Grupos religiosos promovem revanche teológica no país.

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Roberto Romano – Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Firmada pela Constituição de 1891, separação de Estado e igreja no Brasil passou por retrocessos desde então e permanece sob ataque de grupos que pretendem impor a religião à vida pública, diz autor.

Nos tratos entre poder civil e mando religioso, a grande tese da Igreja Romana foi expressa por Leão 13 na encíclica “Immortale Dei”: “A Igreja e o Estado devem ser unidos um ao outro como alma e corpo, que constituem no homem um todo natural”. A doutrina vem de longe, mas foi sintetizada por Roberto Belarmino, com a proposta de uma “soberania espiritual indireta” do papa sobre o Estado secular. Se o dirigente político deixa a fé, surgem ameaças à saúde coletiva.

Ao mover sua imprensa e para censurar os jornais não católicos, o clero brasileiro gastou recursos de propaganda contra os maçons (algo que já vinha do Império), liberais, espíritas, anarquistas e todos os que poderiam pôr em dúvida a “soberania espiritual” do Sumo Pontífice. O protestantismo foi particularmente visado. Na Revista Eclesiástica Brasileira, na Revista Vozes ou em pasquins diocesanos, os protestantes eram descritos como o grande malefício.

Um livro virulento do padre Soares d’Azevedo comparava o protestantismo à peste, ao anarquismo e a outras “doenças” sociais. Quem no Brasil adere à reforma, diz o sacerdote, só pode ser espião imperialista —no caso, dos EUA. A invasão protestante ameaçaria a integridade do Estado, visto que as instituições nacionais tinham como essência e origem o catolicismo. Apenas os católicos seriam patriotas, somente eles garantiriam a soberania nacional.

O mesmo ataque foi retribuído, contra os católicos, pelos defensores do laicismo: o Vaticano seria uma potência estrangeira capaz de ameaçar nosso Estado soberano. Note-se a mudança nas cores da paleta: no século 20 ser católico era prova de patriotismo. Hoje, na visão de grupos do governo Bolsonaro, a Igreja Romana põe em perigo a segurança e a soberania do Estado. Mudaram os personagens, o problema continua: agora os evangélicos imaginam que suas congregações e o poder estatal formam um só corpo.

Acusam-se os católicos de lesa-pátria, sobretudo com o próximo sínodo sobre a Amazônia, congresso de bispos a ser realizado em outubro, em Roma. O general Augusto Heleno queixou-se de que o encontro seria “interferência em assunto interno” do Brasil, o que evidencia nova crise entre Estado e Igreja. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o governo brasileiro monitora com preocupação a ação do clero e pediria ajuda à Itália para travar a exploração de temas da Igreja que considera ligados à esquerda.

Depois Heleno negou plano de espionar membros da igreja, mas reafirmou sua preocupação, uma vez que alguns dos temas do Congresso, segundo ele, “são de interesse da segurança nacional”. “Quem cuida da Amazônia brasileira é o Brasil”, afirmou. Espionar clérigos, de fato, não é uma tarefa digna da sociedade civil ou do Estado. E, no campo diplomático, pedir auxílio da Itália para pressionar o Vaticano é ignorar a natureza do adversário.

Num gesto cesaropapista, setores oficiais postulam a participação, no sínodo, de autoridades civis. Todos esses programas e teses, que tentam expulsar da vida pública religiões concorrentes, levam à única conclusão racional: o Estado não pode ser o corpo de uma crença no sagrado; deve permanecer neutro para escapar da destruição que devastou a Europa moderna nas guerras de religião.

O que significa um Estado laico? Examinemos a tese política que recusa qualquer religião como fonte do poder público. Ao contrário do vocábulo “demos”, “laós” (povo) não tem etimologia confiável, mas o nome surge na prosa e poesia gregas. Em Homero pode significar “gente, súditos, cidadãos, assembleia”. Como não há na Grécia distinção forte entre clero e fiéis, apenas no Egito são diretamente opostos o laós e o sacerdote.

No aristocrata autor da “Ilíada”, o nome se aproxima do pejorativo. Em Platão indica um aglomerado humano. As pessoas no teatro e na assembleia integravam o laós. No cristianismo primitivo o termo representa os fiéis opostos aos pagãos.

A Igreja assumiu várias doutrinas filosóficas para refletir sobre o Cristo e a vida coletiva. Alguns padres seguiram o estoicismo, outros o neoplatonismo. Neste último o representante máximo foi Santo Agostinho, cuja importância sofreu a concorrência do misterioso Dionísio, o Areopagita. No livro dos Atos mencionam-se discursos do apóstolo Paulo em Atenas. Aquelas falas teriam sido assumidas por Dionísio.

Apenas como curiosidade, com ele havia uma crente cujo nome era Damaris…. Soa atual no Brasil, apesar de a letra “i” ter sumido em favor do “e”.

Por volta de 840, os escritos de Dionísio foram traduzidos por João Escoto Erígena e usados como autoridade na Idade Média. Neles, o conceito fundamental é o de hierarquia. O termo reúne “hieros” (sagrado) e “arché” (princípio, poder, início). O que é uma hierarquia? Resposta: “Um sistema de patamares com respeito ao conhecimento e à eficácia”. Até hoje a Igreja segue os parâmetros definidos por Dionísio nos campos do saber e da realidade.

Ao dizermos algo a respeito de Deus, sabemos que dele jorra uma luz espalhada pelos seres. Quanto mais próximo do ser divino, mais brilhante e digna a criatura. Há na ordem cósmica e humana uma escada para cima (superior) e outra para baixo. Aos seus degraus chamamos hierarquia.

Cada ente, natural ou humano, recebe sua luz de outro, mais elevado, e a transmite ao inferior. O mundo terreno reflete o celeste, os anjos são “espelhos espirituais do abismo divino”, disse o teólogo Paul Tillich. Jacques Maritain, filósofo importante da Igreja no século 20, publicou um livro célebre cujo título é totalmente dionisíaco: “Distinguir para Unir, os Graus do Saber”.

Cosmos e saber são hierarquizados, assim como a estrutura da Igreja e dos poderes políticos. A diferença entre superiores e inferiores não pode ser abolida. Tentar sua igualização é destruir a ordem divina. No mais alto posto situa-se o clero. Abaixo, os reis e nobres. E no plano mais baixo estão os leigos, o povo, o laós. Tal sistema nega a igualdade política. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e pensamento semelhante imaginário.

É impossível quebrar a escala hierárquica, dos anjos aos homens. À pergunta “se Deus fez todas as coisas, por que não as fez iguais?”, Agostinho apresenta uma fórmula: “Non essent omnia, si essent aequalia”. Cada coisa ocupa um lugar diferente na ordem dos seres. A igualdade seria oposta à natureza, ao mundo social e político. Daí surge a tese da soberania eclesiástica na Idade Média —e depois a da soberania pontifícia indireta, após a Reforma Protestante.

Com Lutero e Calvino temos uma inversão do pensamento ordenado por Dionísio. Quando os reformadores negam a autoridade eclesiástica, bem como a existência de intermediários entre o mundo finito e o além, abrem a via para instaurar uma sociedade laica e um Estado idem. Evidentemente, tal mudança não ocorre de imediato. Nos “heréticos” restam traços do poder clerical e da hierarquia na vida humana.

Quando seus discípulos se insurgem, exigindo igualdade política, Lutero defende os príncipes e amaldiçoa os líderes da Revolução Camponesa, sobretudo Thomas Münzer. Apesar de tudo, na reforma, o poder laico firma-se de modo perene. A Igreja é a união do povo comum, os leigos, e dispensa hierarcas religiosos. Logo dispensará os hierarcas políticos. Todos os reacionários do século 19, de Joseph de Maistre a Donoso Cortés, identificam a gênese da “fatal democracia” em Lutero.

No movimento luterano —e depois, calvinista—, fortaleceu-se a luta pela igualdade e a busca do poder laico sem guantes clericais. Não por acaso, o coletivo que mais contribuiu para o reforço do sistema parlamentar e da república inglesa ostenta o nome de Os Niveladores (Levellers). No mesmo passo, Francis Bacon defende a ciência e o ensino com base no método, não em fórmulas metafísicas. Exemplo dado por ele: para desenhar um círculo perfeito é preciso raro gênio. Com o compasso, todos cometem a proeza.

A democratização trazida pelo método segue para as hostes políticas puritanas e civis. A genialidade e o milagre, bases do aristocratismo hierárquico, deixam a cena em prol do trabalho científico disciplinado. O mundo perde o encanto e se transforma em algo prosaico, sem hierarquias sagradas.

As Luzes continuam as lutas da reforma e da ciência. Desde então, o saber se transforma na política cujas bases é a laicidade plena, afastando o religioso. Kant, um filósofo que segue a reforma, proclama: “Nosso tempo é o tempo da crítica, à qual tudo deve se submeter. A religião, por sua santidade, a legislação, por sua majestade, desejam dela fugir. Mas então elas suscitam uma justa suspeita e não podem desejar o respeito sincero que a razão concede apenas ao que pode ser sustentado em livre e público exame”.

No poder e na ciência laicos não existe “magister dixit” (porque o mestre falou). Quem diz hierarquia religiosa diz ocultamento ou censura, como no “Index Librorum Prohibitorum” (índice dos livros proibidos). Daquele volume para a totalitária fogueira de livros o passo é curto. A vida laica repele todo ato censor ou tutela sobre coletivos e indivíduos. Nenhuma autoridade recebe o mando do ser divino, mas do povo.

É a tese avançada pelo francês Diderot, assumida na Constituição dos Estados Unidos da América: “Nous, le peuple”… “We, the people” (nós, o povo). O Estado laico, ou do povo, triunfa e, com ele, a democracia. É abolida no espaço público a figura da hierarquia divina. Todos são iguais. Contra semelhante atitude, nos séculos 19 e 20, a Santa Sé se une aos movimentos baseados na hierarquia do mando, com Mussolini, Hitler e outros.

Logo após 1500, o Brasil conhece a contrarreforma, reação aos movimentos protestantes. Adeptos da nova religião aqui estiveram, sobretudo franceses e holandeses. Mostraram posição mais etnocêntrica do que os jesuítas. Intolerantes para com as crenças indígenas, afirmavam serem as danças e cantos das tribos, bem como seus costumes, obra do Diabo.

Com a expulsão dos invasores (como se os portugueses não tivessem invadido o território…), o catolicismo retoma a hegemonia. Nos séculos seguintes, tal preponderância sofre sob o padroado, o acordo entre Estado e Vaticano cujo modelo herdamos de Portugal. O poder laico do rei controla a Igreja, dá-lhe pouca liberdade. Várias medidas estatais reduzem o poder de fogo eclesiástico. No final do Império, a “soberania espiritual” era só um desejo do clero ultramontano.

Na República, são claras duas políticas contrárias à presença religiosa no ordenamento coletivo. Os seguidores de Auguste Comte, embora com forte número de militares, almejam um poder civil: “Se, no regime democrático (…), é condenada a preponderância de qualquer classe, muito maior condenação deve haver para o predomínio da espada, que tem sempre mais fáceis e melhores meios de executar abusos e prepotências”, afirmou Benjamin Constant em 1877.

Os positivistas adotam a separação de Igreja e Estado e proclamam que o segundo não deve “apoiar com a força do poder o ensino de qualquer doutrina”. Como diz João Cruz Costa, o programa positivista lançou “as bases de uma política racional para o Brasil”, a despeito de recuos táticos (com o voto positivista foi mantida a proibição do divórcio).

Entre os liberais a predominância da Igreja foi entendida como “imperialismo católico”. O Vaticano, pensavam, seria um Estado com agências no Brasil, o que traria óbices para o país soberano. O mais forte argumento liberal encontra-se na tese, como vimos acima fundamentada, de que o ensino da Igreja pregava a desigualdade civil.

Radicalizando, Saldanha Marinho denuncia o poder eclesiástico “por sua campanha infernal contra a civilização”. O programa se firmou como laico para garantir ao Estado o monopólio da imposição legal. “Medida indispensável de progresso e até de segurança pública a decretação do divórcio perpétuo da Roma eclesiástica do Brasil político” (Saldanha Marinho, citado por Maria Stella Bresciani).

Na Constituição de 1891, a primeira da República, surgem os pontos defendidos por positivistas e liberais. Na Carta se firmou a laicidade do Estado. A partir daí, vicissitudes nacionais definiram avanços e retrocessos no trato entre religião e vida pública.

Sob Getúlio Vargas ocorreu um retorno aos privilégios eclesiásticos em detrimento da laicidade, apesar dos elos getulistas com as raízes positivistas. Foi a hora em que a Igreja moveu massas humanas para garantir leis favoráveis às suas exigências. Seguindo a retomada do vínculo entre poder civil e religioso (cujos resultados marcantes foram o Tratado de Latrão com Mussolini e a Concordata com Hitler), a Igreja “consagrou” o Brasil ao Sagrado Coração de Jesus, marca da “soberania espiritual” católica. O símbolo de tal consagração é o Cristo Redentor no Rio de Janeiro.

No regime militar de 1964, a Igreja Católica, via CNBB, aprova os atos institucionais, incluindo o de número 5. Fora a minoria de bispos, padres, freiras e leigos, ela apoia o Executivo. Naquele momento, as seitas neopentecostais aumentam seu número e a quantidade de fiéis. Os protestantes, antes minoritários e perseguidos, expandem suas hostes.

Embalada desde Vargas pelas benesses do Estado, a Igreja não percebeu, sobretudo no pontificado de João Paulo 2º —personagem presente em escândalos como o Irã-Contras, apoiador de Pinochet e outros regimes absolutistas—, a concorrência que ameaçava sua hegemonia.

Hoje lideranças católicas, unidas a igrejas e movimentos evangélicos, pretendem dar ao Estado e à sociedade formas legais contra o laicismo. Os evangélicos substituem o catolicismo, agora se imaginam a nova alma do corpo estatal.

O presidente eleito deu a senha: somos um Estado cristão, não laico. Assim, o religioso retoma suas pretensões políticas sob a diretriz de seitas que não seguem com justeza a reforma, não valorizam o traço civil dos assuntos estatais. Por enquanto, notemos, os pastores são obrigados a dividir espaço com os militares de tradição católica e laica.

Assistimos à revanche do campo teológico-político contra os princípios democráticos da Reforma Protestante, do liberalismo e do programa positivista que exigiam a separação de Igreja e Estado. Os sinais de imposição religiosa nos campi e nas escolas brasileiras são evidentes, com ataques à teoria da evolução e com a defesa do criacionismo.

Mais grave é a guerra contra os direitos humanos, sobretudo os da mulher e das minorias. A acreditar nas declarações de representantes religiosos acerca de como deve ser o Estado brasileiro, à mulher se reservam os famosos três C vigentes no período mais negro da história ocidental: casa, cozinha, crianças.
Estado laico é sinônimo de poder democrático, do povo. Se ocorrer a sua morte e se forem restaurados os hierarcas (de qualquer religião), a democracia será definitivamente banida. O futuro dirá.

Roberto Romano, professor de ética e política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, é autor de “Razão de Estado e Outros Estados da Razão” (ed. Perspectiva), entre outros.

 

Bancada religiosa e baixo número de filhos desafiam Estado laico

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 LUIZ FELIPE PONDÉ Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Escritor identifica na atividade legislativa e na baixa taxa de natalidade verificada entre defensores do secularismo os desafios mais importantes para a manutenção do Estado laico.

O Brasil corre o risco de deixar de ser um Estado laico? E pior: passaria a ser um Estado teocrático? E pior ainda: seria o Deus brega da classe média que tomaria conta do país? Sim, porque até entre os deuses há diferenças de classes. Se for um Deus chique que combine com vinho branco gelado no verão e incenso, está valendo. Mas, se for um Deus brega de “crente”, “tô fora”. Seria essa afirmação um preconceito?

Estado laico e sociedade secular, conceitos afins, são realidades históricas; logo, podem deixar de existir, pelo menos em teoria. Tudo que é histórico é, de alguma forma, efêmero. As angústias pela fundamentação absoluta da moral brotam dessa agonia com o transitório, o relativo e o efêmero. Por isso, a questão de se o Brasil (ou qualquer outro Estado) corre o risco de deixar de ser laico pode ser sempre levantada.

A máxima de Bolsonaro, “Deus acima de todos”, é uma ameaça velada ao Estado laico no Brasil ou é pura retórica? Na democracia tudo é retórica e, por isso, tudo é para valer, já que não existe nada fora da retórica. Não acho que Bolsonaro esteja “brincando” quando fala isso, mas não acho que ele vá pegar ninguém pelo braço e jogar dentro da igreja ou proibir o ensino de Darwin (e se tentar proibir o de Marx ou qualquer outro autor, vamos berrar) nas escolas.

Pelo contrário: acho que ele fala isso porque grande parte do povo brasileiro pensa assim, mas não no sentido de abrir mão do Estado laico ou da sociedade secular; pensa assim como quem se lembra de uma antiga cantiga de ninar familiar —se bem que hoje, como não existem quase mães e avós, essa comparação que fiz pode ser incompreensível. Você não entendeu o que Estado laico e sociedade secular têm a ver com o assunto de mães e avós em extinção? Têm muito, espere um pouco e verá.

Enfim, Bolsonaro fala “Deus acima de todos” da mesma forma que pode falar “bandido bom é bandido preso” ou “vou acabar com a corrupção”. Dizer “Deus acima de todos” acalma muitas almas. Outras se acalmam com #EleNão, outras com “namastê”, outras com Viagra.

Há gradientes entre uma sociedade secular e seu irmão gêmeo, o Estado laico, e seu oposto teocrático —e o Brasil está bem longe deste oposto. Há, no entanto, nuances, e o vetor pode pender mais para um lado ou para o outro.

Um teste possível para ver se um Estado deixou, de fato, de ser laico não é se há crucifixo nas paredes ou se na Constituição daquele país se evoca Deus, mas sim se um juiz aceita o depoimento de um pastor dizendo que fulano matou a mulher porque ouviu vozes do Diabo mandando que a matasse. E a partir disso declara que fulano foi vítima de manipulação espiritual maligna.

Por outro lado, se um Estado proíbe o aborto em nome da crença de que “a vida pertence a Deus”, está dando uma atenuada na sua condição de laicidade. Entre esses dois polos, já vemos o gradiente em ação.

O chamado Estado laico (separação de religião e Estado) é fruto histórico das guerras religiosas na Europa entre católicos e protestantes. A defesa de um Estado “sem religião” decorreu do esgotamento espiritual, físico, econômico, social, político e psicológico causado por essas guerras.

O filósofo romeno Emil Cioran dizia que sua busca na vida era “tornar-se virtuoso pelo cansaço”. Essa máxima aplica-se bem ao caso. O Estado laico não foi buscado como meta —chegou como resultado do cansaço das guerras religiosas na Europa. A discussão sobre o conceito vai nascendo como fruto dessa constatação.

Os acordos conhecidos como Paz de Vestfália —que não existiu como tratado único— são identificados como a data fundante (1648), de modo simbólico, do Estado moderno, e, consequentemente, do nascimento do Estado laico. Por quê? Porque as guerras entre católicos e protestantes deram empate.

Homens, mulheres, crianças, estradas, casas, cavalos, cidades, riquezas, tudo destruído e ninguém vencia ninguém. Como consequência, decidiu-se que ninguém poderia interferir no território de outro príncipe a fim de se meter na religião ali vigente.

Para quem conhece um pouco a história, a vitória simbólica foi do protestantismo, pois este já nasceu submetido ao poder secular (não religioso, isto é, poder sobre o tempo histórico), enquanto os católicos combatiam a favor de uma Igreja Católica que sempre viveu às turras com o poder secular, caso este não aceitasse a ingerência “divina” do papa e seu clero.

Por isso os protestantes cultos, quando indagados se o movimento evangélico gostaria de destruir o Estado laico, respondem com a seguinte pergunta: “Você acha que queremos destruir nossa própria invenção?”.

Um Estado sem religião é bom para todos, porque a opinião religiosa das pessoas pode mudar —e quem mandava pode passar a vítima dos novos mandantes. A neutralidade religiosa garante a vida saudável das próprias religiões. É isso o que significa ser um religioso moderno. Religiosos ignorantes querem que o Estado se mele com religiões.

O filósofo Charles Taylor, no seu monumental “Uma Era Secular”, ensina que o processo de secularização da sociedade foi longo. Iniciado no século 15, passou pelas guerras religiosas, pelos avanços da burguesia comercial urbana e acabou por se organizar ao redor de dois vetores essenciais, que são, por si próprios, externos à política, ainda que a tenham impactado, levando a Europa à experiência laica e secular. Taylor fala de duas condições básicas de possibilidade do surgimento do Estado laico e da sociedade secular.

A primeira condição é o sucesso da técnica causado pelo avanço do método científico, baseado na experimentação empírica, a partir da “matematização” da natureza. Isso significou uma relativização, ainda que “inconsciente”, da necessidade das práticas religiosas cotidianas para resolução de problemas relacionados à saúde e ao sofrimento físico em geral.

A melhoria das condições materiais de vida, impactando as condições psicológicas e sociais, levaram a população europeia a experimentar um recuo na dependência da crença.

A segunda condição é o surgimento da organização do Estado moderno e de Direito. A melhoria da operação do Estado na lida com a organização da vida social, que dependeu do avanço técnico e científico, também implicou um recuo prático da dependência das expectativas religiosas como solução para os problemas do dia do dia no que tange a condições materiais urbanas, resolução de conflitos jurídicos, avanços na racionalização econômica —enfim, tudo que causa uma redução no sofrimento em escala social e política.

Segundo Taylor, mesmo o ateísmo orgânico —aquele ao qual a pessoa chega sem esforço de pensamento, mas por desinteresse prático numa vida religiosa— é fruto desse processo. Muitas pessoas mantiveram suas crenças, ainda que de modo atenuado.

A pergunta que deve ser feita: quem optaria pela mágica ou pela oração antes de buscar o antibiótico ou o juiz? Isso não significa que muitas pessoas não busquem ajuda de xamãs, como o ex-famoso João de Deus, mas o fato é que o médico e o juiz são os arquétipos do processo bem-sucedido de combate ao sofrimento levado a cabo pela condição laica e secular.

Agora perguntemos, os brasileiros estariam dispostos a abrir mão do médico e do juiz em favor da mágica e da oração naquilo que de fato impacta o sofrimento e a morte, por conta de uma frase de Bolsonaro ou de sua eleição? Não creio. Mas há risco de atenuação do gradiente de nuances em favor de uma religiosidade mais prática? Sim, há algum risco. Apontaria dois deles, maiores em termos de processo.

O primeiro é o uso do Legislativo para atingir hábitos e costumes. Se uma bancada religiosa prática se tornar significativa, pode haver algum risco.

No entanto, o histórico do movimento evangélico no Brasil tem sido de pragmatismo político beirando o fisiologismo (mesmo o PT, que posa de defensor do Estado laico e da sociedade secular, foi parceiro de atores políticos evangélicos) e de liberalismo popular periférico, melhorando mesmo as condições de vida de populações abaixo da classe média que perderam a “fé na política”. Talvez essas camadas a tenham recuperado na última eleição, mas isso leva tempo.

Outro impacto, também lento no seu efeito, contra o experimento laico e secular, e que não é apenas traço do Brasil —e nisso ele é mais sério, de certa forma—, é aquele ligado a mães e avós, que citei acima. Eric Kaufmann, demógrafo das religiões, publicou em 2010 um estudo comparativo, e provocativo, da fertilidade feminina entre mulheres seculares e mulheres de adesão religiosa estrita no Ocidente (em português comum, “religiosas praticantes”).

Em “Shall the Religious Inherit the Earth?” (os religiosos herdarão a Terra?), ele mostra como o experimento laico e secular pode ser duramente afetado nos próximos 50 a 100 anos pelo fato de que “os seculares têm ótimas ideias, mas os religiosos têm mais bebês”.

Os seculares defendem o darwinismo, mas quem o pratica são os religiosos, segundo Kaufmann, porque o darwinismo é, no limite, uma teoria demográfica: quem tem mais prole está mais bem adaptado —e se impõe. Resultado: a sociedade secular e o Estado laico podem sofrer sérias baixas, simplesmente, pelo fato de que os seculares preferem cachorros, um filho só (quando muito), bikes e mídia social.

À medida que as mulheres optam por papéis sociais que não a maternidade, “bebês seculares” deixam de nascer. A Europa agoniza de pânico diante desse risco. A solução é “atacar” os muitos jovens que vivem em famílias de adesão estrita e “convertê-los” à vida secular. O ciclo, porém, tende a se repetir. Cachorros e bikes não sustentarão o Estado laico nem a sociedade secular.

Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha, escritor e ensaísta, é autor de “Os Dez Mandamentos (+ Um)” e “Marketing Existencial”, ambos da Três Estrelas. É doutor em filosofia pela USP.

 

 

Só a retomada salva o País

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José Luís Oreiro – Valor Econômico, 22 de fevereiro de 2019.

A sociedade brasileira passa por uma profunda crise econômica, política e social desde 2013. As manifestações de 2013 foram o evento catalizador de um processo de crescente descrédito na classe política e, posteriormente, de outras instituições da República.

A insatisfação de parte expressiva da população com a performance dos políticos, em particular, e do Estado, em geral, foi incrementada pelos efeitos deletérios da recessão iniciada no segundo trimestre de 2014 – que foi detonada por um colapso do investimento do setor privado, que se contraiu por três trimestres consecutivos, a taxa de 10% por trimestre. Isso resultou de um processo de “profit squeeze”, ou seja, queda das margens de lucro e da taxa de retorno sobre o capital próprio das empresas não financeiras, a qual se tornou na mais duradoura e profunda crise econômica do Brasil nos últimos 30 anos. No auge da crise, mais de 14 milhões de brasileiros estavam desempregados e o PIB apresentou retração superior a 8% em termos reais, com destruição de riqueza de R$ 600 bilhões.

A recessão acelerou o desequilíbrio fiscal da União e dos entes subnacionais, muitos dos quais passaram a enfrentar dificuldades crescentes para manter o pagamento dos servidores em dia. A deterioração crescente do resultado primário da União a partir de 2014 gerou um crescimento acelerado da dívida pública como proporção do PIB, colocando o endividamento da União em trajetória claramente insustentável. A perda de espaço fiscal decorrente desses desdobramentos impediu a realização de uma política fiscal anticíclica justamente no momento em que a mesma era mais necessária. Pelo contrário, a política fiscal executada em 2015 foi francamente contracionista, amplificando assim os efeitos da recessão iniciada em 2014.

Outro fator que amplificou os efeitos recessivos do colapso do investimento privado foi a elevação da taxa básica de juros promovida pelo Banco Central em 2015, na tentativa de debelar os efeitos de segunda ordem que o aumento das tarifas dos públicas e dos combustíveis poderiam ter sobre a dinâmica da taxa de inflação.

O desemprego crescente aguçou a percepção de que a crise brasileira era o resultado da corrupção generalizada dentro do Estado, tal como estava sendo revelado ao público pela Lava-Jato. Essa percepção acabou por gerar um sentimento difuso de “ódio” à classe política, principalmente aos políticos diretamente ligados ao PT.

O imenso apoio popular ao impeachment da presidente Dilma Rousseff foi a demonstração clara de que, na cabeça do cidadão mediano, a crise era resultado direto da corrupção dirigida e organizada pelo PT e seus aliados. Nesse contexto, uma ampla parcela da população acreditava que o afastamento do PT do poder, pelo impeachment, cujas bases jurídicas eram duvidosas, seria uma condição necessária, quando não suficiente, para o fim da corrupção e para a retomada do crescimento econômico.

Os primeiros meses do governo Michel Temer pareciam apontar para uma retomada robusta do crescimento no início de 2017, ainda que poucas pessoas acreditassem na vontade do governo de combater a corrupção.

