Equilíbrio

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Neste momento da economia internacional, as nações precisam construir estratégias consistentes para a sobrevivência neste cenário de instabilidades constantes, de incertezas crescentes, de rupturas e transformações tecnológicas, de exclusões e desigualdades sociais em ascensão, de guerras fratricidas e de novas crises financeiras, com impactos impossíveis de mensuração para a comunidade mundial.

Neste cenário, percebemos o incremento das animosidades entre as nações, uma verdadeira busca pela liderança e um conflito entre os países que lutam pela hegemonia internacional. De um lado, encontramos a sociedade norte-americana, que liderou a economia mundial desde o final da segunda guerra mundial, impondo instituições multilaterais, exigindo a oficialização de sua moeda, o dólar, como o padrão monetário global, espalhando empresas em todas as regiões do mundo, difundindo seu modelo econômico e produtivo, influenciando os governos aliados e pressionando nações com posicionamentos diferentes. De outro lado, encontramos uma nação que vem ganhando espaço na economia internacional, a China, que apresenta números astronômicos da comparação mundial, uma nação que nos anos 1980 era constituída por camponeses pobres e miseráveis e se tornou uma das maiores economias internacionais, detentora do maior setor industrial da contemporaneidade, responsável por grande desenvolvimento tecnológico, com fortes investimentos em energias alternativas, em inteligência artificial e grande potencial de liderar a sociedade mundial nas próximas décadas.

Diante deste cenário que se abre para a sociedade mundial, encontramos modelos econômicos e produtivos que se enfrentam para a busca da liderança da economia global, trazendo culturas e comportamentos diferentes, trajetórias variadas e visões de vida e formas de organização social diferenciadas, uma nação mais centrada no imediatismo, na concorrência crescente, no individualismo, na busca crescente dos ganhos materiais e, do outro lado, encontramos uma nação milenar, dona de uma história rica de mais de cinco mil anos, com valores atrelados a coletividade, nos valores intangíveis e na busca crescente pela consciência humana.

Neste cenário de confrontos geopolíticos em curso na sociedade mundial, as nações se encontram num momento de escolhas estratégicas, alguns países se atrelam a um dos lados do conflito em detrimento de outro, buscando seus interesses imediatos e os ganhos materiais, garantindo para a sua população recursos monetários e proteção para angariar espaços de crescimento econômico e melhorias sociais para seus concidadãos, almejando o tão sonhado desenvolvimento.

Nações como o Brasil se encontram em uma grande encruzilhada histórica, demandando escolhas estratégicas, além de decisões políticas e geopolíticas imprescindíveis, sendo cortejadas pelas nações que buscam a hegemonia internacional, com promessas interessantes e novas oportunidades de negócio, além de garantir novos investimentos produtivos e novos modelos de organização social. Neste momento, fazem-se necessário, maior maturidade e serenidade e a compreensão do que queremos ser nos próximos anos, algo que nos falta e dificulta nossa compreensão do cenário mundial e nos leva a entregar de graça nossas riquezas minerais e agrícolas, alegrando os donos de poder global e, ao mesmo tempo, perpetuando nosso subdesenvolvimento. Estamos num momento imprescindível para o futuro da sociedade brasileira, as escolham devem definir os rumos do Brasil contemporâneo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

‘Trabalho ganancioso’ para os homens é o culpado por salários mais baixos das mulheres, diz economista

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Claudia Goldin, Nobel de Economia de 2023, afirma que casais podem ter divisão mais igualitária de carreiras, mas o preço é uma renda menor para a família

Folha de São Paulo

Patrícia Campos Mello As mulheres conquistaram o direito ao voto, a pílula anticoncepcional, leis que condenam discriminação por gênero e já são maioria entre pós-graduados em várias áreas. Mesmo assim, continuam ganhando menos que os homens.

Para a professora de Harvard Claudia Goldin, vencedora do Prêmio Nobel de Economia em 2023, a grande culpada é a divisão desigual das carreiras entre os casais. Mulheres avançam na mesma velocidade que os homens até terem filhos. Aí, alguém precisa ter o emprego mais flexível, que permite buscar o filho doente na creche no meio da tarde e estar de prontidão para a criança.

Esse alguém, por tradição ou normas sociais, costuma ser a mulher. Já o homem mantém seu “emprego ganancioso” —trabalha mais horas, está sempre disponível, ascende na carreira e ganha muito mais.

Goldin adverte que não tem por que as mulheres serem sempre as que abrem mão de suas carreiras. “As mulheres são mais necessárias nos primeiros meses de vida de um bebê. Mas os homens poderiam muito bem assumir [a maior parte das tarefas] depois disso”, diz Goldin, que acaba de lançar no Brasil o livro “Carreira e Família”, em que analisa como gerações de mulheres derrubaram
barreiras para conciliar família e carreira e os obstáculos que permanecem. “Todos os casais têm que se sentar e conversar: podemos ter um relacionamento 50-50 [os dois com empregos mais flexíveis e ganhando menos]? Quanto isso vai nos custar?”

Em seu livro, a senhora documenta como gerações de mulheres conquistaram melhores condições no mercado de trabalho e se tornou possível conciliar uma carreira com uma família e filhos, quando optaram por ter filhos. Mas mesmo havendo avanços significativos, ainda existe uma grande diferença salarial entre homens e mulheres. A senhora pode explicar por que e falar sobre seu conceito de ‘trabalho ganancioso’?

Houve muitas mudanças importantes e muito positivas para as mulheres. E, hoje, as mulheres não são apenas iguais aos homens em termos de graduação universitária nos EUA, mas superam os homens em formação avançada em diversos campos. Então por que ainda existe essa grande diferença? Limitando nossa exploração às mulheres com ensino superior, vemos que as mulheres avançam na mesma velocidade que os homens na carreira, mas dão um passo para trás depois de terem filhos.

