele causa nas pessoas. Que sejam dirigidos não tanto pelo poder ou pelo dinheiro. Líderes conscientes devem motivar, inspirar e desenvolver as pessoas. Eles são realmente apaixonados pelo propósito do negócio, não colocam os empregados no último nível de importância. É preciso ter a cultura do amor, da preocupação, da confiança e da transparência e da autenticidade. Uma cultura sustentável a longo prazo.
Como esse conceito interfere nos resultados das companhias?
É simplesmente a melhor maneira de fazer negócios. As pesquisas mostram que as empresas que adotam essa linha têm mais sucesso ao longo do tempo. Porque criam grande valor para os seus clientes, os empregados são altamente engajados no trabalho, altamente produtivos. No longo prazo, o desempenho da companhia tende a ser muito melhor.
Que lições tirar da atual crise capitalista? O que deu errado?
É ganância. O setor financeiro perdeu o sentido do seu propósito, que é prover investimentos para produção. 0 Simplesmente entraram numa especulação para fazer dinheiro para eles mesmos, sem agregar valor para a sociedade, para os clientes etc. Quando se separa a criação de valor do fazer dinheiro há problemas. Eles estavam ganhando dinheiro baseados na ignorância das outras pessoas, tentando tirar vantagem delas.
O que a crise pode mudar para os negócios?
O que queremos com o capitalismo consciente é que os empresários mudem de mentalidade e pensem nos seus negócios de uma forma diferente. A cada 10, 15 anos temos uma crise. Isso nos faz pensar o que foi feito de errado, pensar alternativas. Há muita discussão sobre o que precisa ser mudado no sistema. No Brasil e na Índia, empresas estão tentando seguir o modelo norte-americano. Mas os americanos estão se dando conta de que o seu modelo não funciona tão bem.
Essa ideia do capitalismo consciente não pode ser tachada de romântica, já que o capitalismo é movido a lucro?
Sim, muitas pessoas pensam assim. Mas é uma ideia muito prática. As companhias que agem assim são mais bem-sucedidas na média. Elas estão fazendo dinheiro e lucros. Há um paradoxo. Se a empresa persegue o lucro como o primeiro objetivo, faz coisas que machucam sua habilidade de fazer negócios e ter lucros ao longo do tempo. Se ela quer maximizar os seus lucros e adota uma orientação de curto prazo espremendo os seus empregados, cortando benefícios, vai também espremer os seus fornecedores. Tudo isso pode prejudicar o negócio no longo prazo. Se a empresa tem os piores fornecedores, ou fornecedores de má qualidade, a qualidade não vai ser alta. Se os empregados não estão engajados e motivados, a qualidade também não vai ser alta. E os clientes também não vão ficar satisfeitos. As pessoas querem ser felizes. E são felizes quando fazem coisas que têm significado para elas.
Como o sr. analisa por exemplo o caso da Apple/Foxconn?
Companhias como a Apple e outras tiveram um comportamento distante dos fornecedores. Diziam algo como: não sabemos como vocês estão fazendo, mas é isso que queremos; o que nos importa é o produto e o preço. O que eles estão reconhecendo agora, com toda essa publicidade negativa para a Apple e para a Foxconn é que isso pode ser perigoso para eles no futuro. Funcionários cometem suicídio, têm péssimas condições de trabalho. A Apple está se movendo agora para criar mais transparência na sua cadeia de fornecedores, assegurando que as condições de trabalhão sejam adequadas.
Mas isso não provocará aumento nos custos?
Sim, provavelmente os custos vão aumentar e talvez eles devam aumentar. Os custos devem refletir os custos de fazer negócios. Custos justos devem ser absorvidos. Talvez devamos pagar 10% a mais sobre produtos eletrônicos apenas para refletir o justo custo. As companhias que operam assim têm funcionários que se tornam mais produtivos e mais engajados no seu trabalho.
Como combinar essa filosofia com a ação dos sindicatos?
Se já existe um sindicato, a empresa deve tentar ter relação com ele. Se não há sindicato e se a empresa trata os seus funcionários muito bem, eles não vão sentir vontade de entrar num sindicato, não vão precisar de um.
O seu trabalho então é atuar para esvaziar os sindicatos?
Não. Se fizermos nosso trabalho como executivos e tratarmos as pessoas muito bem, eles não sentirão a necessidade de sindicatos. Os sindicatos estão competindo pelos corações e mentes dos empregados. E se o executivo faz um trabalho ruim, os empregados irão querer se sindicalizar. Se os empregados têm melhores condições de trabalho e melhores salários, melhores benefícios, eles não vão querer se sindicalizar. Os sindicatos muitas vezes tendem a provocar a divisão entre empregados e empresas.
Mas não há necessariamente uma divisão entre eles? Não há luta de classes?
É uma forma antiga de pensar sobre negócios. É o pensamento marxista. Não existe luta entre trabalhadores e empregadores. Não é tudo sobre dinheiro. Eles tentam criar algo e fazer algo com significado no mundo, criar valor que todos dividem. E precisam trabalhar juntos em harmonia.
Mas não há uma oposição entre essas duas partes, já que uns querem lucros e outros, salários?
Não. De onde vêm os salários? Vêm de um negócio que é capaz de ser lucrativo. Se um negócio não é lucrativo, não é capaz de pagar bem. O que acontece em algumas companhias é que os empregados se juntam aos sindicatos, negociam e conseguem dinheiro. Mas depois os negócios não podem sobreviver e competir. É claro que há investidores que são muito gananciosos e querem todo o dinheiro e espremem empregados e fornecedores, poluem o ambiente etc. Isso também prejudica os negócios, pois pensam apenas nos seus próprios interesses. É como um câncer, que pode começar em qualquer lugar do corpo e pode destruir o corpo inteiro, destruir a companhia inteira. É preciso manter a harmonia no negócio. O negocio é sobre criar mais valor. Assim há mais para dividir.
Quem o sr. citaria como um grande empreendedor na história?
Não temos no mundo dos negócios líderes que combinem visão e liderança forte. Na política há Lincoln, Gandhi, Mandela. A maioria dos líderes de negócios não traz essa inspiração. Jack Welch operou um pouco assim, mas trazendo muito medo e estresse. Steve Jobs era um brilhante empreendedor, mas como ser humano era uma pessoa muito difícil. Não tratava as pessoas muito bem. Era um gênio em algumas coisas: criatividade, inovação, design de produtos, interface com clientes. Mas tinha uma personalidade muito difícil para tratar com pessoas. Não se preocupava com esse tipo de coisa [Foxconn] com os fornecedores. Queria criar produtos bonitos, com menor custo, competir. Era agressivo, focado, mas faltava essa dimensão humana. Ninguém é perfeito.
Qual é o seu autor predileto?
Peter Drucker. Falou de várias dessas coisas antes de todos. Estava à frente de seu tempo. É o mais influente e brilhante de todos os tempos.
Depois do fordismo e do toyotismo, o que vem por aí?
Quando uma companhia passa a ser dirigida pelos números, começa a focar nos lucros e na fatia de mercado, ela começa a sofrer. A Toyota, até há alguns anos, não falava de fatia de mercado, de ser número um. Era focada em qualidade, em eficiência, em confiabilidade, em ser boa para o planeta. Era, de longe, a mais bem-sucedida montadora do mundo. Mas há alguns anos começaram a focar em fatia de mercado, em conquistar fatias das outras e começaram a colocar muita pressão em cima dos executivos para que eles conseguissem cumprir as metas. Então começamos a ver a queda na qualidade e os problemas de segurança. Por isso existem esses enormes recalls. A Mercedes-Benz também teve problemas assim. Quando se dão alguns objetivos numéricos para os executivos, eles serão atingidos. Mas eles podem fazer coisas que são prejudiciais no longo prazo.
Mas as metas não servem de estímulo?
Sim, mas é preciso não estabelecer objetivos e metas tão difíceis. Anos atrás, a Ford estabeleceu o objetivo de ser a número um em vendas de carros nos EUA. No final do ano, os executivos estavam vendendo os carros por preços abaixo do custo, apenas para ter a fatia de mercado. Estavam agindo em função de uma meta de vendas, não em fazer um grande carro.

Crise financeira mostra regime em beco sem saída.

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Autor: Economista François Chesnais, professor Emérito Universidade de Paris 13 – Entrevista à Eleonora de Lucena – FSP.

A crise financeira não tem final à vista. O modelo de crescimento baseado em endividamento, seguido nos países ricos, está num beco sem saída. E o calcado em exportações de insumos –como o do Brasil– pode não funcionar por muito tempo.
A análise é do economista marxista francês François Chesnais, 77, professor emérito da Universidade de Paris 13 e autor de “A Mundialização do Capital” (1996) e organizador de “A Finança Mundializada” (2005).
Para ele, os protestos em Londres, no Chile e no Orienta Médio são expressão “de uma doença mundial criada pelo caminho tomado pelo neoliberalismo e pela dominação das finanças”. Numa época de valorização do consumismo, são “reações ao extraordinário abismo social”, afirma.

Folha – Qual a natureza da crise atual?
François Chesnais – O momento atual é um novo episódio na crise mundial. Ela começou há cinco anos, teve seu ponto mais crítico em setembro de 2008, com a quebra do Lehmann Brothers, e não tem um final à vista. Foi prenunciada pela crise asiática (1997-1998) e, no campo das finanças, pela quase quebra do Long Term Capital Management, no início da crise financeira russa. Eventos-chave nos anos 2000 e 2001 lançaram as bases para a eclosão da crise: o crash da Nasdaq, a resposta norte-americana ao 11 de Setembro, as guerras no Iraque e no Afeganistão, muito custosas política e financeiramente, e a entrada da China na Organização Mundial do Comércio.

Quais são as causas?
O funcionamento da economia mundial desde o início dos anos 2000 se baseou em dois pilares: o regime de crescimento guiado pela dívida, adotado pelos EUA e pela Europa, e o regime de crescimento orientado por exportações globais, no qual a China é a principal base industrial, e o Brasil, a Argentina e a Indonésia são os provedores-chave de recursos naturais. A crise representa o beco sem saída, o impasse absoluto do regime guiado pela dívida. O segundo pilar está levemente melhor, mas o crescimento baseado em exportações globais não poderá funcionar por muito tempo sem uma forte demanda externa, especialmente dos EUA e da União Europeia.

Por que há tensão nos mercados?
Os investidores financeiros estão extremamente preocupados. Há a perspectiva de um segundo mergulho da economia dos EUA, uma crise em forma de “W” nas economias avançadas. Outro risco é a vulnerabilidade do sistema bancário europeu, na zona do euro e também no Reino Unido. Há também o perigo de que o lento crescimento faça com que empréstimos públicos e privados sejam cada vez mais difíceis de serem recuperados.

Qual a situação na Europa?
Na União Europeia, desde abril de 2010, tem havido um contínuo fluxo de dinheiro público para alguns governos e para os bancos. Isso tem sido acoplado a políticas de austeridade muito drásticas em alguns países, que os arrastou à recessão (-4% na Grécia). Com isso, fica impossível o repagamento da dívida soberana. Provoca a quebra de empresas, além de levar os sistemas bancários na Grécia, na Itália e na Espanha para uma cada vez maior proximidade do colapso. Isso ameaça bancos nos países do coração da zona do euro, especialmente na França.

A situação dos bancos é preocupante?
Os eventos nas Bolsas estão sendo subordinados a situações bancárias críticas. Em 2008, a ameaça às finanças globais veio dos bancos de investimento dos EUA e das grandes seguradoras. O próximo episódio financeiro maior acontecerá quando um segmento do sistema bancário da Europa entrar em colapso na Grécia, Espanha ou Itália. A atual turbulência nas Bolsas é a expressão do pânico do investidor, que tenta antecipar esse tipo de evento. Seu principal efeito é contribuir para a efetiva ocorrência de um desastre em algum lugar. Isso afeta o comportamento do consumidor de renda mais alta e desencoraja investimentos da classe média.

Nos seus livros, o sr. descreve os detalhes do avanço das finanças. Como avalia o atual momento na história do capitalismo?
É possível traçar paralelos com o passado. Mas em nenhum período anterior foram tão elevados a quantidade de ações e títulos, os ganhos dos rentistas e nem foi tão grande a quantidade em circulação do que eu chamo de “capital monetário elevado à enézima potência”. Nunca os lucros financeiros foram tão altos em comparação com a atividade produtiva. Há as consequências da globalização neoliberal contemporânea. Nunca as finanças foram tão desreguladas. Nunca a capacidade dos governos de recuperar o controle sobre as finanças foi tão fraca. A extrema fraqueza da liderança política é uma consequência direta disso. Mas há uma nova dimensão da história do capitalismo.

Qual é?
Essa nova dimensão é a crise ambiental, começando com as mudanças climáticas, que se desenvolve em paralelo à ascensão das finanças e de sua crise. Por isso, entramos nas piores condições possíveis numa era em que a civilização –como a concebemos, no Ocidente e no Oriente– está patinando. Nossa era é uma em que as enormes e concentradas forças econômicas estão sendo chamadas a agir em tempos de crise, o que Naomi Klein chama de “a doutrina do choque”: setores poderosos da sociedade não apenas protegem eles mesmos, mas usam catástrofes para ampliar sua dominação. A forma como o furacão Katrina foi tratado em Nova Orleans mostra que isso vale para grandes eventos ambientais. Alguma coisa muito perturbadora ocorreu silenciosamente na França e, imagino, em outros lugares: a “luta contra a mudança climática” foi substituída pela “adaptação à mudança climática”.

Os governos deveriam jogar mais dinheiro nos mercados financeiros?
As políticas fiscais anunciadas ou já decretadas são fortemente pró-cíclicas. Elas acentuam o beco sem saída do regime de crescimento e a incapacidade que a elite dirigente tem de imaginar qualquer outra maneira de reger a economia. Não haverá fim para a crise mundial enquanto os bancos e os investidores financeiros estiverem no comando, fazendo políticas totalmente dirigidas pelos interesses dos rentistas e dando respostas à crise dominadas por tentativas de dar sobrevida ao regime guiado pela dívida.

O que precisaria ser feito para a retomada da crescimento?
Nos EUA e na Europa a recuperação requer o reestabelecimento do poder de compra das classes baixas e médias, a recriação e expansão da capacidade dos Estados de fazer os investimentos sociais e ambientais necessários e o estabelecimento de um sistema monetário internacional estável, não subordinado ao capital financeiro. As condições para isso vão incluir o cancelamento de boa parte da dívida soberana, assim como de boa parte da dívida doméstica; o reestabelecimento de uma taxação correta para a renda das finanças e do capital (um retorno aos níveis de 1970 seria um começo); o reestabelecimento de um verdadeiro controle público do sistema de crédito; um controle restrito dos fluxos de capital e uma luta efetiva contra os paraísos fiscais.

Qual sua visão sobre o poder das agências de classificação de risco?
O poder das agências de classificação de risco apenas espelha o quanto os governos foram colocados nas mãos das finanças. Mostra a extensão da abdicação do poder dos governos, que mudaram as finanças públicas de uma forma baseada em impostos para uma baseda em dívida. Meu livro mais recente, “Les Dettes Illégitimes, Comment les banques ont fait main basse sur les politiques publiques” (2011) [As dívidas ilegítimas, como os bancos fizeram para manipular as políticas públicas, em tradução livre], enfatiza que, em 1980, a dívida pública da França era de 5% do PIB. Mostro que o crescimento é consequência da diminuição dos impostos para os de renda alta, os ricos em patrimônio e lucros, e dos gastos em programas públicos de financiamento custosos, que se tornaram elefantes brancos, como o Rafale que nenhum país comprou.

E o que ocorre agora?
As agências de risco estão pressionando a elite política francesa para aprofundar as políticas de austeridade. Isso no contexto de uma situação de quase recessão –0% de crescimento e desemprego acima de 9%. A recessão mundial de 2008-2009 mostrou a fraqueza da indústria francesa e os efeitos desastrosos do jogo no mercado da União Europeia. O que é necessário é uma política industrial e tecnológica comum, um sistema de intervenção comum. É possível que, nos próximos meses, ocorra na França uma reação popular contra os próximos cortes de orçamento.

As revoltas no Norte da África e no Oriente Médio, o movimento dos “indignados” na Espanha e agora os protestos em Londres têm alguma ligação?
Eu adicionaria à lista as enormes marchas em Tel Aviv, com 200 mil pessoas, e em outras cidades contra a alta nos preços dos alimentos e o desemprego. E também esse extraordinário movimento dos estudantes no Chile. Cada um desses movimentos precisa ser analisado com cuidado. São obviamente expressão de uma doença mundial criada pelo caminho tomado pelo neoliberalismo e pela dominação das finanças.