O governo Temer apresentou à sociedade brasileira uma narrativa essencialmente ortodoxa das causas da crise de 2014 a 2016. O problema fundamental era o desequilíbrio fiscal estrutural, resultado do “contrato social” estabelecido pela Constituição de 1988. Segundo economistas ligados ao governo, a Constituição havia produzido um conjunto de benefícios sociais para os mais pobres e de privilégios para os funcionários públicos que impunham um ritmo para o crescimento dos gastos públicos (entre 5 a 6% ao ano em termos reais) que era muito superior à capacidade de crescimento da economia.

Durante um certo período foi possível acomodar esse aumento dos gastos com o aumento da carga tributária. Contudo, a partir de 2011, a receita passou a crescer mais ou menos em linha com o PIB de tal forma que a deterioração do resultado primário da União tornou-se inevitável. Essa deterioração teria sido “mascarada” pelas “pedaladas fiscais” e outros artifícios de “contabilidade criativa”; mas, a partir de 2014, ficou impossível encobrir a verdade nua e crua de que o governo não era mais capaz de gerar superávits primários e que, portanto, a dívida pública entraria em trajetória explosiva. O desequilíbrio fiscal crescente acabou por gerar perda de confiança dos empresários no governo, o que se refletiu em elevação do prêmio de risco país, desvalorização da taxa de câmbio, queda dos preços das ações e elevação dos juros futuros. Esse quadro levou a uma queda dos gastos de investimento e de consumo, fazendo com que o país entrasse na pior recessão dos últimos 30 anos.

Face a essa narrativa, a solução para a crise era muito clara: o governo precisava fazer um ajuste fiscal estrutural, cujo foco deveria ser a redução do ritmo de crescimento das despesas. Para tanto, foi desenhada uma estratégia em duas etapas. Na primeira, o governo enviou para o Congresso uma PEC criando um teto de gastos para o governo federal. Esse teto não seria a solução do problema fiscal, mas apenas uma espécie de mecanismo que explicitaria o conflito distributivo existente dentro do orçamento. A ideia era congelar os gastos primários da União em termos reais por dez anos, ao final dos quais poderia ser modificado o indexador dos gastos públicos, que havia sido definido como a variação do IPCA no período inicial de vigência do teto.

O problema é que todos os itens das despesas obrigatórias (aposentadorias, pensões, salários do funcionalismo público, gastos com saúde e educação) apresentaram nos últimos 20 anos uma taxa de crescimento muito acima da variação do IPCA. Dessa forma, se nada fosse feito para reduzir o ritmo de crescimento desses gastos, o cumprimento da regra do teto obrigaria a administração federal a reduzir progressivamente os gastos discricionários, que incluem gastos com o investimento em infraestrutura, com o reaparelhamento das Forças Armadas e com a manutenção de instalações do governo federal.

Como é impossível manter o funcionamento da máquina pública federal sem a realização de um valor mínimo de gastos discricionários, segue-se que a ameaça de “shutdown” obrigaria o Congresso a realizar aquilo que foi denominado de “a mãe de todas as reformas”, a reforma da Previdência. Uma vez aprovada uma “boa” reforma, o desequilíbrio fiscal estrutural seria eliminado, e o teto dos gastos poderia, eventualmente, ser abolido. Nessas condições, o Brasil poderia retomar o crescimento em bases sustentáveis, pois se produziria uma “contração fiscal expansionista”, ou seja, o ajuste das contas públicas levaria automaticamente a um aumento do investimento e do consumo do setor privado.

A PEC do teto dos gastos foi aprovada no final de 2016 e tudo apontava para a aprovação de uma reforma da Previdência em 2017. As condições financeiras da economia brasileira (risco país, taxa de câmbio, juros futuros e índice Bovespa) apresentavam nítidos sinais de melhora no primeiro trimestre de 2017. A melhoria das condições financeiras ocorrida a partir do segundo semestre de 2016 permitiu ao BC iniciar um processo “lento, gradual e seguro” de redução da taxa de juros, o qual deveria, em algum momento, estimular o crescimento.

Mas no meio do caminho havia uma pedra, e essa pedra foi o escândalo da gravação das conversas, por assim dizer, pouco republicanas, entre o presidente da República e Joesley Batista, da JBS. A divulgação desses áudios produziu uma crise política de proporções gigantescas, obrigando o presidente a gastar todo o seu capital político e otras cositas más na tentativa de angariar apoio político para o seu governo e impedir um novo processo de impeachment. No fim do ano de 2017 já estava claro que a reforma da Previdência não teria condições políticas de ser aprovada durante o governo Temer.

Surpreendentemente os mercados financeiros não desabaram com o adiamento da reforma da Previdência. Índices de condições financeiras continuaram relativamente bem-comportados ao longo do segundo semestre de 2017 e no primeiro trimestre de 2018. Apesar disso, o crescimento foi decepcionante em 2017. O PIB apresentou expansão de 1,1% em termos reais, após dois anos de queda acentuada. No fim de 2017, a economia ainda se encontrava 6% abaixo do nível observado em 2013. E o pior, o desemprego superava 13 milhões de pessoas. A produção industrial encontrava-se ao nível de 2004, recuo de mais de 10 anos.

O ano de 2018 se inicia com grandes expectativas de aceleração do crescimento. O ministro da Fazenda esperava um crescimento entre 2,5% a 3%. Se essas expectativas se confirmassem, a taxa de desemprego poderia fechar o ano em torno de 10% da força de trabalho, gerando um saldo de 2 a 3 milhões de novos empregos. Nesse cenário róseo, o candidato à Presidência da República que encarnasse a continuidade da política econômica do governo Temer seria praticamente imbatível nas eleições de outubro.

Mas o otimismo de Henrique Meirelles mostrou-se sem fundamento. No primeiro semestre de 2018 a atividade mostrava sinais de recuperação muito lenta, embora a grande recessão tivesse oficialmente terminado no fim de 2016. A implantação do teto dos gastos pode ter até ancorado as expectativas dos agentes do mercado financeiro, contribuindo assim para a relativa estabilidade dos índices de condições financeiras; contudo, o seu cumprimento estava impondo redução sem precedentes, nos últimos 15 anos, dos gastos com investimento público.

A contração do investimento público – justamente o componente da despesa primária que possui o maior efeito multiplicador – atuou como mecanismo de desestímulo à demanda agregada, numa economia que estava operando com nível absurdamente elevado, para seus padrões históricos, de ociosidade da capacidade produtiva. A greve dos caminhoneiros, a crise econômica na Turquia e Argentina e a indefinição do quadro eleitoral contribuíram para aumentar a incerteza reinante entre agentes econômicos, que se expressou numa deterioração significativa do índice de condições financeiras ao longo do segundo semestre de 2018. Como resultado desses desdobramentos, o ritmo de recuperação da atividade econômica desacelerou e a economia deve ter fechado o ano passado com um crescimento em torno de 1%.

O quadro econômico desolador combinado com a constatação de que a corrupção na máquina pública não estava restrita ao PT levou uma ampla parcela da população a acreditar que os problemas só seriam resolvidos por um outsider da política tradicional. A maioria dos eleitores identificou em Jair Bolsonaro a pessoa que encarnava o anti-establishment.

Mas será que o governo Bolsonaro poderá atender ao desejo de mudança, ou melhor, será que o novo governo poderá recolocar o Brasil na trajetória de desenvolvimento?

Bolsonaro, influenciado pelo czar da economia, Paulo Guedes, parece acreditar que a reforma da Previdência, combinada com um programa ambicioso de privatizações, irá fazer o país sair daquilo que o próprio Guedes chamou de “armadilha de baixo crescimento”. Não é a primeira vez que se propõe uma ampla agenda de privatizações como solução para os problemas nacionais. Essa agenda foi extensamente adotada nos governos Collor e FHC.

A taxa média de crescimento no período 1990-2002 foi inferior a 2,5%, mesmo se expurgarmos os dois primeiros anos do governo Collor, quando a economia entrou em recessão devido ao “confisco das poupanças”. Também não é a primeira vez que se diz que um ajuste fiscal é fundamental para a retomada do desenvolvimento. Ajustes fiscais foram feitos em 1994-1995; 1999-2000, 2003-2004, 2011, 2015, 2016-2018. Nesses casos, apenas um deles, o período 2003-2004, foi seguido por um período de aceleração significativa e razoavelmente duradoura do crescimento. Nesse caso, a contração fiscal se mostrou expansionista devido ao espetacular aumento das exportações de manufaturados ocorrida no período 2002-2004, decorrente da enorme desvalorização da taxa de câmbio ocorrida em 2002. Em todos os demais casos, ou não houve aceleração do crescimento, ou a aceleração foi pequena e curta ou ocorreu queda do nível de atividade econômica. Em suma, o ajuste fiscal pode ser necessário para evitar um desastre, mas não é nem de perto condição suficiente para a retomada do crescimento.

Esta requer o atendimento de duas condições. No curto prazo é necessária expansão da demanda agregada para que se possa eliminar a ociosidade na capacidade produtiva e para dar emprego digno a mais de 12 milhões de brasileiros. Essa expansão da demanda agregada não poderá vir do investimento, devido à enorme ociosidade da capacidade produtiva e nem do consumo das famílias, devido ao nível elevado de desemprego. O desequilíbrio fiscal também impede uma expansão significativa do investimento público.

A expansão da demanda agregada só pode advir de um forte crescimento das exportações, principalmente das exportações de produtos manufaturados, o que requer taxa real de câmbio estável e competitiva. No médio e longo prazos, contudo, o crescimento só será sustentável se for acompanhado por aumento da produtividade. Ao contrário do que pregam economistas liberais que acham que a produtividade é uma característica embutida nos trabalhadores por intermédio da educação, a boa teoria econômica e a experiência internacional mostram que a produtividade é uma variável cujo comportamento é regido por uma série de fatores, sendo a educação apenas um entre vários.

A produtividade é afetada pela quantidade e a diversificação do conhecimento técnico e científico que está embutido nas pessoas (capital humano), nas máquinas e equipamentos (capital físico), na capacidade das pessoas em se conectarem e assim trocar informações (capital social). Dessa forma, aquilo que uma economia produz e exporta revela a sofisticação ou complexidade das suas capacitações produtivas. A estrutura produtiva importa para o crescimento econômico.

Tendo em vista esse entendimento sobre as causas da produtividade, a retomada do desenvolvimento exige que o Brasil reinicie o processo de “catching-up” industrial e tecnológico interrompido na década de 1980. Um elemento essencial dessa retomada será a reindustrialização, ou seja, o crescimento da participação do valor adicionado da indústria no PIB e do emprego industrial no emprego total. Esse processo irá demandar uma mudança no regime macroeconômico, de forma a manter a taxa de câmbio em níveis competitivos internacionalmente, a exemplo do que foi adotado, de forma bem-sucedida, nos países do Leste Asiático; como também a adoção de uma política industrial que permita aumentar a complexidade tecnológica da pauta de exportações do Brasil. A exemplo do que é feito nos Estados Unidos, Japão, China, e países da Europa Ocidental, o desenvolvimento de um complexo industrial militar no Brasil, puxado por gastos necessários para o reaparelhamento das Forças Armadas, atualmente em grau acentuado de sucateamento, pode ser um dos eixos dessa política.

Se o governo Bolsonaro não trilhar esse caminho e insistir apenas na agenda privatização-reforma da Previdência, então a economia continuará trilhando trajetória de baixo crescimento, provavelmente em torno de 2% ao ano. Esse ritmo será insuficiente para gerar empregos na quantidade suficiente para absorver a enorme massa de desempregados, bem como os brasileiros que ingressam todos os anos no mercado de trabalho. A força de trabalho cresce atualmente 1% ao ano, o que significa que, para manter a taxa de desemprego estável ao longo do tempo, é necessário criar, pelo menos, 1 milhão de postos de trabalho por ano. Considerando crescimento da produtividade de 1% ao ano (o que destrói postos de trabalho na velocidade de 1 milhão de empregos por ano) no cenário no qual não ocorre a mudança estrutural descrita, uma taxa de crescimento de 2% ao ano irá criar postos de trabalho apenas na magnitude necessária para manter o desemprego indefinidamente acima de 10 % da força de trabalho.

Dada a pequena duração do seguro-desemprego e a baixa densidade da rede de proteção social, é pouco provável que a permanência da taxa de desemprego em patamares tão elevados por um período tão longo de tempo seja social e politicamente sustentável. Nesse cenário a desordem social poderá aumentar rapidamente. Além disso, o crescimento econômico anêmico irá agudizar a crise fiscal dos Estados, podendo, inclusive, fortalecer movimentos separatistas no Sul, haja vista que, para parte significativa da população desses Estados, a sua crise fiscal resulta do fato de que (sic) “o Sul tem que sustentar os vagabundos do Nordeste com o Bolsa Família”.

O exemplo recente da tentativa de secessão na Catalunha – resultado dos efeitos da crise econômica de 2008-2012 – mostra que o risco de movimento separatista no Brasil não pode ser subestimado. Daqui se segue, portanto, que ou o governo Bolsonaro coloca o Brasil na rota do desenvolvimento econômico – o que implica em mudança estrutural e catching-up com respeito aos países ricos – ou o clima de insatisfação social reinante culmine numa crescente desordem, podendo levar, no limite, à guerra civil.

José Luis Oreiro é professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq

 

A técnica na sofisticada marcha da humanidade em direção ao precipício

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Modelo de desenvolvimento conduz a sacrifício da vida e destruição da natureza, escreve autor

Márcio Seligmann-Silva – Folha de São Paulo – Ilustríssima 17 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Antigo meio para garantir a sobrevivência da humanidade, a técnica, argumenta o autor, acoplou-se a um modelo de desenvolvimento que passou a ter por fim o sacrifício da vida e a destruição da natureza.

De certo modo, a história da técnica se confunde com a história da humanidade. Tornamo-nos humanos na medida em que nos separamos da natureza: ao menos esse é o nosso mito originário “ocidental”. Prometeu presenteou a humanidade com o fogo, ou seja, com o saber técnico, e foi castigado por isso. Zeus não o perdoou por tornar os humanos inteligentes como os deuses.

Já em outro veio poderoso dessa tradição, no Antigo Testamento, quando, no Gênesis, Deus nos expulsou do Paraíso, condenou-nos ao trabalho duro e a suar para podermos garantir o nosso sustento. Segundo o relato, Ele nos deu vestes, os primeiros produtos de uma técnica ainda divina. O homem trabalhador é o homem que vai depender cada vez mais de técnicas.

Por outro lado, é notório que desde o início do século 19, com a Revolução Industrial, a técnica sofreu uma abrupta mudança em sua natureza. De meio de garantir a sobrevivência humana na face da Terra, ela foi acoplada a um projeto capitalista que em pouco tempo —200 anos diante dos mais de 5 bilhões de anos da Terra e de dezenas de milênios de existência do que podemos chamar de humanidade— transformou o planeta a tal ponto que ele não só está irreconhecível, como à beira de um colapso.

Desde seu nascimento, essa técnica moderna dividiu as opiniões entre entusiastas e críticos. Dentre estes últimos, havia tanto uma corrente conservadora como uma de tendência transformadora, que percebia na técnica capitalista apenas uma perversão dos verdadeiros e revolucionários potenciais da técnica.

Na primeira categoria, Goethe, em 1825, ou seja, de dentro de uma Alemanha ainda fragmentada em pequenos Estados e predominantemente agrícola, queixava-se em carta a seu amigo Zelter: “Riqueza e rapidez, eis o que o mundo admira e o que todo o mundo quer. Ferrovias, correio expresso, navios a vapor, e todas as possíveis facilidades de comunicação são as coisas que o mundo culto deseja a fim de se sofisticar e assim permanecer na mediocridade”. Incrível a atualidade dessas palavras, de quase 200 atrás.

No final de sua obra máxima, o “Fausto”, Goethe imagina justamente esse moderno homem empreendedor, desapropriando e atropelando os mais frágeis economicamente para abrir terreno para a agricultura, conquistando terras à água por meio de um dique. Ele não deixa, porém, de destacar o tema da arrogância dessa empreitada e do seu risco: “Cá dentro é um paraíso a terra nossa;/ Que suba lá fora a maré furiosa/ E se, violenta, tentar abrir brecha,/ Em comum esforço acorre o povo e a fecha”.

O capitalismo e sua técnica já eram vistos pelo velho Goethe, portanto, como ambíguos portadores de belas invenções e de altos riscos. Represas estavam na origem da riqueza e do terror. Também aqui encontramos uma macabra contemporaneidade. Diques e represas são marcos decisivos na história da técnica, símbolos da domesticação da natureza e de sua força.

Pouco mais de um século depois, Walter Benjamin, que admirava e citava essas passagens de Goethe mencionadas aqui, lapidou a máxima nas suas famosas teses “Sobre o Conceito da História”, de 1939: “Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie”.

Não há, portanto, nenhum motivo para que nos surpreendamos diante das catástrofes tecnológicas: elas fazem parte do programa e, devido à rápida velocidade do avanço da técnica predatória, devem ser cada vez mais aniquiladoras e frequentes. A menos, é claro, que a humanidade —ou aqueles que decidem por ela— desperte para a necessidade de puxar um freio nesse percurso em direção ao abismo.

Para Benjamin, essa técnica moderna, que denominou de “primeira técnica”, tem como fim o sacrifício da vida, a destruição, o controle e a dominação da natureza que leva à sua asfixia. A vanguarda dessa técnica, não por acaso, é a indústria armamentista. Ela leva a uma política da morte, tanatopolítica, à nossa autoaniquilação. Nas palavras de Benjamin: “Para que falar de progresso a um mundo que afunda na rigidez cadavérica? (…) Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia da catástrofe”.

Nessa mencionada linhagem de crítica positiva, ele sonhou com uma “segunda técnica”, emancipadora, calcada em um jogo com a natureza e que nos libertaria das penas do trabalho. Em sua visão, a fotografia e o cinema seriam os exemplos principais: duas técnicas que alargam o nosso campo de ação, nos empoderam, ao invés de destruírem as naturezas interna (tornando o homem alienado) e externa (acabando com a nossa “casa”): “A técnica não é dominação da natureza: é dominação da relação entre natureza e humanidade”.

Benjamin criticou o conceito utilitarista da social-democracia de um Josef Dietzgen, que via no trabalho apenas um meio de conquista e submissão da natureza: “Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo”.

Ou seja, essa concepção capitalista (e mesmo a social-democrata) do trabalho associa-se à “primeira técnica” e tem a sua figura máxima no fascismo. Esse raciocínio de Benjamin também se revela acurado e profético. Como anotou em 1948 Robert Antelme, que lutou na resistência à ocupação nazista na França: “Quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se SS”.

Aparentemente, a marcha incontornável da humanidade em direção ao precipício (em regimes capitalistas puros, nos de capitalismo de Estado e nos que tentaram, de modo infeliz, a ditadura dos partidos comunistas) não pode ser alterada sem um levante de uma população que, lamentavelmente, parece cada vez mais fascinada pelo mundo da técnica e dos gadgets.

Como no mito dos lemingues que se suicidam no mar, nossa espécie supostamente racional faria algo semelhante por meios mais “sofisticados”. Benjamin, novamente, criticando o modelo de progresso incorporado inclusive pelo marxismo, anotou: “Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o freio de emergência da humanidade que viaja neste trem”. Se não soubermos responder ao Kairós, ao tempo oportuno, para ceder a esse reflexo de puxar o freio, poderá ser tarde demais.

A chamada “força do mercado”, esse “quarto poder” que efetivamente manda e desmanda no mundo, está calcada nesse modelo de técnica predadora sem o qual as indústrias (e suas ações no mercado) não existiriam. O capitalismo se alimenta da Terra, mas desconsidera que esta mesma Terra é finita e está sendo exaurida.

O filósofo Hans Jonas dedicou os últimos anos de sua longa vida (1903-1993) à construção de uma nova ética da responsabilidade à altura desses desafios contemporâneos. Ele afirmava que “não temos o direito de hipotecar a existência das gerações futuras por conta de nosso comodismo” e propôs uma virada.

Ao invés de construir um modelo calcado no presente, com o objetivo do viver bem e da felicidade conectados ao aqui e agora, estabeleceu o desafio de construir uma ética do futuro: da destruição da casa-Terra, ele deduz o imperativo de salvar essa morada para garantir a possibilidade de vida futura.

Em vez de apostar no modelo liberal do progresso infinito a qualquer custo ou de acreditar na promessa revolucionária que traria de um golpe o “paraíso sobre a Terra”, ele aposta em um “summum bonum” moderado, modesto, o único possível para a nossa sobrevivência. Fala de um “princípio de moderação”, reconhecendo que a conta deveria ser paga pelos que mais possuem.

Hoje, podemos dizer que esse futuro que ele desenhava, ou seja, esse tempo já sem muito tempo de sobrevida, tornou-se o nosso tempo. Sua “heurística do medo” —a saber, uma pedagogia da humanidade que se transformaria a partir do confronto com a visão medonha de seu fim muito próximo— soa ainda poderosa, mas um tanto inocente, mesmo reconhecendo que suas ideias influenciaram protocolos como o Acordo de Paris, de 2015.

Observando a sequência de crimes socioambientais, parece que essa heurística não está rendendo frutos. Não aprendemos com as catástrofes, e isso nos levará, caso não alteremos nosso curso, à catástrofe final. Ou seja, a emoção do medo do Armagedom está sendo vencida pela razão instrumental e sua promessa (distópica) de transformar a natureza em mercadoria.

A questão é: quem vai estar aqui para consumir quando apenas 50 bilionários tiverem a mesma riqueza que 6 bilhões de habitantes da Terra e, pior, quando a Terra estiver chapinhando no cafarnaum a que nos leva esse modelo de progresso?

Diretora da Oxfam Internacional, Winnie Byanyima tem repetido que os 26 bilionários mais ricos do mundo possuem o mesmo que os 3,8 bilhões de habitantes mais pobres dessa bola azul. A entropia ecológica e a social caminham de mãos dadas e devem ser combatidas juntas.

Um lamentável e terrível exemplo da situação em que nos encontramos em termos dessa submissão a um determinado modelo liberal associado a uma técnica espoliadora e destrutiva é justamente o que acaba de ocorrer com o rompimento da barragem da empresa Vale em Brumadinho (MG).

Apenas a arrogância fáustica, a hybris que cega, o sentimento de onipotência pode justificar que essa barragem (como tantas outras) tenha sido construída logo acima de uma área urbana e das instalações dos funcionários da empresa. Novamente a situação de risco associada a esse tipo de tecnologia ficou exposta. Os alarmes que não soaram reproduzem o silêncio da humanidade diante das repetidas manifestações da violência da técnica.

O cerne do capitalismo é o lucro e isso explica, nesse caso e em outros, tudo de modo simples e direto. O crime de Brumadinho deve ultrapassar 300 vítimas fatais diretas, fora a destruição de toda uma região habitada também por pescadores, ribeirinhos e indígenas pataxó que dependiam diretamente do rio Paraopeba para a sua sobrevivência. Se pensarmos nos inúmeros atingidos, apenas no Brasil, por barragens (de mineradoras e de hidroelétricas), fica claro que não se trata apenas de uma questão de “barragem a montante”.

O caso dos índios juruna da Volta Grande do Xingu é paradigmático: essa população que vivia (apesar das pressões do agronegócio e da proximidade da rodovia Transamazônica) em harmonia com o seu meio e de modo feliz viu o seu rio —fonte de sua vida, água, alimentos, transporte, rituais, lazer etc.— baixar a um nível que a transformou, da noite para o dia, em uma população empobrecida e dependente de ajuda.

Detalhe: a queda do nível do rio foi decorrência da instalação e do funcionamento, desde 2015, a poucos quilômetros de sua aldeia, da hidrelétrica de Belo Monte, a terceira maior do mundo.

Esse fato possibilitou que uma mineradora canadense, a gigante Belo Sun, tente agora implementar na mesma região o que será a maior mineração de ouro a céu aberto do Brasil, com direito a uma barragem de rejeito ao lado do rio Xingu. Sintomaticamente, uma grande operação técnica abre caminho para outra.

O ISA (Instituto Socioambiental) tem alertado em muitas ocasiões que, das 63 espécies endêmicas de peixes conhecidas da bacia do rio Xingu, 26 podem ser encontradas apenas na Volta Grande. Com apenas 20% da vazão, elas e uma riqueza de animais e plantas incalculável estão sob risco, para não dizer condenadas à extinção.

O atual modelo de política deste governo, aplicado aos indígenas, implica uma continuidade da ideologia colonial que via no Brasil e na sua população autóctone mera fonte de obtenção de riqueza: a terra é reduzida à categoria de commodity e os habitantes são reduzidos a trabalho escravo ou mal remunerado e (eventualmente) a consumidores de produtos baratos.

A negação da diferença, a anulação do “outro”, a ideia de que “o índio quer vir para a cidade, quer trabalhar e ter seu carro” significam uma continuação do genocídio indígena.

Durante a ditadura militar (1964-1985), esse mesmo tipo de ideologia era propagada. A partir da Doutrina de Segurança Nacional, baseada na ideia de integridade do território e do povo e de proteção contra as ameaças e agressões —base que, portanto, influencia bastante o governo hoje—, a população indígena era vista como “estrangeira” que deveria ou ser forçada a abandonar a sua cultura (produzindo o etnicídio) ou ser exterminada (perpetrando o genocídio).

A princípio, concebia-se a região amazônica como deserta de pessoas, ou seja, negava-se a existência de uma pungente e riquíssima cultura plural, milenar e exemplar. O Estatuto do Índio (lei nº 6.001/1973) permitiu a exploração de madeira em terras indígenas bem como a remoção de suas populações para liberar áreas para a mineração ou outras obras públicas.

Vários e abalizados estudos mostram que as terras indígenas são as mais capazes de preservar a natureza. Essa preservação vai no sentido oposto ao da entropia a que leva nosso atual modelo econômico-tecnológico. Os indígenas são, como mostrou recentemente a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em um artigo na revista piauí (“Povos da megadiversidade”), portadores da diversidade que está no cerne do seu mundo.

No Brasil existem 305 etnias que falam ao todo 274 línguas —que país no mundo possui riqueza cultural igual? São responsáveis pelas “terras pretas”, locais de fantástica fertilidade, herança de milênios de práticas técnicas indígenas, e pela agrodiversidade, sem a qual não pode haver segurança alimentar, deixando a humanidade à mercê de pragas e da fome.

Cito a antropóloga: “No Alto Rio Negro há mais de cem variedades de mandioca; nos caiapós, 56 variedades de batata-doce; nos canelas, 52 de favas; nos kawaiwetes, 27 de amendoim; nos wajãpis, 17 de algodão; nos baniuas, 78 de pimento”. Já o agronegócio com suas monoculturas, como se sabe, via “primeira técnica”, tende a reduzir a biodiversidade a um mínimo.

Voltando ao modelo da “segunda técnica”, podemos dizer que também as técnicas indígenas são lúdicas e visam não uma dominação da natureza, mas um jogar com ela. Na cosmovisão indígena não existe esse traçado entre natureza e cultura, mas, antes, uma série de transformações e mutações que conectam deuses, humanos, animais, vegetais e minerais. Não há espaço em seu panteão para um deus Prometeu da técnica na forma de profeta do deus capital.

A artista mineira Lais Myrrha transmitiu essa ideia de modo muito delicado e preciso em seu trabalho “Dois Pesos e Duas Medidas”, que ocupava o vão central da Bienal de São Paulo de 2016. Essa obra consiste em dois enormes pilares em forma de totens: um construído com material presente nas construções indígenas (barro, palha, cipó, madeira) e outro com técnica “ocidental” de alvenaria (tijolo, cimento, ferragens, PVC, vidro).