Meu exemplo favorito: Você tem um homem e uma mulher se formando na mesma instituição, com a mesma formação e especialização avançada, trabalhando com o mesmo nível de motivação, ambição e inteligência. Os dois trabalham em escritórios de advocacia de alto nível. Depois de um tempo, este homem e esta mulher têm um filho ou dois. Eles percebem que não podem terceirizar todo o cuidado, então um deles dá um passo para trás e assume o emprego no escritório de advocacia menor e o outro fica no trabalho ganancioso.

O trabalho ganancioso é aquele em que quanto mais horas você trabalha, quanto mais disponível está, maior é o pagamento implícito por hora. Esse casal poderia arrumar empregos equivalentes (os dois mais flexíveis), que permitem que ambos tenham mais tempo em casa. Isso seria bom para ambos, porque muitos homens que não conseguem ver seus filhos darem o primeiro passo, jogarem futebol, se arrependem mais tarde.

Então, a questão é: quanto isso vai custar a eles? Eles poderiam assumir ambos os empregos mais flexíveis, poderiam trabalhar no agradável escritório de advocacia na rua de casa e não ir para Nova York, mas isso significa que o rendimento do casal vai sofrer um grande impacto, então depende de quanto estão dispostos a pagar. A grande questão, no final, é: ok, se tudo avançou tanto, por que ainda não está equilibrado? Os culpados não são apenas os indivíduos, mas o mercado de trabalho e a interação. A chance deveria ser a mesma: em 50% das famílias, a mulher assume o emprego ganancioso, e nos outros 50%, o homem. Mas, na verdade, há muito poucos casos em que isso acontece. Geralmente, o homem assume o emprego ganancioso. Precisamos considerar também as tradições e as normas sociais que fazem com que essa seja a maneira usual de agir.

Algumas pesquisas mostram que, mesmo quando os pais dizem para a escola ligar para o pai, eles ligam para a mãe. Está arraigado.

Portanto, o casal (hétero ou gay) que optar por ter um casamento mais igualitário terá os dois parceiros assumindo empregos mais flexíveis que pagam menos. Mas o que poderia mudar institucionalmente, para que não haja essa diferença tão forte entre os empregos flexíveis e os
gananciosos?

Por que existem empregos gananciosos? Porque não há substituição suficiente no local de trabalho. Empregos gananciosos são frequentemente voltados para o cliente. O cliente diz: ‘eu quero a Patrícia’. A empresa deveria dizer: ‘treinamos um grupo, uma equipe, para atender’. Sim, ninguém quer ser uma commodity. Mas não estamos falando sobre commodities, trata-se de ter um ou dois substitutos, isso não faz do funcionário uma mercadoria totalmente substituível.

Entre as ocupações em que isso ocorreu estão a anestesiologia, pediatria e farmácia. Todas são ocupações muito bem remuneradas e ainda assim, em cada uma delas, encontraram uma maneira de transformar indivíduos em equipes. Na anestesiologia, por exemplo. Se fosse preciso coordenar sempre a sala de cirurgia com a agenda do cirurgião e do anestesista, você não faria nenhuma cirurgia. Então hospitais ou cirurgiões contratam um grupo de anestesiologistas, que se revezam.

Até mesmo para mim, como professora. Eu dou um curso. Se alguém tivesse que me substituir, não daria da mesma forma. É o caso em que não é um substituto perfeito, mas, oras, espero que haja alguém que possa dar meu curso até melhor do que eu.

Como os homens poderiam contribuir para haver maior equilíbrio profissional nos casais?

Os homens podem ajudar de 1 bilhão de maneiras. É cara ou coroa: as mulheres são mais necessárias nos primeiros meses de vida de um bebê. Mas os homens poderiam muito bem assumir [a maior parte das tarefas] depois disso. Bebês não dizem apenas “mamãe”, eles dizem “papai”. Todos os casais têm que se sentar e conversar: podemos ter um relacionamento 50-50 [os dois com empregos mais flexíveis e ganhando menos]? Quanto isso vai nos custar? Ao mesmo tempo, as pessoas deveriam ir em massa até seus empregadores e dizer: queremos ter famílias e queremos ser bons funcionários. Vamos conversar sobre como podemos fazer isso?

Durante a pandemia, o home office tornou-se muito mais comum para faixas de renda mais altas. A senhora menciona em seu livro que o trabalho remoto é muito importante para as mulheres. Mas agora muitas empresas estão exigindo que os funcionários voltem ao escritório.

Bem, não muitas pessoas estão voltando. De acordo com algumas pesquisas, eram 5% em trabalho remoto antes da pandemia e agora são entre 25% e 30%. E faz diferença para as mulheres, porque permite conciliar seu dia com o tempo em família, é como estar da prontidão em casa, mas estar trabalhando efetivamente. Isso tem enormes implicações. Dados mostram que, nos EUA, a participação feminina na força de trabalho estava estagnada desde cerca de 1995 até a pandemia.

Depois, começou a aumentar. O aumento é maior para mulheres com filhos menores de cinco anos que têm educação universitária. Aquelas com menor nível de escolaridade terão menos possibilidades de trabalhar em casa. Agora, os dados apontam que isso também está acontecendo com os homens.

Então, acho que o próximo passo em uma pesquisa é descobrir quais são as circunstâncias para os homens que estão trabalhando em casa. Tenho amigos homens que têm filhos pequenos e trabalham em casa. Para eles, é um divisor de águas.

O título de um artigo que a senhora publicou no ano passado é “Por que as mulheres venceram”. As mulheres realmente venceram?