O que os movimentos têm em comum?
Eles têm em comum o fato de terem sido estimulados pela juventude. Em muitos casos são liderados por jovens líderes que estão emergindo do movimento. São todos reações ao extraordinário abismo social num tempo em que o consumismo é projetado mundialmente pela tecnologia contemporânea e pelas estratégias de mídia. Cada um tem suas idiossincrasias nacionais e suas trajetórias políticas. Em cada caso há uma diferente mistura de um componente fundamental democrático, com conteúdo anticapitalista. Reagem ao fato de a eles ter sido negada a posse de bens que outros da sua mesma geração possuem no seu cotidiano. A crescente percepção da corrupção politico-financeira atiça a indignação e, no caso dos jovens mais pobres, os faz usar os únicos métodos que têm à disposição.

Como os partidos conservadores, social-democratas e a esquerda estão reagindo a essa situação?
Para os partidos conservadores, é sempre sobre “lei e ordem”. Os social-democratas estão em profunda confusão. As forças da esquerda têm sido fortemente puxadas para o jogo institucional. Tomara que a duração, a severidade e os altos riscos da combinação entre as crises econômica e ambiental permitam o renascimento de uma forma de atividade política que comece a realmente desafiar o sistema. Na Europa, foi na Grécia que a mobilização de massa da juventude mostrou o conteúdo político mais profundo. Espero que seja o modelo para outros países.

Exaustão fiscal global está na origem de turbulência

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Autor: Gustavo H. B. Franco – ex-Presidente do Banco Central – Eleonora de Lucena/FSP.

“Teremos uma marcha lenta no Primeiro Mundo em razão da necessidade de corrigir os excessos fiscais. Não há espaço para políticas keynesianas de gasto nem para redução dos juros.” A avaliação é de Gustavo Franco, 55, ex-presidente do Banco Central (governo FHC), para quem a crise pode significar “o fim de uma era de keynesianismo fácil”.
Sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos, Franco vê uma “exaustão fiscal global” e advoga a redução dos gastos públicos. “Não vejo bolha nenhuma, muito menos fracasso neoliberal”, diz.

Folha – Qual o impacto da decisão da Standard & Poor’s de rebaixar os EUA?
Gustavo Franco – No primeiro momento é simbólico, pois os EUA continuam AAA em duas outras agências. As determinações estatutárias de fundos de pensão e dos bancos centrais geralmente falam de grau máximo em duas agências. Acho que é um belo “wake up call” [chamada para despertar], pois fica claro que a disciplina que se exige de todos num mundo interconectado também deve ser praticada e cobrada na potência central.

Por que as Bolsas caíram? É, de fato, por causa de temores de recessão ou há outros ingredientes?
Sim, há temores quanto à recessão, sobretudo no hemisfério Norte, mas o que torna as coisas mais preocupantes é a situação fiscal no Primeiro Mundo, onde as dívidas dos governos chegaram a patamares tão altos que a sensação é a de que se esgotou a capacidade desses países fazerem políticas fiscais expansionistas.

Os governos devem colocar mais dinheiro no mercado financeiro? Haverá nova socialização das perdas?
Não é a situação de 2008, não há bancos a salvar. Ao menos por ora, nunca se sabe. A natureza do problema é outra: os países se engasgaram com tanta “socialização das perdas” por cima de “socializações de ganhos” e conquistas sociais e excessos de gasto público em geral.

Se as agências de risco erraram de forma tão dramática em 2008 (não prevendo o colapso do Lehman; qualificando os bancos da Islândia como AAA) e também agora nos cálculos do rebaixamento dos EUA, por que elas seguem tão importantes? Elas vão ser “rebaixadas” por governos e outras instituições?
Essa é uma boa pergunta. Em boa medida, na segunda-feira [hoje] os mercados estarão se perguntando se a Standard & Poor’s está com essa bola toda.
Normalmente as agências reagem defasadamente ao que todo mundo já sabe, padrão que se repete dessa vez. E erram o tempo inteiro, sim e, em muitos casos, no contexto de conflitos de interesse. O Tesouro Americano contesta os cálculos da S&P. Uma das revelações desta segunda vai ser a importância que os mercados atribuem às agências de risco.

Se os títulos dos EUA estão com pior avaliação, qual a opção? Títulos alemães?
Títulos dos EUA.

Estamos entrando num período de recessão mais longo e profundo?
Recessão é uma palavra forte, não é bem isso. Cresce a consciência de que teremos uma marcha lenta no Primeiro Mundo em razão da necessidade de corrigir os excessos fiscais. Não há espaço para políticas keynesianas de gasto nem para redução dos juros, que já estão no chão. De onde vai vir o crescimento?

De onde? O capitalismo não consegue mais fazer crescimento?
Seria errado pensar assim, a julgar pelos quatro séculos de bons serviços que o capitalismo tem com este planeta, e também porque não há alternativa. O desafio será o de direcionar políticas públicas para trabalhar fatores como produtividade, inovação, regulação, ambiente de negócios, infraestrutura e num contexto de economia fiscal, de modo a elevar a confiança da economia privada, de empresas e consumidores.

Se recessão é uma palavra forte, como o sr. definiria a situação atual? Estagnação?
Apenas baixo crescimento, ao menos durante o período de acomodação dos efeitos financeiros e fiscais de crise. Há certa ansiedade nesses países, pois há muito crescimento na Ásia e, em menor escala, no Brasil.

Em termos históricos essa recessão seria comparável à recessão de 29 ou à do final do século 19, que resultou no declínio da Grã-Bretanha e na ascensão dos EUA e da Alemanha?
A crise de 1929 é uma fonte inesgotável de lições, e o presidente do FED [banco central americano], que é um historiador que conhece o assunto, tratou muito bem de evitar os erros daquele tempo, especialmente no terreno da política monetária. Acho meio exagerado falar da decadência dos EUA como potência econômica.

Vivemos o estouro de várias bolhas? Há quem afirme que a crise desses dias é a prova do fracasso neoliberal. É? Não vejo bolha nenhuma, muito menos fracasso neoliberal. É preciso olhar a situação com frieza, sem preconceitos ideológicos: o que estamos vivendo é o esgotamento do crescimento do Estado nas grandes democracias ocidentais, e mais o Japão, onde os níveis de endividamento público ultrapassaram medidas habitualmente aceitas de responsabilidade fiscal.
O mal-estar é causado pelo fato de que há deficits e dívidas enormes. Os gastos públicos têm que cair. Em cada sociedade há um grupo, como o Tea Party, que vai se opor a aumento de impostos. O enredo do impasse americano é global, e, por isso mesmo, foi tão impactante. É uma prévia do que vai ser visto em muitos países. É como se fosse o fim de uma era de keynesianismo fácil, onde tudo sempre se resolve com o gasto público, socializando perdas, ou acomodando sucessivas e inesgotáveis “conquistas”, e coalizões cada vez maiores. Essa paralisação fiscal-financeira do Estado representa novo desafio, talvez início de um novo tempo.

Politicamente, quais serão os efeitos da decisão da S&P e todo o enrosco de Obama com o Congresso? A China já está reclamando.
Acho que o impacto pode até ser positivo, na medida em que mobiliza energias políticas para a busca de soluções. A China é um capítulo à parte, pois não tem os problemas fiscais próprios das democracias ocidentais por uma razão simples e óbvia: não é uma democracia. Para ser, e evitar uma primavera que pode ser tumultuada, teria que alterar muito de suas instituições ligadas ao mercado de trabalho e à seguridade social. O fato é que a China tem sido a fonte de um discurso meio vigarista sobre o “fracasso do modelo liberal” que na verdade é uma velha cantilena sobre a ineficiência da democracia.

Como o sr. avalia a fragilidade de economias como Itália e França? Como está a saúde financeira dos bancos europeus?
O temor alcança todos, e por isso era bom ficarmos nós, aqui no Brasil, bem quietos e prudentes, pois os nossos números fiscais não estão muito diferentes daqueles dos países com problemas. Nesses episódios de elevação da aversão ao risco, os mercados ficam procurando os países e as empresas fragilizados.

A situação dos bancos europeus terá impacto no Brasil?
Se aparecer algum grande problema bancário europeu, certamente terá efeitos por toda parte. Mas hoje não há clareza sobre isso.

Alguns analistas têm receio do excessivo endividamento privado brasileiro no exterior. Uma virada no câmbio poderia colocar empresas sob risco. O sr. compartilha desse temor?
Não compartilho. Acho que o volume não é muito grande, e as empresas sabem fazer hedge. A medida descabida foi o IOF [Imposto sobre Operações Financeiras] sobre derivativos que torna o hedge mais caro para as empresas. O tema do momento é outro: dívida pública. E o que me preocupa no Brasil é o governo achar que tudo está bem nesse terreno, e que o rebaixamento americano seria como uma promoção para nós. Nada mais perigoso.

Qual deve ser o impacto na taxa de juros, no câmbio e no crescimento?
Os impactos sobre o Brasil estão ainda indefinidos. As pressões sobre a Bolsa são meio exageradas e fazem as empresas brasileiras ficarem muito baratas relativamente a seus resultados. A oportunidade para comprar parece-me clara.

O sr. prevê novos rebaixamentos de países pelas agências de risco?
É provável, ao menos pela S&P, pois, ao alterar a classificação do país, geralmente se alteraram as de todas as empresas ali sediadas. Será interessante verificar se esse protocolo será obedecido dessa vez. Parece que a S&P não tinha muita ideia do tamanho da dificuldade que criou para si. E a impressão que tenho é que o próximo assunto é a Europa, pois é onde estão os maiores problemas de dívida soberana.

O que aconteceu nos últimos dias é uma tragédia inesperada ou é algo de dimensão menor? A recuperação vai demorar mais?
A natureza do problema não me parece ser a de um problema agudo, como o pânico bancário provocado por uma sucessão de bancos quebrando como em meados de 2008. Mas de um peso, que dobrou de tamanho em dois anos, que os governos terão que carregar por um bom tempo. É a exaustão fiscal global.
Alguns mais fracos, os Piigs [Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha], estão com dificuldades, e mesmo nos países mais sólidos as pessoas estão debatendo sobre como distribuir o peso e os sacrifícios.
É uma espécie de marcha forçada, onde será preciso algum tempo para diminuir o peso e ajustar as contas, na qual pode acontecer algum incidente, é claro. Os EUA estão fazendo a sua parte. Talvez amanhã [hoje], por curioso que pareça, as pessoas voltem seus olhos para Itália e Espanha. Na verdade, os assuntos das conversas no âmbito do G7 e de bancos centrais da Europa não serão muito relacionados aos EUA, mas à blindagem da Europa.

O que o sr. recomendará aos clientes? Onde investir? Ouro? Ativos reais?
Depende de cada caso. E o nosso perfil é de investidor de longo prazo, e a receita para esse tipo de investidor é contrária ao comportamento da “manada”. A oportunidade que se apresenta é a de comprar ações de boas empresas que subitamente se tornaram baratas.

Brasil se desindustrializa e canta como cigarra a música da China

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Autor: Wilson Cano – Economista / Entrevista a Eleonora de Lucena FSP

A desindustrialização no Brasil avança. O país está regredindo. Não basta ter uma política industrial. É preciso mexer no câmbio e reduzir muito os juros. O diagnóstico é do economista Wilson Cano, 73.
Nacionalista e admirador de Celso Furtado, Cano tem sua vida acadêmica ligada à história da Unicamp. Doutor e livre-docente em economia, hoje aposentado, ele é professor voluntário na Universidade.
Autor de diversos livros sobre desenvolvimento industrial, Cano está pessimista. Sente falta de empresários com visão estratégica e critica o modelo que “está exterminando o futuro”, diz. Prevê o fim da farra dos altos preços das commodities, já que a China constrói novas fontes de abastecimento. Para ele, o Brasil erra como uma cigarra que canta com música chinesa.

Folha – Está ocorrendo desindustrialização?
Wilson Cano – O termo tem dois sentidos. No primeiro é um fenômeno que se vê com naturalidade: é a diminuição da proporção da renda e do produto gerado pela indústria no PIB geral.
Isso ocorre em sociedades que já atingiram um padrão de produção e de consumo, onde a urbanização é praticamente total e a diversificação de serviços é extraordinária. Nesses locais é normal aceitar que o peso da indústria no PIB esteja reduzido a 20%, como se aplica aos países da Europa Ocidental e aos EUA.
No mau sentido da palavra, desindustrialização significa uma precoce diminuição da presença da indústria num país em que ainda há muita coisa a fazer em termos de industrialização, como é o caso do Brasil.

Como explicar isso?
Nos anos 1980 o peso da indústria de transformação no PIB era de 33%. Hoje é de 16%. Tínhamos toda uma frente por desenvolver: espacial, petroquímica, química fina, informática, eletrônica, fármacos.
Entretanto estamos há 31 anos em crise. Nos 80 veio a crise da dívida. Depois o neoliberalismo com um crescimento medíocre, até 2003.
De 2004 para cá estamos vivendo um processo ilusório, em parte, porque estamos crescendo sem investimento. Estamos crescendo pelo consumo, pelo crédito. E a situação no mercado internacional que é excepcional, com os elevados preços de produtos primários.

O sr. escreveu recentemente que as políticas cambial e de juros podem ser exterminadoras do futuro. Como explica essa afirmação?
A relação manufaturados/exportações totais chegou a atingir 59% e hoje está na casa dos 40%. Se olharmos as estruturas produtivas e exportadoras segundo o grau de intensidade tecnológica estamos regredindo. Estamos na contramão da história econômica.

Há a questão do déficit comercial de produtos industrializados.
Ele é enorme e crescente. Principalmente em dois compartimentos: o automobilístico -que paradoxalmente é o que recebe o maior número de favores do Estado- e setor eletrônico, mostrando claramente as perdas que a nossa indústria vem sofrendo.

Quão grave é o processo?
Tínhamos homens como [Abraham] Kasinski, [José] Mindlin (1914-2010), que eram dois baluartes da indústria de ponta, moderna. Um teve que vender a fábrica para os americanos. O outro vendeu e se transformou em montador de motocicletas em Manaus e acabou vendendo para os chineses.
Há coisas que são irreversíveis. Como quando se destrói segmentos da elite industrial brasileira. Eram homens que sabiam o que significa uma indústria nacional.

Onde está a visão estratégica?
A estratégia deles é ganhar dinheiro lá fora pegando o dinheiro do BNDES para matar boi nos EUA. Os empresários estão preocupados em ganhar dinheiro com dólar barato. Fazem negócio lá fora ou simplesmente aplicam no sistema financeiro. Com essa taxa de juros, quem tem o dinheiro aplica no mercado financeiro sem ter que se preocupar com trabalhador, processo produtivo, imposto.

E o que deve ser feito?
O próprio ministro do Desenvolvimento disse a empresários que não tem jeito. Parece ser um governo conformista. O nacionalismo está meio fora de moda.

Isso compromete o futuro?
Sim, porque estamos cantando como uma cigarra. Estamos cantando com a música chinesa. Cantando por exportar galinha e soja e minério de ferro. Mas isso nunca deu futuro a ninguém. As lideranças aceitam que é muito bom ficar exportando essas coisas, mas esquecem da regressão industrial.

A farra das commodities vai acabar?
A China está abrindo frentes de produção na África e na América Latina para a produção de minério e de petróleo, grãos, carne. Estão buscando novas fontes abastecedoras. A China sabe que não pode continuar crescendo a 10% e pagando o preço que está pagando por essas matérias-primas.

Isso vai resultar em queda no preço das commodities no longo prazo?
Sim, sem dúvida.

O governo deveria controlar mais os capitais externos?
Há várias formas de controle sobre o fluxo internacional de capital. Estamos vendo uma anormalidade com esse dólar. O governo não tem feito muita coisa, porque para fazer alguma coisa teria que alterar profundamente esse modelo econômico.

Mas o país não está menos vulnerável?
Estamos cantando que diminuímos a nossa vulnerabilidade externa porque temos reservas internacionais de U$ 300 bilhões e a dívida externa pública diminuiu. Mas a privada aumentou. Temos reservas, mas temos mais de U$ 350 bilhões de investimento estrangeiro em carteira que podem rapidamente se mobilizar e sair do país.

Quais deveriam ser os principais pontos da política industrial que o governo está preparando?
Investir, inclusive em ciência e tecnologia nos setores de ponta que não conseguimos avançar na passagem dos anos 1980, notadamente fármacos e microeletrônica, em especial chips.
Eliminar a guerra fiscal e reformular a Zona Franca de Manaus. Rever profundamente a nossa política de comércio exterior.