O título é importantíssimo, como costuma acontecer em obras conceituais: por que desprezamos a tecnologia indígena, que dura já milênios e nunca destruiu de modo irreversível um centímetro da Terra, e, por outro lado, veneramos a nossa técnica prometeica ocidental, que em 200 anos praticamente asfixiou a Terra, mudou seu clima e instaurou uma nova era geológica, o Antropoceno?

Hans Jonas notou que o sonho da civilização, ou seja, de domesticação da natureza, nascera do medo dessa mesma natureza e da ideia de sua conquista como um ato heroico. Hoje as coisas estão invertidas. Nós somos o perigo para a natureza. As marés que nos destroem (de água ou de lama) são respostas dessa natureza ferida.

Como escreve Jonas: “A euforia do sonho fáustico se dissipou e nós despertamos sob a luz diurna e fria do medo”. A resposta a esse medo, no entanto, não deve ser o pânico, mas a ativação de uma nova ética que inclui pela primeira vez a natureza e não se limita a ser apenas intersubjetiva.

Afinal, o ser humano é, antes de mais nada, capaz de responder pelos seus atos. Se somos essencialmente seres capazes de assumir responsabilidade, aparentemente uma parte de nossa humanidade está sendo negada quando crimes socioambientais —ou seja, contra a população e a natureza— como esses ocorridos no Brasil são assimilados sem que ninguém seja responsabilizado.

Temos que reestabelecer a lei da multiplicidade que até hoje garantiu a reprodução da vida sobre a Terra. Os perigos da (primeira) técnica não podem ser ocultados sob a luz brilhante do fascínio por suas conquistas.

Entenda-se: não se trata de uma cruzada obscurantista contra a técnica, muito menos contra as ciências, muito pelo contrário. A própria ciência de ponta aporta os dados incontornáveis quanto à necessidade de mudarmos de rumo. Temos poder demais, não de menos —e, por outro lado, também temos a liberdade de escolher um novo rumo. Ou pelo menos: temos a liberdade de poder lutar por essa liberdade.

A responsabilidade não poderia existir sem o “a priori” da liberdade. O poder tecnológico pode ser transformado em potência que nos permitirá frear nossa “locomotiva”, evitando outras Bhopal, Chernobyl, Fukushima, Samarco, Vale, o césio 137 em Goiânia, o derrame de óleo do Exxon Valdez, o aquecimento global etc.

No entanto, a dificuldade da ética do futuro, proposta por Hans Jonas, é que a compaixão se dá com relação aos que estão próximos. O filósofo afirma: “A caridade começa em casa”. Exigir compaixão para com os pósteros demanda um nível de abstração e de altruísmo raros. Daí ser mais efetiva uma heurística do medo voltada para os perigos do presente e que inscreva a história das nossas catástrofes, em oposição a uma falsa história triunfal autocomplacente.

Um amigo e contemporâneo de Hans Jonas, Günther Anders (o primeiro marido de Hannah Arendt e primo de Walter Benjamin), pensou de modo claro essa necessidade de termos diante dos olhos as catástrofes do passado e do presente, como meio de uma educação moral da humanidade.

Ele afirmava que é necessário, seguindo-se um imperativo da memória, dar-se uma “nota de eternidade” a cada choque. Anders tinha consciência de que vivemos em um estado de emergência no que tange a nosso (des)equilíbrio ecológico, que exige atitudes firmes.

Concluo citando as generosas palavras que compõem o último trecho do poderoso relato que Davi Kopenawa fez ao antropólogo Bruce Albert, publicado no livro que precisamente leva o título de “A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami”: “Os xapiri [espíritos] se esforçam para defender os brancos tanto quanto a nós. Se o sol escurecer e a terra ficar toda alagada, eles não vão poder mais ficar empoleirados em seus prédios nem correr no peito do céu sentados em seus aviões! Se Omoari, o ser do tempo seco, se instalar de vez perto deles, eles só terão fios de água para beber e assim vão morrer de sede. É bem possível que isso aconteça mesmo! No entanto, os xapiri continuam lutando com valentia para nos defender a todos, por mais numerosos que sejamos. Fazem isso porque os humanos lhes parecem sós e desamparados. Nós somos mortais e essa fraqueza lhes causa pesar”.

Ao invés da autoimagem arrogante do “homo faber” prometeico e poderoso, que levou a um modelo de desenvolvimento que privilegia a poucos e destrói o chão em que vivemos, essa figura de nossa fragilidade me parece muito mais empoderadora para enfrentarmos os enormes desafios que temos diante de nós.

Ela poderá estar na base de um “princípio de moderação” que seria capaz de nos garantir uma maior sobrevivência sobre esta esfera azul e, sobretudo, um “viver em comum” mais ético.

Márcio Seligmann-Silva é professor titular de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

 

‘Aposentadoria como conhecemos hoje vai desaparecer’, diz economista

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Para Hélio Zylberstajn, com menos vínculos de emprego, Previdência do futuro vai depender de renda básica universal e poupança individual

Ana Estela de Sousa Pinto Folha de São Paulo – 21 de janeiro de 2019

Os vínculos de emprego são cada vez mais raros e, no futuro, a aposentadoria como conhecemos vai acabar, afirma o professor da USP e pesquisador da Fipe Hélio Zylberstajn.

Para substituir um sistema hoje dependente de contribuições sobre a folha de salário, ele defende uma aposentadoria de três pernas: renda universal para idosos, Previdência no modelo atual e sistema de capitalização (no qual quem ganha acima de um teto tem uma conta individual).

A proposta da Fipe, coordenada por Zylberstajn, é apoiada por entidades do mercado de planos de previdência —Fenaprevi, Abrapp, CNseg e ICSS. “É um avanço enorme, um setor empresarial que não tem receio de dizer que gostaria que essa reforma fosse feita. É boa para eles? É. Mas é boa para o país.”

No modelo sugerido, o setor privado administraria  as contas individuais. Para impedir que má gestão pulverize a poupança do trabalhador, planos que não entreguem bom rendimento seriam dissolvidos, e as contas seriam transferidas para os mais rentáveis.

“É a melhor forma de garantir que os recursos vão ser alocados da melhor maneira. Se deixar com o Estado, aí, sim, pode haver problemas de governança”, afirma ele.

O economista afirma que o ideal seria votar primeiro a reforma do setor público. “Assim ficariam no palco, com a iluminação ligada, e teriam que explicar por que defendem seus privilégios.” Mas também vê riscos na estratégia de fatiamento da reforma.

Para os críticos, uma reforma mais radical da Previdência, estrutural, pode atrasar mais mudanças urgentes. Vale a pena correr esse risco?

A reforma estrutural é para o futuro, não teria por que atrasar. Mas, se atrasar mais três, seis meses e chegar a uma solução definitiva, vale a pena. E, se mudar tudo junto, quem está há pouco tempo no sistema atual já migra para o novo, o que traz ganhos mais imediatos.

Outra crítica é que a capitalização tem mais risco. Exemplos citados são o do Chile e os de Argentina e Hungria, que recuaram.

Nesses países, eles transformaram totalmente o sistema de repartição em capitalização. Nossa proposta dilui os riscos, porque tem três pilares. Renda básica, de risco zero, e sistema de repartição —pequeno e sustentável— repõem a renda de 75% dos trabalhadores. A capitalização tem o risco de mercado, mas também a possibilidade de ganhar valor.

Uma questão importante é o financiamento da transição. Nosso projeto não afeta as contas públicas. A arrecadação do INSS é preservada. A parte de capitalização recebe dinheiro que hoje vai para o Fundo de Garantia [FGTS]. Outras propostas sugerem capitalização só escritural. Uma parte da arrecadação do INSS é remunerada, mas continua no Estado. Nós propomos investir no mercado, e gerar investimento e crescimento.

O fato de ter o apoio de entidades desse mercado não abre um flanco para críticas de que serve aos interesses desses agentes?

Neste país, sempre que há um setor empresarial querendo propor uma política aparece o temor da identificação. As entidades que apoiam o projeto da Fipe concordaram em aparecer como financiadoras. É o contrário do que se critica: é transparência. É um avanço enorme, um setor empresarial que não tem receio de dizer que gostaria que essa reforma fosse feita. É boa para eles? É. Mas é boa para o país.

Seriam poucos tipos de plano, parecidos, e quem oferecer mais rentabilidade a menor custo ganha a competição. Estamos propondo um mercado competitivo, e o Brasil tem escala para criá-lo de forma transparente e regulada.

Como impedir que má gestão acabe com a previdência do trabalhador?

O mercado terá que criar regras. Por exemplo, um rendimento menor que uma faixa em torno da média levaria à dissolução do plano e as contas seriam transferidas para outro plano mais rentável. É a melhor forma de garantir que os recursos vão ser alocados da melhor maneira. Se deixar com o Estado, aí, sim, pode haver problemas de governança.

Tanto a Fipe quanto a equipe de Paulo Tafner propõem uma renda mínima para o idoso, mas na sua proposta o valor é mais baixo, pouco mais da metade do salário mínimo. Não é pouco para quem não conseguir entrar no mercado de trabalho formal?

É um incentivo para que as pessoas procurem entrar no mercado de trabalho. Alguém que ficou 20 anos registrado vai ter a renda mínima mais metade do salário de contribuição. Se ela ganhava o salário mínimo, a aposentadoria será 75% do salário mínimo. Ela não parte do zero, e ao mesmo tempo você está dizendo “esforce-se para conseguir”.

Mas não falamos em salário mínimo, e sim em reais. O salário mínimo desaparece como moeda na Previdência.

Um sistema de Previdência está ligado ao mercado de trabalho formal. Mas caminhamos para um mundo com menos vínculos.

É verdade, todas essas políticas estão sedimentadas no vínculo de emprego, e ele está desaparecendo. Será preciso repensar toda a regulamentação, todo o direito do trabalho.

Daqui a 30 ou 40 anos, a aposentadoria como conhecemos vai desaparecer ou se reduzir muito, porque ninguém vai ter emprego. Mas todo mundo precisará ter poupança. Provavelmente a aposentadoria do futuro vai ser a renda universal e a capitalização, e nossa proposta já encaminha para isso.

A proposta da Fipe menciona um pilar de poupança voluntária, mas estudos mostram que os brasileiros têm pouca propensão à poupança.

Em parte isso acontece por causa do nosso modelo atual, de repartição. Por que vou poupar se o Estado vai cuidar da minha aposentadoria? Para incentivar o investimento, é preciso reduzir a parte de repartição.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o trabalhador tem um plano fechado, da empresa em que trabalha e faz uma aposentadoria privada. A aposentadoria de Previdência é deste tamanhinho.

É uma concepção diferente de papel do Estado, não é?

As propostas que criam pilar de capitalização vão nesse sentido também, de transferir responsabilidade para o indivíduo. Pelo que vem sendo divulgado, eles vão propor uma perna de mercado, mas ela não vai ser dominante.

Temer errou na comunicação. Prevaleceu o discurso de que iriam “matar os velhinhos”. Como evitar esse revés?

A estratégia pode ser ainda mais importante que a comunicação. Quando junta tudo, grupos que não querem ter seus privilégios atingidos atacam o projeto dizendo que ele prejudica os pobres. Bagunça tudo.

Defende fatiar a reforma? Sim e não. Se fosse possível, o ideal seria votar primeiro a nova Previdência, que é só para o futuro, mais fácil de explicar e de passar. Depois, a parte dos funcionários públicos. Só eles. Porque aí ficariam no palco, com a iluminação ligada, e teriam que explicar por que defendem tanto seus privilégios. Por que se aposentam com salário integral? Reajuste igual ao da ativa?

O terceiro passo seria o INSS, e mostrar que o pobre já se aposenta por idade mínima, de 65 anos. Nada mais justo que 65 para todo mundo.

O ideal seria fatiar nessa ordem. Mas qual é o governo que conseguiria ganhar três batalhas de PEC [proposta de emenda constitucional, que precisa ser aprovada por dois terços dos parlamentares] num mesmo ano?

O trade-off é este:  enviar tudo junto, com alto risco de ter que ceder em pontos importantes, ou algo mais seguro, mas mais difícil de passar.

Sua proposta retira parte da Previdência da Constituição. Não é uma faca de dois gumes? Não facilita mudanças que agravam as contas públicas?

É um dilema que temos enfrentado desde 1988. A ideia de vincular tudo, para que ninguém mexa. Prefiro tratar tudo em legislação complementar ou ordinária, porque essa é a função do Congresso. Quer mudar? Faz um grande debate e vota. Qual o sentido de congelar tudo na Constituição e depois não conseguir mexer?

Raio-X
Hélio Zylberstajn, 73, é professor da Faculdade de Economia da USP, especialista em mercado de trabalho, pesquisador da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) e coordenador de uma proposta de reforma da Previdência enviada ao governo Bolsonaro

 

Os africanos devem se livrar do desejo da Europa

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“De todos os grandes desafios que a África enfrenta nesse início de século, nenhum é tão urgente e tão cheio de consequências quanto a mobilidade de sua população. Em grande medida, o seu futuro imediato dependerá da sua capacidade de garantir que as pessoas possam se deslocar pelo continente tão frequentemente quanto possível, o mais longe possível, o mais rápido possível e, de preferência, sem nenhum entrave”. A reflexão é de Achille Mbembe, em artigo publicado por Le Monde, 10-02-2019. A tradução é de André Langer.

E faz um alerta: “Mas para que os africanos não sejam transformados em fragmentos de um planeta dotado de torres de vigilância, a Africa deve tornar-se seu próprio centro, sua própria potência, um vasto espaço de circulação, um continente-mundo. Deve completar o projeto de descolonização forjando para si uma nova política africana de mobilidade”.

Achille Mbembe é, juntamente com Felwine Sarr, co-autor de Écrire l’Afrique-Monde (Paris, Philippe Rey, 2017) e co-iniciador dos Ateliers de la Pensée de Dakar.

Achille Mbembe é autor do livro A Crítica da razão negra, São Paulo: n-1 edições, 2018.

Eis o artigo.

De todos os grandes desafios que a Africa enfrenta nesse início de século, nenhum é tão urgente e tão cheio de consequências quanto a mobilidade de sua população. Em grande medida, o seu futuro imediato dependerá da sua capacidade de garantir que as pessoas possam se deslocar pelo continente tão frequentemente quanto possível, o mais longe possível, o mais rápido possível e, de preferência, sem nenhum entrave. Além disso, tudo aí se desenvolve: tanto o crescimento da população, a intensificação da depredação econômica, quanto as dinâmicas da mudança climática.

Além disso, as grandes lutas sociais na África neste século se concentrarão tanto na transformação dos sistemas políticos, na extração dos recursos naturais e na distribuição da riqueza quanto no direito à mobilidade. Não há nada na criação digital que não se articulará aos processos de circulação. A revolução da mobilidade provocará profundas tensões e terá um peso nos equilíbrios futuros do continente, bem como sobre os de outras regiões do mundo, como já atestou a chamada crise migratória. E nós somos convidados a refletir sobre essas mudanças.

Para entender as implicações, ainda temos que dar as costas aos discursos neomaltusianos, muitas vezes alimentados com fantasmagorias racistas e que continuam a se espalhar.

 

Violência nas fronteiras

 

A “corrida para a Europa” é, a este respeito, um grande mito. O fato de que um habitante do planeta em quatro seja africano não representa nenhum perigo para ninguém. Afinal, atualmente, dos 420 milhões de habitantes da Europa Ocidental, apenas 1% é composto por africanos subsaarianos. Dos quase 1,3 bilhão de africanos, apenas 29,3 milhões vivem no exterior. Destes 29,3 milhões, 70% não tomaram o caminho da Europa ou de qualquer outra região do mundo. Eles se estabeleceram em outros países da África.

Na realidade, além de ser relativamente pouco povoada em vista de seus 30 milhões de quilômetros quadrados, a África emigra pouco. Em comparação com outros conjuntos continentais, a circulação de bens e de pessoas sofre muitos obstáculos, e é para desmantelar esses obstáculos que os tempos clamam.

Entretanto, é verdade que o custo humano das políticas europeias de controle das fronteiras continua a crescer, acentuando de passagem os riscos em que incorrem os eventuais migrantes. São incontáveis os migrantes que morrem durante a travessia. Cada semana traz a sua cota de histórias, umas mais escabrosas que as outras. Trata-se muitas vezes de histórias de homens, de mulheres e de crianças afogados, desidratados, intoxicados ou asfixiados nas costas do Mediterrâneo, do Mar Egeu, do Atlântico ou, cada vez mais, no deserto do Saara.

A violência nas fronteiras e pelas fronteiras tornou-se uma das características marcantes da situação contemporânea. Pouco a pouco, a luta contra as chamadas migrações ilegais assume a forma de uma guerra social agora travada em escala planetária. Dirigida mais contra as classes de populações do que contra indivíduos em particular, ela combina agora técnicas militares, policiais e de segurança e técnicas burocrático-administrativas, liberando fluxos de uma violência fria e, de vez em quando, não menos sangrenta.

Basta observar, a esse respeito, o vasto mecanismo administrativo que permite a cada ano mergulhar na ilegalidade milhares de pessoas legalmente estabelecidas, a cadeia de expulsões e deportações em condições realmente de tirar o fôlego, a abolição gradual do direito de asilo e a criminalização da hospitalidade.

O que dizer, além disso, da implantação de tecnologias coloniais para a regulação dos movimentos migratórios na era eletrônica, com seu cortejo de violências cotidiana, a exemplo dos intermináveis controles faciais, das incessantes caçadas de migrantes indocumentados, das muitas humilhações nos centros de detenção, dos olhos desfigurados e dos corpos algemados de jovens negros que são arrastados pelos corredores das delegacias de polícia, de onde saem com um olho roxo, com um dente quebrado, com uma mandíbula quebrada, o rosto desfigurado, a multidão de migrantes aos quais arrancam as últimas roupas e os últimos cobertores em pleno inverno, que são impedidos de se sentar nos bancos públicos, na aproximação dos quais fechamos as torneiras de água potável?

 

Novos êxodos

 

No entanto, o século não será apenas o dos obstáculos à mobilidade, tendo como pano de fundo a crise ecológica e a aceleração das velocidades. Também será caracterizado por uma reconfiguração planetária do espaço, da aceleração constante do tempo e uma profunda divisão demográfica.

Com efeito, em 2050, dois continentes reunirão quase dois terços da humanidade. A África subsaariana terá 2,2 bilhões de habitantes, ou seja, 22% da população mundial. A partir de 2060, estará entre as regiões mais populosas do mundo. A mudança demográfica da humanidade em prol do mundo afro-asiático será um fato consumado. O planeta se dividirá em um mundo de pessoas idosas (EuropaEstados UnidosJapão e partes da América Latina) e um mundo emergente, que abrigará as populações mais jovens e numerosas do planeta. O declínio demográfico da Europa e da América do Norte continuará inexoravelmente. As migrações não vão parar. Pelo contrário, a Terra está às vésperas de novos êxodos.

O envelhecimento acelerado das nações ricas do mundo é um evento de grande alcance. Será o reverso dos grandes choques causados pelos excedentes demográficos do século XIX, que levou à colonização europeia de partes inteiras da Terra. Mais do que no passado, o governo da mobilidade humana será o meio pelo qual uma nova repartição do globo será colocada em prática.

Uma linha de fratura de um novo tipo e de alcance planetário desempatará a humanidade. Ela oporá aqueles que gozarão do direito incondicional de circulação e de seu corolário, o direito à velocidade, e aqueles que, tipificados essencialmente pela raça, serão excluídos do desfrute desses privilégios. Aqueles que assumirão os meios de produção da velocidade e das tecnologias da circulação se tornarão os novos mestres do mundo. Somente esses poderão decidir quem pode circular, quem deve ser condenado à imobilidade e quem deve se deslocar apenas em condições cada vez mais draconianas.

 

Um enorme Bantustão

 

Se, nesta nova ordem global da mobilidade, a África não se encarregar do reordenamento de sua economia espacial, ela será duplamente penalizada, de dentro e de fora. Porque a Europa decidiu não apenas militarizar suas fronteiras, mas ampliá-las por toda parte. Estas não se limitam mais ao Mediterrâneo. Elas agora se situam ao longo das rotas em fuga e dos percursos sinuosos que os candidatos à migração tomam. Elas se movem conforme as trajetórias que eles seguem. Na realidade, é o corpo do africano, de cada indivíduo africano tomado individualmente, e de todos os africanos como uma classe racial, que constitui agora a fronteira da Europa.

Esse novo tipo de corpo humano não é apenas a pele do corpo e o corpo abjeto do racismo epidérmico, mas o da segregação. É também o corpo-prisão dobrado do corpo-fronteira, aquele cuja mera aparição no campo fenomenal desperta, desde o início, desconfiança, hostilidade e agressão. O imaginário georacial e geocarcerário que tinha sido aperfeiçoado, não muito tempo atrás, pela África do Sul da época do apartheid não para de se universalizar.

Mais ainda, a Europa quer se arrogar o direito de determinar unilateralmente qual africano poderá se mover e sob quais condições, inclusive dentro do próprio continente. Depois de tê-la desmembrado em 1884-1885, ela busca, no início do século XXI, transformá-la em um imenso Bantustão e acentuar sua inclusão diferencial nos circuitos da guerra e do capital, ao mesmo tempo em que intensifica sua depredação. A política europeia de luta contra a imigração visa, portanto, o advento de um novo regime de segregação global. Isto é, em muitos aspectos, o equivalente da “política racial” de ontem. A África é seu principal alvo.

governo das mobilidades em escala global constitui, como a crise ecológica, um dos maiores desafios do século XXI. A reativação das fronteiras é uma das respostas de curto prazo ao processo de longo prazo de repovoamento do planeta. As fronteiras, no entanto, não resolvem estritamente nada. Elas apenas agravam as contradições resultantes da contração do planeta.

De fato, nosso mundo tornou-se muito pequeno. Nisso, distingue-se do mundo do período das “grandes descobertas”, do mundo colonial das explorações, das conquistas e dos assentamentos. Ele não é mais extensível ao infinito. É um mundo finito, atravessado por todos os tipos de fluxos descontrolados e até mesmo incontroláveis, dos movimentos migratórios, dos movimentos de capital ligados à financeirização extrema das nossas economias e às forças extrativas que dominam a maior parte delas, especialmente no Sul. A tudo isso se deve acrescentar os fluxos imateriais conduzidos pelo advento da razão eletrônica e digital, a aceleração das velocidades e a transformação dos regimes do tempo.

 

Desbalcanizar o continente

 

Como, nesse contexto, pensar a África que vem? Se, fugindo de seus países de origem, muitos africanos correm para lugares onde ninguém os espera ou quer, este é o caso de cidadãos de outras regiões do mundo que, por mais curioso que possa parecer, esperam reconstruir suas vidas na África. Como quem não quer nada com nada, o continente também está prestes a se tornar o centro de gravidade de um novo ciclo de migrações globais. Os chineses se estabeleceram no coração de suas principais cidades e até mesmo em suas aldeias mais remotas, enquanto colônias comerciais africanas se estabelecem em várias megacidades da Ásia.

Dubai, Hong Kong, Istambul, Guangdong e Xangai substituem os principais destinos euro-americanos. Dezenas de milhares de estudantes estão indo para a China, ao passo que Brasil, Índia, Turquia e outras potências emergentes estão batendo à porta. Uma extraordinária vernacularização das formas e estilos está em curso, e está transformando as grandes cidades africanas em capitais mundiais de uma imaginação ao mesmo tempo barroca, crioula e mestiça.

Mas para que os africanos não sejam transformados em fragmentos de um planeta dotado de torres de vigilância, a África deve tornar-se seu próprio centro, sua própria potência, um vasto espaço de circulação, um continente-mundo. Deve completar o projeto de descolonização forjando para si uma nova política africana de mobilidade.

Este não vai acontecer sem uma descolonização cultural. Os africanos devem se livrar do desejo da Europa e aprender a guardar entre si o melhor de si mesmos e da sua gente. O desejo da Europa não pode ser nem seu horizonte existencial nem a última palavra de sua condição.

Depois, a descolonização territorial. Nada, historicamente, justifica o corte do continente entre o norte e o sul do deserto do Saara. Além disso, nenhum africano ou pessoa de origem africana pode ser tratado como um estrangeiro em qualquer parte do continente africano. Desbalcanizar o continente aparece, portanto, cada vez mais, como uma das condições para proteger vidas africanas atormentadas em todo o mundo.

Para conseguir isso, é urgente repensar de alto a baixo o princípio da glaciação das fronteiras coloniais adotado pela Organização da Unidade Africana (OUA, ancestral da União Africana) em 1963. Ao consagrar sua intangibilidade, as fronteiras herdadas da colonização foram transformadas na pedra jurídica explorada pela Europa para acelerar a “bantustanização” do continente.

 

Barreiras a serem removidas

 

A descolonização dificilmente será concluída antes de todos os africanos terem o direito de circular livremente pelo continente. Um primeiro passo nessa direção seria generalizar a concessão de vistos na chegada a todo viajante portador de um passaporte africano. A longo prazo, a liberalização do direito de residência deve complementar o direito de livre circulação das pessoas.

O maior desafio que a África enfrenta não é demográfico. Não é, como na época colonial, fixar as fronteiras, restringir a passagem, forçar as populações a permanecerem imóveis e sedentárias e intensificar os laços locais. É para organizar a circulação e permitir uma intensificação da mobilidade no interior do continente.

É intensificando as mobilidades e desenvolvendo as interconexões entre os lugares que serão desmantelados os antigos esquemas espaciais e infraestruturais que remontam à época da colonização. Hoje, não se trata mais de construir a soberania estatal com base em uma clara diferença entre o interior e o exterior. Trata-se de remover os obstáculos à mobilidade abolindo a multiplicidade de postos de fronteira, removendo barreiras físicas e políticas à fluidificação dos fluxos e desburocratizando o movimento. É assim que a África ganhará em velocidade e os africanos poderão se deslocar dentro do seu continente ao menor custo.

 

Uma fábula de improdutividade

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Marcos Mendes – 10 Setembro 2015

João é inteligente e nasceu numa família de classe alta. Estudou em boas escolas e entrou para uma universidade pública, gratuita, no curso de Engenharia. Formado, viu que os melhores salários iniciais de engenheiros estavam em R$ 5 mil. Fez concurso para um cargo de nível médio num tribunal: salário de R$ 9 mil mais gratificações, aposentadoria integral, estabilidade, expediente de seis horas. O contribuinte custeou a formação de um engenheiro e recebeu um arquivador de processos sobrerremunerado. Amanhã João estará em frente ao Congresso, com seus colegas, todos em greve por aumento salarial. Não terá o dia de trabalho descontado nem se sente remotamente ameaçado de demissão.

Pedro não tem muito talento intelectual. Mas sua família pôde pagar uma boa escola, o que lhe garantiu uma vaga num curso não muito concorrido em universidade pública. Carente de habilidades acadêmicas, Pedro não se adaptou e mudou de curso duas vezes, deixando para trás centenas de horas-aula desperdiçadas e duas vagas que poderiam ter sido ocupadas por outros estudantes que jamais terão acesso àquela universidade. Foi fácil desistir dos cursos, pois Pedro nada pagou por eles.

Após oito anos na universidade, Pedro finalmente se formou em Biologia. Sonha em ter um emprego igual ao de João. Entrou num cursinho preparatório para concursos públicos. Lá conheceu centenas de jovens formados em universidades públicas que, em vez de irem para o mercado de trabalho aplicar os seus conhecimentos, estão em sala de aula decorando apostilas para conseguirem um emprego público.

Jorge, o dono do cursinho, é um brilhante advogado que poderia contribuir para a sociedade redigindo contratos empresariais. Mas descobriu que ganha mais dinheiro preparando candidatos ao serviço público.