Sim, com certeza. Isso não significa que não haja alguns retrocessos ocasionalmente, mas elas fizeram conquistas enormes, desde o direito ao voto, até os direitos no local de trabalho, na família. Mas algo em que ainda estou trabalhando é o grau em que as mulheres conquistam direitos na rua, bastante importante na Índia, Paquistão, e também em partes da América Latina. Se as mulheres não têm direitos na rua, nos bondes, nos metrôs, nos ônibus, nas lojas, se elas não têm direitos sobre seu próprio corpo, direitos de não serem provocadas, assediadas, elas não podem
ser cidadãs eficazes e produtivas.

Depois de os filhos já estarem crescidos, muitas vezes as mulheres têm que cuidar dos pais idosos. Depois de terem essa pausa inicial em suas carreiras após terem filhos, como essa segunda pausa impacta suas carreiras?

Após as crianças estarem crescidas, as horas de trabalho das mães aumentam no início. Mas elas nunca conseguem alcançar os homens, provavelmente por causa dessa segunda onda de cuidados que chega quando elas têm 40 a 50 anos. Não sabemos exatamente por que isso está acontecendo. Mas vemos que as mulheres simplesmente nunca conseguem alcançar os homens, independentemente de terem filhos ou não. Então, parece que uma parte extremamente importante disso é o cuidado com os outros. Eu fui muito sortuda porque meus pais, quando eles tiveram problemas, cuidaram de si, e depois morreram também sem precisar de nenhuma assistência. Mas isso não é comum.

Raio-X
Claudia Goldin, 78, é professora de Economia na Universidade de Harvard. Ela se formou em Economia na Universidade Cornell e fez seu doutorado no mesmo campo na Universidade de Chicago. Goldin recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2023 “por contribuir para nosso entendimento sobre o mercado de trabalho feminino”.

Crise climática: Mundo pode não ter mais volta e isso me apavora, por Carlos Nobre

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A Terra só viu algo parecido no último período do interglacial, 120 mil anos atrás

Carlos Nobre, Climatologista, é pesquisador sênior pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e copresidente do Painel Científico para a Amazônia; foi eleito em maio de 2022 como membro estrangeiro da Royal Society

Folha de São Paulo, 15/09/2024

A ciência climática do mundo inteiro não previa uma aceleração tão intensa das mudanças climáticas como temos visto recentemente. No começo de 2023, os cientistas previram um El Niño de grande intensidade, com temperaturas chegando a 1,3°C acima dos níveis pré-industriais. Mas ninguém esperava que as temperaturas globais fossem explodir e ficar 1,5°C mais quentes.

Com exceção de julho de 2024, estamos desde junho de 2023 vivendo temperaturas acima de 1,5°C. O último mês de agosto foi o mais quente já registrado. A Terra só viu algo parecido no último período do interglacial, 120 mil anos atrás.

A consequência desses 14 meses de temperatura alta, incluindo os recordes de temperatura dos oceanos, é o aumento dos eventos climáticos extremos. Mas eles não cresceram devagarzinho ou de uma forma linear. Eles cresceram exponencialmente, como a ciência previu. E é isso que está acontecendo no Brasil e no mundo inteiro, com ondas de calor, seca, chuvas intensas e incêndios florestais.

O Acordo de Paris e as COPs estabeleceram metas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa de 28% a 42% até 2030, o que já é um enorme desafio. Mas as emissões continuam aumentando. Tudo isso foi definido para não passarmos de 1,5°C em 2050. Mas se no ano que vem continuarmos com temperaturas 1,5°C acima do período pré-industrial, serão três anos com temperaturas acima da meta do Acordo de Paris. Pode ser tarde demais e isso me apavora.

Estou apavorado porque, com 2,5°C, nós vamos criar uma mudança climática nunca vista. Com 2,5°C, os eventos extremos vão aumentar muito exponencialmente e o mais preocupante é que atingiremos os chamados pontos de não retorno.

Se passarmos de 2°C, todos os recifes de coral do mundo serão extintos. Se passarmos de 2,5°C, vamos perder de 50% a 70% da amazônia e grande quantidade do solo congelado da Sibéria, do Canadá e do Alasca, o chamado permafrost, será descongelado. Com isso, vamos jogar uma gigantesca quantidade de gases de efeito estufa que estão ali aprisionados.

Na semana passada, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou que o Brasil pode perder o pantanal por completo até o fim deste século se o mundo não for capaz de reverter o cenário de aquecimento global.

Como isso aconteceria? Grande parte da água que abastece o pantanal vem da bacia amazônica e do cerrado. Se ultrapassarmos 2,5°C de aquecimento, a amazônia será devastada, o que reduzirá significativamente as chuvas na região do pantanal. Sem essa umidade, o bioma pode se transformar em uma caatinga. E isso já vem acontecendo. O prolongamento das estações secas já resultou em 35% do pantanal deixando de ficar coberto por água nos últimos 40 anos.

Quando analisamos alguns países, especialmente na Ásia e em partes da Europa, vemos que eles estão adotando medidas eficazes para lidar com as mudanças climáticas. Um exemplo notável é Singapura, que implementou o conceito de “esponja urbana”, que envolve a restauração florestal nas áreas urbanas e periféricas, que reduz a temperatura e ajuda a mitigar desastres climáticos. O Brasil também tem potencial para implementar essas medidas.

Em São Paulo, por exemplo, a área urbana, com muito concreto e asfalto, pode ser de 6°C a 10,5°C mais quente do que áreas cobertas pela mata atlântica próximas, como o Parque Zoológico.

Estudos da USP mostram que a restauração da vegetação urbana pode reduzir as temperaturas em até 5°C, reter água no solo, diminuir enxurradas e remover de 20% a 30% dos poluentes. Além disso, melhora o microclima e, consequentemente, a saúde, já que ondas de calor são um dos maiores riscos climáticos.

No entanto, se falharmos em reduzir drasticamente as emissões, poderemos enfrentar um cenário extremo. Se a temperatura global aumentar em 4°C até 2100, grande parte do planeta, incluindo o Brasil, pode se tornar inabitável, especialmente as regiões tropicais e equatoriais. Isso incluiria vastas regiões do Brasil, especialmente as áreas tropicais e equatoriais. No Sudeste, os verões seriam tão extremos que viver ali seria insustentável.