Basta ter uma política industrial se câmbio e juros continuarem como estão?
Com a atual política econômica, nenhuma política industrial terá sentido. Não foi assim com as políticas dos países desenvolvidos, em especial todas as asiáticas.

O sr. fala que é preciso investir, inovar, exportar e financiar tudo isso. Qual sua receita para o governo?
Há que ter vontade política e consciência crítica para alterar o modelo macroeconômico. É preciso baixar os juros, mas para isso não podemos conviver com esse câmbio. É uma camisa de força.

Países desenvolvidos terão anos sem brilho, com crescimento fraco

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Autor: Carmen Reinhart – Economista/ Entrevistada por ÁLVARO FAGUNDES – Folha de São Paulo – 25/04/2011

ECONOMISTA QUE ESTUDOU CRISES APONTA QUE ENTRADA DE CAPITAL EXTERNO PODE SER PERIGOSA A EMERGENTES

A crise global como vimos em 2008 e 2009 chegou ao fim, mas a “sombra” dela ainda vai permanecer por muitos anos.
Uma das consequências é que os países ricos, como os Estados Unidos, deverão ter anos sem brilho, com baixo crescimento.
Essa é a opinião de Carmen Reinhart, uma das mais importantes economistas americanas e autora, ao lado de Kenneth Rogoff, do elogiado livro “Oito Séculos de Delírios Financeiros”, em que analisam diversas crises ao longo do tempo.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Folha – Nos últimos meses, os mercados, especialmente nos EUA, têm se comportado como se a crise tivesse chegado ao fim. A crise acabou?
Carmen Reinhart – O drama que vimos no fim de 2008 e no início de 2009 chegou ao fim. Não se vê algo algo daquela dimensão muito frequentemente.
Mas uma solução duradoura ainda não foi atingida. As economias avançadas -a maioria das europeias, os EUA e o Japão- têm dívidas pesando sobre suas cabeças.
Você veio do Brasil, sabe que o grande drama da crise da dívida na América Latina foi quando o sistema começou a implodir no início dos anos 1980, mas levou um bom tempo até que fosse resolvido.
Os mercados sobem e descem. Para falar a verdade, os mercados começaram a contar com o ovo antes de a galinha pô-lo, antecipando uma recuperação mais forte do que o que ocorreu realmente.

Os mercados desenvolvidos vão enfrentar o mesmo problema que os latino-americanos nos anos 1980?
Eles não vão, eles estão. Em 2006, dava para imaginar uma conversa envolvendo a reestruturação da dívida de países europeus?
É preciso colocar as coisas sob perspectiva. Não acredito que as condições serão as mesmas, porque os emergentes perderam o acesso aos mercados internacionais de capital de uma maneira que os países desenvolvidos não perderam.
Não tenho dúvida de que, se a Grécia e a Irlanda não tivessem a União Europeia por trás, nós teríamos “default” (calote), reestruturação.
Se nós olharmos quem está comprando os títulos da dívida deles, é o BCE (Banco Central Europeu), e não investidores privados.
Então, quando você me pergunta se a crise já acabou, eu acho que a sombra que ela projetou é grande e que nós ainda não a superamos.

Então, a sra. não vê o desemprego nos Estados Unidos recuando nos próximos dez anos para o nível do fim de 2007, próximo a 5%?
Acho que vai demorar um tempo até voltarmos a 5%. A minha expectativa é de que o desemprego nos EUA permaneça teimosamente alto, acima de 8%.
Para começar, os preços do setor imobiliário estão muito longe da recuperação e o setor de construção é um que exige muita mão de obra.
Eu acho que os EUA e a maioria dos países avançados terão anos sem brilho, com crescimento abaixo da média.
As dívidas das famílias americanas estão perto do seu nível recorde e as empresas financeiras estão altamente endividadas.
Nos EUA, o único setor que está relativamente enxuto é o de empresas não-financeiras, mas, ao mesmo tempo, os planos de investimento delas, quanta gente mais pretendem empregar, dependem da expectativa de como será o consumo.
E isso nos traz de volta à questão das dívidas das famílias.

Voltando à questão fiscal, quais serão as consequências dessa crise na economia real dos Estados Unidos?
Não estamos ainda no nível de uma crise fiscal nos padrões de Portugal, da Grécia e da Irlanda, mas os efeitos serão mentais.
As expectativas das pessoas serão reduzidas, os valores de aposentadorias não serão os entregues em sua plenitude e os impostos também devem subir.

Qual é a sua avaliação sobre a atuação do governo Obama e do Fed [Federal Reserve, o banco central dos EUA]?
Eu acho que o Fed tem atuado de maneira bastante agressiva e rápida, mas ele precisa convencer o mercado e o setor privado de que, quando chegar o momento, também vai agir agressivamente e rapidamente para aumentar os juros.
Sobre a administração Obama, acho que já chegou a hora de apresentar um plano para reduzir a dívida.
Uma coisa é dizer que temos, com a crise, uma situação fora do comum e estímulo é necessário.
Mas é preciso estabelecer uma estratégia para reduzir a dívida. Dizer que a dívida vai se estabilizar em 77% [em 2021] é realmente medíocre.

E quais efeitos os países emergentes devem sofrer?
Ainda não acabou o ciclo de busca por rendimentos maiores nos países emergentes, neste momento de juros baixos nas economias avançadas.
A combinação do desemprego nas economias avançadas e de dívida alta nesses países inclina a política monetária para o afrouxamento e para a manutenção dos juros baixos.
Então acredito que os países emergentes terão provavelmente que continuar a lidar com essa faca de dois gumes que é a enorme entrada de capital estrangeiro.

Por que é uma faca de dois gumes?
Entrada de capital externo, como os brasileiros bem sabem, está geralmente associada à alta da moeda.
A valorização cambial pode ser tolerada até o ponto em que não começa a deteriorar a conta-corrente, o que já começou a ocorrer no Brasil. Ela também só pode ser tolerada enquanto não começa a afetar a capacidade competitiva de um país, especialmente do setor industrial, o que também já ocorre no Brasil.
O problema com a entrada de capital é que ou você não recebe nada ou recebe demais. Eu acho que essas questões de administração do ingresso de capital externo vão perdurar por mais algum tempo nos países emergentes.

Qual é a sua opinião sobre a forma como o Brasil está administrando a entrada de capital externo?
Tenho algumas preocupações. Acho que o Brasil está indo no caminho certo ao aumentar os tributos sobre o capital especulativo, mas temo que, se o país continuar com a intervenção esterilizada [no câmbio] e perpetuar o diferencial de juros, isso é um negócio perigoso.

Por quê?
Porque, com base na minha própria pesquisa, quando você tem políticas que perpetuam o diferencial de juros você tende a dar mais força para esse processo, ou seja, atrair mais capital.

A China está tentando conter a inflação. Quais são os riscos que ela pode trazer para a economia global?
Os riscos que a China traz têm a ver com o seu tamanho, é a segunda maior economia do mundo, e tem grande influência sobre os mercados de commodities.
A China enfrenta algumas questões parecidas com as do Brasil, mas não de maneira tão aguda, porque ela tem mecanismos de controle de capital.
O dilema que eles enfrentam é que, quanto mais tempo eles tentarem impedir a valorização do yuan, mais as pressões inflacionárias durarão e mais serão crônicas.
A China vai ter um período difícil, tentando conter a inflação sem tirar muito do crescimento. Eu preciso acrescentar, porém, que a questão da inflação na China é pior do que os dados oficiais mostram.

E a inflação no mundo? Os preços, especialmente nos emergentes, continuam a subir. É um problema que vai continuar?
Acho que é um problema para os emergentes agora, mas que deve se generalizar.
Porém, até isso ocorrer deve ser um período de longa gestação. A inflação é uma questão para os emergentes, devido à entrada de capital.
Para os desenvolvidos, é uma questão ainda menor, especialmente pela falta de força das suas economias. E é um problema ainda menor para os EUA, porque, ao contrário da libra e do euro, o dólar não teve um enfraquecimento sustentado.

Brasil não está pronto para erradicar miséria, diz pesquisador.

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Folha de São Paulo, 07/03/2011.
Autor: Entrevista com Renato Dagnino, professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp.

A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha.

Folha – De que maneira a ascensão social ocorrida durante o governo Lula interfere na política de ciência e tecnologia do Brasil?

Renato Dagnino – De uma forma geral, a gente tem que pensar a política técnico-produtiva. Hoje, muitos produtos já não são encontrados no comércio, justamente pela ascensão desse grupo, que tem suas demandas de consumo. Além disso, frequentemente os produtos que demandam não são os que normalmente estão à venda. Existem tipos de produtos que são orientados a outro segmento de consumo. Pensando de uma forma global, o país deveria fazer um esforço para se antecipar a essa demanda e prevenir desequilíbrios.

Demandas de que tipo?

Por exemplo, necessidades básicas: habitação, esgoto, água potável, transporte etc. Toda essa parte que tem a ver com o gasto público, com uma obrigação do Estado. Existe aí forte demanda reprimida. Como vamos resolver esse tipo de problema com as tecnologias disponíveis, que foram pensadas como solução para uma situação totalmente diferente da brasileira? Caso se tente resolver muitos desses problemas com a mesma tecnologia usada nos países desenvolvidos, o custo será astronômico, e o impacto ambiental, desastroso. Além disso, estaremos usando tecnologias que não correspondem à escassez e abundância relativa de fatores. Essas tecnologias, por terem sido desenvolvidas em países avançados, empregam muito menos mão de obra do que poderiam empregar. Por uma razão simples: a mão de obra lá é cara. Aqui, a gente precisa de muita mão de obra, de preferência em coisas que possam ser construídas, desenvolvidas ou implantadas a partir da organização dos próprios trabalhadores, sem a necessidade de grandes empresas.

Por quê?

Quando o governo gasta recursos com empresas, utilizando seu enorme poder de compra para atender a essas necessidades dos cidadãos, uma parte do gasto é lucro da empresa. Há uma ineficiência nesse processo, pois o que chega na classe mais pobre é menos do que poderia chegar. Ou seja, o governo gasta um dinheiro razoável nessa tentativa de amenizar a miséria, mas deixa de aproveitar o seu poder de compra, que é muito grande, para alavancar esse processo.

Falta integração entre políticas sociais e políticas de ciência e tecnologia?

No mundo inteiro, a pesquisa feita na universidade é direcionada para o interesse das empresas. Muito pouco da pesquisa que se faz atende aos interesses do Estado. No Brasil, porém, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, nosso gasto com universidades não favorece as empresas. Enquanto lá as empresas investem em pesquisa e contratam 70% dos mestres e doutores, aqui a nossa taxa de aproveitamento fica em torno de 0,07%. O que acontece é que as empresas localizadas no Brasil inovam comprando equipamentos, o que faz sentido, dada a nossa condição de país periférico. Se olharmos para as demandas que têm a ver com o projeto de erradicação da miséria, veremos uma carência enorme de conhecimento técnico-científico. Isso ocorre por várias razões, entre elas, porque as necessidades básicas das populações nos países desenvolvidos foram atendidas há muito tempo. Hoje, a expansão da fronteira do conhecimento está conectada ao interesse das pessoas de mais alta renda. Então, esse conhecimento de que necessitamos não existe, nós temos que produzir. E temos que oferecer soluções tecnicamente perfeitas, ou as melhores possíveis, além de social e ambientalmente adequadas. Esse é desafio que temos pela frente.

Como seria possível fazer a integração entre essas políticas?

É possível utilizar o poder de compra do Estado de uma forma mais coerente com a ideia de inclusão social. A latinha de alumínio é um exemplo. Por que não podemos transformar a latinha em esquadria de alumínio com uma tecnologia social, completando a cadeia da janela de alumínio com a economia solidária? O processo de construção de casas populares poderia ser pensado de forma a unir as pontas, desde a pesquisa, partindo de uma tecnologia simples, capaz de ser utilizada pelas cooperativas, em pequena escala. O programa Minha Casa, Minha Vida poderia ser usado de outra forma. Hoje, quase todos os recursos do programa são alocados em empreiteiras, quando uma parte grande poderia ir para mutirões.

Há alguma diferença entre os governos FHC, Lula e Dilma no que diz respeito às políticas de ciência e tecnologia?

Não. Na verdade, o que os dados disponíveis mostram é que vem diminuindo o gasto percentual das empresas em pesquisa e desenvolvimento. Isso é totalmente esperado. Trata-se de uma questão estrutural. Existem três bons negócios com tecnologia: roubar, copiar ou comprar. Desenvolver, só em último caso.

Se é mais racional que o empresário compre tecnologia, o Estado precisa ter um papel mais ativo?

Não adianta. Se somos um país capitalista, o Estado nunca terá condições de intervir para regular o mercado a ponto de “obrigar” um empresário a fazer algo que ele não queira. Em especial algo como desenvolver tecnologia.

E qual é a solução?

No caso brasileiro, não tem solução, e esse é o problema que o pessoal não entendeu ainda. Costuma-se dizer que o empresário brasileiro é “atrasado”, que falta “clima de inovação”, que ele tem que ser “mais ousado”, mais “empreendedor”. Ora, se tem empresário competente no mundo, é o brasileiro. E digo isso como toda a sinceridade. Basta ver o dinheiro que ganha, a taxa de lucro que tem num país como o Brasil. Agora, o processo de erradicação da miséria é uma oportunidade de ouro. Esse processo desvela uma enorme demanda reprimida por conhecimento. E não só conhecimento desincorporado, mas incorporado em bens, serviços, capacidade produtiva. Costumo dizer que 50% da população brasileira está fora do Brasil. Para fazer um país onde caiba todo o povo brasileiro em termos de consumo, de satisfação de necessidades de todo tipo, é preciso construir outro país do tamanho do que já existe. Não dá para fazer isso sem planejar antes. Está na hora de pensar esse processo de construção do Brasil que a gente quer, e isso não está sendo feito.

Não cabe ao governo o papel de fomentar essa discussão?

No caso da política de ciência e tecnologia, temos uma situação anômala. Em todas as políticas públicas, os atores sentam à mesa com seus projetos. Quando se discute a política salarial ou de emprego, por exemplo, empresários e trabalhadores aparecem claramente em áreas radicalmente opostas. Na ciência e tecnologia, porém, o projeto político não aparece. O que aparece são os mitos: neutralidade, determinismo, a ideia de que ciência e tecnologia sempre são boas e que o problema é o uso que vai se fazer. E há um complicador. Há 50 anos fala-se em participação pública na ciência. É um discurso politicamente correto, mas as pessoas parecem esquecer em que país estão vivendo. Por mais politicamente correto que seja, não posso concordar com isso. Qual a saída? Eu acho que é propor uma discussão dentro da comunidade de pesquisa. Explicitar essa esquizofrenia. A minha expectativa é que haja uma cisão dentro da comunidade de pesquisa, como existe em qualquer outra área quando o projeto político consegue se manifestar. Porque há projetos diferentes, mas hoje eles não se mostram.

Quanto dessa situação é novidade por causa do atual momento social e econômico do país?

Essa situação existe há muito tempo, mas, na medida em que há um dado novo, e esse dado novo obriga a uma expansão da capacidade produtiva, é hora de inovar com qualidade, e não fazer um simples aumento quantitativo da capacidade produtiva. Isso porque, quando se dobra a capacidade produtiva de um determinado sistema, o impacto indesejável do ponto de vista ambiental, cultural etc. pode até quintuplicar.

Desse ponto de vista, o senhor diria que o país está pronto para erradicar a miséria?

Do ponto de vista cognitivo, do ponto de vista de conhecimento científico-tecnológico, o país não está pronto de jeito nenhum.

E para absorver a chamada nova classe média?

Também não. Esse processo terá consequências ambientais e sociais. Acaba desfazendo de um lado o que faz do outro. Os programas compensatórios, como o Bolsa Família, são um caso típico. Sem gerar oportunidade de trabalho e renda para essas pessoas, não se está fazendo muita coisa.

Reportagem da Folha na sexta mostrou que a “porta de saída” do Bolsa Família terá, neste ano, o menor peso no Orçamento desde a criação do programa.

É um absurdo. O cara vai continuar excluído. Não vai passar fome, mas também não vai pertencer à sociedade, porque não terá um papel social. Estamos falando em criar oportunidades de trabalho e renda, o que não é necessariamente emprego.

Como assim?