Um dos professores do cursinho de Jorge é Manuel, que também abandonou sua formação universitária e mudou de ramo. Ao perceber que jamais exercerá a profissão original, ele pediu desfiliação do respectivo conselho profissional.

Mas não consegue, porque Márcia, funcionária daquele conselho, tem como missão criar todo tipo de dificuldade às desfiliações e manter em dia a arrecadação compulsória. Manuel desistiu e vai pagar a contribuição pelo resto de sua vida profissional, ainda que não se beneficie em nada e pouca satisfação seja dada pelo conselho profissional acerca do uso desse dinheiro.

As limitações acadêmicas de Pedro o impedem de ser aprovado em concurso público. Ele vai ser um medíocre professor numa escola de ensino fundamental de segunda linha (pública ou privada), oferecendo ensino de baixa qualidade às novas gerações das famílias que não podem pagar por uma escola melhor. Pedro só conseguiu essa vaga porque há uma reserva de mercado: por lei, as escolas de ensino fundamental só podem contratar professores com diploma de nível superior. Fosse permitido contratar universitários, diversos graduandos em Biologia mais talentosos e motivados que o diplomado Pedro estariam em sala de aula, oferecendo boas aulas às crianças.

Antônio é tão brilhante quanto João. Daria um excelente engenheiro, mas nasceu em família pobre e estudou em escola pública. Teve professores limitados, no padrão de Pedro, e a desorganização administrativa da escola piorava as coisas: muitas vezes não havia professores em sala. Falta com atestado médico não dá demissão.

Antônio até conseguiu passar no vestibular de Engenharia em universidade pública, pelo sistema de cotas, mas sua formação deficiente em Matemática foi uma barreira intransponível. Abandou o curso, deixando mais horas-aula perdidas e mais uma vaga ociosa na conta dos contribuintes.

Antônio, porém, é empreendedor. Não se abalou com o insucesso universitário, aprendeu a consertar eletrônicos por meio de vídeos no YouTube. Montou um pequeno negócio de manutenção de smartphones e computadores. Seu talento poderia torná-lo um grande empresário. Mas para crescer ele precisa transferir sua empresa do regime de tributação Simples para a tributação normal, pagando impostos muito mais altos, porque o governo precisa de muito dinheiro para pagar altos salários, para custear a universidade gratuita que desperdiça vagas e para sustentar escolas públicas que não dão aula, entre outras despesas. Mesmo assim, o governo permanece em déficit e toma empréstimo para se financiar, aumentando a taxa de juros. Com impostos altos e crédito caro, Antônio prefere manter seu negócio pequeno. A grande empresa e seus empregos morreram antes de nascer.

Chico é um líder talentoso. Dirige uma central sindical que congrega os sindicatos dos companheiros do Judiciário e dos professores, entre outras categorias. Chico está em frente ao Congresso Nacional apoiando a greve de Pedro por melhores salários. Faz um discurso contra os neoliberais, que só pensam em cortar gastos públicos e arrochar os trabalhadores. Chico não tem muito do que reclamar (embora, como líder sindical, a sua especialidade seja, justamente, reclamar): além da remuneração paga pelo sindicato (e custeada pelo imposto sindical, cobrado obrigatoriamente dos contribuintes), ele está aposentado pelo INSS desde os 52 anos de idade. Até o fim da sua vida receberá muito mais do que contribuiu para a Previdência.

Nenhum dos personagens acima citados tem comportamento ilegal. Eles jogam o jogo de acordo com as regras que estão postas. O erro está nas regras. Mudá-las requer superar as dificuldades das decisões coletivas. Não mudá-las implica continuar com talentos profissionais e dinheiro público mal alocados, empregos improdutivos, potenciais inexplorados, gasto público excessivo, oportunidades perdidas, incentivos errados. Uma fábula de improdutividade.

*Marcos Mendes tem graduação, mestrado e doutorado em economia, custeados pelos contribuintes, em universidades públicas. Não se anuncia como ‘economista’, pois não é filiado ao conselho regional de economia e não quer ser processado por isso. É servidor público bem remunerado

 

“Não existe desenvolvimento sem mercado, e não existe desenvolvimento sem Estado” destaca Paulo Gala

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Economista da FGV, Paulo Gala tem se tornado enormemente popular na internet em grupos que se sentem incomodados ou que de alguma forma contestam a hegemonia liberal no campo econômico. Proponente de uma corrente de cunho keynesiana e  estruturalista, Gala é um dos economistas que vêm se destacando entre os chamados novos desenvolvimentistas. Gala concedeu-nos uma breve entrevista, onde responde a algumas perguntas feitas pela equipe do Reação.

Professor, além de economista e de professor, o senhor é autor de alguns livros. Qual deles lhe deu mais prazer escrever?

Acho que o livro que a gente mais gosta é em geral o último que a gente escreveu (risos), até porque é o livro que temos as informações e teorias mais frescas na cabeça. Eu gosto muito do mais recente, porque nele eu consegui sintetizar e unificar tudo o que eu aprendi no meu doutorado nele. Utilizei este ferramental mais recente de redes, de big data e complexidade fazendo paralelos, ao meu ver, muito bons entre Ásia e América Latina.

Alguns economistas ortodoxos questionam sua linha de trabalho, de viés setorial, apresentando exemplos em contrário, como ocaso do México e Bangladesh que tem uma enorme participação de manufaturados nas exportações e, entretanto, não são desenvolvidos. Como você responderia a eles?

De fato, nem sempre existe correlação entre o que é exportado nominalmente e o que de fato existe no tecido produtivo.  Mas isso não fragiliza a minha tese, ao contrário, quando um país exporta tudo o que ele importa, ele torna-se uma maquila plena. Ou seja, existe uma distinção entre importar insumos e agregar valor com a adição de novas tecnologias a um produto exportável e a condição de maquila, como é o caso do México. O México hoje exporta 30 milhões de televisores para os Estados Unidos, mas quando se faz um olhar mais atento, eles apenas embalam, fazem a caixa de papelão e confeccionam os manuais de instruçãoA TV chega pronta da Ásia e vai para os Estados Unidos sem qualquer agregado técnico novo. O caso de Bangladesh é exatamente a mesma situação.

Entretanto, a condição inicial de maquila pode ser útil para que o país possa começar a aprender a ele próprio agregar valor e produzir de fato. E existem controles para identificar e distinguir casos de produtividade real e de maquila. Usa-se uma série de varáveis auxiliares para distinguir casos genuínos de complexidade de casos de complexidade aparente.

Os ortodoxos apontam que as instituições são mais importantes que o desenvolvimento setorial, e que, portanto, a abordagem estruturalista seria falha. O que responderia?

Trabalhei muito com instituições no mestrado, inclusive usando a obra do Douglass North. Instituições e sistema produtivo se retroalimentam, de forma que um ajuda o outro e vice-versa. Contudo, a causa eficiente e primeira, historicamente falando, foi a estrutura produtiva, que ao fornecer mudanças técnicas de grande impacto produtivo força as instituições a se modernizarem e a se adequarem, o que de fato ajuda em contrapartida o sistema produtivo a se tornar mais eficiente ainda.  Um caso notável é a própria revolução industrial inglesa, que foi mais fruto do mercantilismo dos britânicos, e da expansão das manufaturas britânicas pelo mundo, do que de uma revolução institucional. Veneza e a Holanda foram casos análogos, no qual as instituições respondem a uma mudança profunda na estrutura produtiva.

Dado que nossa entrevista se deu a princípio, ao redor de algumas respostas a ortodoxia, qual sua opinião sobre o que se entende por ortodoxia em economia?

Eu sou pragmático, pois acho que a ortodoxia econômica tem aspectos interessantes, é muito importante, e, inclusive, minha graduação e mestrado foram todos sobre autores ortodoxos. Entretanto, a ortodoxia eu vejo apenas como um primeiro passo para se aprender sobre o desenvolvimento, e como eu gosto de empregar conhecimentos de outros campos do saber e de outras ciências sociais na minha maneira de ver o mundo, e não apenas fixar-se em modelos, acabei virando um “heterodoxo”. Inclusive sobre os papéis do Estado e do mercado, eu acredito que nós temos que ser pragmáticos. Não existe desenvolvimento sem mercado, e não existe desenvolvimento sem Estado. Os casos de sucesso são exemplos de relações simbióticas entre Estado e mercado, onde o mercado e o Estado se ajudam mutuamente.

Hoje o Estado se tornou um fator de despoupança na economia brasileira. Diversos economistas heterodoxos argumentam que o país não retomará os investimentos sem o auxílio de uma poupança pública, e por isso defendem alterações no arranjo macroeconômico. Qual o caminho para o desenvolvimento dessa poupança na sua perspectiva?

Para mim, o arranjo macroeconômico ideal sempre foi política fiscal contracionista, política cambial competitiva e uma política monetária que mantenha a inflação na meta de inflação. Se tudo for feito de maneira correta, o câmbio aumenta a lucratividade das empresas, e serão esses lucros que irão financiar o crescimento econômico. Os casos da China e da Coréia foram ilustrativos de que o crescimento veio do lucro das empresas e não da poupança das famílias. Num país pobre, a propensão a consumir é alta e as pessoas não têm como poupar, então uma política que dependa exclusivamente disso fica limitada. Por isso é necessário um sistema de crédito de longo prazo favorável. A parte pública, quanto mais superavitária for, melhor. Sobretudo os superávits servem para financiar toda a infraestrutura necessária ao setor produtivo. Temos os exemplos dos Estados Unidos do século XIX e a Coréia do Sul e a China mais recentemente como bons exemplos de que investimentos grandes em infraestrutura têm um papel chave nisto.

Entrevista teve perguntas formuladas por Arthur Rizzi, Raphael Mirko e Ricardo Carvalho.

 

“Uma leitura marxiana nos ilumina as reflexões sobre a realidade brasileira”, destaca Belluzzo.

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João Vitor Santos – Edição 525 – Instituto Humanitas Unisinos IHU – 30 de julho de 2018

Luiz Gonzaga Belluzzo considera que o filósofo e economista desvelou a dinâmica do capital, que possibilidade ainda hoje usar suas reflexões para compreender os cenários mundial e local

Há quem defenda que o pensamento de Karl Marx se dá por superado por estar inscrito no século XIX. Assim, observando apenas os movimentos do capitalismo nesse tempo, suas ideias seriam incapazes de dar conta de outro capitalismo, completamente atravessado pela tecnologia e pela velocidade tão características do século XXI. Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, é um grande equívoco adotar essa concepção reducionista. Segundo ele, Marx não descobriu como o capitalismo movia os sentidos numa sociedade industrial ainda em desenvolvimento na Inglaterra. “Marx desvendou com grande precisão a dinâmica do regime do capital. Não se trata de uma antecipação, mas da compreensão das ‘leis de movimento’ desse modo de produção”, analisa. Ou seja, apresentando como esse capital funciona, ele também concebe possibilidades de análises para possíveis transformações que ainda estão por vir.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Belluzzo ainda detalha que “o movimento de reconstituição teórica de Marx parte da circulação simples de mercadorias como a dimensão mais abstrata do regime do capital investido em todas as suas formas, já ‘dotado’ do capital a juros e das ‘normas’ da concorrência generalizada, ademais de amparado nas forças produtivas da grande indústria que abriga em suas entranhas o progresso técnico ‘autonomizado’”. Assim, reitera a ideia de que Marx pensa em possibilidades metodológicas muito mais do que em descrição e observação de realidades. “Vou simplificar: O Capital é um exercício da dialética materialista, de passagem do abstrato ao concreto”, acrescenta.

Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano de Planificação-Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e, atualmente, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. É um dos fundadores da Faculdades de Campinas – Facamp, onde é professor. Entre suas obras publicadas, destacamos Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp/Editora Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Campinas: Facamp, 2009) e Temporalidade da Riqueza – Teoria da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo (Campinas: Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como Karl Marx pode contribuir para compreendermos a realidade brasileira de hoje e conceber saídas para impasses?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Marx afirmou que em todas as etapas de expansão do capitalismo o jogo do mercado global envolve transformações financeiras, tecnológicas, patrimoniais e espaciais. A globalização financeira e produtiva da segunda metade do século XX descortinou uma nova fase, marcada por desencontros nas relações entre o modo de funcionamento dos mercados, movidos pelas estratégias da grande empresa transnacional e os espaços jurídico-políticos nacionais, espaços “desintegrados” pela aceleração do tempo de produção e da circulação do capital. Nesse movimento, o Brasil perdeu espaço e continua perdendo.

O processo de concorrência movido pela grande empresa se dá sob a tutela das instituições nucleares de “governança” do sistema, que são a finança e o Estado hegemônico, pelos quais passam as estratégias nacionais de “inserção” das regiões periféricas. As transformações que hoje observamos são impulsionadas pelo jogo estratégico entre o “polo dominante” – no caso a economia americana, sua capacidade tecnológica, a liquidez e profundidade de seu mercado financeiro, o poder de seignorage de sua moeda – e a capacidade de “resposta” dos países em desenvolvimento às alterações no ambiente internacional.

É desnecessário dizer que as economias periféricas dispõem de estruturas e trajetórias sociais, econômicas e políticas muito dessemelhantes, o que dificulta para umas e facilita para outras a chamada “integração competitiva” nas diversas etapas de evolução do capitalismo. O sucesso do Brasil, até o início dos anos 1980, desencadeou a crise da dívida externa que iria provocar o seu reiterado “fracasso” na tentativa de se ajustar às novas condições internacionais. No polo oposto, o fracasso chinês até os anos 1980 propiciou condições iniciais mais favoráveis para o sucesso das reformas empreendidas a partir de então.

A “globalização do século XXI”, ao operar nas órbitas financeira, patrimonial e produtiva, engendrou dois tipos de regiões: aquelas cuja inserção internacional se faz pela atração do investimento direto destinado aos setores produtivos afetados pelo comércio internacional; e aquelas, como Brasil e Argentina, que buscaram sua integração mediante a abertura comercial passiva e a flexibilização da conta de capitais.

IHU On-Line – Como podemos compreender o caso da China, que cresce tentando manter um socialismo que não rompe com a ordem capitalista mundial?
Luiz Gonzaga Belluzzo – É impossível resistir à constatação de que a China enfrenta os desafios da globalização com concepções e objetivos que desmentem a propalada perda de importância das políticas nacionais e intencionais de industrialização e desenvolvimento. Em discurso de abertura do 19º Congresso do Partido Comunista da China , o presidente Xi Jinping discorreu a respeito do socialismo com características chinesas. Fosse possível pinçar a visão “econômica” da sesquipedal arenga, eu arriscaria a pele apontando a conexão Partido-Estado-Mercado.

A formulação estratégica é do Partido Comunista da China povoado de 80 milhões de membros. O sistema de consultas da base para a cúpula e vice-versa é inçado de instâncias, marchas e contramarchas. Tomada a decisão, as burocracias de Estado, os gestores das empresas estatais, os governos provinciais, o People’s Bank of China cuidam de implementar as diretrizes. Obedecem às máximas de Deng Xiao Ping : “não importa a cor do gato, se o bicho caça ratos” ou “atravessar o rio das reformas saltando as pedras”. Devagar e sempre é o lema do socialismo à moda chinesa.

O presidente Xi Jinping anunciou as políticas de “ampliação do papel do mercado” e de reforço às empresas estatais. O propósito é alentar o empreendedorismo e a inovação.

IHU On-Line – Ainda sobre a China, que socialismo emerge dessa sua experiência econômica? E o que difere de outras experiências como a da ex-União Soviética?

Luiz Gonzaga Belluzzo – A experiência chinesa combina o máximo de competição – a utilização do mercado como instrumento de desenvolvimento – e o máximo de controle. Entenderam perfeitamente que as políticas liberais recomendadas pelo Consenso de Washington não deveriam ser “copiadas” pelos países emergentes. Também compreenderam que a “proposta” americana para a economia global incluía oportunidades para o seu projeto nacional de desenvolvimento. Assim controlaram as instituições centrais da economia moderna: o sistema de crédito e a política de comércio exterior, aí incluída a administração da taxa de câmbio. Os bancos públicos foram utilizados para dirigir e facilitar o investimento produtivo e em infraestrutura.

O que realmente importa para o desenvolvimento chinês é a capacidade de adaptação do sistema às novas condições impostas pelas transformações da economia global, sem destruir o que foi herdado do passado. Não interessa se o sistema é “melhor” no sentido de atender a configurações abstratas, frequentemente irrealistas e, portanto, perigosas. Nesta perspectiva, é vital assegurar que o sistema econômico tenha sempre canais abertos para reformas institucionais.

O professor Yao Yang da Universidade de Pequim atribui a flexibilidade institucional à capacidade do governo de promover as políticas corretas sem atender aos grupos de interesses (dentro e fora do Estado, é bom lembrar) que buscam influenciar as decisões. Essa neutralidade, diz ele, explica o sucesso da transição econômica da China de uma economia de comando para uma economia “mista” em que o mercado tem papel importante, mas não tem influência na formulação das estratégias de longo prazo.

Na Rússia de Gorbachev , as oligarquias particularistas (cientistas acadêmicos, dirigentes industriais e cúpulas militares) que proliferaram à sombra da oligarquia partidária não tiveram maiores dificuldades em manter e ampliar os privilégios na democracia de Yeltsin . Os novos ricos da Rússia contemporânea não desembarcaram de uma nave espacial enviada à Terra diretamente do Planeta Marte, mas foram criados nas entranhas do regime soviético.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre Marx e Keynes ? Em que medida esse segundo abre outras perspectivas de leitura do marxismo?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Marx e Keynes compreenderam que a característica central do capitalismo não é a produção de mercadorias por meio de mercadorias, nem vai ser encontrada na coordenação, efetuada através dos mercados competitivos, dos planos dos indivíduos racionais, na busca da maximização da utilidade. Admiradores da sua enorme capacidade de produção de mercadorias e de seu formidável potencial de satisfação de necessidades, para eles o capitalismo é um regime de acumulação de riqueza abstrata, monetária.

Se, por um lado, é admirável o seu potencial de criação de riqueza material, de progresso tecnológico e de bem-estar das nações, de outra parte é assustador o seu inerente desprezo pelas condições particulares da existência dos povos e pelos conteúdos da vida. Assim, o capitalismo é o regime de produção em que a riqueza acumulada sob a forma monetária está sempre disposta a dobrar-se sobre si mesma, na busca da autorreprodução. D-D’, e não D-M-D’, é o processo em estado puro, adequado a seu conceito, livre dos incômodos e empecilhos de suas formas materiais particulares.

Não se trata de uma deformação, mas do aperfeiçoamento de sua substância, na medida em que o dinheiro é o suposto e o resultado do processo de acumulação de riqueza no capitalismo. É este processo fantasmagórico de autorreprodução que o capital está realizando sob os nossos olhos nos mercados financeiros contemporâneos.

O capital a juros e a circulação financeira

Marx trata no volume III do circuito próprio do loanable capital – o capital a juros – que mais tarde Keynes chamaria de “circulação financeira” em contraposição à “circulação industrial”. No capítulo 30, Marx estabelece as relações entre capital-mercadoria, capital produtivo e capital monetário: “Em nossa análise da forma peculiar da acumulação do capital monetário e da riqueza monetária em geral, vimos que ela se reduziu à acumulação de títulos de propriedade sobre o trabalho. A acumulação de capital da dívida pública revelou-se como sendo apenas um aumento na classe de credores do Estado, que detêm o privilégio de retirar antecipadamente para si certas somas sobre a massa de impostos públicos. […] Esses títulos de dívida que são emitidos sobre o capital originalmente emprestado e gasto há muito tempo, essas duplicatas de um capital já consumido, servem para seus possuidores como capital na medida em que são mercadorias que podem ser vendidas e, com isso, reconvertidas em capital. […] ganhar ou perder em virtude de preços desses títulos de propriedade e de sua centralização nas mãos dos reis das ferrovias etc. converte-se cada vez mais em obra do acaso, que agora toma lugar do trabalho como modo original de aquisição da propriedade do capital, e também o lugar da violência direta. Esse tipo de riqueza monetária imaginária constitui uma parte considerável não só da riqueza monetária dos particulares, mas também, como já dissemos, do capital dos banqueiros.”

Keynes tinha familiaridade com os mercados financeiros. Escreveu na Teoria Geral : “Este é o resultado inevitável dos mercados financeiros organizados em torno da chamada ‘liquidez’. Entre as máximas da finança ortodoxa, seguramente nenhuma é mais antissocial que o fetiche da liquidez, a doutrina que diz ser uma das virtudes positivas das instituições investidoras concentra seus recursos na posse de valores ‘líquidos’. Ela ignora que não existe algo como a liquidez do investimento para a comunidade como um todo. A finalidade social do investimento bem orientado deveria ser o domínio das forças obscuras do tempo e da ignorância que rodeiam o nosso futuro. O objetivo real e secreto dos investimentos mais habilmente efetuados em nossos dias é ‘sair disparado na frente’ como se diz coloquialmente, estimular a multidão e transferir adiante a moeda falsa ou em depreciação.”

Prossegue: “Esta luta de esperteza para prever com alguns meses de antecedência as bases de avaliação convencional, muito mais do que a renda provável de um investimento durante anos, nem sequer exige que haja idiotas no público para encher a pança dos profissionais: a partida pode ser jogada entre estes mesmos. Também não é necessário que alguns continuem acreditando, ingenuamente, que a base convencional de avaliação tenha qualquer validez real a longo prazo. Trata-se, por assim dizer, de brincadeiras como o jogo do anel, a cabra-cega, as cadeiras musicais. É preciso passar o anel ao vizinho antes do jogo acabar, agarrar o outro para ser por este substituído, encontrar uma cadeira antes que a música pare. Estes passatempos podem constituir agradáveis distrações e despertar muito entusiasmo, embora todos os participantes saibam que é a cabra-cega que está dando voltas a esmo ou que, quando a música para, alguém ficará sem assento.”

IHU On-Line – Como a crítica que Polanyi faz à razão moderna pode ser cotejada com a crítica ao capitalismo de Marx?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Em A Grande Transformação , Karl Polanyi chamou de moinho satânico as engrenagens do mercado autorregulado. O católico Polanyi procura mostrar em seu livro que a transformação da terra, da mão de obra e do dinheiro em mercadorias significa subordinar a própria substância da sociedade às intempéries da economia “desencastrada” das demais instâncias da vida social.

A terra (recursos naturais), a mão de obra (capacidade de trabalho) e o dinheiro (poder de compra) não podem estar sujeitos aos processos imprevisíveis e frequentemente catastróficos do mercado porque são, antes de mais nada, condições de sobrevivência humana, meios que permitem o acesso aos bens da vida. Condicionar o acesso a esses meios de vida a decisões que não têm outra finalidade senão a maníaca acumulação de riqueza abstrata, monetária, significa lançar os indivíduos na insegurança permanente. Atingidos pelo desemprego, pela falência ou pela desvalorização de sua riqueza, os indivíduos são afastados dos meios que permitem a sua sobrevivência. O colapso do mercado autorregulado e de sua utopia moral desencadeou reações de autoproteção da sociedade contra o desemprego, o desamparo, a falência, a bancarrota, enfim, contra a exclusão dos circuitos mercantis, o que significa, na prática, a impossibilidade de acesso aos meios necessários à sobrevivência humana.

Nos anos de 1930, Polanyi observa um momento da história do século XX em que a revolta contra o “moinho satânico” revelou-se, na maioria dos países europeus, tão brutal quanto os males que a economia destravada impôs à sociedade. O avanço do coletivismo, diz ele, não foi fruto de uma patologia ou de uma conspiração irracional de classes ou grupos, mas sim de forças gestadas nas entranhas da sociedade “dos indivíduos racionais”.

Com o colapso dos nexos mercantis, a superpolitização das relações sociais tornou-se inevitável. O despotismo social-darwinista da mão invisível é substituído pela tirania visível do chefe. O político se transfigura na polícia, no policiamento da vida social, como se fossem suspeitas quaisquer formas de espontaneidade.

IHU On-Line – Ainda é possível, à luz do marxismo, compreender as transformações do capitalismo de nosso tempo?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Marx desvendou com grande precisão a dinâmica do regime do capital. Não se trata de uma antecipação, mas da compreensão das “leis de movimento” desse modo de produção. Muitos cometem o equívoco de afirmar que Marx analisou o capitalismo inglês do século XIX.

Não é trivial enfrentar o percurso conceitual de Marx em seu empenho para investigar os desdobramentos da forma valor. O movimento de reconstituição teórica de Marx parte da circulação simples de mercadorias como a dimensão mais abstrata do regime do capital investido em todas as suas formas, já “dotado” do capital a juros e das “normas” da concorrência generalizada, ademais de amparado nas forças produtivas da grande indústria que abriga em suas entranhas o progresso técnico “autonomizado”. Vou simplificar: O Capital é um exercício da dialética materialista, de passagem do abstrato ao concreto.

Vamos conversar sobre um tema atual: o progresso técnico no regime do capital. Nos Grundrisse , Marx vislumbrou o momento em que o avanço dos métodos capitalistas de produção tornaria o tempo de trabalho uma “base miserável” para a valorização da imensa massa de valor que deverá funcionar como capital. “Quando o processo de trabalho em sua totalidade não está mais submetido à habilidade do trabalhador, mas à aplicação tecnológica da ciência, então a tendência do capital é dar à produção um caráter científico. […] o desenvolvimento do capital fixo indica o grau em que o conhecimento social tornou-se uma força direta de produção e em que medida, portanto, o processo da vida social foi colocado sob o controle do General Intellect e passou a ser transformado de acordo com ele.”

Em seu desenvolvimento, a Indústria 4.0 exprime o avanço do capital fixo. São fábricas inteligentes com máquinas conectadas em rede e a sistemas que podem visualizar toda cadeia produtiva, podendo tomar decisões por si só. A nova fase da digitalização da manufatura é conduzida pelo aumento do volume de dados, ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina, e melhorias na transferência de instruções digitais para o mundo físico, como a robótica avançada e impressoras 3-D.

Nos Grundrisse e em O Capital, Marx investiga, como já foi dito, a “natureza” do regime do capital como modalidade histórica cujo propósito é a acumulação de riqueza monetária, abstrata; assim abre espaço para a compreensão da predominância do capital a juros e do capital fictício, como formas de riqueza e de enriquecimento derivadas da propriedade do capital e não da atividade inovadora e fáustica do empreendedor capitalista. No capitalismo carregado de todas as suas determinações, riqueza agregada compreende não só o estoque de ativos físicos, reprodutivos, mas também aparece sob a forma “duplicada” de direitos de propriedade sobre as empresas (ações), títulos de dívida gerados ao longo de vários ciclos de crédito e de criação de valor. Esses ativos financeiros – ações e títulos de dívida – são avaliados diariamente em mercados especializados.

No Livro III de O Capital, Marx estabelece a conexão entre a expansão do crédito e a valorização dos ativos financeiros: “Ao desenvolver-se o capital-dinheiro disponível também se desenvolve a massa de valores rentáveis, títulos do Estado, ações, etc. Mas aumenta ao mesmo tempo a demanda de capital-dinheiro disponível posto que os que especulam com títulos e valores desempenham um papel fundamental no mercado de dinheiro. […] Se todas as compras e vendas desses títulos não fossem mais do que a expressão dos investimentos reais de capital, seria acertado dizer que não influem na demanda de capital de empréstimo.”

IHU On-line – Que respostas a economia política marxista é capaz de dar a crises, como as geradas pelo capital fictício, o sistema de crédito?