A situação seria tão drástica que, no século 21, as únicas áreas habitáveis no mundo seriam regiões como o Ártico, a Antártica e as grandes cadeias montanhosas, como os Alpes e o Himalaia. Esse cenário nos mostra a gravidade da crise climática e o quanto é urgente zerar as emissões de carbono rapidamente, para evitar esse futuro quase inacreditável.

Ações mais rigorosas para combater as mudanças climáticas são urgentes. Sem medidas imediatas e eficazes, estamos caminhando para um futuro em que vastas regiões do planeta poderão se tornar inabitáveis, com impactos profundos para a vida. Não podemos em hipótese alguma aceitar passar de 2°C e chegar a 2,5°C. As metas de redução das emissões têm que ser muito mais rigorosas e abrangentes. Não podemos esperar até 2050.

Dados são o ‘novo petróleo’, mas precisam de atenção para não agravar crise climática, por Fábio Gallo

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O uso de data centers e a mineração massiva de criptomoedas põem muita pressão sobre a geração de energia

Fábio Gallo – O Estado de São Paulo – 14/09/2024

Nestas últimas semanas todos nós ficamos assustados, afinal o Brasil está sufocando com as queimadas. A crise climática está presente e se tornando mais aguda de maneira mais rápida do que os especialistas estavam prevendo. Em entrevista publicada esta semana no Estadão, o climatologista Carlos Nobre nos deixou ainda mais temerosos. Segundo ele, o Pantanal deve acabar e a Amazônia perder 50% da floresta até 2070. Nada mais assustador!

A situação está mostrando o quanto os governos estão despreparados para lidar com algo tão importante. Obviamente, este tema é uma preocupação mundial e a busca de solução é tarefa de todos. Tem-se discutido muito sobre as formas de combater o aumento da temperatura, atuando contra o desmatamento, as queimadas e outras tantas ações. Por outro lado, a humanidade está buscando, garimpando, armazenando e processando dados numa velocidade desenfreada.

O crescimento acelerado do uso de data centers, inteligência Artificial (IA) e mineração de criptomoedas está colocando uma pressão enorme sobre a infraestrutura de energia global. O que representa uma grande ameaça à capacidade instalada de geração de eletricidade. Essa pressão gera graves problemas em diversos níveis, como o aumento das emissões de gases de efeito estufa, sobrecarga da infraestrutura, o que afeta setores críticos como hospitais, comunicações, transporte, trazendo aumento de custos, desafios para a sustentabilidade e impactos geopolíticos.

Reportagem recente do Independent Speculator traz que é estimado que os data centers, IA e as criptomoedas usaram 460 mil gigawatts-hora de energia elétrica em 2022, e que a Agência Internacional de Energia (AIE) projeta que esses setores podem usar 1 milhão de gigawatts-hora por ano até 2026. Como referência, cita que os EUA têm hoje 94 reatores nucleares que geram cerca de 778 mil gigawatts de energia por ano. A solução proposta é o investimento em energia nuclear.

Diante de todos esses desafios, devemos buscar alternativas efetivas que incluem desde o avanço tecnológico, políticas públicas, práticas empresariais às mudanças comportamentais. É urgente a busca de soluções inovadoras para enfrentar o aumento da demanda energética. Devemos investir em eficiência energética, expansão de fontes renováveis, uso responsável de tecnologias intensivas em energia e políticas públicas que tragam o uso sustentável da eletricidade, sem comprometer o meio ambiente.

Medidas como o uso de data centers mais eficientes e de meios mais sustentáveis de consumo de energia na mineração de criptomoedas são essenciais para ajudar a humanidade a enfrentar o aumento da demanda por eletricidade e mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

O Brasil apodrece e o desconforto é físico, político e moral, por Luiz Francisco Carvalho Filho

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E o governo fala em asfaltar a BR-319 e protesta contra lei antidesmatamento da União Europeia

Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado”

Folha de São Paulo, 14/09/2024

Na manhã da segunda-feira (9), São Paulo registrou a pior qualidade do ar em todo o planeta, superando metrópoles como Ho Chi Minh, no Vietnã, e Lahore, no Paquistão.

O Brasil pega fogo. A fumaça e a destruição ambiental se espalham. Sem orientação sanitária, a população sofre os efeitos da seca, da poluição e do calor.

Assim como os rios Tietê e Pinheiros e a baía da Guanabara apodreceram diante do olhar complacente de autoridades de diferentes linhagens ideológicas, governo e Congresso são espectadores da tragédia climática, vendo-a como algo inexorável, natural ou divino.

É necessário (além da crítica jornalística) que, diante da “pandemia” de incêndios, o ministro Flavio Dino, do STF, aplique um polido puxão de orelhas.

O governo então se move em relação às queimadas, porém ressuscita a ideia temerária de asfaltar a BR-319, no coração da Amazônia, e protesta contra lei antidesmatamento da União Europeia que pode prejudicar exportações brasileiras.

Desenvolvimento sustentável (que satisfaz necessidade do presente sem comprometer necessidade futura) é ficção ou slogan.

A expansão das energias eólica e solar promove desmatamento da caatinga, bioma único, protegido pelo Estado brasileiro. Como é energia limpa, há relaxamento no licenciamento ambiental. Vegetação nativa é destruída para instalação de fazendas solares. Poluição sonora de turbinas eólicas afeta sono e audição de moradores locais, gerando ansiedade e depressão. Turbinas promovem também a matança de aves, ameaçando espécies em extinção. Empresas sustentáveis criam cemitérios clandestinos para descarte de cata-vento e painel solar.

O Brasil apodrece.