Não é emprego formal, com carteira assinada. A economia cresce, mas não gera emprego. Aí entram a economia solidária e a tecnologia social, por exemplo. Ao dizer isso, não é preciso pensar em uma sociedade diferente do capitalismo. Podemos falar, de uma maneira pragmática, que a economia solidária e a tecnologia social são condições para tornar efetivo o dinheiro que o governo gasta para tirar as pessoas da miséria. É preciso dar condições para que essas pessoas se sustentem, pois, do contrário, provavelmente vão voltar para a miséria. Dar dinheiro por programas compensatórios é apenas a pontinha de um iceberg. Claro que tem sua importância, mas como vamos cuidar do resto?

Inclusão na era Lula deixa bomba-relógio para Dilma, diz sociólogo.

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Autor: Rudá Ricci – Jornal Folha de São Paulo – 21/02/2011 – Por Uirá Machado/SP

A inclusão social pelo consumo ocorrida no governo Lula trouxe para a presidente Dilma Rousseff uma “espécie de bomba-relógio”, e a disputa sobre o aumento real do salário mínimo é parte desse problema, afirma o sociólogo Rudá Ricci.
Autor do livro “Lulismo – Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira”, Ricci avalia que a manutenção desse processo é o “primeiro grande problema” de Dilma, mais progressista no discurso, mas, de prática, “mais conservadora que Lula”.
O sociólogo diz ainda que a presidente se identifica com a classe média tradicional, enquanto Lula é a expressão da nova classe C –segmento que, para Ricci, não aponta para uma nova divisão de classes.
Folha – O primeiro grande embate de Dilma foi com as centrais sindicais. Quanto desse choque é explicado pela ausência de Lula e pelo estilo da presidente?
*Rudá Ricc*i – Trata-se de uma situação das mais complexas. O movimento sindical brasileiro é, quase todo, sindicalismo de resultados. É negociador por natureza, e não contestador. O reajuste do salário mínimo é um aríete visível e popular, mas que será utilizado para negociações mais amplas.
Mas é evidente que o perfil de Dilma, marcado pelo estilo gerencial, influencia nessa relação. Vamos perceber que um gestor público tem que ter jogo de cintura.
A queda de braço em torno do salário mínimo sugere que as centrais sindicais estão retomando pautas antigas?
Não acredito. Minha leitura é que se trata de um movimento de estudo sobre as novas diretrizes governamentais. As centrais sindicais ocuparam um espaço importante no governo, e não apenas uma parceria.
O governo Lula cooptou os movimentos sociais?
Em parte. Diria que se trata de um pacto social não explícito. No que tange ao movimento sindical, orienta-se para a construção de um modelo neocorporativo. Não se trata de uma situação clássica de cooptação, mas da convergência de interesses políticos. Não há ingênuos em nenhum dos lados.
Qual o significado simbólico da votação do mínimo?
Essa votação teve o simbolismo de mostrar quão sólida é a base governista no Congresso. Agora, os blocos parlamentares podem se movimentar com mais segurança.
Foi a ponta do iceberg de um longo processo de negociação dos ajustes do modelo lulista. Será um processo que dará muito trabalho aos operadores políticos do governo.
Já é possível fazer comparações entre Lula e Dilma no que diz respeito ao trato com os movimentos sociais?
Dilma faz um discurso mais progressista, mas adota uma prática mais conservadora que Lula.
Lula é um negociador nato e fala a linguagem da nova classe C, pragmática e, muitas vezes, cínica. Dilma é técnica e ascética como a classe média tradicional.
Não se trata apenas de um líder carismático e outro racional. Trata-se de empatia política, de qual segmento social é liderado.
Mas o Brasil ainda vive uma transição na sua composição social. A classe média tradicional perdeu seu poder de formar opinião num país com mobilidade social enrijecida. Temo que Dilma não tenha “feeling” político para entender esse momento.
Dilma recebe do lulismo alguma herança negativa?
O primeiro grande problema é como conduzirá o financiamento da inclusão social pelo consumo que o lulismo montou. Aí está parte das dificuldades de relacionamento com o mundo do trabalho.
Se a política tributária é regressiva, se a transferência de renda está com seu financiamento no limite e se o lulismo é um pacto pelo estatal-desenvolvimentismo de tipo fordista, conciliando interesses diversos, como resolver a equação?
O aumento do consumo já faz com que 60% da população esteja endividada. Criou-se uma expectativa em relação ao aumento real do salário mínimo para o ano seguinte, salvando parte do orçamento familiar.
Há uma espécie de bomba-relógio a ser desativada. Esta é a herança: a expectativa de lideranças sociais e da classe C, vorazes consumidores.
O sociólogo Jessé Souza argumenta que não é correto falar em “nova classe média”. Como o sr. avalia essa questão?
A série histórica que temos no país e que segue o Critério Brasil [usado em pesquisas de opinião e de mercado para definir classes econômicas] é baseada na estratificação social fundada no poder aquisitivo. Estamos presos, para efeito de análise comparativa, a essa base.
Na análise de Jessé Souza, vejo um duplo equívoco. Primeiro, ele não percebe que se trata de uma transição na composição das classes sociais a partir da forte ascensão social dos últimos anos.
Estamos falando de mudança de ideário e hábitos no interior das classes, em especial da classe C. Isso já ocorreu outras vezes no país.
O segundo equívoco é que os conceitos de “ralé” e “batalhador” são impressionistas e partem de um juízo de valor. Batalhador sempre houve no Brasil. Assusta-me essa vertente conservadora de definir o país a partir do empenho individual.
Mas há diferenças em relação à classe média tradicional?
A nova classe C é desconfiada e tem na família seu porto seguro. Afinal, foi sua família que sofreu a pobreza. O conservadorismo aparece como elemento de negação do passado.
Essa é a expressão cultural da nova classe C, que obviamente se distingue da classe média tradicional. Mas não temos uma nova divisão de classes, apenas uma nova composição em virtude da ascensão social de momento.
Qual o peso da ascensão da nova classe média na sustentação do lulismo?
Total. O discurso de Lula, e até mesmo a sua imagem, cria forte empatia com essa nova classe média. Lula era a afirmação desses hábitos populares que invadem o mundo das elites e chegam ao cargo máximo do poder público. Lula foi e é a expressão maior da ascensão da nova classe C.

Relações não duram porque maioria não enxerga o outro como ele é, diz psicólogo

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Autor: Psicólogos Jorge Bucay e Silvia Salinas – FSP 22/09/2010.

Não há receita pronta para um relacionamento dar certo, mas alguns ingredientes podem ajudar. É disso que trata “Amar de olhos abertos”, do psicólogo Jorge Bucay, um dos escritores argentinos mais incensados dos últimos tempos.
Bucay esteve no Brasil para lançar o livro (o primeiro em português), escrito com a colega Silvia Salinas –e a Folha aproveitou para “discutir as relações” com ele.

Folha – O que significa amar de olhos abertos?
Jorge Bucay – Gosto de uma definição que diz que o amor é a simples alegria pela existência do outro. Não é possessão, nem felicidade necessariamente. E por isso “com os olhos abertos”. O amor cego não aceita o outro verdadeiramente como ele é.

Por que tanta gente prefere a intensidade da paixão, mesmo sabendo que é efêmera, a construir algo mais sólido?
É maravilhoso estar apaixonado e muitos preferem a intensidade superficial à profundidade eterna. Mas me pergunto como as pessoas pensam em ficar somente nisso.

Qual o sentido de estar apaixonado perdidamente o tempo todo? Penso que é uma questão de maturidade.
Também tem a ver com a nossa sociedade, que adora emoções intensas. Procuramos correr mais rápido, chegar antes, desfrutar intensamente. A paixão é como uma droga: no seu momento fugaz faz pensar que você é feliz e não precisa de mais nada. Um olhar, uma palavra te levam aos melhores lugares.

Como construir uma relação mais profunda?
Seria bom estar preparado para saber que a paixão acaba. Amadurecer significa também desfrutar das coisas que o amor dá, como compartilhar o silêncio e não um beijo, saber que a pessoa está ali, ainda que não esteja ao meu lado. É preciso abrir os olhos, e isso é uma decisão. Ver o par na sua essência.
Mas primeiro é preciso estar bem consigo mesmo. Não se deve procurar o sentido da própria vida no companheiro ou nos filhos.
Você deve responder a três perguntas básicas nesta ordem: quem sou, aonde vou e com quem. É preciso que eu me conheça antes de te conhecer e que decida meu caminho antes de compartilhá-lo. Senão, é o outro quem vai dizer quem eu sou. E isso é uma carga muito grande.
O livro diz que as relações duram o que têm que durar, sejam semanas, seja uma vida.
Duram enquanto permitem que ambos cresçam. Significa conhecer-se, gostar de si mesmo, conhecer seus recursos e desenvolvê-los. Ao lado da pessoa amada, está a melhor oportunidade para isso. E essa é uma condição para construir um relacionamento. Um casal que não cresce, envelhece. E um casal que envelhece, morre.

O que leva ao fracasso?
Um dos grandes motivos de fracasso é não trocar intensidade por profundidade, viver querendo voltar aos tempos da paixão. Outro ponto de conflito é que as pessoas não conseguem deixar o papel que desempenhavam antes de casar, querem continuar sendo o “filhinho da mamãe”, ou o “caçulinha da casa”. Outro problema é a intolerância, a incapacidade de aceitar as diferenças, as pessoas discutem pelo dinheiro, pela criação dos filhos e, por fim, morrem sufocadas pela rotina.

E como enfrentar esses problemas ou desafios?
É preciso amor, atração e confiança. Comparo esses pilares a uma mesa de três pés. O tampo da mesa seria um projeto comum firme. Se faltar qualquer um desses elementos, a mesa cai. E sobre tudo isso deve-se montar outras coisas, como a capacidade de trabalhar juntos, de rir das mesmas coisas, de ser sexualmente compatíveis, sentir o outro como um apoio nos momentos difíceis. Às vezes a terapia ajuda, às vezes é um bom passaporte para a separação.

Como saber quando a relação chegou ao fim?
Se sinto que estou sempre no mesmo lugar, que me entedio, que não tenho vontade de estar com o outro, se sempre que saímos precisamos sair com outros casais pois não ficamos bem sozinhos, quando piadas como “o idiota do meu marido” ou a “bruxa da minha mulher” se tornam frequentes, algo não está funcionado.

A Ilusão da Alma: Entre a mente e o cérebro

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Autor: Eduardo Giannetti da Fonseca – Jornal Valor Econômico – 13/08/2010

Mais uma obra inquietante do economista e professor do Insper Eduardo Giannetti da Fonseca, uma ampla reflexão sobre mente e cérebro, a neuroeconomia, leitura obrigatória neste momento onde as ciências se inter relacionam com grande intensidade.

“Em ‘Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos’, Tom Stoppard promove dois figurantes de ‘Hamlet’, amigos de infância do príncipe, à condição de protagonistas da cena. A certa altura da peça, Rosencrantz, a bordo de um navio, esboça uma revolta. Ele protesta porque não passa de uma ponta insignificante no grande drama; porque sua vida transcorre à mercê de roteiro que não foi ditado por ele, como uma peça endentada na máquina do mundo. ‘Pois bem, eu vou mostra-lhes’, desafia, ‘eu vou me jogar no mar, isso vai escangalhar as engrenagens.’ Ao que Guildenstern retruca: ‘E se eles estiverem contando com isso?'”
Esse trecho de “A Ilusão da Alma – Biografia de uma Ideia Fixa” pode servir como um aperitivo para as grandes questões – inclusive dos limites do livre arbítrio – que permeiam o mais recente livro de Eduardo Giannetti. Nascido em Belo Horizonte em 1957, de sólida formação acadêmica, com passagem pela Universidade de Cambridge, ele desenvolve uma curiosa carreira como escritor, cada vez mais distante dos temas tradicionalmente tratados na economia. Neste seu sétimo livro para a Companhia das Letras, uma parceria iniciada em 1993 com “Vícios Privados, Benefícios Públicos”, Giannetti se arrisca mais do que em todas suas obras anteriores.
“A Ilusão da Alma” é um livro de ficção, a primeira de Giannetti no gênero, e ele mesmo confessa que isso constituiu um grande desafio, tanto do ponto de vista da linguagem quanto da criação de personagens. Foi o livro que mais lhe deu trabalho, que mais o levou a reescrever trechos inteiros, até que encontrasse uma fórmula que agradasse a ele e seus editores, em que capítulos de ficção “pura”, escritos na primeira pessoa pelo personagem principal, se alternam com os “cadernos de estudos”, em que ele relata sua pesquisa científica sobre a relação entre mente e cérebro.
A ousadia de Giannetti não se restringe à forma do livro, mas também e principalmente ao conteúdo, ao tema central, a ideia de que tudo o que se passa na mente dos homens é apenas o resultado da atividade das células do cérebro, como defende o fisicalismo, uma teoria que ganha adeptos nestes tempos em que os avanços da ciência e da tecnologia permitem que se comece a conhecer – até de uma forma empírica – o funcionamento do cérebro e como as decisões são tomadas. Em vez de simplesmente escrever um livro a respeito dessas hipóteses, levantadas ainda por filósofos gregos e tratada com maior ou menor profundidade por grandes nomes do pensamento, como Karl Marx e Sigmund Freud, além de iluministas franceses, Giannetti preferiu criar uma obra de fantasia a partir da história de um intelectual que, depois de um problema de saúde, começa a estudar as relações entre mente e cérebro.
Nesta sua primeira experiência pelo mundo ficcional, Giannetti manteve um “hábito” salutar dos seus outros livros: “A Ilusão da Alma”, livro de 256 páginas, traz uma bem-vinda seção de notas com as fontes das citações e dos experimentos referidos nos trechos que não são de ficção. Um dos eventos que marcam o lançamento do livro é a participação de Giannetti num dos debates promovidos pela Fronteiras do Pensamento, uma série de palestras que ocorrem em Porto Alegre.
Engajado nos últimos meses na campanha à Presidência da República da senadora Marina Silva (AC), Giannetti escreveu “A Ilusão da Alma” ao longo do ano passado, em Tiradentes, a cidade mineira que elegeu como um refúgio, distante do seu cotidiano de professor do Insper e palestrante. A seguir, os principais trechos da entrevista de Giannetti sobre o livro:

Valor: Quando o senhor começou a escrever este livro?
Eduardo Giannetti: Comecei a pensar este livro há mais de 20 anos. Eu ousei, na minha tese de doutorado de economia, escrever um capítulo sobre um filósofo francês chamado [Julien Offray de] La Mettrie (1709-1751), que escreveu um livro chamado “Homem-Máquina”. Esse assunto da relação entre cérebro e mente sempre me despertou enorme fascínio intelectual. Fiquei com meu radar de pesquisador atento para essa questão, acompanhando os desenvolvimentos da pesquisa em neurociência e, mais recentemente, em neuroeconomia. Eu já estava especulando como seria o entendimento do homem à luz do que se passa no cérebro, sem levar em conta o que se passa nos estados de consciência, nos estados mentais. Com o surgimento da neuroeconomia, com os avanços muito rápidos que têm ocorrido na neurociência, achei que estava na hora de voltar a esse assunto, não porque eu tenha algum resultado experimental, já que não sou pesquisador, mas para tentar entender suas implicações existenciais e éticas.

Valor: Por que o senhor resolveu escrever um livro que é também de ficção?
Giannetti: Mais do que fazer uma discussão sobre a verdade ou falsidade da hipótese de o que se passa na mente ser apenas produto da atividade cerebral, queria entender o que se passa com alguém que resolve trazê-la para sua vida pessoal. Conheço muitos cientistas que se consideram fisicalistas, mas que separam por completo o que acreditam no laboratório do que são na vida pessoal. Queria explorar um pouco o que se passa quando alguém traz essas ideias para o campo da experiência na sua vida pessoal. Daí o tratamento ficcional. Criei um personagem….