Luiz Gonzaga Belluzzo – No dia 11 de julho de 1856, o “New York Tribune” publicou o terceiro artigo de Marx sobre o Crédit Mobilier. Sob os auspícios de Napoleão III , o banco de investimento empreendido pelos irmãos Pereire , Emile e Isaac, tinha o propósito de “concentrar grandes somas de capital de empréstimo para investimento em empresas industriais”. Depois de ironias e sarcasmos lançados sobre o “socialismo imperial” de Luís Napoleão e das habituais estocadas nas concepções reformistas de Saint-Simon e discípulos, Marx reconhece que as transformações da finança capitalista e o surgimento da sociedade por ações, sobretudo da sociedade anônima, “marcam uma nova época na vida econômica das nações modernas”.

Os bancos comerciais, diz ele, “fluidificam temporariamente o capital fixo”, enquanto os bancos de investimento cuidam de “fixar o capital líquido” em estruturas empresariais cada vez maiores e de administração mais complexa. Marx conclui: “Quase todas as crises comerciais dos tempos modernos estão relacionadas com o desarranjo nas proporções entre o capital fixo e o “floating capital” (os títulos de dívida e de propriedade negociados diariamente nas Bolsas de Valores e nos demais mercados secundários).

A série de artigos sobre o Crédit Mobilier foi estampada nas páginas do “New York Tribune” no período em que Marx trabalhava nos Grundrisse e dez anos antes da publicação do primeiro volume de O Capital. Quatro décadas iriam transcorrer entre as primeiras e pontuais investigações de Marx sobre as peripécias do capital financeiro e o esforço de Engels para completar os alfarrábios do terceiro volume, publicado em 1894.

Formas concretas que brotam do capital

Marx adverte, na abertura do Livro III de O Capital, que até então, nos Livros I e II, o processo capitalista de produção foi considerado em seu conjunto, representando a unidade do processo de produção e de circulação. “Aqui no livro III, não se trata de formular reflexões gerais sobre essa unidade, senão, ao contrário, de descobrir e expor as formas concretas que brotam do movimento do capital considerado como um todo. Em seu movimento real, os capitais se enfrentam sob essas formas concretas […] As manifestações do capital se aproximam, pois, gradualmente da forma sob a qual se apresentam na superfície da sociedade, mediante a ação recíproca dos diversos capitais que se enfrentam na concorrência e tal como (essas manifestações) se refletem na consciência habitual dos agentes de produção.” Marx procura articular teoricamente essas formas de modo a demonstrar como o capital, no exercício de sua natureza expansionista, rompe continuamente as limitações do seu processo mais geral e “elementar” de circulação e reprodução. O capital precisa existir permanentemente de forma “livre” e líquida e, ao mesmo tempo, crescentemente centralizada, para revolucionar periodicamente a base técnica, submeter massas crescentes de força de trabalho a seu domínio e criar novos mercados. Apenas dessa maneira pode fluir para colher novas oportunidades de lucro e, concomitantemente, reforçar o poder do capital industrial e mercantil imobilizado nos circuitos prévios de acumulação. Daí as análises da concorrência, do crédito e, portanto, do processo de concentração e centralização do capital se constituírem na parte mais rica e substantiva da investigação marxista sobre a dinâmica do sistema capitalista e suas metamorfoses.

Uma leitura cuidadosa dos Grundrisse e dos três volumes de O Capital permite compreender que o dinheiro transformado em capital – origem e finalidade da circulação e da produção capitalistas (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro) – não só exige a submissão real da força de trabalho ao domínio das forças produtivas como também impõe aos trabalhadores (e aos proprietários do valor-capital) os ditames da acumulação de riqueza abstrata. A acumulação de mais dinheiro mediante o uso do dinheiro para capturar mais valor sob a forma monetária suscita a transfiguração das formas de expansão do valor, isto é, impõe o predomínio das formas “desenvolvidas”: o capital a juros, o dinheiro de crédito e o capital fictício. Nessas formas, o dinheiro-capital realiza o seu conceito de valor que se valoriza e tenta continuamente romper os seus próprios limites ao buscar o acrescentamento do valor sem a mediação da mercadoria força de trabalho. “D-M-D” se converte em “D-D”.

Na (re)constituição teórica do modo capitalista de produção, o dinheiro, enquanto substantivação do valor e objetivo do processo de valorização, assume a forma de dinheiro de crédito. As determinações mercantis e capitalistas do modo de produção não são distorcidas, mas, ao contrário, alcançam o ápice de seu desenvolvimento quando são introduzidos o capital a juros e o dinheiro bancário. O sistema de crédito é a forma mais adequada para cumprir as determinações do dinheiro: ele “aperfeiçoa” a execução das funções monetárias no capitalismo e constitui uma esfera de “valorização” em que o capital monetário ensaia estabelecer uma relação consigo mesmo, “D-D”. Aqui, o dinheiro realiza o seu conceito de substantivação do valor e de forma universal da riqueza. O movimento de abstração real e o fetichismo chegam ao estágio supremo. “O crédito, que também é uma forma social da riqueza, substitui o dinheiro (metálico) e usurpa o lugar que lhe correspondia. A confiança no caráter social da produção faz a forma dinheiro dos produtos algo destinado a desaparecer. […] Ao se desenvolver o sistema de crédito, a produção capitalista tende a suprimir continuamente o limite metálico-material e fantástico da riqueza e de seu movimento – mas quebrando seguidamente sua cabeça contra ele.”

Ao concentrar capital monetário, os bancos ganharam a prerrogativa de emitir notas que abastecem a circulação monetária. Com a evolução do sistema de crédito, os passivos bancários mudam de forma: a emissão de notas é substituída por depósitos à vista que podem ser mobilizados por seus titulares como meios de pagamento. “Se B deposita no banco o dinheiro recebido de A e o banqueiro entrega esse dinheiro a C como desconto de uma letra, C faz uma compra a D e este deposita no banco, que por sua vez empresta a E, que compra de F, teremos que o ritmo (da criação monetária) como meio de circulação se opera mediante várias operações de crédito.” (O Capital, vol. III, p. 489).

O “salto” no potencial de acumulação promovido pelas formas financeiras engendra a criação de modalidades de negócios e de enriquecimento que pretendem se tornar independentes das leis da produção de mais-valia e das normas de reprodução e acumulação do capital produtivo. A concentração da riqueza líquida nos bancos e demais instituições financeiras enseja o adiantamento de recursos livres e líquidos para sancionar a aposta do capitalista em funções que resolveu colocar o seu estoque de capital em operação, contratando trabalhadores e adquirindo meios de produção. Concomitantemente, o movimento de expansão do valor, ao ampliar as relações de débito e crédito, “cria” o circuito de negociação de valores – títulos de dívida e direitos de propriedade. A avaliação e negociação dos direitos de propriedade e de dívidas abre espaço para episódios especulativos.

Valorização fictícia

O capital a juros patrocina a valorização “fictícia” da riqueza, o que acentua e acelera as tendências da economia capitalista para deflagrar crises de superacumulação e de crédito, provocando com violência a continuidade do processo de “expropriação dos expropriadores” e de destruição de valor na esfera produtiva e financeira. A “reunião do que não deveria estar separado” impõe o “retorno” aos fundamentos, o que se efetua mediante a desvalorização dos títulos que representam direitos à apropriação da renda futura e do patrimônio: títulos de dívida e de propriedade, mercadorias não vendidas e sem valor, capacidade produtiva excedente. Nas crises, fica demonstrado que não é possível preservar o capital em funções [capital produtivo] das escaladas de valorização da riqueza capitalista na esfera financeira.

As relações entre a “economia real” e a economia monetário-financeira não são de exterioridade, mas nascem das formas necessárias assumidas pelo capital em seu movimento de expansão e transformação permanentes. Aí estão inscritas a concentração e centralização do controle do capital líquido em instituições de grande porte e cada vez mais interdependentes. O circuito “D-D” nasce das tendências centrais do regime do capital: um processo necessário e inexorável, porque a acumulação capitalista é acumulação de riqueza abstrata e, ao mesmo tempo, um movimento de abstração real que transfigura o dinheiro, a encarnação substantivada do valor e da riqueza, nas formas “desenvolvidas” do dinheiro de crédito, do capital a juros e do capital fictício.

Do capital produtivo ao financeiro, um desenvolvimento contraditório

Não há oposição entre as formas – capital produtivo versus capital financeiro – mas um desenvolvimento contraditório. Por isso, o capital financeiro, em seu movimento de valorização, tende a arrastar o capital em funções para o frenesi especulativo, a criação contábil de capital fictício. A chamada desregulamentação financeira mostrou de forma cabal como a “natureza” intrinsecamente especulativa do capital fictício se apoderou da gestão empresarial, impondo práticas destinadas a aumentar a participação dos ativos financeiros na composição do patrimônio, inflar o valor desses ativos e conferir maior poder aos acionistas. Particularmente significativas são as implicações da “nova finança” sobre a governança corporativa. A dominância da “criação de valor” na esfera financeira expressa o poder do acionista, agora reforçado pela nova modalidade de remuneração dos administradores, efetivada mediante o exercício de opções de compra das ações da empresa.

A “geração de valor” para os acionistas acirra a concorrência entre as empresas na busca de ganhos especulativos de curto prazo, enquanto a liquidez dos mercados permite a constante reestruturação das carteiras pelos administradores dos fundos financeiros “coletivizados”. No sistema de crédito, os prestamistas finais disponibilizam – através dos bancos comerciais e demais intermediários financeiros – recursos destinados ao conjunto da classe capitalista, para um empreendimento que eles não sabem qual é. Entregam aos especialistas das finanças a administração de suas “poupanças” e dependem de seus critérios para a obtenção de rendimentos.

Exuberância financeira e crise

No último ciclo de exuberância financeira, que culminou na crise de 2008, foi ampla e irrestrita a utilização das técnicas de alavancagem com o propósito de elevar os rendimentos das carteiras em um ambiente de taxas de juros reduzidas. Isso favoreceu a concentração da massa de ativos mobiliários em um número reduzido de instituições financeiras grandes demais para falir. Os administradores dessas instituições ganharam poder na definição de estratégias de utilização das “poupanças” das famílias e dos lucros acumulados pelas empresas, assim como no direcionamento do crédito. Na esfera internacional, a abertura das contas de capital suscitou a disseminação dos regimes de taxas de câmbio flutuantes, que ampliaram o papel de “ativos financeiros” das moedas nacionais, não raro em detrimento de sua dimensão de preço relativo entre importações e exportações.

Na esteira da liberalização das contas de capital e da desregulamentação, as grandes instituições construíram uma teia de relações “internacionalizadas” de débito-crédito entre bancos de depósito, bancos de investimento e investidores institucionais. O avanço dessas inter-relações foi respaldado pela expansão do mercado interbancário global e pelo aperfeiçoamento dos sistemas de pagamentos. Os bancos de investimento e os demais bancos “sombra” aproximaram-se das funções monetárias dos bancos comerciais, abastecendo seus passivos nos “mercados atacadistas de dinheiro” (“wholesale money markets”), amparados nas aplicações de curto prazo de empresas e famílias. Não por acaso, nos anos 2000 a dívida intrafinanceira como proporção do PIB americano cresceu mais rapidamente do que o endividamento das famílias e das empresas. A “endogeinização” da criação monetária mediante a expansão do crédito chegou à perfeição em suas relações com o crescimento do estoque de quase-moedas abrigado nos “money markets funds”. Esses fenômenos correspondem ao que Marx designou “controle privado da riqueza social”, fenômeno que se realiza no movimento de expansão do sistema capitalista.

Essa socialização da riqueza significa não apenas que o crédito permite o aumento das escalas produtivas, da massa de trabalhadores reunidos sob o comando de um só capitalista. Significa mais que isso: os capitais individuais passam a ser mais interdependentes e “solidários” no sistema de crédito e, portanto, mais sujeitos a episódio de crise sistêmica. A “separação” entre o capital em funções e o capital a juros (capital-propriedade) promove a subordinação “solidária” do capital produtivo à sua forma mais “desencarnada”.

Juros e dividendos

A remuneração do capital em geral “aparece” sob a forma de juros e dividendos. Formas ‘aparenciais’ são, ao mesmo tempo, formas ilusórias, no sentido de que ocultam as conexões fundamentais desse modo de produção, mas também são formas necessárias, expressões das relações de produção “transformadas” pelo processo de abstração real. Os juros aparecem como forma de remuneração do capital “sans phrase” e sua formação nos mercados de riqueza mobiliária depende da demanda e oferta de capital-dinheiro transfigurado na forma de capital a juros, capital-propriedade. Essa é a forma mais abstrata de existência do capital, a sua forma “verdadeira”, no sentido de que é a mais desenvolvida. “É evidente que no capital a juros, o capital se completa como fonte misteriosa e autocriativa de seu próprio acrescentamento […] é o capital par excellence.”

IHU On-Line – Durante muito tempo, falou-se da incompatibilidade entre o marxismo e o cristianismo. Mas o senhor é um marxista cristão, correto? Que chaves de leitura essas duas perspectivas são capazes de oferecer para se compreender o mundo?

Luiz Gonzaga Belluzzo – As afinidades entre marxismo e cristianismo são muito mais profundas do que admitem as visões estreitas do materialismo vulgar e do fanatismo religioso. Há tempos, escrevi que, em 2013, o papa Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação Apostólica Evangelii Gaudium . Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII , Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII , a exortação apostólica de Francisco abordava as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo.

Os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do Papa e incrustrada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito. Depois da encarnação, o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços”.

O cristianismo – o mistério libertador da Encarnação – foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo greco-romano. Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon , Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”.

 

“Está explodindo uma bomba-relógio que ninguém quis ver” Entrevista com Wladimir Safatle

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Filósofo da USP diz que bravatas de Bolsonaro tiram o foco de projeto econômico rejeitado por maioria dos brasileiros e que nunca um candidato havia retirado da eleição o espaço público de discussão.

Os posicionamentos de Jair Bolsonaro (PSL) sobre pautas identitárias, como os direitos das mulheres e LGBTs, dominaram o debate eleitoral no primeiro turno e atraíram o foco das atenções internacionais. Na leitura do filósofo Wladimir Safatle, professor da Universidade de São Paulo (USP), as declarações são utilizadas pelo candidato a partir de um cálculo estratégico para esvaziar a discussão política.

Em entrevista à DW Brasil, Safatle argumenta que a rejeição da sociedade brasileira a medidas neoliberais trouxe o país a uma situação “atípica” no cenário global, com universidades gratuitas e duas das maiores empresas do país sendo públicas.

“Os defensores dessa agenda compreenderam que a única maneira de impor suas reformas seria de uma maneira autoritária”, afirma. “Só tinha um jeito de ser implementada: escondendo-a, não deixando que fosse claramente exposta e tematizada”.

A entrevista é de João Soares, publicada por Deustsche Welle, 08-10-2018.

Eis a entrevista.

Como explicar a crescente adesão ao autoritarismo no Brasil?

Nada da situação atual é compreensível sem remetermos ao que aconteceu com o fim da ditadura militar. O Brasil fracassou redondamente em conseguir superar seu passado ditatorial, que volta a assombrar agora. Nenhum país da América Latina tem um risco tão explícito de militarização e mesmo de um golpe de Estado nos moldes tradicionais quanto o Brasil. Nenhum tem uma presença tão forte das Forças Armadas no cotidiano da vida pública. Isso mostra, muito claramente, que a solução conciliatória produzida pela transição em direção à democracia foi a maior covardia histórica que o país conheceu.

Esse passo conciliatório conservou setores da classe política que estavam completamente vinculados à ditadura, assim como preservou, no seio das Forças Armadas, uma mentalidade de justificativa de situações de exceção que volta agora. Também preservou, no seio da sociedade civil, um potencial de apoio a governos aparentemente fortes e autoritários devido ao fato de o Brasil, em momento algum, ter imposto um dever de memória e justiça de transição, que seria fundamental para que não estivéssemos vendo regressões como as de agora.

E qual foi o papel da Constituição de 1988, que acaba de completar 30 anos, nesse processo?

A Constituição de 88 foi a expressão dessa grande política conciliatória. Fala-se muito que é uma constituição cidadã, que garante direitos fundamentais. Por um lado, foi uma constituição sem vigência. Até hoje, tivemos 95 emendas constitucionais – mais ou menos três por ano. Para aprovar uma emenda, o Congresso precisa de dois terços. No caso brasileiro, essa negociação dura meses. Chega-se a uma conclusão muito clara de que a função do Congresso Nacional desde o fim da Constituinte foi simplesmente desconstituir a Constituição. Ela já nasceu com esse selo.

Por outro lado, 30 anos depois, há leis constitucionais que nunca foram implementadas por falta de lei complementar. É uma aberração. A lei que estabelece o imposto sobre grandes fortunas é constitucional e nunca foi aplicada, por mera falta de lei complementar. A Constituição nasce letra-morta. Por outro lado, ela era também resultado de uma grande estrutura de conciliação entre vários setores da sociedade brasileira, inclusive ligados à vida militar. O Exército chegou com 28 parágrafos fechados, praticamente empurrados goela abaixo aos constituintes. Entre eles, o artigo que define a função das Forças Armadas. No caso brasileiro, a preservação da ordem, outra aberração completa, porque a função delas é a defesa da integridade do território nacional e ponto. Logo, o que está explodindo hoje era uma bomba-relógio que ninguém quis ver.

É possível pensar em um governo Bolsonaro nos moldes tradicionais, articulando no Congresso para governar com maioria?

Dentro de um possível governo Bolsonaro, várias opções se colocam à mesa. Elas vão depender muito dos sistemas de resistência que ocorrerão. Agora, é importante lembrar algumas coisas. A primeira delas é que o Brasil é uma certa aberração do ponto de vista dos ajustes neoliberais até hoje. Devido aos pactos da Nova República, não havia condição de avançar muito, tampouco de regredir. Havia forças sociais claramente constituídas que criavam um certo equilíbrio. Isso fez, por exemplo, que os grandes ajustes neoliberais aplicados em outros países latino-americanos, como a Argentina, não fossem feitos aqui.

Brasil chega em 2018 com duas de suas maiores empresas sendo públicas, assim como dois entre seus maiores bancos. Além disso, com um sistema de saúde que cobre 207 milhões de pessoas e é gratuito, universal, coisa que nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes tem. Há, também, 57 universidades federais completamente gratuitas. Não são universidades para a elite. Só na USP, 60% dos alunos vêm de famílias que ganham até dez salários mínimos. Percebe-se que o Brasil chega aos dias atuais numa situação muito atípica do ponto de vista do neoliberalismo.

Os defensores dessa agenda compreenderam que a única maneira de impor suas reformas seria de uma maneira autoritária, como no modelo chileno do Pinochet. É um neoliberalismo claramente autoritário, diferente do que se tem na Europa. Lá, a extrema direita é antiliberal, protecionista, que incorpora certas pautas sociais vindas da esquerda e usa a luta contra o sistema financeiro em seu discurso. Exatamente por isso, o neoliberalismo na Europa tem que ser implementado por figuras mais ao centro. Não é o que acontece no Brasil. Até porque pesquisas mostram que 68% da população brasileira são contra as privatizações; 71%, contra reformas nas leis trabalhistas e 85% contra reformas na previdência.

A adoção dessa agenda seria, portanto, eleitoralmente inviável?

Só tinha um jeito de ser implementada: escondendo-a, não deixando que fosse claramente exposta e tematizada. A única forma de fazer isso era alimentar e ressuscitar os piores fantasmas autoritários da sociedade brasileira, colocando-os no centro do debate político. Todas essas bravatas preconceituosas são peças fundamentais na estratégia retórica de anulação do espaço político. O que nós vimos foi uma anticampanha, baseada no esvaziamento do espaço político, exatamente por meio desse tipo de provocação às minorias vulneráveis – negros, mulheres, LGBTs – que se revoltam, com toda a justiça, e esse jogo ocupa toda a cena da campanha.

Por um lado, um potencial fascista que estava mais ou menos recalcado ganha direito de existência e aflora de maneira muito forte. Isso vem de longe. A ditadura militar teve apoiadores, e a gente conhece muito bem o padrão rascista e preconceituoso de vários setores da sociedade brasileira. Por outro lado, há um elemento fundamental e absolutamente impressionante: a campanha sai do espaço público e se desloca para o ambiente virtual, difícil de ser partilhado pela sociedade. Nesse espaço, a produção contínua de imagens e vídeos falsos de forte apelo retórico, que podem ser partilhados, acabam dando o tom.

Vimos o que aconteceu com os atos do sábado retrasado: grandes manifestações populares que ocuparam as ruas do Brasil e, de repente, foram anuladas. Ninguém estava sabendo exatamente o que aconteceu. Justo após essas manifestações, Bolsonaro teve um salto nas pesquisas. Depois, fomos entendendo. Com uma organização impressionante, uma rede muito vasta de circulação de imagens, profissionalmente constituída, tentou anular o ato pela construção de um evento falso no lugar. Faziam circular fotos que não tinham nada a ver com aqueles protestos, com o objetivo claro de denegrir suas propostas. Conseguiram anular um evento de rua por meio de uma mobilização virtual.

Esses dois elementos constituem um outro modelo de campanha completamente fora dos padrões tradicionais da democracia liberal. Ela já tem seus limites, mas era obrigada a conservar um espaço público no interior do qual a sociedade, como um todo, podia operar um embate. Esse elemento foi brutalmente retirado. O candidato Bolsonaro levou uma facada e passou a campanha inteira fora dela. Todas as vezes em que seu vice ou economista fazia alguma declaração, eram falas catastróficas, imediatamente rechaçadas. Ou seja, não houve campanha, no sentido tradicional do termo.

Esta eleição já é marcada pela circulação massiva de notícias falsas e rejeição ao jornalismo. Como é possível haver debate se alguns grupos estão fechados ao contraditório?

A política nunca foi uma questão de argumentação. É um erro achar isso. Trata-se da mobilização de afetos, que, por sua vez, expressam adesões a formas de vidas distintas e conflituais. Você não argumenta contra afetos, mas os desconstitui. É um processo diferente. Afetos não são irracionais, no entanto. Eles têm uma dinâmica própria, e devem ser compreendidos na sua especificidade. Em certo sentido, numa situação tecnológica como a nossa, qualquer um pode produzir fake news. Quando eram só setores consolidados da imprensa, existia maneiras de utilizar o processo judicial para contestar e saber quem fez. De uma forma ou de outra, um certo nível era preservado, mas, mesmo assim, longe de ser uma coisa simples. Há várias modalidades de construção de notícias, utilizadas constantemente por grupos midiáticos. Mas, agora, há um processo no qual essa função é invisível: você não sabe quem produziu.

A campanha do Bolsonaro parecia mambembe, amadora, feita às pressas. Mas começamos a perceber que não. Era extremamente organizada, pela qualidade do material que circulava. Os materiais que anularam a manifestação contra ele começaram a circular horas depois dos atos e eram extremamente bem produzidos. Eu me pergunto: quem foi o responsável? Em que produtora isso foi feito? Não se sabe nem quem é o publicitário do Bolsonaro. Será, então, que não haveria estratégia de campanha, ou, na verdade, ela está sendo pensada em outro lugar onde a gente não consegue sequer enxergar? Nada bate nessa história. São organizadas redes no WhatsApp com mais de 8 mil pessoas, que se articulam entre si e proliferam um conjunto enorme de imagens extremamente bem editadas por profissionais.

Os cientistas políticos costumam analisar a atual crise política partindo da eleição de 2014. Mas qual é a relação do momento atual com os protestos de 2013?

Este é um evento fundamental da história brasileira. O fenômeno de 2013 foi a maior oportunidade perdida pela esquerda daqui. Era uma manifestação popular, que deixava muito claro o nível de descontentamento, frustração social, com uma perspectiva de enriquecimento que não ocorreu. Poderia, sim, ter sido utilizada pela esquerda para dizer: estamos presos em uma camisa de força para conseguir fazer um segundo ciclo de políticas de crescimento e redistribuição de renda. A gente precisa assumir isso e lutar contra vários entraves políticos e coisas dessa natureza. Mas isso não foi feito. A esquerda ficou com medo do fato de que a manifestação jogou para a rua tanto aqueles dispostos a ir mais longe, quanto os setores reativos da sociedade.

Toda manifestação popular traz os sujeitos emergentes e os reativos. Se você não souber dar forma aos emergentes, os reativos vão tomar conta. Foi isso que aconteceu. Um clássico, literalmente. Marx mostrava isso desde 1848, quando tentou investigar como a revolução proletária se perdeu, transformando-se na ascensão de Napoleão Terceiro, pelo golpe do 18 Brumário. Os protestos de 2013 mostraram imagens do povo contra o poder. Diante das imagens do povo que foi quebrar o Congresso Nacional e acabou tacando fogo no Palácio do Itamaraty, sempre tem aqueles que começam a gritar “ordem”.

Começaram a fazer isso, e aí veio 2014. Após a eleição, eu escrevi no jornal Folha de S. Paulo que a polarização não terminaria na semana seguinte e só iria aprofundar. É preciso estar preparado para isso. Não adianta imaginar que acabou a eleição e, agora, vai tudo voltar ao normal. Mas o governo achou que isso seria possível e tentou criar um modelo de conciliação. Juntou todos os setores conservadores dentro do governo, desmobilizou o seu lado, enquanto o outro lado foi para cima no vácuo, porque não havia mobilização em reação. Em uma sociedade polarizada, a primeira coisa que você faz é fortalecer o seu polo, porque a única possibilidade de sobrevivência é uma espécie de balança, jogo de bola parada. Você vê que, se avançar demais, o outro avança também. Isso não foi feito.

esquerda brasileira ficou embalsamando um cadáver, que é o lulismo. Deu o que tinha que dar, não dava mais. Fala-se que Lula teria 40% dos votos, e é verdade. Se estivesse em campanha, ele ia ganhar, isso é claro. Por esse motivo, teve que ser preso. Caso contrário, virava presidente. Mas o fato é: isso aconteceria por uma lógica muito racional da população. O presente é catastrófico; o futuro, completamente incerto. Portanto, volto ao passado, que era melhor. De fato, era. Isso não tem a ver com o potencial de transformação que Lula representa, mas com uma situação de pavor social. Enquanto dinâmica de transformação, o lulismo já era um cadáver, mesmo que ganhasse.

 

 

Desigualdade social e pobreza: desafios para o movimento espírita

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Vivemos em uma sociedade marcada por um crescimento vertiginosa da desigualdade social entre os indivíduos, entre os países e dentro dos próprios países, países até então descritos como ricos e desenvolvidos se encontram em situação de incertezas, crescimento da pobreza e da desigualdade, gerando um incremento da violência, da insegurança e do xenofobismo.

A Europa, centro da civilização ocidental, marcada pelo grande crescimento tecnológico, onde a Ciência foi fundamental para garantir o crescimento da produção e da riqueza do mundo, se encontra em franca decadência, depois de séculos de exploração aos povos africanos, nos últimos anos percebemos uma chegada de uma ampla leva de cidadãos do continente explorado, fazendo com que os europeus recebam aqueles que anteriormente foram por eles explorados, com isso, buscam se retratar com as leis do mais alto, buscando a harmonia e a conscientização espiritual entre povos irmãos.

Neste século XXI, percebemos inúmeros movimentos preocupantes, de um lado um incremento da pobreza e da desigualdade social e, de outro, uma maior degradação da natureza e do meio ambiente, gerando um clima esquisito, de um lado um calor que beira os cinquenta graus e de outro um frio que leva a temperatura a um outro extremo, chegando a menos cinquenta graus, além de tsunamis, enchentes e tempestades, uma situação jamais vista no planeta Terra.

Desde que o economista francês Thomas Piketty publicou a obra O Capital no Século XXI, nos revelando dados, gráficos e informações de que a concentração de renda na sociedade global vem aumentando cada vez mais nos últimos anos e que, os dados atuais são muito parecidos com os do início do século XX, com ricos e poderosos abocanhando grande parte da riqueza global, com estas revelações o mundo começou a compreender muitos dos desajustes e dos desequilíbrios internacionais, uma sociedade que cria grande riqueza e que, em sua grande maioria é apropriada por uma pequena parte de afortunados, um grupo de privilegiado que usufrui do melhor do sistema capitalista, dos luxos e do hedonismo propiciados pela posse do capital.