Entre 2012 e 2023, o número de pessoas que vivem nas ruas de São Paulo aumentou 16,8 vezes, passando de 3.842 para 64.818 habitantes.

Segundo o Datafolha, 23 milhões de brasileiros convivem, na vizinhança, com milicianos e facções criminosas.

Escolas públicas do complexo da Maré, no Rio de Janeiro, permaneceram pelo menos 15 dias totalmente ou parcialmente fechadas nas últimas semanas por conta de operações policiais: quase 20 mil alunos afetados por falta de ensino, insegurança alimentar e
traumas psicológicos.

O setor de apostas esportivas cresceu 734% desde 2021. Movimenta bilhões, faz nascer um novo e vil “empresariado”, favorece a lavagem de capitais e patrocina a maior parte dos times de futebol. Compromete 20% do orçamento de famílias mais pobres. Faz crescer o vício e o endividamento. Segundo a Fecomercio-SP, 20% dos apostadores deixam de pagar contas para jogar. O governo se vê diante de extraordinária fonte de arrecadação e recomenda que o jogador aposte com responsabilidade.

Cai o ministro dos Direitos Humanos, acusado de ser predador sexual.

Ministro bolsonarista do STF pega carona em jatinho de “empresário” do setor de apostas e vai para a Grécia comemorar, em luxuoso superiate, o aniversário de cantor sertanejo que tem bens bloqueados pelo Judiciário por suposto envolvimento no escândalo de lavagem de dinheiro da tal “influenciadora”, atualmente presa.

O planeta é finito. O calor é desértico. A destruição ambiental parece irreversível. Fumaça e fuligem cobrem os céus do continente. O Brasil apodrece. O desconforto é físico, político, moral.

Imigrantes geram desenvolvimento, por Rodrigo Zeidan

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Na UE, imigrantes levam a crescimento de 0,2% a 1,6% acima do que seria esperado

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo – 14/09/2024

Com a crise na Venezuela, o debate americano e o crescimento da extrema direita na Europa, os temas imigração e refugiados voltaram ao centro do debate político. Obviamente, é bem estranho que países feitos basicamente de imigrantes, como EUA e Brasil, ou que cresceram através de colonização, como na Europa Ocidental, agora venham a demonizar estrangeiros.

No debate americano, o candidato a vi
ce-presidente na chapa de Donald Trump, J.D. Vance, tem exagerado na retórica xenofóbica. Ele chegou a disseminar informações falsas de que imigrantes haitianos estariam roubando e comendo os animais de estimação das pessoas na cidade de Springfield, em Ohio.

Enquanto isso, a realidade é que os milhares de imigrantes do Haiti estão transformando a cidade para melhor. Milhares de vagas de empregos que não tinham candidatos estão sendo preenchidas. Os haitianos estão trabalhando nas fábricas da Honda, em centros de distribuição e nos Walmarts da vida. A cidade que tinha déficit, agora arrecada mais empostos do que gasta. Quando o Brasil ia bem, vários empresários do Sul me diziam o quanto haitianos trabalhavam duro e quanto contribuíam para suas cidades. Hoje, a maioria se naturalizou brasileira e é contribuidora líquida para o Estado.

Obviamente, ondas de imigrantes têm custos. A longo prazo, os benefícios são claros, mas há custos de ajuste de curto prazo. É esse o maior problema no Brasil e na Europa. Os milhões de refugiados estressaram os sistemas de segurança social em vários países e, na Suécia, estão associados ao aumento de crimes por gangues, especialmente em Malmö. Tais problemas não vão durar muito; as guerras de gangues de motociclistas, todos locais, na Dinamarca, foi pior, e o sistema acabou vencendo.

A literatura científica é clara. Imigrantes legais ou ilegais, e refugiados começam menos crime que as populações locais. Nos EUA, imigrantes ilegais cometem crimes a uma taxa 60% menor que a população local, em estudos com dados desde a década de 1960. E são o motor do desenvolvimento. Mesmo um imigrante com baixa qualificação acaba subsidiando a população local em cerca de US$ 128 mil ao longo da sua vida. Imigrantes geraram crescimento de 0,2% a 1,6% do PIB na União Européia acima do que seria esperado.

A maior crise de refugiados no mundo é na Venezuela, de onde quase 8 milhões de pessoas já escaparam. O Brasil já cometeu diversos euros, desde a atuação desastrosa no Haiti até passar pano para a agora ditadura de Maduro. Se o governo brasileiro não tem coragem de enfrentar Maduro, embora tenha fraudado eleições e praticamente exilado seu adversário, que pelo menos tenha a decência de assistir aos que fogem para o Brasil, seja pela fronteira, seja por outros meios. E isso significa também assistência federal aos estados fronteiriços, que não têm como arcar sozinhos com os custos de ajuste.

Se falta coragem para enfrentar ditador bolivariano, que pelo menos a esquerda coloque em prática o melhor dos seus planos, que é ajudar os mais necessitados. E sem delongas.

A insustentável leveza das narrativas, por Renato Ortiz

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Renato Ortiz – A Terra é Redonda – 12/09/2024

Uma narrativa não se define em função da realidade, ela é o relato, basta-se a si mesma
Tudo é narrativa: os contos de Grimm, um romance, o terraplanismo, as notícias de jornal, a locução de uma partida de futebol, uma fala política, uma peça publicitária. Em sua discrepância e omnipresença a ideia de narrativa desfruta da insustentável leveza de ser. Ela não se confunde com a noção de discurso, explorada pelos linguistas e semiólogos, é imprecisa e insatisfatória; entretanto, o seu uso generalizado lhe dá uma aparente feição de verdade.

A rigor a indefinição conceitual lhe garante um êxito inconteste no vocabulário do dia a dia; particularmente com o advento das redes sociais, nas quais se alimenta uma ilusão coletiva, qualquer coisa dita com convicção e estridência torna-se convincente. Uma narrativa é uma série de eventos que constitui uma história, diz-se em inglês: storytelling.