Valor: O personagem é bastante polêmico, já que ele vai gradualmente aceitando a teoria fisicalista e é dominado pela ideia do predomínio das funções cerebrais sobre a mente.
Giannetti: Tenho uma relação muito ambígua com ele. Aconteceu uma coisa curiosa. Enquanto ainda estava escrevendo o livro, mostrei para amigos, para cientistas, para pessoas do mundo da literatura, família. Quando alguém atacava o personagem, minha disposição era de defendê-lo, e mostrar que ele podia estar mais certo do que se imaginava inicialmente. Mas se alguém o defendia, como alguns colegas faziam, inclusive uma amiga, cientista, que mora nos Estados Unidos: “Ah, então você é um dos nossos…” Então eu falei: “Espera aí, não sou meu personagem”. Minha relação com o personagem é exatamente assim: se alguém começa a defender as ideias dele, tenho vontade de criticar, mas se alguém começa a criticar suas ideias, tenho vontade de defender. De uma coisa tenho certeza: o avanço dessa linha de pesquisa vai dar cada vez mais plausibilidade para a conjectura fisicalista. Tudo o que vem se descobrindo e quanto mais avançam os conhecimentos sobre a relação entre o cérebro e a mente, mais se reforça… Quando La Mettrie escreveu o “Homem-Máquina”, lá no século XVIII, o nível de conhecimento sobre o cérebro estava muito próximo de zero, e ele já vislumbrou essa possibilidade, apenas com base no conhecimento que tinha como médico. Ele era filósofo e médico, e tratava de muitas pessoas que tinham, na guerra, sofrido lesões e ele via sequelas, as consequências, e acabou, num gesto de grande ousadia intelectual, lá no Iluminismo europeu, fazendo a primeira formulação completa e moderna do fisicalismo.

Valor: E o que mudou desde então?
Giannetti: De lá para cá, principalmente nos últimos 30 anos, começamos a ter resultados experimentais muito mais sólidos e a posição do La Mettrie parece hoje muito menos excêntrica e muito menos deslocada do que na sua época. O assunto está sendo discutido há 2.500 anos. Os gregos já discutam isto. A grande novidade é que, de 20, 30 anos para cá, começamos a ter resultados experimentais e técnicas de visualização do cérebro que permitem avançar progressivamente no entendimento cada vez mais detalhado da relação entre o que se passa em nossa experiência interna, subjetiva, e o que está se passando objetivamente no cérebro.

Valor: O senhor disse que sofreu críticas de alguns que já leram o livro. Por quê?
Giannetti: Algumas pessoas ficavam ofendidas com o pensamento desse personagem, achando que eu pensava assim também. E comentaram: “Não, mas isso aqui é o fim da ética, é o fim de qualquer humanismo, é um absurdo”. Como se fosse ofensivo você apresentar uma possibilidade de pensamento diferente do senso comum – que é de fato muito perturbadora. Tanto que meu personagem preferiria não acreditar nela. Ele estranha muito que outro personagem, o médico e amigo dele, seja um fisicalista e não se preocupe com as implicações que isso tem para a condição humana e para o entendimento que ele tem dele mesmo. Meu personagem principal, esse professor, começa a trazer para o campo da sua existência, das suas relações pessoais e da maneira como ele se entende, toda a perturbação que decorre dessa possibilidade realmente perturbadora sobre o que é o bicho homem. O La Mettrie foi perseguido em vários países europeus. Foi talvez o autor mais perseguido do Iluminismo, por ter ousado escrever esse livro. Isto me atraiu muito. Sempre gostei de autores perseguidos.

Valor: Essa perseguição atingiu outras pessoas, além do La Mettrie?
Giannetti: O editor dele foi preso. La Mettrie chegou a ser expulso da Holanda, que era o país mais arejado e mais tolerante da Europa e aí foi acolhido na Prússia, porque o imperador tinha uma corte de intelectuais perseguidos na Europa, inclusive o [escritor francês iluminista François-Marie Arouet] Voltaire. La Mettrie foi acolhido na corte, mas passou a ser perseguido até lá, na corte do Frederico II, e talvez tenha morrido de envenenamento. Ele foi o único autor do Iluminismo que teve contra si todas as religiões. [O escritor e filósofo francês Denis] Diderot, que o admirava muito, não tinha coragem de se referir a ele nominalmente, porque era perseguição na certa. E o Diderot era um fisicalista, ele é um dos “ghost-writers” de um livro importante, mas muito inferior ao do La Mettrie, que é o “Sistema da Natureza”, assinado pelo barão D’Holbach.

Valor: E hoje, intelectuais, cientistas, filósofos defendem o fisicalismo?
Giannetti: Francis Crick , o grande descobridor do DNA, era um fisicalista. Para ele, crenças religiosas são eventos neurológicos de pessoas com certa propensão epilética no lobo temporal direito. É curioso que Hipócrates, o médico grego, um dos descobridores do fato de que a vida mental está situada no cérebro e seu melhor enunciado dessa descoberta é quando rejeita a crença de que a epilepsia seria uma doença sagrada, seria algum tipo de punição divina imposta a pecadores ou pessoas condenadas. Contestando essa ideia, ele diz que tudo o que ocorre na experiência interna do sujeito no fundo está situado no cérebro. Agora, 2.500 anos depois, a própria experiência religiosa, do divino e de certa propensão mística, é explicada por alguns como sendo algum tipo de disfunção cerebral. [O cientista defensor do ateísmo] Richard Dawkins se propõe participar de uma experiência com estimulação elétrica para ver se ele passava por uma experiência mística…

Valor: Aqui no Brasil, quem são os cientistas ou outras pessoas que defendem essa tese?
Giannetti: Conheço médicos, neurocientistas fisicalistas – não vou citar nomes – e esta é uma hipótese de trabalho para eles. Eles têm que entender tudo o que ocorre no mundo a partir de variáveis publicamente observáveis e mensuráveis. Roger Sperry , neurobiologista, diz que 99,9% dos pesquisadores do cérebro são fisicalistas. Eles não consideram a possibilidade de que estados mentais têm poder causal, isso é descartado como uma premissa. O estado mental não explica nada, é um subproduto inócuo de outras ocorrências cerebrais. É um pouco aquela imagem de um contemporâneo do [cientista Charles] Darwin: “A mente está para o cérebro assim como o apitar da panela de pressão está para o seu mecanismo de funcionamento”. A gente tem a ideia de que a água ferve porque apitou, mas na verdade é porque a água ferveu que a panela apitou. Estamos radicalmente enganados sobre o que está acontecendo conosco.

Valor: Darwin pode ser considerado um fisicalista?
Giannetti: Ele não se pronunciou abertamente sobre o assunto, mas nos cadernos de pesquisa, nos quais fazia anotações meio esparsas, há alguns fragmentos que são fisicalistas. E no fundo isso é recolocar o ser humano integralmente de volta à natureza. O ser humano não tem nada de tão especial, como se acostumou a acreditar, que o diferencie metafisicamente do resto da natureza como conhecemos. Somos parte integrante desse processo, mais complexo, mais sofisticado e possivelmente com mais autoengano.

Valor: Mesmo diante de reações tão negativas que essa tese fisicalista tem gerado, o senhor escreveu um livro em que o personagem principal também é um intelectual, também nasceu em Minas…
Giannetti: Torce pelo Cruzeiro, o que não é o meu caso, teve um tumor cerebral… E considera tudo o que aconteceu com ele altamente perturbador. Ele não está feliz com isso. E preferiria acreditar no contrário. E termina o livro com uma frase: ‘Refute-me se for capaz’.

Valor: Esta é sua mensagem, seu recado para o leitor?
Giannetti: Se essa teoria nos incomoda tanto, então o que é a verdade? E a outra questão é a seguinte: e se a verdade for a loucura? E se essa busca de conhecimento estritamente científico sobre o ser humano nos levar à perda de qualquer possibilidade de sentido e de autonomia? Como vamos lidar com isso? O que é que prevalece: a verdade a qualquer custo ou a sanidade mental, embora iludida?

Valor: Seu livro, cujo tema é uma preocupação e uma fonte de interesse há mais de 20 anos, é uma provocação também?
Giannetti: Não, eu precisava escrever sobre essas teorias, é uma coisa que me preocupa muito, como ser humano. E se tenho uma única pretensão com esse livro é levar o leitor a um momento de estranhamento radical e ao vislumbre da possibilidade de que ele, como cada um de nós, esteja totalmente enganado sobre o que nos faz quem somos.

Valor: Uma provocação ou um desafio?
Giannetti: Um convite para que nos conheçamos de maneira muito mais profunda e radical do que até agora possamos ter imaginado. Já não acreditamos neste mundo natural, encantado, povoado por deuses e forças mágicas, espíritos e vontades, mas vivemos ainda no escuro, em grande medida, com relação a nós mesmos, e muita coisa do que está se passando conosco, inclusive coisas perniciosas que fazemos uns aos outros, podem vir de causas que desconhecemos.

Valor: E as questões éticas que podem ser levantadas a partir do fisicalismo?
Giannetti: Existe uma questão que acho muito interessante também, que são as possibilidades de manipulação tecnológica, de estados mentais por intervenção cerebral, que abrange toda a farmacopeia, a farmacologia. Hoje, existem experimentos para tentar mudar as preferências de uma pessoa com estimulação magnética do cérebro. Por exemplo, o obeso quer parar de ter desejo por um certo tipo de alimento. É uma questão de tempo, vamos ter uma terapia neural para esse problema. Ou para melhorar a memória. E aí vão levantar questões éticas. Até que ponto se pode interferir dessa forma sem mudar a pessoa? Há um ponto a partir do qual você deixa de ser quem você é. Tenho razoável convicção de que esse livro aponta para determinada direção que as coisas tomarão no século XXI. Há hoje um caminho do conhecimento que vislumbro como sendo forte e que tende a ficar cada vez mais dominante na cultura. Nosso entendimento de nós mesmos vai ficar cada vez mais marcado pelas pesquisas. E até onde vai isso? Meu personagem levou até o fim. Ele está se antecipando e conjecturando, como La Mettrie já tinha feito de maneira muito mais ousada lá no século XVIII. Agora, outra curiosidade – Karl Marx escreveu sua tese de doutorado sobre isso.

Valor: Marx também?
Giannetti: A tese de doutorado de Marx é uma comparação entre as filosofias da natureza dos filósofos gregos Demócrito e Epicuro, que eram dois fisicalistas, dois materialistas antigos. Demócrito tem um papel central no meu trabalho. Faço um contraponto entre Sócrates e Demócrito. Eles são atomistas, o mundo é feito por átomos em desenvolvimento. Por que Marx foi pegar Epicuro? Epicuro é um pós-aristotélico que segue Demócrito, mas não aceita a perda da liberdade implícita no atomismo radical de Demócrito. Ele diz que, no caso do homem, os átomos não seguem uma linha contínua, mas sofrem um pequeno desvio. E que é por causa desse desvio dos átomos no caso específico do homem que temos autonomia, temos alguma liberdade de escolha, não somos seres totalmente determinados por leis independentes da nossa vontade. Epicuro foi o grande herói juvenil de Marx. Ele queria ser um materialista, mas com espaço para alguma autonomia de afirmação soberana do homem. Tanto que Marx termina a tese de doutorado dele com uma frase – pena que eu não citei no livro: “A autoconsciência humana é a única divindade, não reconheço nenhuma outra divindade no universo senão essa prerrogativa exclusiva do homem, da autoconsciência, que nos confere alguma autonomia na ação”.

Valor: Marx abordou essas questões nos seus livros, além da tese de doutorado?
Giannetti: Ele só volta muito rapidamente a esse assunto em “A Sagrada Família”, que é um livro juvenil, em que fala algo sobre os materialistas mecanicistas franceses, entre eles La Mettrie e o barão D’Holbach. Hoje em dia, parece que as ideias defendidas por Demócrito e La Mettrie, por tudo o que vai se descobrindo na ciência moderna e na neurociência, estão ganhando força, não tem a menor dúvida. Eu me pergunto muito o que Marx e [o pai da psicanálise Sigmund] Freud fariam à luz desses resultados da neurociência. Os dois tiveram, no início dos seus estudos, essa preocupação sobre as relações entre a mente e o cérebro. Porque o Freud também, antes de embarcar na psicanálise, escreveu um trabalho, que não chegou a publicar, mas que era um projeto de psicologia científica, que é uma abordagem fisicalista. Mas na época deles, o que se sabia sobre o cérebro era perto de nada. Existiam muitos tabus e havia restrições até para dissecar o cérebro de um morto. Hoje em dia, você visualiza o que se passa no cérebro no momento da escolha, no momento da tomada de decisão. E podem ser consideradas técnicas rudimentares, essas técnicas vão avançar ainda muito, estamos engatinhando nessa coisa. O que meu personagem faz é especular fortemente sobre o caminho que o conhecimento pode tomar dentro dessa linha de investigação. É um tema que eu acho que merece reflexão. Mas não estou abraçando essa linha de pensamento.

Valor: Não está tornando isso uma causa?
Giannetti: Uma causa? Não.

Mulher é mais feliz quando reconhece diferenças de gênero

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Autor: Susan Pinker – Universidade de McGill/Montreal – Canadá

Professora da Universidade McGill, de Montréal, a canadense Susan Pinker, que acaba de lançar no Brasil o livro “O paradoxo sexual” (Editora Record), segue a mesma linha de pesquisa que seu irmão Steven. Ambos buscam entender a mente humana no contexto da evolução. Em entrevista à Folha, ela conta por que sente pena de Lawrence Summers, reitor da Universidade Harvard que perdeu o cargo acusado de machismo.

FOLHA – Seu livro fala sobre mulheres em empregos com bons salários, mas que as afastavam dos filhos, tornando-as infelizes. Por que elas quiseram anonimato?
SUSAN PINKER – Acho que as mulheres que fazem essa escolha ainda estão envergonhadas de não estar agindo como homens. Mas não podemos esperar isso delas. Elas não são homens.
FOLHA – Como assim?
PINKER – Existe a expectativa, no Ocidente, de que mulheres devem voltar a trabalhar normalmente quando seus filhos ainda são pequenos sem que se sintam mal por isso. Mas essa angústia tem razões biológicas. Se você der liberdade de escolha, mulheres vão querer trabalhar menos enquanto seus filhos forem novos. Na América do Norte e na Europa, entre as empresas que oferecem aos seus funcionários trabalhos em meio período, 89% dos que aceitam são mulheres. Isso oferece às mulheres mais tempo não só para os seus filhos, mas para seus outros interesses.
FOLHA – Ganhar um salário menor é o preço que as mulheres pagam para satisfazer seus sentimentos?
PINKER – Sim. Fui entrevistada por uma jornalista na Holanda, onde há leis que dizem que, se você quer trabalhar só meio período, não pode ser demitido. A maioria das mulheres na Holanda não trabalham o dia inteiro, tendo filhos ou não. Essa jornalista trabalhava só quatro dias por semana. Ela dedicava as sextas para tocar piano, e achava que não seria feliz sem isso. Então não se trata apenas de cuidar dos filhos, mas também de ter uma vida mais equilibrada. Para as mulheres, a vida não é apenas trabalho, salário e promoções, ao contrário do que pensam muitos homens, que acham que tudo isso vale a pena quando compram um novo carro. Incomoda a muitos deles pensar que outras pessoas estão ganhando mais dinheiro, que moram em um lugar mais legal. São mais competitivos, gostam mais de assumir riscos. Não todos, mas eu diria que 75% dos homens são assim.
FOLHA – Ou seja, não é regra.
PINKER – Eu sempre deixo claro que cada pessoa é um indivíduo único. Ciência é estatística, pessoas são únicas. Então, quando você estuda ciência, está analisando probabilidades. Sempre existirão exceções. Compare com a altura. Em geral, homens são mais altos, mas existem várias mulheres mais altas do que muitos homens.
FOLHA – Mas ainda existe muita resistência à ideia de que as diferenças entre os gêneros não são apenas socialmente construídas.
PINKER – As mulheres foram discriminadas por tanto tempo que as pessoas têm uma aversão à ideia de que existe uma diferença natural, biológica. Acham que falar sobre diferenças é voltar a pensar como antigamente, quando, na verdade, não tem nada a ver com discriminação. É bobo ignorar as evidências científicas porque você tem medo do que elas vão dizer.
FOLHA – Mas pode soar como “acabou a festa, todas de volta para a cozinha, os afazeres domésticos”…
PINKER – Estou muito longe dessa mensagem. O que acontece de bom quando as mulheres aceitam que existem diferenças biológicas naturais é que elas se sentem muito menos isoladas com seus sentimentos. Se ignoramos as diferenças, estamos forçando mulheres a assumir cargos e trabalhos nos quais boa parte delas não serão felizes, talvez como executivas ou engenheiras. Muitas mulheres me disseram: “Graças a Deus você fez esse livro. Eu achava inaceitável aquilo que eu sentia”. É difícil para elas gostar de trabalhar com pessoas, mas saber que empregos assim não são tão bem pagos quanto os que envolvem lidar com “coisas”, como engenharia. A maioria das mulheres gosta de trabalhos como assistência social, pedagogia, profissões na área de saúde, mas salários nessas áreas costumam ser menores.
FOLHA – Mas, se as mulheres gostam de áreas que pagam menos, não há nada a fazer, então?
PINKER – Precisamos remunerar melhor as mulheres pelos trabalhos que elas preferem. Ou seja, começarmos a pagar aos professores tanto quanto pagamos aos engenheiros. Muitas mulheres esperam que as suas conquistas sejam reconhecidas sem que tenham de pedir aumentos. E, por isso, têm menos chances de ver os seus salários subindo. Se eu sou um chefe e recebo um homem em meu escritório dizendo “veja o que estou fazendo, eu mereço um salário maior”, tenho mais propensão a oferecer um aumento a ele do que a outra pessoa que faz o seu trabalho sem reclamar.
FOLHA – O que a sra. pensava sobre as diferenças de gênero quando era jovem? Leu Simone de Beauvoir?
PINKER – Sim, claro, como todo mundo naquela época. Estamos em um ponto alto do movimento feminista. Quando eu estava na universidade, no final dos anos 1970 e começo dos 1980, a expectativa era que homens e mulheres fossem idênticos, que nós deveríamos fazer as mesmas coisas, trabalhar a mesma quantidade de horas, no mesmo tipo de emprego, ter o mesmo tipo de vínculo emocional com o trabalho doméstico e com as outras pessoas. Eu acreditava muito nisso, li todos os livros das principais feministas. Foi só quando eu fui trabalhar e quando meus filhos nasceram que percebi que havia um buraco entre a minha abordagem intelectual do assunto e os meus sentimentos.
FOLHA – Então deveríamos agora esquecer “O Segundo Sexo” [livro de Simone de Beauvoir, de 1949, marco do feminismo]?
PINKER – “O Segundo Sexo” era interessante em sua época, mas está ultrapassado. A ciência avançou muito desde então. Não tínhamos ressonância magnética nem o mapeamento do genoma humano, não sabíamos metade do que sabemos hoje. Hoje estamos entendendo como os hormônios afetam os comportamento humano.
FOLHA – Como foi a experiência da sra. em um kibutz?
PINKER – Eu tinha 19 anos e fiquei um ano num kibutz porque eu era socialista. Era um lugar interessante para perder noções irrealistas. Existiam trabalhos que a maioria das mulheres não queriam fazer, que exigiam muito esforço físico ou eram perigosos. Existia uma divisão natural de trabalhos por sexo, ainda que os kibutzim tivessem sido planejados para que isso não existisse.
FOLHA – Quando Summers perdeu o cargo em Harvard após dizer que a falta de mulheres em ciência é questão de aptidão, o que a sra. pensou?
PINKER – Foi assustador, porque eu tinha acabado de decidir escrever o meu livro quando vi o que aconteceu a esse pobre homem. Ele foi atacado simplesmente por comentar as evidências que a maioria das pessoas que trabalham com biologia e antropologia evolutiva vêm dizendo há anos.