Segundo algumas organizações não governamentais globais, como a respeitadíssima Oxfam, a sociedade mundial é composta por 7 bilhões de pessoas, dentre elas, 1 bilhão consome mais de 50% de todos os recursos naturais disponíveis, outros 3 bilhões de pessoas consomem 45% destes recursos e os outros 3 bilhões de pessoas restantes se apropriam de apenas 5% de todos os recursos, encontramos ai uma grande desigualdade, onde menos de 15% dos privilegiados globais usufruem das maiores benesses do sistema capitalista global.

Na situação descrita acima, percebemos que as reservas naturais existentes no meio ambiente não conseguem dar a todos os indivíduos do planeta Terra, o padrão de vida dos países ricos e desenvolvidos mas, com certeza, conseguiria dar a todos os habitantes deste mundo uma condição digna de vida, desde que a distribuição desta riqueza fosse mais igualitária.

Recentemente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgou dados assustadores, segundo o instituto, após quinze anos, a desigualdade voltou a aumentar no Brasil, com exceção da região norte. Pelos cálculos do IBGE, o número de cidadãos na faixa de extrema pobreza pulou de 6,6% da população em 2016 para 7,4% em 2017, diante disso, percebemos que havia 15,2 milhões de brasileiros com renda inferior a 140 reais por mês em 2017 – contra um contingente de 13,5 milhões registrados em 2016.

Os dados trazidos pelo Banco Mundial e pelos institutos de pesquisas locais são assustadores, no caso brasileiros se somarmos todos os dados disponíveis, encontraremos um contingente de mais de 55 milhões de pessoas vivendo com menos de meio salário mínimo mensal, numa sociedade marcada por muita riqueza natural, um país que como nos diz Pero Vaz …em se plantando tudo dá.

Como nos mostrou Allan Kardec, na questão 930 de O Livro dos Espíritos, de que a culpa das desigualdades reside mesmo nas imperfeições humanas, os grandes responsáveis por esta situação de degradação social de muitos irmãos na sociedade contemporânea somos nós mesmos os seres humanos que residimos neste mundo, marcados pelo orgulho e pela ganância: “Com uma organização social criteriosa e previdente, ao homem só por culpa sua pode faltar o necessário”. Na mesma obra, publicada em 1857, Kardec ainda nos alerta: “Quando praticar a lei de Deus, terá uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade, e ele próprio também será melhor”

Neste ambiente de incremento na desigualdade, aumento da pobreza e de instabilidades crescentes, os espíritas se subdividem, uns acreditam que, como somos reencarnacionistas, acreditamos que vivemos várias vezes em corpos diferentes, tudo que passamos na vida material está diretamente ligado aos resgates que servem para nos auxiliar em nosso crescimento espiritual. De outro lado, encontramos outros indivíduos que se condoem com a situação destes irmãos e buscam auxiliar, de uma forma ou de outra, visando mitigar os sofrimentos neles impingidos.

Ao analisar estas visões descritas acima, acreditamos que o melhor a fazer é seguir auxiliando sempre, mesmo sabendo que colhemos na vida material as plantações das várias experiências físicas, auxiliar os irmãos em dificuldade, dar-lhes um prato de comida, conversar e ser gentil com todos, além de orar e pedir para cada um em dificuldade, é sempre uma forma de auxiliar no crescimento dos irmãos em dificuldade e mais, se estivéssemos no lugar destes irmãos, com certeza, gostaríamos de ser auxiliados nos momentos de maior dificuldade, lembremos neste momento da máxima de Jesus de Nazaré, que dentre seus inúmeros legados nos deixou a sublime frase não faça aos outros o que você não quer que seja feito a você.

No caso brasileiro, em particular, o país vem vivendo, nos anos recentes, graves desequilíbrios econômicos com severos comprometimentos sociais e espirituais, de uma década de crescimento e melhorias generalizadas, o país mergulhou em uma grande depressão, com incremento no desemprego e no subemprego, além da deterioração na renda agregada e aumento nos crimes hediondos e assassinatos, apenas em 2017 foram mais de 63 mil homicídios, colocando o Brasil entre os países mais violentos do mundo.

Muitos tendem ao comodismo quando veem uma situação como essa, acreditando que o problema é tão grande e complexo que atitudes individuais só serviriam para mascarar o problema, levando-os a uma atuação comodista, sabemos que o problema demanda a adoção de políticas mais amplas mas, cabe a cada um de nós, seres humanos, contribuir para o melhoramento coletivo da humanidade, se não possuímos os recursos econômicos necessários para auxiliar no combate da pobreza e da desigualdade, cabe o pensamento edificante, a oração, o não julgamento e a pacificação dos corações, tudo isto contribui para o melhoramento individual e, por conseguinte, da coletividade.

A Doutrina Espirita nos mostra que muitos irmãos altamente inteligentes, com comprometimentos variados por uso indiscriminado de suas aptidões para enriquecimento próprio, para destruição de seus semelhantes e para satisfação de seus desejos e caprichos ilimitados, renascem em países ou regiões atrasadas e, com isso, passam por limitações das mais intensas, muitas vezes sem alimentos e privados das mais elementares mercadorias utilizadas no cotidiano. Embora estes irmãos estejam caminhando e construindo um futuro melhor para as próximas encarnações, faz-se necessário que nós, espíritas, entendamos que um auxílio ajudaria muito este irmão, dando-lhe as condições necessárias para sobreviver e cumprir com sua jornada com mais dignidade.

Os espíritos amigos nos mostram claramente a importância do auxílio aos irmãos sofredores, como nos diz Joanna de Ângelis, no livro Episódios diários: “Não te escuses de auxiliar. Se não consegue ir à causa do problema, minimiza-lhe os efeitos” considera ela ainda. Em outra passagem nos informa: “Desde que não podes erradicar, de um golpe, a fome, a enfermidade, a ignorância, contribui para a tua cota de amor, por mínimo que seja”, acrescenta.

Vivemos em uma sociedade marcada pela Transição Planetária, um momento de grandes transformações sociais, econômicas e espirituais no mundo contemporânea, mesmo sabendo que este momento é de grandes dificuldades para todos os espíritos encarnados e desencarnados, cabe aos espíritas refletirem sobre o crescimento da desigualdade no Brasil e no mundo e continuar trabalhando para que a situação possa melhorar, os ânimos sejam amainados e as oportunidades aumentem para todos os indivíduos.

A construção de um clima de paz e de solidariedade é fundamental para que as pessoas possam debelar os conflitos e as guerras que tantos males causam e causaram para a sociedade mundial, a desigualdade crescente e a pobreza generalizada colocam as pessoas em confrontos umas com as outras, aumentando a violência e criando um clima de agressividade e incertezas, com isso, os indivíduos se sentem em permanente instabilidade, vendo nos outros sempre inimigos ou adversários, como percebemos no mundo atual, degradando os laços sociais e os vínculos espirituais entre irmãos.

A construção de uma sociedade melhor depende dos avanços que, como espíritos, alcançamos em várias encarnações sucessivas, nestas experiências passamos por dificuldades e por inúmeras experiências, crescemos e passamos a compreender um pouco do mundo, as desigualdades das riquezas existem por conta da diversidade de aptidões dos seres humanos, que são construídas pelo conjunto das conquistas oriundas das variadas encarnações. O que não se deve aceitar é que esta desigualdade seja tão abissal quanto a que estamos vendo no momento, onde uma pequena parcela goza dos prazeres do sistema, usufruindo de seus produtos, mercadorias e serviços altamente eficientes e tecnológicos, enquanto outros vivem na miséria e na indignidade, servindo apenas como anteparo para os luxos e prazeres dos primeiros, alguns podem chamar tudo isto de meritocracia, nós deveríamos ver mais como uma plutocracia, uma grande injustiça e um dia, quando chegarmos no plano espiritual, seremos duramente cobrados por isso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alguns desafios do Capitalismo contemporâneo

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A sociedade mundial vem passando por grandes transformações nos últimos vinte anos, cujos impactos sociais são generalizados, impactando sobre todos os grupos sociais, indivíduos e coletividades, ninguém pode se dizer alheio a estas transformações, uns ganhando muito com todas estas alterações, enquanto outros se veem perdendo cada vez mais, para onde vai esta sociedade ainda é uma grande incógnita que incomoda e preocupa a todos os cidadãos.

Vivemos uma onda de incremento tecnológico crescente, os robôs, as máquinas e as tecnologias estão ganhando espaço em todas as áreas e setores, removendo custos de produção, ampliando a produtividade e incrementando os lucros dos grandes grupos econômicos, mas ao mesmo tempo, diminuindo o emprego, transformando a empregabilidade, aumentando a incerteza, criando mais medos, instabilidades e desesperanças.

O grande desafio desta sociedade dominada pelo capitalismo concorrencial está na essência do sistema do capital, que transforma tudo em mercadorias e tenta quantificar ações, gestos e políticas, criando um ambiente dominado pelas metas, pelas cobranças e pela concorrência avassaladora entre as pessoas, entre os Estados e entre as culturas, num ambiente caracterizado pela força, pela competição e pela desagregação dos laços sociais, numa sociedade onde o poder se concentra, cada vez mais, nas mãos dos mais ricos, fortes e poderosos.

Nesta sociedade contemporânea, centrada no poder do dinheiro e na força do capital tudo se compra, tudo está disponível desde que se tenha recursos monetários para adquirir, compra-se neste grande mercado desde o amor, o prazer, o sexo, a saúde, a educação, além de produtos e mercadorias das mais sofisticadas possíveis, etc… estamos numa sociedade onde compramos não apenas o prazer e o gozo sexual, mas compramos amor verdadeiro.

O aumento da tecnologia vem transformando a sociedade global, as máquinas e os equipamentos fazem, cada vez mais, parte da vida e do cotidiano de todos os indivíduos, auxiliando-os em suas decisões e gerando novos mercados, empregos e possibilidades e, ao mesmo tempo, destruindo antigas ocupações e serviços importantes, exigindo dos indivíduos uma maior flexibilidade e adaptabilidade para sobreviverem neste mundo cada vez mais concorrencial, inseguro e cheio de incertezas e desafios.

Muitas das tecnologias que estão ganhando espaço na vida das pessoas, começaram a ser construídas nos anos 70 do século passado, um período de grandes mudanças na estrutura produtiva internacional, neste momento percebemos a ascensão da chamada Terceira Revolução Industrial, marcadas pelo desenvolvimento da informática e das telecomunicações que culminaram na internet, que propiciaram ao mundo a ascensão de um novo modelo tecnológico, atualmente conhecido como a Quarta Revolução Industrial ou Indústria 4.0, com desafios cada vez maiores e mais complexos para os indivíduos.

O crescimento da tecnologia, poucas vezes estudadas pela sociedade, pode ser visto como uma parceria entre dois agentes centrais na sociedade, de um lado o capitalista, dotado de grandes somas financeiras e desejosos de aumentar seus ganhos e, de outro, dos cientistas, sempre dispostos a vender seus conhecimentos em troca de remuneração, visando melhores condições de trabalho e pesquisas científicas, a junção destes dois grupos impulsionou as grandes descobertas científicas e tecnológicas que mudaram a sociedade mundial, desde o surgimento de novos produtos, mercadorias, bens e serviços, que na atualidade estão disponíveis para todos os grupos e classes sociais.

Estas máquinas e tecnologias trouxeram grandes melhorias nos vários setores da sociedade, melhorou a produtividade da economia e gerou ganhos consideráveis para todos os grupos sociais e econômicos mas, ao mesmo tempo, passou a ditar as regras dentro da sociedade e a exigir de todos os setores uma busca constante por inovação, concorrência e produtividade e, ao mesmo tempo, uma transformação na ética que domina a sociedade, onde os valores passaram a ser dominados pelos interesses do capital e da acumulação, onde a ética do dinheiro passou a ser dominante e hegemônica, quem possui o capital domina a sociedade, cria as leis, usufrui dos benefícios e das descobertas mais modernas em detrimento daqueles que não o capital, servindo apenas para o trabalho desgastantes, degradante e com remuneração mais modestas.

O poder do capital é tão intenso nesta sociedade, que são eles os grandes donos do poder político e do poder eleitoral, são eles que criam as regras e as leis e dominam as agendas políticas, controlam o Estado e definem os grandes ganhadores das contendas do cotidiano da política, a ausência da população dos debates políticos, estimuladas por estes grupos, concede a estes grupos econômicos e financeiros um amplo poder de dominação na sociedade, garantindo-lhes uma forte capacidade de perpetuação nas entranhas do poder e uma manipulação dos interesses da coletividade, para isso se utilizam de seu controle das mídias tradicionais e do financiamento de campanhas eleitorais.

Esta sociedade percebe um enfraquecimento da democracia representativa, o modelo criado para garantir aos grupos sociais um maior controle sobre as discussões e debates sociais se perdem em proveito dos interesses do capital que, muitas vezes são vendidos para o grande público como o interesse de toda sociedade e na verdade se restringe aos interesses imediatistas dos donos do poder, mecanismo este muito bem retratados em obra clássica por Raimundo Faoro em Os donos do poder, uma leitura fundamental para todos que queiram pensar e refletir sobre muitos dos dilemas do Brasil, um país que, em pleno século XXI, ainda apresenta fortes traços de patrimonialismo, corporativismo e corrupção.

Os donos do poder no Brasil se apegam a estratégias de dominação antiga e ultrapassada, seus ganhos imediatos os impedem de pensar e refletir sobre o futuro, a população que durante muitos anos se viu deitada em berço esplêndido está dando mostras de crescente descontentamento com os rumos do país, de um lado percebemos as fortes manifestações nas redes sociais, marcadas por um clamor contra a impunidade e pela corrupção generalizada, além de uma forte percepção, por parte da população, de que suas vidas estão ficando piores do que eram em décadas anteriores, muitos filhos ao refletirem sobre seu futuro, acreditam que não devem conseguir os mesmos ganhos que seus pais criando, com isso, uma sensação de frustração e desesperança que, em muitos casos, levam os indivíduos a cometer suicídio ou a um mergulho sem volta no mundo das drogas e da depressão, males que assustam cada vez mais a sociedade capitalista.

A educação na contemporaneidade se transformou em uma das mercadorias mais importantes, antes vista como um direito dos indivíduos, na atualidade a educação é vendida como a panaceia do mundo, as escolas se transformaram em verdadeiras multinacionais do conhecimento, faturam bilhões e bilhões de dólares e entregam diplomas de péssima qualidade, para baratear sua mercadoria atuam em várias frentes, primeiramente se aliam a bancos de investimentos para aumentar seu capital financeiro e monetário, de outro restringem os ganhos dos professores ao mínimo permitido pela legislação, além de usar seus poderes políticos para reduzir as proteções e ganhos legais dos docentes visando um maior ganho financeiro imediato e vender ao público em geral uma mercadoria ao menor preço possível.

Outra estratégia clara para abarcar cada vez um público maior de alunos, está no crescimento do ensino a distância, uma estratégia imensamente rentável que garante aos grandes grupos condições de mercado que destroem os grupos menores e os levam a dominar o mercado educacional, perpetuando um modelo educacional que pouco se preocupa com a qualidade da educação, enxergando-a como uma verdadeira mercadoria que serve para garantir lucros exponenciais, neste ambiente percebemos uma fragilização dos instrumentos de regulação estatal, que ora fragilizado pouco consegue impor políticas e se comporta como um verdadeiro garantidor do interesse privado.

O mesmo ambiente encontramos nos mais variados setores da sociedade, a saúde vista como fundamental para todos, se transformou em um dos mercados mais rentáveis do grande capital, que controlam os grandes laboratórios, impondo valores, políticas e fazem com que os seus interesses se perpetuem para garantir lucros assustadores, neste ambiente os mais carentes se veem jogados como verdadeiros animais nos sistemas de saúde pública, cada vez menos aparelhados e seus serviços mais degradados.

As situações descritas acima não devem ser vistas como casos isolados, o sistema de segurança pública também se encontra nas mesmas situações, os interesses do grande capital está em forte crescimento e passam a dominar as agendas, atuando fortemente ao lado de empresas de armas e grupos detentores de interesses relacionados ao mercado bélico, este crescimento se dá justamente com a degradação dos serviços públicos na área de segurança, onde muitos estados não possuem o mínimo necessário para a proteção da sociedade, onde os presídios estão em péssimas condições e servem como verdadeiras fábricas de produção em massa de delinquentes e desocupados.

O capital domina todas as agendas e interesses da sociedade, transforma tudo em mercadorias, nesta sociedade compramos o prazer e os gozos mais intensos com direitos a repetições, desde que se tenha condições econômicas e financeiras para financiar seus prazeres, compramos os carros mais potentes que nos abrem portas em condomínios e residências de luxo para negócios altamente atraentes e rentáveis, nos garantem as fotos e as imagens mais belas nas colunas sociais, os flashes mais curtidos em todas as redes sociais e os prazeres mais intensos da gastronomia nacional e internacional.

Vivemos em uma sociedade em forte degradação, todas as estruturas da sociedade estão em crise, as famílias, as escolas, os poderes constituídos, os relacionamentos, os valores, os desejos, os sonhos, as vontades, dentre outros, mas o agente responsável por todas estas mudanças é o poder desmesurado do grande capital, este domina as mentes e transforma a sociedade de acordo com seus interesses mais imediatos.

Os relacionamentos são pautados pelos interesses monetários e se transformaram em um verdadeiro negócio, as pessoas buscam aqueles que possuem recursos econômicos para se relacionar, querem segurança em um mundo marcado pela insegurança e pelas incertezas, aqueles que possuem boa aparência e “parecem” ser bem sucedidos, ganham espaço e conseguem os “melhores relacionamentos enquanto, aqueles que não possuem recursos são deixados para trás, a lei do mercado funcionando bem em todas as áreas e setores.

O capital nos abre muitas portas e nos garante os mais interessantes programas mas, ao mesmo tempo, está gerando graves desajustes e desequilíbrios emocionais, psicológicos e espirituais para os indivíduos, criando verdadeiras compulsões e patologias contemporâneas, levando os psicólogos e as clínicas de psiquiatrias a aumentar seus faturamentos e os laboratórios a venderem mais e mais remédios para depressão, ansiedade e distúrbios variados.

Vivemos em um mundo doente, somos seres doentes emocionalmente, o capital foi criado como um instrumento de regulação de trocas e satisfação dos interesses primários, com o passar dos tempos acabou ganhando tanta força e poder, que na sociedade contemporânea somos tragados pela força do dinheiro e fazemos com que ele nos domine e nos controle, pensamos o mundo superficialmente e nos entregamos aos males do capital, estamos condenados a uma perpetuação de mediocridade e insignificância constantes. Vivemos numa contradição constante, se aderimos ao sistema nos desumanizamos e passamos a pensar sempre pela lógica dos interesses monetários e financeiros, se nos esquivamos deste sistema somos literalmente deixados de lado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eficiência e democracia na era digital

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 Ricardo Abramovay –  Publicado no Valor Econômico – 4 de fevereiro de 2019

E se não precisássemos mais de leis? Se a conduta a ser adotada pelos indivíduos, pelas empresas e pelos governos estivesse codificada em aplicativos em cujo funcionamento não podemos interferir? Quando o automóvel autônomo estiver em circulação, é bem provável que ele elimine a possibilidade de transgredirmos as leis de trânsito. Já há condomínios em que, ao passar o cartão de identificação na catraca de entrada, o elevador só autoriza que o indivíduo vá ao andar a que declarou destinar-se. Em alguns anos, ao encomendar uma pizza de calabresa, o robô que o atende poderá ponderar que seu colesterol está alto e que esta encomenda poderá lhe trazer problemas com seu plano de saúde…

Isso altera de forma substantiva nossa relação com as leis. Até aqui, a cidadania consiste no estabelecimento de regras, cuja desobediência implica punições. Naquilo que Karl Popper chamou de sociedades abertas, estas regras são estabelecidas com base no debate público, submetem-se a críticas vindas dos mais diversos setores e exigem uma instância que as legitime, para que sejam incorporadas aos costumes cotidianos. Mas mesmo normas não consolidadas em leis e que permitem nossa vida comum podem não ser cumpridas e serão objeto de punição a quem não as obedece.

A internet e sobretudo a Internet das Coisas estão abrindo caminho a um mundo em que, cada vez mais, as leis serão convertidas em códigos embutidos nos próprios objetos que usamos. Em alguns aspectos, isso pode até ser positivo para a ordem pública. O condomínio será mais seguro. Os acidentes de carro e os congestionamentos serão reduzidos. Se não paguei o aluguel, o cartão que abre a porta de minha casa não vai funcionar e assim não será necessário toda a parafernália jurídica hoje existente para lidar com a inadimplência.

Mas uma vez que nossa sociabilidade, nossa relação com os outros e com as coisas é crescentemente determinada pelos códigos inscritos nos objetos que compõem nosso cotidiano (e não só os celulares e os computadores), estes ganhos de eficiência correm fortemente o risco de sacrificar os valores centrais da vida democrática, a começar pelas liberdades e pela dignidade das pessoas. Em vez de o comportamento ser pautado por regras sociais estabelecidas pela comunidade ou pela exigência de respeito àquilo que o Estado legitimamente estabelece por meio de leis, são nossos aplicativos que dirão o que podemos fazer. A regulação será perfeita, matematicamente determinada e consolidada em algoritmos.

O WhatsApp, por exemplo, acaba de limitar o poder multiplicador daquele que se transformou num dos principais instrumentos de influência política em diversos países do hemisfério sul, reduzindo para cinco o número de mensagens que cada pessoa pode reenviar. Isso ocorreu na Índia, ano passado, primeiramente, em caráter experimental, após onda de linchamentos contra indivíduos acusados de abduzir crianças. Na Malásia, no Quênia e evidentemente, no Brasil, o WhatsApp tornou-se vetor de difusão de informações absurdas, mas verossímeis por serem mandadas por pessoas da confiança de quem as recebe. Na verdade, como mostram os trabalhos recentes do Tactical Technology Collective, o que foi criado como forma de comunicação entre pessoas converteu-se num dos principais mecanismos de influência sobre a opinião pública.

Esta influência mostrou-se tão perigosa que o próprio WhatsApp decidiu limitar o alcance de seu dispositivo. A limitação é certamente positiva. No entanto, o que chama a atenção é que a gestão de um tema tão crucial para o futuro da democracia (como se formam as opiniões das pessoas? Que curadoria existe para estimular o espírito crítico da população e sua capacidade de checar as informações que recebe?) vem de uma esfera estritamente privada. Pior: como o Facebook controla o WhatsApp e o Instagram, esta esfera privada funciona na prática como monopólio. E como mostra o excelente e recém publicado livro de Jamie Susskind (Future Politics) as tecnologias digitais tornaram-se hiperpolíticas por atingirem dois ingredientes fundamentais da vida pública, a informação e a comunicação.

As mensagens de ódio e a desinformação adquiriram tal dimensão que o Facebook contratou 15 mil pessoas para filtrá-las. O New York Times publicou em sua edição de 28/12/2018 o resumo de um relatório de 1.400 páginas (vazado por um funcionário da empresa sob condição de anonimato) mostrando um dos maiores paradoxos da vida política atual: com 510 mil posts em mais de cem idiomas e 136 mil fotos por minuto, postados por seus 2,3 bilhões de usuários ativos mensais, o Facebook teve que contratar pessoas que têm de cinco a dez segundos por post para determinar se mensagens suspeitas devem ou não ser transmitidas.

O contraste entre a sofisticação tecnológica da plataforma e o caráter rudimentar dos métodos de controle às mensagens de ódio mostra, na opinião de John Naughton, professor de Cambridge e articulista do diário britânico The Guardian, que o Facebook já não é capaz de gerir o sistema complexo cuja emergência ele propiciou. E a resposta a esta incapacidade é autoritária: o Facebook acabou convertendo-se em árbitro do que pode ou não passar pelo discurso da sociedade global. Automatizar esta arbitragem, incorporá-la a códigos de funcionamento dos aplicativos em que estamos imersos no cotidiano é tanto mais grave que os algoritmos a partir dos quais eles funcionam não são discutidos com a sociedade e são controlados de forma monopolista. Substituir as virtudes da cidadania pela eficiência dos algoritmos é bloquear o caminho pelo qual passa a democracia.

 

Otimismo econômico e incertezas políticas: uma análise do primeiro mês de governo

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Depois de uma eleição conturbada, marcada por facadas, acusações, discussões e confrontos generalizados, o governo Jair Messias Bolsonaro inicia seu mandato e, com ele, muitas esperanças, expectativas positivas, além de preocupações, medos e incertezas, começamos uma nova era para o Brasil ou vamos mergulhar no conhecido e rejeitado mais do mesmo?

Estamos começando o segundo mês do novo governo, sabemos que ainda é muito cedo para investigações mais aprofundadas e questionamentos mais elaborados, nesta data o novo Congresso Nacional está tomando posse e, com ele, aumentam as expectativas de toda a sociedade para que as reformas essenciais e urgentes que o país precisa, sejam iniciadas e encaminhadas, dentre elas destacamos a Reforma da Previdência, a Reforma Tributária e a Reforma do Estado, dentre outras importantes alterações que são fundamentais para que possamos viabilizar o Brasil, construir uma nação verdadeira, não apenas para os próximos quatro anos, mas para uma nova geração de brasileiros que quando nascem perderam a esperança de ascensão social e melhoria de vida, muitos migrando para outros países e para outras regiões do mundo, além de vermos tantos outros cidadãos se entregando para a bandidagem e para a desesperança, o desafio é enorme e o governo não pode abrir mão desta oportunidade histórica.

De um lado encontramos nomes de peso que foram escolhidos para a composição do novo ministério, como o ex-juiz Sérgio Moro, designado para o Ministério da Justiça e da Segurança Pública e o economista Paulo Guedes, que comanda o Ministério da Economia, nomes de grande expressão profissional em escalas nacional e internacional, que deram ao governo Bolsonaro a envergadura que este precisava, ainda mais com tantas reformas e reestruturações que demandam o país para se reconstruir e se preparar para os novos ventos da sociedade internacional.

Ambos os nomes são cruciais para o sucesso do novo governo, do lado da justiça a agenda dominante gira em torno do combate a corrupção e da impunidade, demandas fortes da sociedade e que receberam grande atenção da população nesta última eleição, a incógnita e o desafio é saber como construir os consensos políticos para o combate a corrupção mesmo sabendo que para isto, faz-se necessário a aprovação de inúmeras propostas de alteração constitucional.

No campo econômico, percebemos grande euforia na Bolsa de Valores, cuja valorização bateu todos os recordes neste primeiro mês, os investidores estão adorando as propostas do economista Paulo Guedes que, dentre outras coisas, está propondo um amplo processo de desestatização, abertura econômica e desburocratização, estas medidas agradam ao grande capital nacional e internacional, o grande desafio está na questão fiscal, se o governo conseguir aprovar uma reforma ampla da previdência, que inclua todos os grupos e reduza os privilégios, os ganhos políticos devem impulsionar a economia para períodos de forte crescimento econômico, não teríamos receio de apostar em um crescimento rápido de uns 3% ao ano na próxima década, com ganhos de emprego, renda e melhorias sociais representativas.

Se estas medidas forem aprovadas pelo Congresso Nacional, os ganhos serão substanciais para toda a sociedade, mas não podemos deixar de refletir sobre as dificuldades e das possibilidades destas medidas não serem aprovadas, neste caso se abre uma grande incógnita para o governo federal e as perspectivas econômicas, principalmente no campo fiscal, serão bastante negativas, levando a economia a uma recessão e grande instabilidade, com incremento no desemprego e piora na renda agregada, além de um aumento no risco país e uma fuga de dólares, com desvalorização cambial, estouro da dívida empresarial e do déficit público.