Seu intuito é contar “tudo que aconteceu”, isto é, a sequência do que é narrado em um relato. Sua verdade reside em ser coerente, a razão de sua existência não repousa no que lhe é alheio.

Ela difere assim do conceito de ideologia, ele exige um necessário contraponto com o real, a questão da falsidade é sempre algo presente. É neste sentido que se dizia que a ideologia burguesa ou a religião eram uma “falsa consciência” do mundo.

Elas certamente mobilizavam as pessoas, davam sentido a suas vidas, entretanto, eram parciais (o conhecimento ideológico vem marcado pela parcialidade). Subjaz à noção de ideologia o traço da “distorção” ou de incompletude, os pontos de seu relato podem ser contrastados por algo que se encontra fora de sua enunciação.

Uma narrativa não se define em função da realidade, ela é o relato, basta-se a si mesma. O que se passa à sua volta é impertinente, importa sua essência, aquilo que é narrado. Dois exemplos “extremos” (se é possível falar em extremos no universo dos relatos) são sugestivos. O primeiro refere-se ao terraplanismo, ele afirma: nossos sentidos indicam que a Terra é plana; não enxergamos a curvatura do horizonte mesmo quando estamos em um avião; rios e lagos estão nivelados, deveriam ter uma curvatura se a Terra fosse esférica. O planeta é um disco redondo e achatado no qual o polo Norte encontra-se no centro e a borda é formada por gelo, a Antártica.

O segundo implica no negacionismo da corrida espacial à lua. Ele se sustenta a partir de um indício específico: a fotografia da bandeira americana na superfície lunar. Nela vê-se uma pequena parte dobrada, o que é percebido como algo “tremulante”; ora, não há vento na lua, portanto, a foto foi feita em algum lugar da Terra. Nenhuma dessas ponderações pode ser contradita pelo princípio de realidade, ou seja, quando confrontadas ao discurso científico.

Ele nos assegura que a Terra é redonda, há fotos e filmes feitos no espaço sobre o planeta azul, e que existem provas efetivas que demonstram a presença do homem na lua. Entretanto, tais evidências são exteriores à coerência interna do que é afirmado, elas em nada lhes importunam.

Pode-se ainda dizer que a própria ciência é também uma narrativa, ela se situaria assim ao lado de outras, sem, porém, contradizê-las.

Mas a coerência estrutural das “estórias” parece não ser suficiente para que elas se confirmem enquanto tal. Há ruídos. Mesmo as narrativas conspiratórias são coerentes, como se diz, são “teorias” que se organizam através de uma explicação racional das forças ocultas que perpetuam determinado ato. Neste sentido, os exemplos que utilizei não prescindem inteiramente da utilização de certos elementos da realidade. Afirmar que “não conseguimos ver a curvatura da Terra” ou “não há vento na lua” implica em buscar por uma materialidade do real que possa justificar tais afirmações.

Isso não seria contraditório com a própria noção de narrativa? Creio que a contradição se resolve quando se analisa o uso dessas histórias, em particular considerando o caráter acusatório que ele encerra. Como mostram os antropólogos em relação à feitiçaria, ela é uma crença partilhada por todos os membros de uma comunidade. Porém, ninguém se identifica como sendo feiticeiro. A “maldade” existe, mas é praticada pelos outros.

As narrativas se alimentam da acusação da falsidade das outras. Como na feitiçaria, ao situar fora de si a inverdade, a crença expele os ruídos de sua contradição; ao acusar os adversários de distorcer a realidade, sua dimensão interna permanece ilesa, inalterada. A virtude de existir ancora-se assim em sua leveza imaculada.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda).
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Ventos positivos

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Num ambiente de constantes transformações econômicas e produtivas nos cenários nacional e internacional, percebemos que a economia brasileira apresenta ventos positivos, desemprego em queda, aumento do investimento, crescimento do superávit comercial, expansão do mercado de capitais e crescimento econômico, depois de momentos de grandes instabilidades, agitações políticas, polarizações constantes, negativismos, pandemia e crises econômicas, que contribuíram para aumentar as vulnerabilidades da economia nacional.

Com a divulgação recente dos indicadores macroeconômicos, percebemos dados interessantes e auspiciosos, o crescimento econômico surpreendeu e colocou o Brasil dentre as nações que mais cresceram no trimestre, o desemprego diminuiu, os investimentos produtivos cresceram, o setor externo da economia apresentou indicadores atraentes, a inflação se manteve sob controle, além do incremento do consumo, desta forma, vislumbramos melhoras nas perspectivas da economia
nacional.

Mesmo assim, ao analisar a economia nacional, percebemos grandes contradições, de um lado, encontramos números auspiciosos e boas perspectivas, levando-nos a vislumbrar um ambiente macroeconômico saudável e bons horizontes de crescimento econômico, mas ao mesmo tempo, encontramos grupos, liderados pelos rentistas, clamando pelo aumento das taxas de juros como forma de impedir o crescimento da inflação. Neste cenário, estamos presos numa mediocridade que limita o crescimento da economia nacional, reduzindo as perspectivas de geração de emprego e renda, e indiretamente contribuindo para garantir os grandes lucros dos setores que vivem no rentismo.

No cenário econômico, percebemos críticas ácidas dos economistas do mercado financeiro e dos gestores de fundos de investimentos com relação à política fiscal, cobrando do governo uma maior racionalização dos gastos públicos e uma urgente redução dos gastos públicos, vistos como o responsável pelos desequilíbrios fiscais e financeiros que podem aumentar as taxas de juros, último instrumento para reduzir a inflação.