Pessimismo com os Estados Unidos e com o mundo contemporâneo.

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Autor: Maria da Conceição Tavares – Professora da UFRJ e da Unicamp – Valor Econômico – 06/11/2009.

Fiel ao seu estilo questionador e arrebatado, a economista Maria da Conceição Tavares continua contestando as apostas dos mercados financeiros. “A crise não acabou”,
alerta a decana dos economistas brasileiros e representante da tradição crítica do pensamento econômico latino-americano, no melhor estilo de Celso Furtado.

“Com a subida das bolsas, fica todo mundo no oba-oba e parece que passou. O mau sintoma é justamente a bolsa ter refluído, os bancos terem voltado a ganhar dinheiro. Isso é simplesmente aparência.”

Conceição, como é sempre chamada, fala com ceticismo sobre as perspectivas da economia americana. “O Estado está tendo de sustentar como um Hércules todo um sistema falido, mas não consegue fazer as coisas mudarem de rumo, não tem se mostrado ativo. Está fraco e isso é ruim.”
A seu ver, o governo Obama não está tendo apoio suficiente para fazer as mudanças necessárias. “Não dá para fazer reforma da saúde porque os laboratórios e os seguros de saúde não querem. Não dá para fazer reforma financeira porque os bancos não querem. Como é uma sociedade de lobby pesado, fica difícil reformar.”

Os Estados Unidos não têm, aparentemente, uma “saída boa”, diz. Para ela, todas as indicações de estagnação mais longa estão presentes na economia americana, o que coloca a liderança do país sobre a economia mundial em xeque. “Eles não têm mais liderança nenhuma. Têm peso político, diplomático e militar. Mas isso não é liderança. É império. Não têm como resolver seus problemas [financeiros e militares], nem conseguem avançar. São um império congelado.”

Conceição se diz pela primeira vez otimista com o Brasil de Lula. “Ele é um gênio político.” Mas adverte que o problema básico da economia brasileira, no momento, é o câmbio. “O Brasil não pode continuar engolindo dólares.”

Conceição tem 55 anos de Brasil. Chegou em fevereiro de 1954, casada com o engenheiro português Pedro Soares. A filha Laura nasceria meses depois. Naturalizou-se em 1957. Seu segundo marido, Antonio Carlos Macedo, professor de ciências biológicas da UFRJ, é o pai de Bruno, 44 anos. É amistoso seu relacionamento com os ex-maridos.

Portuguesa de Anadia, nascida em 24 de abril de 1930, formada em matemática em Lisboa, Conceição conta que optou pela economia influenciada por três clássicos do pensamento econômico brasileiro: Celso Furtado (1920-2004), Caio Prado Jr. (1907-1990) e Ignácio Rangel (1908-1994) – que a despertou para as questões relacionadas ao capital financeiro. “Eles marcaram profundamente minhas ideias.”

Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Conceição foi aluna de Octávio Gouvêa de Bulhões (1906-1990) e Roberto Campos (1917-2001). Escreveu centenas de artigos e vários livros, dos quais o clássico dos clássicos é “Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações no Brasil – Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro”, de 1972. O texto original foi escrito no fim dos anos 1960, quando chefiava o escritório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) no Brasil. Na época da ditadura militar, autoexilou-se no Chile, depois de escapar da prisão graças à intervenção de Mario Henrique Simonsen, seu ex-aluno, ministro do governo Geisel.

Teve rápida passagem pelo MDB, então partido de oposição à ditadura militar. Em 1994, foi eleita deputada federal pelo PT do Rio de Janeiro, ao qual continua filiada. Aposentou-se como catedrática do Instituto de Economia da UFRJ, onde é professora emérita, e da Universidade de Campinas (Unicamp). Mas permanece ativa, dando cursos de economia internacional no Instituto Rio Branco e aulas na pós-graduação da UFRJ.

No momento, Conceição trabalha num ensaio sobre a América do Sul para um livro que José Luís Fiori, também professor na UFRJ, ex-aluno, a quem conhece desde o exílio, pretende lançar em 2010 sobre questões econômicas, financeiras e sociais da região, temas aos quais sempre esteve ligada.

Mesmo com problemas de bronquite por causa do cigarro – quando deputada, operou um nódulo benigno no pulmão – Conceição ainda consome dois maços por dia. Não tem intenção de parar. Diz que morrerá se deixar de fumar. “Para minha idade, estou ótima”, avalia a economista de palavra sempre apaixonada, que pretende comemorar seus 80 anos, em 2010, com os dois filhos, dois netos e os muitos amigos e admiradores.

Valor: Quais lições podemos tirar da crise ?
Maria da Conceição Tavares: A crise ainda não passou e não deu as lições . Nos Estados Unidos já tem um pessoal dizendo que o gasto fiscal é muito, que isso acaba dando inflação e tem que parar. Se parar o gasto fiscal, como é a única componente ativa que vem sendo acionada pelo governo Obama, as coisas não vão melhorar. Todos os sintomas estão ainda muito embaralhados. E aí sobe a Bolsa de Valores, porque houve uma pequena bolha e o pessoal já começa a dar vivas . O desemprego também não terminou, e há muita capacidade ociosa. Então, todas as indicações que apontam para uma estagnação mais longa estão lá presentes. Não houve nenhuma mudança estrutural até agora para reverter a crise.

Valor: Como fica, então, o papel do Estado neste momento?
Conceição: O Estado americano está fraco. Não está ativo. E está botando o dinheiro todo em cima dos bancos e também em cima do seguro social, do desemprego que subiu muito. Todo o sistema falido, ele sustentando, feito um Hércules, e não está fazendo essa coisa tomar rumo. É um estado fraco, desse ponto de vista. E isso é ruim, porque denota que o governo americano não tem realmente força. Não tem apoio, nem na sociedade, que é dilapidada pelo neoliberalismo, nem no “establishment”. Então, não dá para fazer a reforma da saúde porque os laboratórios e os seguros-saúde não querem. Não dá para fazer reforma financeira porque os bancos não querem. Como é uma sociedade de lobby pesado, não tem como reformar. E não tem mecanismos de demanda efetiva do lado do setor privado para aumentar o emprego. O que não é bom.

Valor: Isso significa que a liderança dos Estados Unidos sobre a economia mundial está em xeque?
Conceição: Está. Não tem mais liderança nenhuma. Eles têm peso político, diplomático e militar. Mas isso não é liderança. É império. Eles têm um poder imperial sustentado num poder militar e financeiro. A iniciativa diplomática e militar só visa manter com mão de ferro o que já conquistaram. Mas não têm como resolver os problemas, nem avançar . Os Estados Unidos não podem tomar iniciativa militar em mais lugar nenhum. Primeiro, quem vai pagar e, depois, quem vai dar o apoio? É o império congelado.

Valor: Essa fraqueza americana pode arrastar o mundo para onde?
Conceição: É uma fraqueza sistêmica. O sistema era todo estruturado por eles. Como estão débeis, o sistema fica com um peso morto muito grande. Só tem possibilidade de sair quem tem dimensão para sair, como os BRICs. O que vão fazer o México, a Argentina, o Chile? São todos atrelados à economia mundial. Quem está puxando o comércio é a Ásia. A Alemanha não está puxando mais nada. Se a Europa e os Estados Unidos puxam para baixo, só sobra a Ásia.

Valor: E a China, especificamente?
Conceição: Os chineses estão tentando substituir os americanos nos investimentos em matérias-primas que eles precisam. Estao investindo em toda parte. Em petróleo, em infraestrutura na África. Aqui na América Latina estão vindo para tudo. Siderurgia, portos. Estão fazendo um movimento de expansão não pelo comércio apenas, mas principalmente via investimento direto. Isso é que é novidade. Sobretudo na África. Coitados dos africanos. Saem de um imperialismo e entram em outro.

Valor: A China teria a liderança?
Conceição: O mundo caminha para uma multipolaridade.

Valor: Então, nesse mundo a China pode vir a ser uma liderança ?
Conceição: Aí entra outra questão. Como se resolve o nó do entrelaçamento entre China e Estados Unidos? É uma simbiose. A China tem resolvido não ser agressiva com os Estados Unidos. Do ponto de vista diplomático e militar, tem estado “low profile”. Não está dizendo que os Estados Unidos são um “tigre de papel”, como na época do Mao. É consenso em Pequim que não é para enfrentar os Estados Unidos. Mas eles têm que resolver esse impasse. O que fazem? Compram ativos dos Estados Unidos? Foi o que o Japão fez e se deu mal. E é claro que eles viram o Japão fazer isso e não vão fazer. Então, estão vindo pela periferia. Que é o correto. O Japão saiu da periferia para investir nos Estados Unidos, disparado. Os chineses não estão fazendo isso. Eles têm participação daqueles fundos soberanos em várias coisas. No Citi, por exemplo. Fazem essas aplicações para sustentar os dólares que têm, para ter alguma aplicação.

Valor: China e Estados Unidos vão se pôr de acordo para garantir uma saída da crise?
Conceição: Difícil. Não vejo nenhuma semelhança de estrutura política e ideológica. São muito dessemelhantes. Se não vão se pôr de acordo, como vai ser? A China abre mão crescentemente do mercado americano e aumenta o mercado no resto do mundo. Ela pode fazer isso. Os Estados Unidos vão fazer o quê? Estão no mundo inteiro, mas são uma potência comercial declinante.

Valor: Vão se voltar para o mercado interno?
Conceição: É o que deveriam fazer, como prometeu Obama, mas aí têm que resolver primeiro a situação da regulação do sistema bancário, das empresas e do desemprego.

Valor: Qual o papel dos BRICs na recuperação da economia global?
Conceição: Vão ter papel importante, porque têm peso específico. Não podem estabelecer uma política comum, porque são estruturas diferentes. Somos uma economia mista, a China é estatal, a Rússia era tudo privado, quebrou tudo, e está em processo de reconstrução pelo Estado. O Brasil não é potência militar, mas tem tomado muitas iniciativas na política externa e vai bem na crise.

Valor: Ben Bernanke, presidente do Fed, anunciou que pode aumentar os juros.
Conceição: Coisa sem pé nem cabeça. A dívida externa e a dívida pública deles, gigantescas, vão ficar caríssimas. Eles estão querendo fazer isso porque estão com medo da inflação. Inflação de demanda não é, porque não tem demanda efetiva. Inflação de custos de matéria-prima também não é, pois não está tendo nenhuma explosão de matéria-prima. Acho que o Bernanke está com medo é de que rejeitem a dívida pública. Ninguém está querendo comprar aqueles papéis [títulos do Tesouro]. Uma forma de atrair investidores seria subir os juros. Mas tudo isso são perfumarias. Não vai para lugar nenhum. A raiz do problema seria a reforma do sistema bancário.

Valor: O que mais, além dessa reforma, o governo americano teria que fazer?
Conceição: Reforçar o papel do Estado e fazer um ajuste global que teria que ser negociado com a China. Os dois países teriam que acertar um acordo na área comercial. Mas não há negociação entre os dois. Os Estados Unidos não têm aparentemente uma saída boa. O Obama está falando no vazio. É por isso que os conservadores prenunciam um golpe.

Valor: Existe esse risco?
Conceição: O primeiro risco que existe é que o matem. Esse é um risco clássico nos Estados Unidos. E existe o risco de ele não se reeleger. Fico com muita pena. Ele seguramente não é o cara. Parecia, mas não é.

Valor: Como as dificuldades vividas pelo Estado americano podem impactar o mundo?
Conceição: Vai depender do resto do mundo. Vamos tentar esquecer um pouco os Estados Unidos. Temos que buscar construir outras lideranças. O ideal é que houvesse um acordo mínimo entre todos os grandes, para aliviar a crise e resolver o problema global. Bastava o G-20, bastavam os 20 se porem de acordo. Mas não há acordo.

Valor: E o dólar?
Conceição: Não dá ainda para tirar o dólar [de seu papel de moeda de reserva internacional]. O dólar está fraco. Os países, em geral, se pudessem, saiam do dólar. Está ruim acumular reservas em dólar. O problema é com os que já estão acumulados, como os BRICs, sobretudo a China.

Valor: O que a China vai fazer com US$ 2 trilhões de reservas?
Conceição: Está empacada. E os títulos americanos que ela detém servem de lastro às reservas. Ela não tem como vendê-los no mercado. Está com um mico na mão. É um patrimônio morto. Não tem o que fazer com as reservas. É como se tivesse no cofre, de um lado, o patrimônio futuro, de fábricas, de realizações etc. e, do outro, um montão de estrume que não pode jogar fora.

Valor: O que pode vir daí ?
Conceição: Prevejo uma coisa arrastada, prolongada, com crises que vêm uma atrás da outra, uma bolha disso, uma bolha daquilo.

Valor: Qual a próxima bolha?
Conceição: A bolsa. Já temos uma aí montada, é a bolsa, que voltou a subir. O pessoal está investindo pesado. Mas isso mostra que o sistema está frágil, ao contrário do que julgam, não é um bom sinal. É um mau sinal. Aqui, no Brasil, por exemplo, na Bovespa, o grosso do dinheiro que está vindo de fora pra cá é pra bolsa. Não é para investimento direto no sentido autêntico da palavra. Direto, vieram US$ 11 bilhões e para a bolsa vieram US$ 17 bilhões, este ano.

Valor: Qual seria a consequência dessa bolha?
Conceição: Volta de novo a afundar. Aí vem nova bolha. Se o mercado de commodities estiver melhor, vão fazer bolha de commodities. Podem fazer outra vez bolha em cima do petróleo. Acho que vamos de bolha em bolha.