Alguns analistas destacam o potencial econômico do país, os investidores internacionais veem o país como um grande investimento, se o governo conseguir aprovar as medidas liberalizantes o Brasil deve atrair um soma de mais de 100 bilhões de dólares, recursos estes para as mais variadas áreas e setores econômicos, com impactos bastante positivos para a economia do país, fazendo da próxima década um momento de forte crescimento econômico e ganhos de produtividade.

O sucesso do governo Bolsonaro passa pelo sucesso inicial destas duas grandes áreas e ministérios, Justiça e Economia, ambas necessitam de forte apoio parlamentar do Congresso Nacional para a aprovação de leis e alterações jurídicas e institucionais, se o governo conseguir esta costura os ganhos serão de todos, agora se o apoio político não se concretizar os riscos de fracasso são grandes.

De outro lado, encontramos um grande número de ministros sem expressão, tecnicamente medíocres e com pouco conhecimento da burocracia do Estado, como nas Relações Exteriores, na Educação, no Meio Ambiente e nos Direitos Humanos, com isso, percebemos fortes críticas das comunidades nacional e internacional com relação a estas escolhas que, muitas vezes são feitas para agradar interesses religiosos e corporativos em detrimento de profissionais capacitados, competentes e reconhecidos, tudo isso pode gerar retrocesso em programas exitosos e necessários e atrasos institucionais, com custos econômicos e financeiros elevados.

A composição do governo está dividida em dois grandes eixos, de um lado encontramos um grupo liberal, internacionalista e adepto da modernização do Estado e, de outro, um grupo mais conservador, evangélico, estatista e crítico do globalismo, a mediação deste conflito será fundamental para o sucesso deste novo governo, o papel exercido pelo presidente dará o rumo correto deste novo modelo que está se implantando na sociedade brasileira, se o primeiro tiver êxito os ganhos podem ser interessantes, agora, se o segundo for o vencedor estamos em um impasse e numa incerteza crescentes.

Algumas medidas tomadas pelo governo nestes trinta dias foram para agradar seu público cativo, onde destacamos as relacionadas a posse de armas, a publicação dos maiores empréstimos e devedores do BNDES e o apoio aos governo de Israel e dos Estados Unidos, buscando um alinhamento direto que pode nos gerar graves problemas nas negociações de comércio internacional com países árabes e com a China, atualmente o maior parceiro comercial do Brasil.

Alguns analistas políticos e intelectuais debatem se a democracia está em risco no Brasil na atualidade, argumentos temos para defender ou para rechaçar esta ideia, acredito que não temos elementos claros ainda para acreditar que caminhamos para um governo mais autoritário, vejo este momento com grande apreensão, a ascensão de um governo fortemente comprometido com as teses de direita no campo da economia é algo novo e desconhecido no país, mas devemos destacar, que este governo foi eleito democraticamente e chancelado por mais de 57 milhões de votos, o que dá ao presidente eleito uma grande legitimidade para governar e defender suas ideias, cabendo aos grupos que perderam o pleito, se organizarem como oposição propositiva, mas que pensem no país e não em seus interesses eleitorais, como vimos muitas vezes em momentos nada distantes.

Nestes trinta dias de governo pouco vimos de avanço em medidas econômicas, as propostas de desestatização são interessantes mas ainda precisam ser detalhadas, a abertura econômica deve ser feita com cautela numa economia internacional altamente competitiva, os acordos comerciais e de integração econômica devem ser revistos e, muitos deles, aprofundados e consolidados para estimular a inserção do Brasil na economia global, mas é importante destacar que os custos iniciais destas políticas liberalizantes podem não ser tão auspiciosos como muitos estão imaginando, para evitar constrangimentos maiores, é fundamental que o Estado esteja em condições de dar o apoio institucional para os grupos mais afetados, sob pena de uma piora nos indicadores macroeconômicos e uma maior degradação social.

Como as propostas econômicas estão sendo costuradas nos gabinetes dos ministérios e das secretarias especializadas, o que vimos neste período foi uma avalanche de denúncias contra o filho do presidente, estas denúncias devem ser investigadas e os responsáveis devem ser punidos se necessário, dentre elas uma das denúncias mais graves estão vinculando a família aos milicianos do Estado do Rio de Janeiro, esta denúncia é grave e deve ser investigada pelos órgãos competentes, afinal, ninguém esta acima da lei, todos somos cidadãos e devemos respeitar as diretrizes da Constituição Federal.

Um novo governo gera sempre novas expectativas na sociedade, depois de um período de forte desaceleração econômica, com o produto interno bruto caindo mais de 9%, todos almejamos um crescimento econômico mais sólido e uma melhora nas questões sociais, neste período de crise vimos o país mergulhar em grande desilusão e desesperança, o desemprego atingiu mais de 12 milhões de pessoas, a violência cresceu de forma acelerada, apenas em 2017 foram assassinados mais de 63 mil pessoas, todo este ambiente de caos e desesperança prescindem de uma agenda sólida de combate aos desperdícios econômicos e financeiros, mesmo neste ambiente de crise e instabilidade, o setor bancário apresentou ganhos crescentes, um sistema bancário sólido é fundamental para a economia de um país, mas esta solidez não pode se dar em detrimento dos desequilíbrios da população mais pobre e degradada, se estamos em uma situação negativa, todos os grupos devem dar seu quinhão de sacrifício para que o sociedade melhore para todos, o Estado precisa diminuir seus tentáculos, ganhar eficiência e aumentar a sua produtividade, visando uma sociedade onde os serviços públicos se tornem um motivo de orgulho e admiração, sabemos que isto não se constrói de um dia para o outro e nem mesmo de um governo para outro, mas devemos ambicionar esta melhora e trabalhar para sua efetivação afinal, somos brasileiros e não desistimos nunca.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Somos todos médiuns: uma reflexão sobre os (des)caminhos da mediunidade

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A Doutrina Espírita nos trouxe inúmeras informações relevantes para a compreensão  da sociedade, da vivência em comunidade e da relação existente entre os mais diversos mundos que nos cercam, mostrando-nos a existência do mundo imaterial ou espiritual, que está diretamente atrelado ao mundo físico e que nos influência muito mais do que nós imaginamos, muitas vezes nos conduzindo e nos influenciando muito mais do que queremos e percebemos.

A mediunidade não foi descortinada pela Doutrina dos Espíritos, desde os primórdios da humanidade se tem informações e registros de que a relação entre os mais diferentes mundos era uma constante, eram as bruxas, as pitonisas, as deusas e os magos que se diziam em contato com o mundo espiritual e detentores de poderes sobrenaturais, com força e disposição para atitudes que variavam no bem ou no mal, dependendo do caráter e da moral do indivíduo.

Quando o Espiritismo nos foi revelado por Allan Kardec, em 1857, com a publicação de O Livro dos Espíritos, as antigas crenças em bruxos e bruxas perderam força e abriram espaço para uma nova matriz de conhecimento, nascia para o grande público uma nova forma de se pensar a relação entre os seres humanos e a imaterialidade, com respostas para todas as perguntas e indagações dos indivíduos, sem dogmas, adorações, cultos externos e uma grande dose de racionalidade, reflexão e conhecimento para levar os seres humanos a compreenderem as bases que sustentam a sociedade.

Nas revelações da Doutrina Espírita, a sociedade passou a compreender que somos todos médiuns, todos nós sentimos a influência, uns mais e outros menos, de entidades e espíritos desencarnados e que estes podem nos influenciar nas nossas decisões cotidianas, nos nossos sentimentos e até mesmo em nossos pensamentos, desde que estejamos abertos e sintonizados a estas entidades espirituais.

Na relação existente entre os dois planos da vida, somos todos os momentos bombardeados por sentimentos e pensamentos oriundos de amigos ou inimigos espirituais, se estamos sintonizados com os bons espíritos, sentimos as suas influências em nossas vidas, sentimo-nos mais calmos, mais equilibrados e serenos e, com isso, percebemos nossas vidas mais agradáveis e promissora.

Se abrimos espaço para os espíritos mais desequilibrados e momentaneamente dominados pelos vícios,  sentiremos sua completa influência, dominando-nos em nossos pensamentos e atraindo para nosso campo energético, energias mais pesadas, densas e desequilibradas e, com isso, perceberemos claramente nossos caminhos cotidianos mais desequilibrados e distante do progresso espiritual, ainda mais em uma sociedade marcada pela busca constante pelo hedonismo e pela acumulação material que muitas vezes cega as pessoas e atropelam os valores morais.

Encontramos neste embate um grande conflito entre o bem e o mal, um confronto existente dentro de todos os indivíduos, num momento cultivamos o bem e os bons pensamentos e colhemos equilíbrio e serenidade enquanto, em outros momentos, somos dominados por sentimentos menores, atraímos desequilíbrios generalizados e vivemos numa constante de desesperanças e desequilíbrios.

A Doutrina Espírita nos mostra que este embate existente entre o bem e o mal é algo individual e totalmente normal no atual estágio em que vivemos neste mundo físico e material, todos nós vivemos neste dualismo, não existe ninguém neste mundo que é somente bom e ninguém eminentemente mal, somos um misto de todos estes sentimentos difusos e generalizados, dominar os pensamentos negativos e cultivar os bons sentimentos é sinal do progresso e do crescimento espiritual.

Muitas pessoas criticam as teses da Doutrina dos Espíritos e acreditam que, como não conseguem enxergar e visualizar os espíritos no cotidiano, veem-na apenas como mais uma religião dogmática, castradora e conservadora, se não conseguem ver com seus próprios olhos desacreditam no potencial desta doutrina e a colocam no mesmo patamar de muitas outras correntes religiosas, denegrindo seus ensinamentos e contestando alguns de seus conceitos mais importantes, a mediunidade e a reencarnação.

A mediunidade nos foi trazida desde a antiguidade clássica, coube a revelação espírita desnudar o caráter dogmático deste conceito e nos trazer uma visão mais científica e filosófica, somos todos médiuns é uma das teses mais completas desnudada pelo Espiritismo, a mediunidade não se concentra apenas na visão, existem inúmeras mediunidades, desde a psicografia, a psicofonia, a oratória, dentre outras mais variadas formas de sentir a existência de um mundo novo e com potencial de grande explicação das estruturas que sustentam a sociedade.

Até meados do século passado, as comunicações dos espíritos eram mais intensas e ocorriam nos mais variados locais, com isso, era muito comum encontrarmos relatos de pessoas que viviam em sítios, fazendas e vilas rurais que viam e ouviam manifestações de espíritos, gerando medos e desequilíbrios generalizados, estes casos escassearam com o passar dos tempos por inúmeros motivos, dentre eles destacamos o crescimento da Doutrina Espírita e dos Centros Espíritas, nestes locais os bem feitores espirituais traziam espíritos para conversações variadas, além de instruções e conversas, desde as mais interessantes e empolgantes até as mais frívolas, fúteis e superficiais.

Destacamos ainda, uma mudança no perfil das comunicações entre o mundo material e o imaterial, depois de inúmeros fenômenos físicos, os espíritos superiores mudaram suas formas de comunicação, alteraram suas estratégias de trabalho, trazendo os espíritos para as conversas nas sessões mediúnicas, onde estes irmãos passavam a ter contato com médiuns psicofônicos, doutrinadores e passistas e, com isso, as conversas se davam de forma mais estruturada e produtiva, com auxílio e esclarecimento.

Muitas pessoas pedem para ver os fenômenos mediúnicos, dizem que podem até acreditar na existência desta comunicação entre os dois polos da vida, mas defendem que para acreditar e confiar nestes fenômenos do mundo espiritual, faz-se necessário fazer como Tomé, para estes indivíduos é necessário ver para crer, se não verem os fenômenos dificilmente estes irmãos irão acreditar nos fundamentos das conversas e das influências dos espíritos sobre os seres humanos.

Para estas indagações, os espíritos superiores dizem que todos terão os seus momentos íntimos de conversão, tudo tem seu tempo, defendem a tese de que cada pessoa terá seu momento de credulidade, como somos imortais e vivemos inúmeras vidas entre os dois mundos, no momento certo cada indivíduo vai perceber que, para compreender o mundo, faz-se necessário estudar Jesus Cristo e a Doutrina Espírita nos mostra os caminhos mais sólidos para compreender as mensagens e os ensinamentos deste grande exemplo para toda a humanidade.

Como somos todos médiuns, como nos mostra Allan Kardec, temos que ter consciência de que somos seres em constante influenciação tanto de espíritos bons como de irmãos que ora se comprazem com o mal, para que esta influência seja positiva e que nos traga progresso material e espiritual, temos que estar sempre vinculados ao bem e aos seres superiores criando, com isso, o mantra e a couraça necessárias para nos fortalecer e debelar os influências de espíritos.

Viver no bem, cultivar bons pensamentos e o hábito da oração são descritos como verdadeiros elixires contra irmãos negativos e que se comprazem com o mal e com a negatividade, esta fórmula é bem conhecida por todos os indivíduos e a sua execução se faz sempre difícil e exige das pessoas uma grande dose de perseverança, transformação e vivência cristã.

Outro ponto interessante a se destacar quando o assunto é mediunidade, muitas pessoas acreditam erroneamente que ser médium vidente, psicógrafo ou psicofônico é um grande dom, veem como se fossem escolhidos por Deus, muitos acreditam que, ao terem estas mediunidades, são pessoas diferenciadas e dotadas de grande poder espiritual. Todas estas mediunidades possibilitam auxiliar e contribuir para o crescimento individual e coletivo da coletividade, porém, faz-se necessário destacar que, sendo detentores destas mediunidades, todos estes indivíduos precisam se entregar ao trabalho como forma de reequilíbrio espiritual, pois se não o fizerem viverão perseguições espirituais cotidianas, muitos médiuns desinformados e desconhecedores destes “dons” mediúnicos vivem como verdadeiros párias de uma sociedade ignorante e  despreparada, onde muitos foram condenados a viver em manicômios e a serem cobaias de tratamentos violentos, como choques e descargas elétricas.

O médium é um verdadeiro para raio que atrai energias boas e ruins, ao adentrar em um local marcado por energias desequilibradas, atrai estas energias e, muitas vezes acaba gerando fortes constrangimentos físicos e emocionais, desajustes estes que na maioria das vezes reverbera para todos os seus familiares, gerando graves desequilíbrios em seus lares e em seus relacionamentos. Muitos querem ser médiuns para auxiliar os desvalidos e para trazer notícias boas e equilibradas, esquecem-se, de que, ao mesmo tempo que, como médiuns podem trazer mensagens boas e salutares podem, ser mensageiros de notícias negativas e desestruturantes.

A responsabilidade de ser médium é muito grande, embora todos tenhamos algum grau de mediunidade, o médium ostensivo tem grandes responsabilidades no cotidiano, sua conduta moral precisa estar sempre em evolução, os questionamentos existem e são salutares, mas estes não podem, em momento algum, levar aos questionamentos referentes ao trabalho e de sua crença na Doutrina e na vivência com Jesus.

Os inimigos espirituais estão presentes constantemente na vida das pessoas encarnadas, ao se aproximar ouvem nossos pensamentos e conhecem nossos comportamentos, com isso, conhecem nossas deficiências, nossas vontades e desejos mais íntimos e, quando se aproximam, podem ser descritos não como agressores, como muitas vezes o definimos, mas como convidados, afinal fomos nós que os chamamos e temos imenso prazer em tê-los ao nosso lado.

A mediunidade é uma grande benção de Deus para que consigamos vencer as nossas mais íntimas adversidades, somos dotados de grandes desequilíbrios acumulados em inúmeras encarnações, numas cometemos crimes indescritíveis e em outras fomos cruelmente massacrados por nossos irmãos de caminhada, carregamos todas estas experiências dentro de nossos perispíritos, muitas vezes nos acreditamos vítimas de injustiças e nos colocamos como injustiçados, na verdade não existem vítimas no mundo, o que existem são seres humanos imperfeitos e cheios de desequilíbrios que caminham lado a lado em busca de um lenitivo de amor e de esperança, demoramos muitos anos, séculos e milênios mas, em algum momento, vamos compreender que mesmo sendo longo o caminho e difícil a caminhada, esta é a única forma de nos melhorarmos e progredirmos em prol de uma sociedade melhor e mais harmoniosa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alfabetização digital é antídoto contra ódio, diz socióloga

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Para Esther Solano, instrumentalização da educação brasileira gerou cidadãos com baixa capacidade de convívio

DÉBORA MIRANDA – Folha de São Paulo – Ilustríssima

[RESUMO] Socióloga afirma que instrumentalização da educação brasileira gerou cidadãos com baixa capacidade de convívio, o que abriu espaço para a intolerância — em alta na política e em redes sociais.

O antídoto contra o discurso de ódio é a alfabetização digital. Isso é o que sugere Esther Solano Gallego, socióloga, professora da Unifesp e organizadora do livro “O Ódio Como Política – A Reinvenção das Direitas no Brasil” (ed. Boitempo), lançado ainda na esteira das eleições brasileiras de 2018. Para Solano, a reprodução de falas discriminatórias está ligada à educação excessivamente instrumentalizada praticada no país.

“É uma educação muito focada na ideia de formar trabalhadores, que é técnica e esquece a política. Vemos pessoas com ensino superior completo que dizem barbaridades e podem ser muito intolerantes. Essa incapacidade de convívio existe porque muitos brasileiros não foram ensinados a lidar com o diferente. Nem todo mundo está preparado afetivamente e intelectualmente para isso”, afirma a doutora em ciências sociais pela Universidad Complutense de Madri.

Segundo a pesquisadora, “é importante ter uma educação política e crítica, que possa de fato formar cidadãos aptos para conviver com as diferenças e respeitá-las.”

A ruptura entre familiares, casais e amigos ocasionada pelo processo eleitoral do ano passado teve saldo negativo para todo o país, segundo ela. “Não se tratou apenas de ruptura institucional e política, mas de ruptura social. Era enxergar no outro um inimigo continuamente. E o outro podia ser meu filho homossexual, ou podia ser meu namorado petista. É uma ideia profundamente antidemocrática, de não tolerar o convívio com o outro.”

A saída, segundo a socióloga, é a alfabetização digital: educar o brasileiro para que ele saiba encontrar formas responsáveis de se informar por meio das redes sociais e também de se comportar dentro delas.

“No fundo, a gente volta à mesma ideia de um conhecimento politizado e crítico, mas ligado à utilização das redes sociais. O aluno precisa ser ensinado a se posicionar, a agir e reagir. É essencial um ensino que seja voltado também para essa mostra online, para a sociabilidade na internet. A pessoa precisa ter alfabetização digital para saber se a informação que está lendo é verídica, para ter um comportamento minimamente responsável. É importante levar esse tipo de conhecimento para a sala de aula.”

A ideia é que o discernimento individual possa regular o conteúdo a que cada um está exposto, sem interferências drásticas nem controle excessivo do Estado.

“Há, de fato, páginas que muito ostensivamente propagam fake news e aí, claro, elas devem ser retiradas do ar. Mas existe um limite tênue entre o que seria a fiscalização do conteúdo de ódio e de fake news e a censura. É delicado isso. E é um grande medo dos grupos progressistas, que lutaram pelo marco e pela liberdade da internet, que em nome de criar uma nova legislação muito dura contra esse tipo de informação falsa seja provocada uma censura na internet”, afirma ela, que também é a favor de responsabilizar grandes corporações, como Google e Facebook.

As redes sociais funcionam com algoritmos que selecionam o que cada um vai acessar, normalmente de acordo com o que o usuário mais vê, comenta e compartilha.

Assim, criam-se as bolhas, que favorecem o encontro de conceitos semelhantes —e os impulsionam. “Por isso o discurso de ódio encontra um campo bastante fértil nas redes sociais, além do fato de que as pessoas se sentem mais protegidas pela falta de fiscalização e pelo anonimato. Isso desenvolve uma polarização muito clara e uma lógica bélica, cria um muro virtual entre pensamentos distintos.”

A mesma agressividade vem se estabelecendo no Brasil em relação à imprensa. Donald Trump, nos EUA, estabeleceu uma cruzada contra a mídia, destratando jornalistas e desmentindo reportagens na internet.
Estratégia semelhante foi adotada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), que passou a desqualificar o trabalho de jornais, a selecionar quem poderia participar de suas coletivas de imprensa e a usar intensamente as redes sociais para suas colocações.

“Quando a imprensa é atacada, a democracia também é atingida, porque não existe democracia sem acesso à informação. Ter uma imprensa realmente qualificada, que forneça informação de alto nível, significa que os cidadãos vão ter também uma formação política qualificada e de alto nível. Obviamente, um governo demagógico e populista não quer um cidadão que consiga criticar e questionar. Quer um cidadão infantilizado. E, portanto, é um governo que vai favorecer as fake news em detrimento da qualidade de imprensa.”

Segundo Gallego, a polarização vem sendo usada como estratégia política no mundo todo. “Se você vir detalhadamente os movimentos de extrema direita nos Estados Unidos e em países da Europa como Itália, Hungria e França, a retórica é sempre a mesma. Como esses grupos não têm normalmente propostas pragmáticas e são muito violentos no discurso, com frequência apostam nesse jogo de colocar o outro polo como inimigo, forçam o ódio político.”

O que chama a atenção é que muitos eleitores que apoiam esses discursos bélicos assumem uma postura defensiva ao dizer que não os compartilham, segundo a socióloga.

Aqueles que apoiam candidatos com falas machistas, racistas ou homofóbicas não se veem nesse papel. “É um discurso típico dessas figuras contemporâneas da extrema direita. São políticos que se mostram como falastrões, de forma meio folclórica, um pouco ridícula e até tosca. Aí as pessoas dizem ‘ele fala um pouco demais, exagera’ e acabam desculpando isso. Mas quando você desculpa um comentário desses, significa que você está sendo conivente com ele. Porque uma piada machista é isso: machista!”

A crise econômica é outro fator que impulsiona o discurso de ódio. No livro organizado por Gallego, o escritor e militante Ferréz discute a propagação de falas discriminatórias nas periferias. “A crise pegou todos, mas aqui é onde tem seu retrato mais cru. E por que não deixar sair esse ódio?, mas da forma de comprar um argumento também de ódio, de separatismo, de preconceito, de sexismo. Tudo isso se compra quando o viver com dignidade se vai”, afirma o texto.

De acordo com a socióloga, a perda do poder aquisitivo e do emprego e a consequente precarização naturalmente causam desespero e frustração. “No final, a pessoa se sente impelida a adotar esse tipo de fala. Os líderes da extrema direita têm discursos duros e se apresentam como os heróis que vão salvar o país. Então, alguém numa situação de desespero acredita no que é possível acreditar. É justamente nos momentos de crise política e econômica que o discurso de ódio ganha sua principal força, nos momentos de vulnerabilidade psicológica e social.”

A frustração com a política tradicional é mundial —em muitos países, especialmente voltada à esquerda— e abriu espaço para que líderes da direita conquistassem o eleitorado. No Brasil, isso ficou ainda mais explícito desde as manifestações de junho de 2013.

“Há um desgaste dos partidos tradicionais e, consequentemente, o fortalecimento de uma lógica antissistema muito forte. Em 2013, houve uma catarse coletiva. E, como o PT, que é um partido de esquerda, mas naquele momento também era o partido do sistema, não conseguiu dar nenhuma resposta à insatisfação popular, fortaleceu-se a direita —desde movimentos como MBL e Vem pra Rua até grupos mais clássicos, que conseguiram canalizar esse descontentamento. O problema é que há uma erosão no sistema como um todo e a percepção de que ele é fisiológico, de que atende apenas a seus próprios privilégios. Assim surgiram os ‘outsiders’ da política.”

Na mesma medida se fortaleceram os movimentos sociais brasileiros —ainda bastante desconectados da estrutura política formal. O #EleNão reuniu mulheres feministas contra a candidatura de Bolsonaro em manifestações por todo o país e em iniciativas que viralizaram na internet.

“É bem importante destacar que o discurso feminista no Brasil e na América Latina é fundamental, porque são países que estão entre os que mais matam mulheres no mundo. É um movimento de luta pela vida, literalmente. Mas há uma reação muito grande da direita com relação às pautas identitárias, que estão cada vez mais presentes na sociedade. Então, virou bacana falar que é racista, que é machista, sob o argumento de que não quer se submeter a essa ditadura do politicamente correto.”

A socióloga destaca também que, quando um líder político assume um discurso discriminatório, a situação se agrava. “As pessoas que já praticam esse tipo de violência cotidiana se sentem legitimadas. É um exemplo bastante negativo e de proliferação do ódio.”

 

 

 

A menina da montanha

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O livro conta a história de Tara Westover que saiu das montanhas de Idaho  para se tornar doutora em História pela Universidade de Cambridge, uma obra de superação e força de vontade, que destaca uma família Mórmon que não levava seus filhos para a escola com receio de os verem envolvidos com as supostas “ideias comunistas” do governo norte-americano, uma leitura fascinante e fundamental.

 

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Alberto Acosta: “Governos progressistas apostaram na expansão do extrativismo”

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Nessa entrevista, Acosta fala sobre os temas de seu último livro e como os governos da América do Sul, progressistas ou não, têm se utilizado das práticas extrativistas para criar um desenvolvimento econômico predatório.

*Raul Galhardi é jornalista – Le Monde Diplomatique.

Político, economista, ex-ministro, ex-presidente da Assembleia Constituinte do Equador, candidato à Presidência e autor de obras como “Pós-extrativismo e Decrescimento — saídas do labirinto capitalista” (Autonomia Literária e Elefante), seu livro mais recente. Pode-se dizer que Alberto Acosta se encaixa na definição de Gramsci de “intelectual orgânico”, para quem o trabalho intelectual deve estar diretamente ligado ao papel de organização e de condução do movimento político transformador.

Nessa entrevista, Acosta fala sobre os temas de seu último livro e como os governos da América do Sul, progressistas ou não, têm se utilizado das práticas extrativistas para criar um desenvolvimento econômico predatório. Ele também aborda o processo que elaborou a Constituição de Montecristi em 2008 e o que restou dela nos sucessivos governos equatorianos, atacando principalmente seu antigo aliado, o ex-presidente Rafael Correa, a quem denomina como “caudilho do século XXI”.

Por fim, faz comentários sobre as eleições brasileiras, que elegeram o representante da extrema-direita Jair Bolsonaro (PSL), e diz o que esperar dessa conjuntura política mundial de radicalização do conservadorismo.

Como você explicaria, resumidamente, os conceitos de pós-extrativismo e decrescimento? Eles podem ser aplicados na vida cotidiana dos indivíduos sem a necessidade de políticas públicas governamentais?

O decrescimento e o pós-extrativismo poderiam ser vistos, em uma aproximação bastante simples, como dois lados da mesma moeda. São dois processos em andamento e que começam a convergir.

Especialmente no Norte global, há uma consciência crescente da necessidade de superar o vício do crescimento econômico, que está causando cada vez mais danos ambientais e sociais. No Sul global, a resistência contra o extrativismo aumenta à medida que as sociedades entendem que uma forma de acumulação baseada na exportação de produtos primários as mantém amarradas de maneira submissa ao mercado mundial, em estado de permanente prostração.

O decrescimento, entretanto, não pode ser confundido com uma crise econômica vulgar. Ele convida a construir economias e, sobretudo, sociedades que garantam uma vida digna a todos os seres, humanos ou não. Já o pós-extrativismo nos confronta com a necessidade de superar a dependência das exportações de bens primários, com todas as suas consequências de subdesenvolvimento, marginalização e das múltiplas violências.