Embora percebamos que as questões fiscais estejam na berlinda da política econômica, percebemos ainda que os analistas econômicos vinculados ao chamado mercado exigem cotidianamente que sejam reduzidos os recursos públicos direcionados para a população mais carente e mais fragilizada, julgando-os como os grandes responsáveis pela chamada “farra” fiscal, se esquecendo, de forma deliberada, os vultosos incentivos fiscais e isenções tributárias que beneficiam os grandes grupos econômicos e financeiros, que atuam fortemente para extrair grandes somas dos fundos públicos, gerando pouco emprego, pagando poucos impostos e deixando de contribuir para o desenvolvimento nacional.

Vivemos um momento interessante para o fortalecimento da economia nacional e, novamente, vislumbrar os sonhos esquecidos do desenvolvimento econômico, somos dotados de energias alternativas que tendem a atrair novos investimentos industriais, estamos atraindo novos investimentos externos em variadas áreas e setores, precisamos estimular uma nova política de industrialização que atraia todos os agentes econômicos, sociais e políticos, construindo um verdadeiro ecossistema de inovação que inclua todos os setores da economia nacional, mas para isso, precisamos deixar de lado discussões equivocadas e ultrapassadas que pululam nos agentes que formulam as políticas públicas, compreendendo os verdadeiros medos, desafios e anseios da sociedade nacional, como disse o grande Tom Jobim: “O Brasil não é para amadores”…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dowbor: Para decifrar o enigma da ultradireita

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Desigualdade e frustrações deslocaram o eixo da política para o campo dos valores – onde opera uma aliança entre interesses financeiros, preconceitos de gênero e religião. Hipótese: esquerda pode (e precisa!) disputar este território

Ladislau Dowbor, Outras Palavras – 04/09/2024

Estávamos acostumados a tratar questões políticas, econômicas, religiosas e de gênero como espaços diferentes, tanto nas discussões como nas pesquisas, e em particular como áreas separadas nas universidades. Isso fragilizou muito a nossa compreensão das novas dinâmicas que transformam a sociedade a partir da sua própria base.

Lembro que há uns 15 anos atrás, tempos de governo Lula, uma alta autoridade da União Europeia me perguntou do que eu achava da perspectiva de os evangélicos chegarem ao poder no Brasil.

Comuniquei de maneira condescendente que não estava no horizonte político. Hoje me arrependo desta minha incompreensão do que estava se passando no país, transformação melhor entendida por um especialista europeu. O que está hoje escancarado, é precisamente que o populismo de direita se enraizou na base da sociedade numa aliança que usa crenças religiosas, preconceitos de gênero, interesses financeiros, sistemas modernos de comunicação comportamental, e os sentimentos de frustração irritada dos mais pobres para gerar uma máquina de poder político, o populismo de direita.

No caso do Brasil, um livro de primeira ordem, de Bruno Paes Manso, A fé e o Fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI, (2023) analisa precisamente como se formou esta convergência de diversas dimensões do cotidiano da população, aliando religião, política, polícia e criminalidade numa nova “costura” que articula as comunidades, gerando novos sistemas de governança. A religião e a sexualidade, o controle do comportamento íntimo das famílias, passam a desempenhar um papel poderoso. Quando elegemos um político, teoricamente se trata de assegurar que o setor público administre os investimentos necessários na educação, na saúde, nas infraestruturas, na promoção de empregos e semelhante. São os “programas” que se apresentam para as eleições. Em vez disso, as pessoas irão votar no que se apresenta como costumes, como se os políticos devessem tratar de como e para quem rezamos, como organizamos as nossas famílias, como educamos nossos filhos. Deus, Pátria, Família já era o mote da ditadura de Salazar em Portugal, um século atrás. E como funciona. Não busca a racionalidade, busca as emoções.

O livro que queria aqui apresentar foca essas dimensões no plano internacional. Na Europa tão cultural e civilizada, enfrenta-se essa convergência da luta anti-gênero (leia-se controle da sexualidade das mulheres), da promoção da religiosidade (como se estivéssemos elegendo pastores), do uso das mídias sociais personalizadas (baseadas no uso de informações privadas das pessoas), e de pretensos valores “tradicionais”. Nos Estados Unidos as religiões se transformaram já há tempos em feudos de poder, com impressionante convergência entre valores retrógrados e as mídias mais avançadas, também navegando no mundo de frustrações geradas pela desigualdade e estagnação na base da sociedade. Os mais pobres nas mãos dos que mais reproduzem a pobreza.

Duas polonesas, Agnieszka Graff e Elzbieta Korolczuk realizaram uma pesquisa de impressionante riqueza sobre justamente como se articulam essas diversas dimensões da sociedade, com poderoso impacto político que se enraíza na intimidade de como rezamos, de como nos relacionamos com a família, mas também de como votamos. O populismo político de direita é aqui visto como construção inovadora, que termina se articulando com as forças econômicas das grandes corporações, como no caso das Koch Industries nos Estados Unidos, justificando e assegurando apoio político da base social mais explorada para o sistema tecnologicamente mais avançado e explorador. A análise nos ajuda a entender como se construiu esse paradoxo político, por meio da pretensa superioridade moral, com uso não de propostas de soluções concretas de governança, mas sim de grandes acenos à família, uso da bandeira, conceito de austeridade na política, e de controle comportamental, em particular das mulheres.

As autoras analisam o caso da Polônia, que acaba de sair de 7 anos de um governo religioso fundamentalista que desestruturou as políticas públicas, e também os casos de Donald Trump nos Estados Unidos, de Orban na Hungria, bem como dos movimentos semelhantes na Itália, na França, na Inglaterra e inclusive no Brasil. A força do livro resulta em grande parte da profundidade da análise: as autoras participaram como observadoras das grandes reuniões internacionais dos movimentos de extrema direita populista nos diferentes países e em diferentes épocas, permitindo justamente a compreensão de como o uso das religiões, dos movimentos anti-gender, em particular com a questão do aborto, dos interesses financeiros e dos interesses político-partidários convergiram para a formação do poderoso movimento populista de extrema direita que se tornou tão poderoso no mundo.