Valor: Então, a crise não acabou….
Conceição: É uma falsa euforia. Provavelmente o governo americano vai ter que parar de ajudar o setor privado, pois o déficit fiscal já está em 17% do PIB. Como já socorreram no limite, já gastaram trilhões de dólares, na próxima crise não vão poder socorrer. Foi o que aconteceu no decorrer da crise de 1929. Em 1931 e 1932, nada mudou. Só ocorreu mudança no sistema financeiro depois, quando teve outra crise bancária, em 1933. Na primeira crise ninguém se deu conta, pois despejaram toneladas de dólares em cima dos bancos. Como agora.

Valor: A história pode se repetir?
Conceição: A crise atual começou em 2007 com os empréstimos “subprime”. Em 2008 foi o auge. E agora, neste segundo semestre, está com ares de que se vai respirar. Em 2010 pode haver uma recuperação, mas em 2011 ninguém sabe o que pode acontecer.

Valor: Como o Brasil ficaria com uma reforma bancária nos Estados Unidos?
Conceição: O Brasil tem um sistema financeiro público e privado. E os bancos privados não entraram em crise. Já tinham entrado em crise com o Fernando Henrique. Aí limparam e não deixaram de manter o controle. Não temos um sistema financeiro que opera “à la livre”. Não existe isso. Temos regulação. Nosso problema básico é o câmbio. Tem que dar um jeito. A coisa cambial vai mudar no próximo governo. Não teremos mais esse presidente no Banco Central, e nem Dilma, nem Serra estão a favor dessa política cambial.

Valor: Obama disse que o cara é o Lula…
Conceição: É. O Lula, um gênio político, mistura de Vargas e JK, uma liderança do povo brasileiro que tem uma sorte danada, ademais de ser muito competente. Tem que ter competência e sorte. As coisas têm que estar a favor.

Valor: Como é sua avaliação do governo Lula?
Conceição: Muito boa. Esta é a minha avaliação e de 70% da população. Na verdade, só a classe média dita ilustrada e a grande imprensa são contra. Contra também não sei o quê. Caiu a inflação. Portanto, mantiveram a política econômica dura que diziam que não iam manter, mas mantiveram. Contra meu ponto de vista. Perdi a parada, mas fico contente que tenha perdido, porque naquela altura ia ser complicado. Como estava tudo fora do lugar, era muito ousado fazer uma política alternativa no início do primeiro mandato. Do ponto de vista da política macro, eles começaram a fazer coisas no segundo mandato. Mas não creio que vão terminar. Fizeram o correto na infraestrutura, contemplando obras nas regiões Norte e Nordeste, como a ferrovia Transnordestina, a Norte-Sul, a transposição do rio São Francisco e portos. O PAC é uma seleção de projetos muito pesada e muito boa, de que não convém desviar. Também acertaram na política social, com o Bolsa Família. O governo Lula está tocando três coisas importantes: crescimento, distribuição de renda e incorporação social. E ainda por cima fez uma política externa independente. Por que acha que ganhamos a Olimpíada? [a escolha do Rio de Janeiro para sede dos jogos, em 2016]. Porque passamos a ter prestígio de fato lá fora.

Valor: Como vê a questão ambiental no mundo e no Brasil, às vésperas da reunião de Copenhague?
Conceição: Para variar, os Estados Unidos não assinam meta nenhuma. O país de Obama, digo, o Departamento de Estado, não assina nada. O problema ambiental está complicado e complexo. No Brasil, independente do desmatamento da Amazônia, a floresta vai sofrer com o aquecimento global. Mas a coisa da Amazônia, no nosso caso, é importante e é difícil. Mas não somos decisivos para o aquecimento global. Decisivos são os Estados Unidos e a China.

Valor: A exploração do petróleo das camadas do pré-sal pode impactar as boas intenções ambientais do Brasil?
Conceição: Começamos com a ideia do verde, o álcool combustível, mas, agora que veio o pré-sal, ninguém fala mais nisso. Agora, tudo vai depender do próximo governo.

O caráter cíclico da intervenção como parte de um processo político

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Autor: Luiz Carlos Bresser Pereira – FGV – Valor Econômico – 09/10/2009

Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor da Fundação Getúlio Vargas, defende o modelo proposto pelo governo para a exploração do petróleo no pré-sal como única forma de neutralizar os riscos da “doença holandesa” – conceito econômico com o qual se tenta explicar a aparente relação entre a exploração de recursos naturais, a elevação da renda de um país, a valorização da moeda e o declínio do setor manufatureiro, como aconteceu na Holanda nos anos 1960, depois da descoberta de grandes jazidas de gás natural no Mar do Norte. Ex-ministro da Fazenda no governo José Sarney, da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia no primeiro e segundo mandatos de Fernando Henrique Cardoso, respectivamente, Bresser considera que os setores tipicamente monopolistas devem ser alvo, senão de controle direto do Estado, de um grau de regulação muito grande. Não vê, porém, nenhuma incompatibilidade entre interesses de Estado e da iniciativa privada, que, em sua opinião, podem, e mesmo devem, ser confluentes.

A seguir, trechos da entrevista que Bresser-Pereira concedeu ao Valor.

Valor: O modelo proposto pelo governo para a exploração do pré-sal conflita com os interesses do setor privado?
Luiz Carlos Bresser-Pereira: A ideia de que existe um conflito entre Estado e mercado é parte de uma agenda neoliberal. E uma tolice. Quando escrevi “O caráter cíclico da intervenção estatal”, em 1989, isso ainda não estava tão claro. Em 2005, no artigo “Assalto ao Estado e ao mercado”, essas ideias ganharam forma. Sugiro que o neoliberalismo foi um assalto ao Estado e ao mercado. Diferentemente do liberalismo, que surgiu do interesse de uma classe média burguesa contra a aristocracia militar, os “terratenientes” e o Estado autocrático, o neoliberalismo é uma ideologia dos ricos contra os pobres, contra os trabalhadores e contra o Estado democrático. Quando o Estado começa a intervir na produção de bens e serviços, é possível que conflite com o mercado. Mas o que se observa do Estado atualmente é que isso só acontece na fase inicial, que Marx chamava de acumulação primitiva do capital e não caracteriza uma situação de conflito: interessa muito aos empresários e à sociedade iniciar seu processo de desenvolvimento.

Valor: Há, então, compatibilidade de interesses?
Bresser-Pereira: Em todos os países capitalistas, o desenvolvimento do mercado e do Estado se dá em paralelo. O Estado pode aumentar sua participação na renda por meio da carga tributária. Quanto mais desenvolvido um país, maior a carga tributária, porque maior é a demanda de solidariedade na sociedade, do ponto de vista dos gastos sociais, culturais e científicos. Para se legitimar as democracias modernas, é preciso um Estado que garanta um grau de solidariedade ou de igualdade na sociedade.

Valor: De que maneira o Estado se desincumbe dessa tarefa? E a qual Estado, formalmente falando, o sr. se refere?
Bresser-Pereira: A última ideia a que cheguei a respeito do assunto – e esse é um tema sobre o qual não se tem conclusão nunca – foi em relação à regulação. Naqueles dois “papers” deixo claro que o papel fundamental de coordenar uma sociedade capitalista cabe ao Estado. O Estado, para mim é, em primeiro lugar, a ordem jurídica, a Constituição. E, depois, a organização, o sistema constitucional legal e a administração pública, o aparelho que garante essa ordem jurídica. O papel fundamental de coordenação de toda a sociedade cabe ao Estado. Mas, na parte econômica, esse papel também é exercido por uma instituição chamada mercado, que está longe de ser perfeita, mas é maravilhosa. Sem mercado não teríamos a menor condição de desenvolver economias complexas como a que temos hoje. Esse mercado precisa ser regulado pelo Estado. Não existe mercado sem regulação. Até para constituí-lo é preciso regular. Mas pode-se pensar o seguinte: na medida em que uma sociedade se desenvolve e se torna mais complexa, mais agentes econômicos participam do mercado e mais perfeita será a concorrência. Isso é uma tolice imensa. Quanto mais complexa a sociedade se torna, mais necessária é a regulação. Veja-se o exemplo da crise do ano passado. Portanto, quanto maior o grau de desenvolvimento do país, maior será a demanda de igualdade e maior será o papel do Estado na área social e maior será a regulação. A ideia é que a regulação é fundamental e fortalece o mercado, ao invés de enfraquecê-lo. O neoliberalismo foi um assalto ao Estado e ao mercado porque desmoralizou o mercado. Não deixou que o mercado funcionasse bem.

Valor: O sr. segue defendendo o caráter cíclico da intervenção estatal?
Bresser-Pereira: Não tenho dúvidas quanto a isso, mas esse grau de regulação, ou de intervenção, aumenta e diminui por meio de um processo político. Em certo momento, aumenta porque é bem-sucedido. É função fundamental do Estado fazer investimentos em infraestrutura. Os setores tipicamente monopolistas devem ser alvo, senão de controle direto, de um grau de regulação muito grande. Assim, num certo período, o Estado aumenta a regulação e o investimento público em certos setores. Depois disso, a sociedade começa a protestar. Sempre teremos pessoas mais liberais e mais protecionistas. É preciso um equilíbrio. Em 1989, eu já previa o colapso do neoliberalismo e a retomada do liberalismo. O Brasil não está mais na fase de acumulação primitiva, o setor privado já tem capacidade de investir em todos os setores – e me refiro ao setor privado nacional. Acho que essa história de que o setor privado nacional e o estrangeiro são a mesma coisa é uma loucura. É “non-sense”. São diferentes.

Valor: Por que se deve fazer essa distinção?
Bresser-Pereira: É claro que, nos anos 2000, o Estado não vai investir em siderurgia, em petroquímica, áreas em que o setor privado tem capacidade de investimento. Mas isso não significa que o Estado não deva investir em infraestrutura e, especialmente, que não tenha total controle sobre a mineração, particularmente sobre a mineração de petróleo. Pode chamar isso de nacionalista. Sou nacionalista, graças a Deus, como todos os americanos que conheço são nacionalistas, e todos os franceses e todos os suecos. Aqui no Brasil, encontro um monte de gente que não é nacionalista. Nesses países não encontro ninguém. Todos acreditam que o papel do governo é defender o trabalho, o capital e o conhecimento nacionais. E, para isso, deve usar sua própria cabeça e não a de seus concorrentes mais ricos. Isso, para mim, é o nacionalismo.

Valor: E por que o controle sobre a mineração?
Bresser-Pereira: As atividades puramente monopolistas devem ficar com o Estado ou com uma regulação e controle social muito grande. Distribuição de energia elétrica na cidade de São Paulo, por exemplo: não tem concorrência. Ou é do Estado ou tem que ser muito bem regulado, muito bem controlado, os lucros têm que ser transparentes e os bônus dos diretores, conhecidos. Estão exercendo uma atividade que o mercado não controla. No caso da mineração, não. O petróleo é competitivo e a mineração de ferro é competitiva.

Valor: Por que se recomenda atenção especial do Estado se existe essa competitividade?
Bresser-Pereira: Porque tem uma coisa chamada rendas ricardianas. Houve um grande economista inglês, David Ricardo, que descobriu, lá por 1800 e poucos, uma coisa chamada renda da terra, que é o aluguel que os proprietários das terras mais férteis recebem por serem proprietários, quando o preço do bem é determinado pelas terras menos férteis. O que ele imaginava – pensando, é claro, num Estado nacional – é que, à medida que a população vai crescendo, amplia a área de ocupação de terra. Primeiro, ocupa as terras mais férteis. Depois, as menos férteis e aí a produtividade cai. Produzir nessas terras custa mais, mas existe demanda. Então, o preço é determinado pela terra mais improdutiva. Se fosse assim, o arrendador das terras mais férteis teria um lucro danado, não fosse o fato de ele ser obrigado a pagar essa diferença ao proprietário da terra. Isso é a renda ricardiana.

Valor: A ideia da renda ricardiana está na base do projeto da partilha do governo Lula?
Bresser-Pereira: Sem dúvida, e estou muito feliz que isso tenha acontecido, porque eu expliquei que a doença holandesa é consequência de rendas ricardianas. Quando não há especulação, o preço do petróleo é determinado pelo custo de sua produção nos países que produzem com menor eficiência. O diferencial disso, que é uma enorme renda, é renda – e não lucro – que alguém tem que capturar. Como é que o país vai capturar essa renda? Não vai deixar que fique para a Shell ou para a Esso ou qualquer outra empresa privada. Há ainda um segundo problema: como é que vai capturar essa renda de maneira que não prejudique o resto da economia ou, ao contrário, que favoreça a economia? É possível capturar essa renda por meio de imposto e distribuir para a sociedade e aí todo o dinheiro entra junto com o imposto e a taxa de câmbio se aprecia muito e aí inviabiliza tudo. A alternativa é criar o fundo soberano: a taxa de câmbio não se aprecia – porque é a renda ricardiana que causa a doença holandesa -, a indústria se desenvolve e o país internaliza aos poucos os rendimentos desse fundo. A doença holandesa é uma imensa falha de mercado. O Estado precisa intervir. Essas ideias estavam esquecidas. Os economistas convencionais se esqueceram da doença holandesa e passaram a falar mal dos recursos naturais, da corrupção que resultava na partilha do imposto que se cobrava das empresas produtoras de petróleo. O fato é que esta é uma questão política – ou, melhor ainda , moral. Esquecem-se do aspecto econômico. O problema moral deve ser tratado pelo Código Penal. É preciso impedir que a taxa de câmbio se aprecie, para que as indústrias boas e competentes continuem competitivas. Não podem ser expulsas do mercado porque nós agora temos petróleo. Apresentei essas ideias em 2005, num primeiro artigo que resultou num debate nacional. Quando o Lula lançou o projeto, falou em doença holandesa. Ou seja: eles estão levando em conta o problema da doença holandesa, o que acho admirável, e estão conscientes de uma coisa que a teoria convencional disfarça com essa história de reduzir o problema à corrupção e esquecer o resto.

Valor: O projeto do pré-sal é, então, a política correta para evitar a doença holandesa?
Bresser-Pereira: Para neutralizar a doença holandesa, é muito melhor um esquema de partilha do que um sistema de “royalties”, mas precisa de uma empresa estatal, a Petro-Sal, e precisa de um fundo soberano. As três coisas.
Meu entendimento é que o dinheiro vai para o fundo e só os rendimentos desse fundo é que devem entrar no Brasil. Se colocar aqui o dinheiro todo, valoriza o dólar de qualquer forma. Tem que deixar lá fora. Hoje, uma coisa importante para o Brasil é estimular as empresas brasileiras a investir lá fora. Isso é tirar dólar. Temos dólar sobrando, ienes, euros. Estão nos inundando. Querem nos afogar em poupança externa. (CI)

Redução do papel do Estado na economia sempre foi mito

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Autor: Linda Weiss, professora da Universidade de Sydney (Austrália)

Para especialista em desenvolvimento, Linda Weiss, da Universidade de Sydney (Austrália), compras militares dos EUA são maior exemplo de política industrial que gerou inovação tecnológica
A PESAR de todas as manchetes sobre a volta do Estado à economia, ele nunca se retirou, e os EUA são o maior exemplo disso, afirma Linda Weiss, especialista em desenvolvimento e professora do Departamento de Governo e Relações Internacionais da Universidade de Sydney (Austrália). Weiss cita especificamente a política de inovação tecnológica americana, organizada por meio de encomendas da área militar do governo, como exemplo do que chama de “ativismo estatal” que nunca diminuiu nas economias mais ricas.

Weiss afirma que a China está adaptando o modelo americano para começar a produzir tecnologias próprias, e sugere que o Brasil estude o exemplo.
Ela deu entrevista à Folha depois de participar, no Rio de Janeiro, de seminário no Instituto de Economia da UFRJ sobre Reposicionamentos Estratégicos, Políticas e Inovação em Tempo de Crise. Abaixo, os principais trechos.

FOLHA – A senhora diz que não é possível falar em volta do Estado à economia porque ele nunca foi embora. Pode explicar?
LINDA WEISS – A ideia predominante no debate sobre a globalização e a sua relação com as opções de política econômica é que o Estado foi posto numa camisa de força e recuou da economia.
Fez isso para atrair investimentos num mundo de capitais móveis. O melhor governo é o que reduz impostos e regulações. O Estado atua nas margens da economia, sem presença ativa e muito menos desenvolvimentista. Contesto essa ideia olhando para o que os Estados mais poderosos vêm fazendo.

FOLHA – E quais são os principais exemplos?
WEISS – O primeiro é o paradoxo de que a desregulamentação requer rerregulamentação. Por exemplo, o governo privatiza, mas acaba se tornando muito ativo na arena regulatória, criando agências.
Isso de certo modo aumentou o envolvimento do Estado, sem necessariamente passar pelas autoridades executivas, que têm que responder ao eleitorado.