Esses processos, para se transformarem em poderosas forças transformadoras, requerem políticas nacionais. No entanto, à medida que essas ideias ganham força, tanto no Norte como no Sul, multiplicam-se alternativas concretas que começam a caminhar nas direções propostas por esses horizontes transformadores.

Após um ciclo de direita neoliberal, na década de 90, e um ciclo de esquerda progressista nos anos 2000, a América do Sul está entrando num novo ciclo de direita liberal. Porém, todos esses ciclos, segundo seu livro, se baseiam nos ideais extrativistas. Como discutir ideias como decrescimento e pós-extrativismo em países que ainda não podem ser considerados desenvolvidos, como os países latino americanos?

O ponto de partida é reconhecer que os governos neoliberais e os governos progressistas colocaram suas expectativas de desenvolvimento em uma expansão acelerada do extrativismo. Em nenhum caso ocorreu a transformação da matriz produtiva. O Brasil é o melhor exemplo: o país se “reprimarizou” e se desindustrializou de maneira notável.

Países com governos progressistas sequer tentaram afetar a lógica de acumulação de capital. Trataram apenas de modernizar o capitalismo. É por isso que, embora tenham reduzido a pobreza, graças ao enorme rendimento das exportações de matérias-primas, os ricos enriqueceram ainda mais. Em suma, é preciso diferenciar governos progressistas do que poderiam ter sido governos de esquerda.

Para responder a pergunta, é preciso entender que o desenvolvimento é um fantasma. A questão de quantos países conseguiram se desenvolver nos últimos 70 anos (período decorrido desde o apelo global para superar o subdesenvolvimento, do discurso do presidente americano Harry Truman) se complica ao se descobrir que os chamados países desenvolvidos não o são. Na realidade, estes são países mal desenvolvidos.

Portanto, a discussão do pós-extrativismo e do decrescimento é importante para o Sul global a fim de encontrarmos nossas próprias alternativas que nos permitam simultaneamente reconciliar a justiça social com a justiça ecológica. Uma não é possível sem a outra, superando a armadilha do desenvolvimento e sua referência ideológica dominante: o progresso.

Você vê espaço para a difusão das ideias pós-extrativistas e de decrescimento no mundo diante da conjuntura política atual? Como você enxerga medidas adotadas por diversos governos no mundo que tem como objetivo aumentar os índices de felicidade das suas populações, como reduzir jornadas de trabalho e aumentar salários?

Se analisarmos o mundo a partir das grandes manchetes, das notícias da grande mídia, uma profunda depressão pode chegar até nós. Parece que marchamos no sentido contrário a uma história de emancipação humana, de construção de relações harmônicas com a natureza. Mas se prestamos atenção e silenciamos em termos metafóricos, podemos ouvir a respiração de um futuro de profundas e múltiplas transformações… em diferentes cantos do planeta, no Sul e no Norte, emergem alternativas muito concretas de todos os tipos e que vão muito além da redução da jornada de trabalho e do aumento de salários.

Deve-se notar que a redução das jornadas de trabalho deve vir de mãos dadas com outros padrões de consumo e outras maneiras de organizar a vida longe do individualismo, consumismo e produtivismo. É hora de ficar claro que precisamos recuperar e assumir o controle de nossas próprias vidas, do nosso trabalho e do nosso lazer.

Não se trata apenas de defender a força de trabalho e recuperar o tempo de trabalho excedente para os trabalhadores, mas opor-se à exploração da força de trabalho, recuperando o direito ao ócio como um direito humano. Em jogo está, além disso, a defesa da vida contra esquemas antropocêntricos de organização socioeconômica que destroem o planeta via degradação e depredação ambiental.

Você foi aliado de Rafael Correa e presidiu a Assembleia Constituinte do Equador, que incluiu conceitos inovadores como ter a Pacha Mama (“Mãe Terra”) como sujeito de direitos. No entanto, durante este processo da Constituinte, o senhor tornou-se crítico do governo Correa. O que motivou esta mudança de postura?

Quem mudou de postura foi Correa. Ao se tornar o caudilho do século XXI, ele enterrou as propostas iniciais de ceder a processos apoiados por uma democracia radical. Ao expandir o extrativismo, consolidou a economia primária de exportação, essencialmente subdesenvolvida e dependente. Ele fechou a porta para mudanças civilizacionais como a proposta pelo “Bem Viver” ou “sumak kawsay”. O fato de não dar lugar a uma mudança na matriz de acumulação de capital deu apenas alguns passos para modernizar o capitalismo.

Portanto, considerando todos os elementos — econômicos, políticos, constitucionais, internacionais — que ele tinha a seu favor, podemos dizer que sua gestão se tornou uma década desperdiçada. E o que é mais grave, ao enfraquecer sistematicamente os movimentos sociais e ao ter dado passos concretos para voltar ao neoliberalismo desde 2014, Correa deixou a mesa para o retorno da direita neoliberal e oligárquica.

Os ideais presentes na Constituição chegaram a serem implementados de fato? O que mudou nas políticas públicas do Equador após a homologação da Constituição?

A Constituição de Montecristi foi retardada em sua cristalização especialmente pela ação de Correa. Para o caudilho Correa, a Constituição tornou-se uma camisa de força e por isso foi o primeiro e principal violador da Constituição ao atropelar direitos e garantias. Por exemplo: ele impediu o Equador de ter uma justiça autônoma e independente pela primeira vez. Ele “meteu a mão na justiça”.

Correa, como modernizador do capitalismo, não entendeu a Constituição e, portanto, não fez nada para cristalizá-la. O caso dos Direitos da Natureza, entre muitos outros, é um forte exemplo.

A própria sociedade, especialmente os movimentos sociais que encorajaram as grandes mudanças constitucionais, não se empoderou da Carta Magna e não a transformou em uma ferramenta revolucionária. Essa é uma tarefa ainda pendente.

Em 2013, você candidatou-se à Presidência da República por uma coalizão de movimentos políticos, sociais e indígenas (Unidade Plurinacional das Esquerdas), mas obteve pouco apoio popular, acabando em sexto lugar nas eleições. A que atribui este resultado?


Isso é explicado por vários fatores. Além de saber se o candidato era adequado, não tínhamos a capacidade de nos sintonizar com as exigências de uma sociedade que vivia uma euforia consumista em meio a um regime cada vez mais autoritário. “A cenoura na vara” sustentava o poder do caudilho do século XXI (Rafael Correa).

Nosso esforço visava resgatar os elementos-chave da Constituição; incorporar novos tópicos na vida nacional, tais como os plenos direitos das mulheres e a liberdade das opções sexuais; e consolidar uma grande frente: a Unidade Plurinacional de Esquerda. Para além do fracasso eleitoral, a grande derrota política que encontro neste último ponto foi uma tentativa orientada para consolidar a unidade de uma nova esquerda que tem que ser simultaneamente socialista, feminista, ambientalista e anticolonial, como também portadora de transformações democráticas radical.

Como você enxerga o atual governo de Lenín Moreno? Pode-se afirmar que ele segue os princípios presentes na Constituição?

O governo de Moreno, que surgiu por desígnio de Correa, acelerou os passos neoliberais e extrativistas de seu antecessor e mentor. Enfatizo, porém, que com Moreno se recuperaram espaços de liberdade e tranquilidade política. Mas ele, como Correa, é outro tijolo na parede da dominação burguesa e transnacional no Equador.

Você assinou um manifesto internacional de intelectuais contra o agora presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Qual a sua opinião sobre a vitória e um futuro governo dele?

As ameaças que este político, de passado obscuro, representa para o Brasil e toda a região são enormes. Ele tem o apoio de enormes poderes, além de um segmento majoritário da sociedade brasileira. Porém, no Brasil, existe um arcabouço legal e institucional que estabelece alguns limites que podem impedir arroubos excessivos. Também entendo que nesse grande país existem setores da sociedade que estarão dispostos a defender a democracia. Tenho muita fé na força democrática do povo brasileiro.

Eu entendo de alguma forma as razões para o fracasso do PT e o triunfo de Bolsonaro. Sem ser a única explicação, fica claro que o fracasso dos progressistas, caracterizado por seu extrativismo exacerbado, cria as condições para o surgimento de governos ultraconservadores com traços fascistas. A esquerda é obrigada a aprender com o que aconteceu no Brasil. Ela tem que assumir um enorme desafio, porque para uma grande parte da sociedade o fracasso do progressismo — que sintetiza até mesmo uma derrota cultural e simbólica de muitas ilusões e promessas de mudança — é também uma frustração atribuível à esquerda.

Em toda a América Latina, os vários grupos políticos conservadores realizam uma interação ativa de eventos para desacreditar qualquer opção à esquerda, insistindo que elas são impossíveis, fatalmente tingidas de corrupção e até mesmo de sangue, e assim por diante. As graves crises democráticas — não apenas econômicas — da Venezuela e da Nicarágua se misturam com a crise do PT no Brasil.

Entretanto, a crise brasileira mostra a urgência de insistir nas diferenças entre progressistas e esquerdas. É que muitos dos problemas do Brasil — não todos — resultam da gestão confusa e contraditória do governo do PT e seus aliados que, pouco a pouco, se esqueceram de seus objetivos esquerdistas iniciais para se transformarem em progressistas. Eles nunca esconderam isso e fizeram disso um dos seus atributos. Portanto, uma primeira lição crucial é que esquerdas e progressistas não são a mesma coisa.

Você considera viável a eleição de mais representantes da extrema-direita em países da América do Sul ou considera que este é um fenômeno que ficará restrito ao Brasil?

O ambiente na América Latina e em outros lugares, como vemos na Europa, está repleto de elementos propícios ao surgimento e consolidação de governos de ultradireita. O mau exemplo que o Brasil dá nesse sentido alimenta ainda mais essas tendências. Porém, também confio no povo que, mais cedo ou mais tarde, encontrarão novos rumos de dignidade e democracia.

 

Luiz Gonzaga Pinheiro

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Escrito por Editora Eme 18/01/2019

LUIZ GONZAGA PINHEIRO é natural de Fortaleza (CE), onde é professor de Ciências e de Matemática na rede pública. Palestrante e doutrinador, conheceu o espiritismo na adolescência por pura curiosidade. Após avisos de seus amigos espirituais, escreveu seu primeiro livro. Hoje, possui mais de 20 obras publicadas.

Agora, o autor do best-seller O perispírito e suas modelações nos apresenta André Luiz e suas novas revelações, lançamento da Editora EME sobre o qual ele nos fala na entrevista abaixo:

 

O que o estimulou a escrever André Luiz e suas novas revelações?

A grande quantidade de informações valiosas e complementares à obra de Kardec, que ainda se encontra inacabada e em crescente evolução. Como os ensinamentos da codificação, notadamente os de cunho científico, necessitam de detalhamento, tarefa que tomou para si André Luiz, alguns temas expostos em sua obra, igualmente carecem de desdobramento para que cheguem ao entendimento do leitor sem muito tempo para pesquisa ou sem afinidade com a ciência. Essa tarefa me foi solicitada por meus instrutores espirituais para que fosse exercitada em nossos grupos de estudos, não apenas para este autor, mas para outros como Emmanuel, Yvonne Pereira e Philomeno de Miranda.

Qual seu objetivo com esta obra?

Em consonância com um dos lemas do espiritismo, talvez o mais belo, “amai-vos e instrui-vos”, o objetivo da obra é levar o conhecimento espírita aos grupos de estudos, pesquisadores, amantes de uma boa leitura, simpatizantes do Espiritismo, palestrantes e leigos, pois os ensinamentos primam pela simplicidade em sua linguagem e pela fidelidade doutrinária, mostrando os encaixes, a sintonia e a concordância do espiritismo com a ciência, sobretudo, em suas últimas descobertas.

O que os leitores encontrarão neste livro? Faça-nos uma resenha

Os leitores poderão encontrar uma variedade muito grande de temas abordados por André Luiz em todas as áreas do conhecimento humano. Assim, assuntos como o princípio inteligente, o perispírito, a volitação, a mediunidade, o corpo mental, a doutrinação, os desencarnes coletivos, os anticoncepcionais, a obsessão, a poligamia e outros que desfilam através da bibliografia do autor constam nesse volume, pois não me fixei em apenas um livro, mas em toda a obra.

Qual a importância das obras de André Luiz para o conhecimento de assuntos cotidianos importantes?

O conhecimento, ao ser adquirido, experiência realizada nos Estados Unidos e comprovada através de testes elaborados em pleno funcionamento do cérebro que o recebe, é motivo de alegria e contentamento para o espírito. Em verdade a causa da maior alegria que o espírito pode sentir é a sua aquisição. Só por esta importância já valeria a pena instruir-se. Mas visamos, também, ao editar o livro, a comprovação de teorias citadas antes das descobertas científicas, a beleza da obra divina que tudo encaminha para o bem e para o belo, a intimidade com a ciência espírita e o entendimento e a interpretação dos planos de Deus sempre misericordiosos e sábios em cada detalhe de nossa existência.

Você considera que os espíritas já aproveitaram todo o conhecimento das obras de André Luiz ou ele ainda é um grande desconhecido?

Estamos distantes do entendimento e da grandeza dessa obra. Geralmente limitamo-nos a ler quando estudar seria o verbo a ser utilizado. O estudo é metódico, perseverante, cheio de debates e descobertas emocionantes. O estudo é verticalizado, a leitura é superficial. Por trás da obra de André Luiz deve existir uma plêiade de sábios auxiliando-o na complementação da obra de Kardec, que continua inacabada. Ainda passará muito tempo para que esta obra seja convenientemente apreendida.

Na sua opinião, qual a maior contribuição de André Luiz ao espiritismo?

André trouxe uma riqueza enorme com suas obras subsidiárias à doutrina espírita. Kardec, devido ao tempo e as limitações da época, não conseguiu detalhar algumas sutilezas do Espiritismo limitando-se ao essencial, à base sólida onde outros poriam os andaimes. André avançou no estudo do perispírito revelando que este é presidido pelo corpo mental; enquanto Kardec optou por uma tríade para representar o ser (corpo físico, perispírito e espírito) André desdobrou o perispírito afastando a ideia de um cartucho fluídico único para apresenta-lo como uma cebola, com camadas que se descartam à proporção que o Espírito avança; nos livros “Evolução em dois mundos” e “Mecanismos da mediunidade”, ambos pouco lidos e entendidos, este autor traz à superfície explicações científicas e exemplos brilhantes na parte científica da doutrina, que enriquecem, facilitam e fortalecem o entendimento da codificação espírita.

Como você analisa a evolução do conhecimento espírita atualmente?

Estive recentemente (setembro de 2018) em um Fórum de debates espíritas em Blumenau e constatei com certa tristeza, que os pesquisadores espíritas estão voltando para casa. Meu velho amigo Saulo Gomes não compareceu, pois havia sido acometido por um acidente vascular cerebral. Voltaram para casa, Hermínio Miranda, Hernani Guimarães Andrade, Professor Herculano Pires, Chico Xavier, dentre outros cuja alegria, a razão maior de suas existências era a pesquisa e a divulgação. Acredito que surgirão outros, mas no momento, pela enxurrada de obras sem muita substância doutrinária, julgo que necessitamos de mais empenho na pesquisa e na divulgação do consolador prometido.

O livro espírita ainda é um fator relevante na divulgação doutrinária?

Sim, um dos maiores. O livro jamais perderá seu espaço para outros implementos tecnológicos. O livro tem um charme, um cheiro gostoso, espaço para anotações, é fácil de transportar, independe de fonte de energia para ser manuseado. Pode, a qualquer instante e facilmente transportar o leitor para revisão do que foi lido e permanece quietinho na cabeceira da mesa à espera de ser abraçado novamente. Dizem que o melhor amigo do homem é o cão, mas tenho minhas dúvidas, pois julgo que é o livro.

Por que o meio espírita tem tanta dificuldade para lidar com temas que não foram abordados diretamente por Allan Kardec, mas que são tratados por André Luiz?

Para muitos religiosos cristãos a Bíblia é a palavra de Deus e por isso não pode ser mudada, contestada, atualizada.  Para alguns espíritas O livro dos espíritos, por exemplo, é a bíblia do espiritismo, portanto tudo ali deve permanecer intocado. Este não é o pensamento de Kardec, que queria a doutrina atualizada e caminhando ao lado da ciência. Alguns espíritas se limitam ao que Kardec disse ou não disse. Se Kardec não citou, não é espiritismo. Daí a não importância dada às obras subsidiárias como se elas não fizessem parte de um plano superior de atualização doutrinária.

Lembro aqui meu velho amigo Hernani Guimarães Andrade que ao ler em primeira mão o livro de um neófito na literatura espírita intitulado O Perispírito e suas modelações disse: está maravilhoso! Mas mude o capítulo sobre o universo. Refaça-o baseado no Big Bang, pois esta é a teoria correta e ao tempo de Kardec ela ainda não tinha sido descoberta. A teoria do Big Bang foi anunciada em 1948 pelo cientista russo naturalizado estadunidense, George Gamow (1904-1968) e o padre e astrônomo belga Georges Lemaître (1894-1966). Segundo eles, o universo teria surgido após uma grande explosão cósmica, entre 10 e 20 bilhões de anos atrás. Esse é o trabalho de André: atualizar, detalhar, aprofundar, complementar e em alguns casos, corrigir.

André Luiz trouxe ao espiritismo o conceito de cidade/colônia espiritual, através da série Nosso Lar.Por que nas Obras Básicas espíritas não existem referências a estas cidades/colônias?

As obras básicas se limitam a descrever o essencial e o suportável pelo pensamento da época ditos com a ciência existente naquele contexto. Jesus, também omitiu muita coisa e de outras falou através de parábolas devido ao pensamento da época não comportar a grandeza dos ensinamentos. É necessário um amadurecimento para determinados conceitos. Todavia está implícito na obra de Kardec que os espíritos vivem em sociedade, com um sistema organizado e divisão de trabalho. Isso remete à uma colônia ou cidade, sem falar que Jesus deixou bem claro que existem muitas moradas na casa do Pai.

Ao final de André Luiz e suas novas revelaçõesvocê afirma que “devemos usar o conhecimento para mudar a nós mesmos”. Porém, apesar de sabermos como devemos agir, por que ainda assim permanecemos com um sentimento interior de sofrimento intenso?

Conhecemos o Evangelho há mais de dois mil anos, mas nossas conquistas nesse campo são milimétricas. A evolução moral é muita mais lenta que a intelectual. Há de se fazer um esforço, estabelecer prioridades, conscientizar-se de que somos espíritos momentaneamente em experiência carnal. Nosso lar não é aqui, nossos bens não são materiais, nossa felicidade não é construída de maneira isolada, mas em projetos coletivos. Enquanto não aprendermos a amar, estilo de vida dos espíritos mais conscientes, permaneceremos com este sentimento de vazio e de solidão.

Que mensagem deixaria aos nossos leitores?

Que estudem e se esforcem na aquisição de algumas virtudes, notadamente a paciência, para planejar e efetuar seus projetos de vida incluindo um pouco de amor, de poesia e de bom humor. Que trabalhem, pois o lugar mais apropriado para um encontro com os bons espíritos é no trabalho. Que amem, amem, devagar e urgentemente, pois sem amor continuaremos pobres em plena riqueza material.

 

Brasil nunca teve social-democracia que Paulo Guedes combate, diz autor

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 Economista retraça políticas desde governo FHC para mostrar que país passou longe da centro-esquerda

Benedito Rodrigues de Moraes Neto

[RESUMO] Economista retraça políticas aplicadas desde o governo FHC  para demonstrar que, ao contrário do que afirmou o ministro da Economia, Paulo Guedes, o país esteve longe de ser aprisionado pela ideologia de centro-esquerda.

Em mais de uma ocasião, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que, no período recente, o Brasil foi aprisionado pela social-democracia e que sua proposta objetivava libertar o país dessa prisão. Tentaremos verificar em que medida a avaliação de um excesso de social-democracia corresponderia à realidade histórica de nosso país.

Evidentemente, o ministro se referia ao período que vem desde o governo FHC, pois não haveria qualquer sentido em incluir as presidências de José Sarney e Fernando Collor, por motivos bastante claros: o primeiro esteve inteiramente às voltas com sucessivos fracassos na luta contra a inflação; o segundo levou essa luta ao paroxismo do voluntarismo inconsequente, além de pôr em prática, ainda que de forma incipiente, algumas das propostas mais caras à economia liberal.

Também o período do presidente de um partido que tem em seu nome a social-democracia, o PSDB, não se ajusta bem às críticas de Guedes. Isto porque a luta contra o monstro da inflação continuou dominando a cena, com o bem-sucedido Plano Real, que começou no governo Itamar Franco e se consolidou no governo FHC. Sem dúvida brilhante em sua concepção e implantação, o plano sofreu forte crítica dos partidos mais à esquerda.

Depois desse momento, houve a continuidade da preocupação com a gestão macroeconômica, com a criação do chamado tripé, constituído por meta de inflação, equilíbrio fiscal e flexibilidade cambial. Se juntarmos tudo isso ao grande esforço pelas privatizações, com destaque para a área das comunicações, fica a pergunta: onde está aí a “prisão social-democrata”?

Pode ser que o envolvimento com a questão macroeconômica tenha tolhido esse lado do PSDB, que talvez pudesse desabrochar em outro contexto. De qualquer forma, fica claro que a crítica de Guedes se refere mesmo aos quase 14 anos do PT na Presidência. Nossa questão se coloca, então, de modo mais específico: em que medida a crítica ao excesso de social-democracia se ajustaria às gestões petistas?

Comecemos com um aspecto absolutamente crucial para caracterizar uma gestão social-democrata, em contraposição a uma de matiz liberal: a política tributária. Talvez a mais característica propositura social-democrata seja a implementação de uma tributação bastante progressiva, ou seja, que cobre impostos proporcionalmente maiores dos que auferem renda maior.

Sabe-se que as alíquotas de imposto sobre a renda são extremamente elevadas para níveis elevados de rendimento nos países de presença mais forte da social-democracia, como os da península escandinava. Mesmo no caso dos Estados Unidos, país que apresenta distância bem grande em relação à social-democracia, essa questão da progressividade da tributação diferencia fortemente as gestões dos partidos Democrata e Republicano, algo reforçado nos anos recentes.

Uma gestão democrata se aproxima, nesse caso, respeitando os limites americanos, de uma proposta social-democrata, com elevação da progressividade dos impostos. Uma gestão republicana, inteiramente impregnada da concepção liberal, rapidamente trata de aumentar a regressividade tributária, sob o argumento de que a ideia social-democrata inibe o ímpeto das pessoas para o esforço produtivo.

Pois bem, isso tudo é bem conhecido. O interessante é observar o rebatimento por aqui dessa questão tributária. Ao ler a observação de Guedes, pode-se imaginar que a implantação de uma estrutura tributária extremamente progressiva pelos “social-democratas de centro-esquerda” no poder por 14 anos precisaria ser revertida com força pelos ultraliberais de direita.

Mas esse não é um tema por aqui, pois o PT não mexeu uma vírgula em nossa estrutura tributária regressiva, muito dependente dos socialmente injustos impostos indiretos e, no caso dos impostos diretos, muito branda com os que auferem rendimentos de propriedade e muito dura com os que obtêm rendimentos do trabalho.

Cada vez mais dura, aliás, na medida em que se deixou de corrigir as tabelas do Imposto de Renda de acordo com o ritmo de inflação. Os assalariados de todos os níveis de renda tiveram que pagar cada vez mais nesse período.

Considero que não seria fácil para um estrangeiro entender uma coisa dessas: como é possível que um dos países de maior desigualdade social do planeta, que possui uma tributação de rendimentos extremamente regressiva, não tenha apresentado uma vírgula de alteração em sua política tributária durante 14 anos de um partido “de centro-esquerda” (para muitos, “de esquerda”) no poder?

Mas nós, brasileiros, teríamos que nos associar à questão: como é possível? De qualquer forma, o que nos interessa aqui é marcar que, no item fundamental da política tributária, a social-democracia nem passou perto daqui.

Continuemos a perscrutar nossa “prisão à social-democracia”, agora caminhando em direção à política social. Nesse caso, ganha grande destaque o Bolsa Família, programa tornado bastante extenso pelo PT.
Não é nosso objetivo aqui discutir o programa, mas verificar seu ajuste à crítica de Guedes.

Sabe-se que esse tipo de política social, de focalização, foi gerado no interior do Banco Mundial por economistas de extração liberal. Contrapunha-se, enquanto proposta de ação pública, à proposta social-democrata de universalização da intervenção do Estado através da política educacional, de saúde etc.

Foi justamente na gestão do partido que tem a social-democracia no nome que a política de focalização teve seu início, ainda tímido, com a criação, por FHC, das Bolsas Escola e Alimentação e do auxílio-gás.

Inteiramente imbuído da crítica social-democrata, de centro-esquerda, a essa política de focalização, Lula chamou-as de “Bolsa Esmola”. Posteriormente, já na Presidência, depois do fracasso do seu primeiro programa, o Fome Zero, Lula fez a unificação das bolsas num programa único, batizou-o de Bolsa Família, e o incrementou de forma extremamente significativa.

Para nosso propósito aqui, cabe uma única pergunta: onde temos aqui a “prisão social-democrata”? Guedes terá que propor ao presidente Jair Bolsonaro que elimine imediatamente o Bolsa Família, por ser uma das faces dessa prisão? Pelo contrário, o presidente já propôs implementar o 13º salário para os que recebem esse tipo de rendimento.

Continuemos com a política social. Se não encontramos social-democracia no Bolsa Família, talvez a encontremos na política habitacional, com o Minha Casa Minha Vida. De novo, temos a crítica de Lula em sua fase pré-presidencial, quando afirmou, com acuidade, que o pobre, quando comprava casa própria, não podia beber uns goles a mais, pois havia o forte risco de entrar na casa do vizinho.

Pois bem, o Minha Casa Minha Vida levou essa triste característica arquitetônica de nossos programas de moradia popular ao paroxismo, adicionando uma outra triste característica, urbanística, sobretudo nas grandes cidades, ao situar os conjuntos habitacionais a grande distância dos locais de emprego de seus habitantes.

Se a proposta social-democrata implica generalizar qualidade de vida, não vejo como o Minha Casa Minha Vida possa se ajustar a isso. Aliás, nesse caso, é particularmente desanimador verificar como tantos anos de um governo “de centro-esquerda” (para muitos, “de esquerda”) foram inteiramente incapazes de utilizar a reconhecida competência e criatividade de nossa arquitetura.

Seguindo adiante, um dos traços mais fortes da social-democracia é resguardar para o Estado, protegendo-as da interferência mercantil, as esferas da educação e da saúde. É inclusive a generalização da qualidade da educação pública que tem dado grande destaque a alguns dos países mais fortemente social-democratas, com ênfase recente para a Finlândia.

Basta um olhar muito rápido ao que acontece no Brasil nessas duas áreas para constatar que estamos muito longe dessa matriz. Realmente, em saúde e educação, não há que se criticar excesso de social-democracia após 14 anos de PT —muito pelo contrário.

Finalizemos com uma estatística significativa, que recolhemos no jornal O Estado de São Paulo de 9 de dezembro de 2018. Segundo pesquisa realizada pela consultoria Mercer em 601 empresas de 130 países, a diferença de rendimento entre executivos e operários é, em média, de 34 vezes no Brasil. Na Alemanha, país com relevante presença social-democrata, essa diferença é de cinco vezes.

Depois desse dado, somos forçados a concluir que o problema do Brasil não é, como afirma Paulo Guedes, de excesso de social-democracia, mas sim de excesso de falta de social-democracia. Conforme afirmou a escritora argentina Beatriz Sarlo, o que a América Latina necessita é de uma social-democracia séria.

Benedito Rodrigues de Moraes Neto é professor aposentado do Departamento de Economia da Unesp.