FOLHA – Mas, no mercado financeiro, houve menos regulamentação, não? WEISS – Houve uma opção por não regulamentar. Foi uma opção movida a razões nacionalistas, porque tanto o Reino Unido quanto os EUA viam o setor financeiro como o que liderava a projeção do seu poder na arena econômica internacional.
Com Wall Street de um lado e a City do outro, para eles fazia sentido ser liberais.
O Japão fez o mesmo, de modo diferente. Ao desregulamentarem o setor financeiro, os burocratas quiseram manter sua presença e escreveram as regras com esse objetivo, sem permitir mais autorregulamentação.
Além disso, há uma forma de ativismo que é a intervenção recorrente do Estado para resgatar o sistema bancário em crises. O que vemos hoje não é excepcional, é parte do padrão da internacionalização das finanças nos últimos 200 anos.

FOLHA – Que outros exemplos a senhora reuniu?
WEISS – Um fundamental é no campo da inovação e da tecnologia. Na OMC (Organização Mundial do Comércio), os Estados líderes escreveram normas que lhes dão margem para promover sua indústria nascente, ao mesmo tempo em que reduziram essa margem para países em desenvolvimento.
As regras da OMC permitem políticas de subsídio à ciência e tecnologia, que é a forma da indústria nascente nas chamadas economias de conhecimento intensivo.
Você vê intervenções muito focadas dos governos dos Estados Unidos, da Europa e do Japão no setor de alta tecnologia, incluindo comunicação e informação, novos materiais, novas energias. São áreas vistas como plataformas de sua prosperidade futura.

FOLHA – Como a senhora compararia o ativismo estatal nos EUA e na Europa com o na Ásia?
WEISS – Eu diria que o ativismo asiático está acima do radar, os países da região não se envergonham de mostrar que têm política industrial. As populações também apoiam o uso do poder do Estado na economia.
No caso dos EUA, não há consenso sobre o ativismo estatal.
Então, ele aparece abaixo do radar. A área que explica de onde vieram as inovações nos EUA, país que é líder em alta tecnologia, é a máquina de encomendas ligada ao setor militar.
Os EUA construíram um sistema formidável de inovação baseado no fato de responderem por 50% dos gastos militares mundiais. Dessa forma existe apoio popular e político, porque a linguagem usada é a da segurança nacional. Esse sistema de encomendas públicas de inovações é tão importante que os europeus agora estão vendo como podem adaptar a seu próprio setor civil. A China está fazendo a mesma coisa.

FOLHA – Como a China está seguindo o exemplo dos EUA?
WEISS – A China, por exemplo, quer desenvolver sua própria indústria de software e está usando encomendas de tecnologia para isso. Ela está definindo o que é uma empresa chinesa com base no “Buy American” [cláusula do pacote de estímulo econômico aprovado nos EUA no início deste ano].
Para o “Buy American”, uma empresa americana tem pelo menos 50% de capital americano, está baseada nos EUA e usa trabalhadores americanos. Essa é a definição que os chineses estão usando em sua estratégia de compras governamentais, com o objetivo de construir sua própria indústria de alta tecnologia. [No Brasil, a emenda constitucional nº 6 acabou em 1995 com a distinção entre empresas de capital nacional e capital estrangeiro].

FOLHA – Apesar do ativismo estatal, o Estado de bem-estar social diminuiu?
WEISS – Quando olhamos os números da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, que reúne cerca de 30 países industrializados], vemos que o Estado previdenciário na verdade cresceu.
O gasto total aumentou em média de 26% para 40% do PIB entre 1965 e 2006. E o componente social desse gasto aumentou de 15% para 22% em 30 anos. Houve reestruturações no destino do dinheiro, mas não declínio.

FOLHA – Mas o Estado como produtor recuou, não?
WEISS – Sim, claro. Mas é enganoso ver isso como enfraquecimento do Estado. Quando os serviços eram públicos, qual era o papel do Estado, afinal?
Mandar contas de luz e gás?
Não era exatamente um ator no sentido do desenvolvimento.

FOLHA – A resistência que vemos hoje nos EUA ao envolvimento estatal com o sistema de saúde não é paradoxal?
WEISS – Esse debate mostra que o sistema político americano não legitima um programa civil de tecnologia. O Programa de Tecnologia Avançada, civil, teve vida curta no governo Clinton [1993-2001] e recentemente perdeu seu orçamento.
É principalmente por meio do setor militar que são criadas estruturas híbridas, agências com função de investimento e que não são nem puramente públicas nem privadas em seu comportamento. Elas fazem essas encomendas de alta tecnologia.

FOLHA – E como os produtos chegam ao mercado civil?
WEISS – Não há uma cerca entre a Defesa e o setor civil. A CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA), por exemplo, tem seu próprio fundo de investimento e assume participações em empresas privadas. Financia tecnologia que é usada para objetivos militares, mas também tem que ser viável comercialmente.

FOLHA – Que observações a senhora fez sobre a posição do Brasil nesse debate?
WEISS – Foi interessante ouvir outro dia que a política industrial brasileira tem dois pontos problemáticos: a falta de uma política agressiva para a exportação de manufaturados e a política de compras governamentais, que não teria decolado.

Sugiro trazer o caso americano para debate no Brasil. As compras governamentais são um instrumento poderoso de desenvolvimento. O importante é separar as compras ordinárias, como papel e mobília, das encomendas de tecnologia, de algo que ainda não existe.

Nisso você estabelece uma competição entre quem pode produzir tal coisa e como o Estado pode ajudar. Não é só o governo dizendo como deve ser, mas há uma interação.
De um só programa americano, o Small Business Innovation Research Program, de onde vieram nomes como a Microsoft, centenas de firmas receberam financiamento. Não são somas grandes, poderiam ser US$ 750 mil, por exemplo, para levar a tecnologia da fase da ideia na cabeça ao protótipo.

O programa foi lançado em 1982, quando nos EUA temia-se perder a corrida tecnológica para Japão e Alemanha, e envolve muitas agências governamentais, incluindo o Instituto Nacional de Saúde -que faz encomendas ao setor farmacêutico e de biotecnologia-, a Nasa e a Defesa.

Punir mais só piora crime e agrava a insegurança

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FSP – 31/08/2009.
Autor: Massimo Pavarini – Professor da Universidade de Bolonha/Itália.

“É um pecado , uma ideia louca” a noção de que penas maiores de prisão aumentem a segurança. “Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança”, diz o italiano Massimo Pavarini, 62, professor da Universidade de Bolonha e considerado um dos maiores penalistas da Europa. Ele dá um exemplo: “Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime”.

Ligado ao pensamento de esquerda, Massimo Pavarini diz que essa ideia de punir mais teve como origem os EUA de Ronald Reagan, nos anos 80, e difundiu-se pelo mundo “como uma doença”. A eleição de Barack Obama à Presidência dos EUA pode ser um sinal de que esse ideário se esgotou, acredita. Pavarini esteve em São Paulo na última semana para participar do congresso do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), onde deu a seguinte entrevista:

FOLHA – O sr. diz que o direito penal está em crise porque o discurso pró-punição está desacreditado e a ideia de ressocialização não funciona. O que fazer?
MASSIMO PAVARINI – O cárcere parecia um invento bom no final de 1700, quando foi criado, mas hoje não demonstra mais êxito positivo. O que significa êxito positivo? Significa que o Estado moderno pode justificar a pena privativa de liberdade. Sempre se fala que o direito penal tem quatro finalidades:
serve para educar, produzir medo, neutralizar os mais perigosos e tem uma função simbólica, no sentido de falar para as pessoas honestas o que é o bem, o que é o mal e castigar o mal.
Após dois séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lugares do mundo.

FOLHA – O que fazer, então?
PAVARINI – As prisões já não produzem suficientemente medo para limitar a criminalidade. Todos os criminólogos são céticos. O direito penal fracassou em todas as suas finalidades. Não conheço nenhum teórico otimista. Isso não significa que não possa haver alternativas. Há um movimento internacional em busca de penas alternativas. O que se imagina é que, se a prisão fracassou, a pena alternativa pode ter êxito punitivo. Há penas alternativas há três décadas e, se alguma pode surtir efeito, foi em algum momento específico, que não pode ser reproduzido em um lugar com história e recursos econômicos diferentes.

FOLHA – Numa conferência, o sr. disse que o Estado neoliberal, que começou na Inglaterra e nos EUA, não pensa mais em ressocializar o preso, mas em neutralizá-lo. Por que morreu a ideia de recuperar o preso?
PAVARINI – Já se sabia que não dá para ressocializar o preso. O problema é outro. Existe uma obra bem famosa dos anos 70, chamada “Nothing Works” [nada funciona]. O livro foi escrito quando [Ronald] Reagan era governador da Califórnia [1967-1975]. Ele criou uma equipe de cientistas, de todas as cores políticas, e deu-lhes um montão de dinheiro. A pergunta era muito simples: você pode mostrar que o modelo de ressocialização dos presos tem um êxito positivo? Os cientistas pesquisaram muito e no final escreveram “nothing works”. A prisão não funciona nos EUA, na Europa nem na América Latina. Nada funciona se você pensa que a prisão pode reabilitar. Não pode. O cárcere tem o papel de neutralizar seletivamente quem comete crimes.

FOLHA – Ele cumpre esse papel?
PAVARINI – Pode cumprir. O problema é que a neutralização do inimigo, a forma como o neoliberal vê o delinquente, significa o fim do Estado de direito. O primeiro problema é que você não sabe quantos são os inimigos. Essa é a loucura.
Os EUA prendem 2,75 milhões todos os dias. Mais de 5% da população vive nas prisões. São 750 presos por 100 mil habitantes. Há ainda os que cumprem penas alternativas. Esses são 5 milhões. Portanto, são 7,5 milhões na América os que estão penalmente controlados. Aqui no Brasil são 300 presos por 100 mil habitantes.

FOLHA – Há teóricos que dizem que nos EUA as prisões se converteram em um sistema de controle social.
PAVARINI – Sim, isso ocorre. O setor carcerário nos EUA é quase tão forte quanto as fábricas de armas. Muitas prisões são privadas. É um bom negócio. O paradoxo dos EUA é que em 75, quando Reagan começa a buscar a Presidência, os EUA tinham 100 presos por 100 mil habitantes. Após 30 anos, a taxa multiplicou-se por oito. Os EUA não tinham uma tradição de prender muito. Prendiam menos do que a Inglaterra.

FOLHA – O senso comum diz que os presos crescem exponencialmente porque aumentou a violência.
PAVARINI – Isso é muito complicado. Se a pergunta é “existe uma relação direta entre aumento da criminalidade e aumento da população presa?”, qualquer criminólogo do mundo, eu creio, vai dizer não. Os EUA não têm uma criminalidade brutal. Ela é comparável à criminalidade europeia. Eles têm um problema específico: o número elevado de casas com armas de fogo curtas. Um assalto vira homicídio.

FOLHA – Por que prendem tanto?
PAVARINI – Os EUA prendem não tanto pelo crime, mas por medo social. Essa é a questão. A origem do medo social é bastante complexa, mas para mim tem uma relação mais forte com a crise do Estado de bem-estar social do que com o aumento da criminalidade. É um problema de inclusão social. Os neoliberais dizem que não dá para incluir todas as pessoas que não têm trabalho, os inválidos, os que estão fora do mercado. Os criminosos são os primeiros dessa categoria. Uma regra que ajudou a aumentar a população carcerária foi retirada do beisebol: três faltas e você está fora. Em direito penal isso significa que após três delitos, que podem ser pequenos, você está preso. Você está fora porque não temos paciência para tratá-lo. Vamos eliminá-lo.

FOLHA – Eliminar é o papel principal das prisões, então?
PAVARINI – É um dos papéis. O direito penal é cada vez mais duro, as sentenças são mais longas, “life sentence” [prisão perpétua] é mais frequente, aplica-se a pena de morte.

FOLHA – Como essa ideia neoliberal funciona onde há muita exclusão?
PAVARINI – Vou dizer algo que parece piada: quando os EUA dizem uma coisa, essa coisa é muito importante. Podem ser coisas brutais, grosseiras, mas quem diz são os EUA. Como imaginar que na Itália e na França, que têm ótimos vinhos, os jovens preferem Coca-Cola?
Não se entende. É o poder dos EUA que explica isso. A ideia de como castigar, porque castigar e quem castigar faz parte de uma visão de mundo. Se a América tem essa visão de mundo, isso se reproduz no mundo.

FOLHA – É por essa razão que cresce o número de presos no mundo?
PAVARINI – Isso é um absurdo.
Dos 180 e poucos países do mundo, não passam de 10, 15 os que têm reduzido o número de presos. Na Itália, temos 100 presos por 100 mil habitantes.
Há 30 anos, porém, eram 25 por 100 mil. Aumentou quatro vezes em três décadas. Isso acontece na Ásia, na África, em países que não se pode comparar com os EUA e a Europa.
Creio que é uma onda do pensamento neoliberal, que se converte em políticas de direito penal mais severo. É engraçado que os EUA, nos anos 50 e 60, eram os mais progressistas em política penal, gastavam um montão de dinheiro com penas alternativas. Mas hoje as pessoas acham que o direito penal que castiga mais tem mais eficiência. Isso é desastroso. Nos EUA, o número de presos cresce também porque há um negócio penitenciário.

FOLHA – O que há de errado com esse tipo de negócio?
PAVARINI – Os EUA têm cerca de 15% dos presos em cárceres privatizados. É uma ótima solução para a empresa que dirige a prisão. Ela sempre vai querer ter um montão de presos, é claro, para ganhar mais dinheiro, e isso nem sempre é a melhor política. É um negócio perverso.
Os empresários financiam lobistas que vão difundir o medo.
É um desastre. Mas pode ser que tudo isso mude. Obama parece ter uma visão oposta à dos neoliberais e já demonstra isso na saúde pública, um tema ligado à inclusão social. O difícil é que não há uma ideia suficientemente forte para se opor ao pensamento neoliberal sobre as penas. A esquerda não tem uma ideia para contrapor. Os políticos sabem que, se não têm um discurso duro contra o crime, eles perdem votos.

FOLHA – No Brasil, os políticos e a população defendem o aumento das penas. Penas maiores significam mais segurança?
PAVARINI – Isso é um pecado, uma ideia louca, absurda. Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança. É claro, um país não pode neutralizar todos os criminosos. Nos EUA, eles podem colocar na prisão o garoto que vende maconha. Prende por um, dois, cinco anos, e ele vai virar um criminoso profissional. Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime. Há mais de um século se diz que a prisão é a universidade do crime. É verdade. Mas, se um político diz “vamos buscar trabalho para esse garoto”, ele não ganha nada.

FOLHA – No Estado de São Paulo, o mais rico do país, faltam 55 mil vagas nos presídios e as prisões são muito precárias. Por que um Estado rico tem presídios tão ruins?
PAVARINI – Há uma regra econômica que diz que a prisão, em qualquer lugar do mundo, deve ter uma qualidade de sobrevivência inferior à pior qualidade de vida em liberdade. Como aqui há favelas, as prisões têm de ser piores do que as piores favelas. A prisão tem de oferecer uma diferenciação social entre o pobre bom e o pobre delinquente. Claro que São Paulo poderia oferecer um presídio que é uma universidade, mas isso seria intolerável. O presídio ruim tem função simbólica.

FOLHA – Em São Paulo, o número de presos cresce à razão de 6.000 por mês. Faz sentido construir um presídio novo por mês?
PAVARINI – Mais cárceres significam mais presos. Se você tem mais presídios, você castiga mais. Por isso os países promovem moratórias, decidem não construir mais presídios.

FOLHA – Políticos dizem que mais presídios melhoram a segurança.
PAVARINI – A única coisa que você pode dizer é que mais presídios significa mais população presa. Há milhões de pessoas que delinqúem diariamente, e os presos são uma minoria. O sistema penal é seletivo, não pode castigar todos. As pessoas dizem que o crime não compensa, mas o crime compensa muito. O sistema não tem eficiência para castigar todos.
Quando você aumenta muito a população carcerária, algo precisa ser feito. Na Itália, há cada cada quatro, cinco anos há anistia. Entre os nórdicos, quando um juiz condena um preso, ele precisa saber a quantidade de vagas na prisão. Se não há vaga, outro preso precisa sair. O juiz indica quem sai. Porque é preciso responsabilizar o Poder Judiciário e a polícia pelos presídios. O cárcere tem de ser destinado aos mais perigosos. Uma prisão de merda custa 250 por dia na Itália. Não faz sentido usar algo tão caro para qualquer criminoso.