Tive uma reunião com uma das autoras, Elzbieta Korolczuk, em Varsóvia, em julho deste ano, ela me deu a versão polonesa do livro, que terminei lendo no avião. Impressionante a riqueza das análises. Ao comunicar-lhe por e-mail o meu entusiasmo, Korolczuk, que é professora na Suécia, me mandou o link da versão original em inglês, disponível gratuitamente online, opção que tantos autores e editores estão começando a adotar: não substitui a venda dos livros impressos, pelo contrário, estimula, como constato com meus próprios livros, todos disponíveis no meu site Dowbor.org e nas livrarias. Tempo de nos modernizarmos.

Uso moderno e construtivo das tecnologias mais avançadas, para denunciar, neste caso, o uso dessas tecnologias para nos empurrar para o mais profundo obscurantismo político e comportamental. O problema não está nas tecnologias, e sim no para que são usadas, como é o caso em particular da inteligência artificial. Hoje o poder das plataformas da comunicação, o dinheiro dos gigantes financeiros, e o controle dos nossos comportamentos íntimos geram uma nova ameaça, e se tornaram dominantes. Estamos na era da inteligência artificial manipulando a profundidade das nossas emoções, das nossas dimensões irracionais, buscando nos trancar em regimes obscurantistas.

O ponto de partida das autoras é a própria Polônia, onde o tradicionalismo religioso e o controle das políticas feministas, o “anti-gender” como é qualificado no plano mundial, foram apropriados pelo partido PIS (Prawo i Sprawiedliwosc: Direito e Justiça) para eleger um governo fundamentalista religioso de extrema direita. Quando chegaram ao extremo de proibir e criminalizar o aborto até em casos de estupro e de malformação do feto, houve uma reação impressionante: meio milhão de mulheres desceram às ruas, vestidas de preto, e com cartazes radicais em defesa dos direitos das mulheres. A causa do aborto, tratada com tantos cuidados e prudência em diversos países, aqui foi escancarada, e transformada em movimento político poderoso, contribuindo fortemente, inclusive, para a queda do PIS em 2023. Caiu o governo, mas o enraizamento do discurso populista, a propagação da sua falsa superioridade moral, e a sua articulação com o populismo político continuam muito presentes na sociedade, em particular no meio rural e nas camadas mais pobres.

Segundo as autoras, “As campanhas antigênero se alimentam de sentimentos religiosos e empregam discursos moralizantes, mas sua disseminação só pode ser devidamente compreendida no contexto da ascensão de forças políticas de direita que buscam meios ideológicos e afetivos para ganhar hegemonia.”(164) Trata-se de manipulação de sentimentos, no sentido mais direto. “A retórica anti-gênero funciona porque reorienta a raiva coletiva para longe das questões econômicas estruturais e para as morais. No processo, o anti-generismo confere aos sujeitos a memória de uma vergonha imaginária e a promessa de uma nova dignidade; oferece satisfação moral (nossos inimigos são maus, mas miseráveis), um senso de propósito e uma comunidade.”(135) O populismo, segundo as autoras, “se alimenta do ressentimento e do medo, e tende a moralizar os conflitos e necessita de inimigos.”

“Argumentamos que a mobilização antigênero desempenhou um papel importante na consolidação da direita populista como um movimento transnacional, que aproveita com sucesso a ansiedade, a vergonha e a raiva causadas pelo neoliberalismo. Em país após país, atores antigênero construíram alianças com populistas de direita: juntos eles atacaram os direitos das mulheres, minorias sexuais e étnicas, promovendo o que os conservadores chamam de “valores familiares”. Os vários episódios que observamos em diferentes contextos – campanhas contra o aborto e a educação sexual, esforços para impedir a ratificação da Convenção de Istambul e ataques contra a comunidade LGBT – somam-se a um fenômeno transnacional na interseção de cultura, religião e política, que liga diferentes atores e agendas ideológicas muitas vezes díspares.”(165)

O sucesso da impressionante mobilização feminina na Polônia foi devido em grande parte ao fato de responder na mesma moeda, nas emoções, na solidariedade, na reversão do medo, indo além do papel que desempenha a argumentação racional. As mulheres desceram às ruas com raiva. “Na Polônia, A luta das mulheres pela liberdade reprodutiva foi promulgada com sucesso como uma revolta popular, uma luta pela democracia e contra a violência do populismo de direita. Também acabou sendo um movimento de esquerda, que prontamente apoiou protestos de pessoas com deficiência exigindo incluir entre os seus objectivos um conjunto de exigências relativas à cuidados, provisões sociais para famílias e justiça social.”(162)

As autoras citam o manifesto Feminismo para os 99%: “O que estamos vivendo é uma crise da sociedade como um todo. De forma alguma restrito aos recintos das finanças, é simultaneamente uma crise de economia, ecologia, política e “cuidado”. Uma crise geral de toda uma forma da organização social, é no fundo uma crise do capitalismo – e em particular da forma viciosamente predatória de capitalismo que habitamos hoje: globalizante, financeirizado, neoliberal.”(p.142)

A leitura do livro nos enriquece muito, na medida em que traz informações sobre como a extrema direita, que hoje tanto progride no mundo, utiliza esta articulação da sexualidade, da falsa proteção “das nossas crianças”, da manipulação religiosa, da moralidade familiar, da mídia social, de símbolos poderosos como a pátria, para favorecer a submissão ao mundo corporativo.

Permite também, em diversos capítulos, entender como organizações de extrema direita se organizam no mundo para esta articulação, com participação direta, por exemplo, de Steve Bannon, tão importante na eleição do Trump nos Estados Unidos, inclusive com referências ao bolsonarismo.

São desafios políticos no sentido mais amplo, envolvendo muito além dos partidos e das propostas de políticas públicas. Usam as tecnologias mais avançadas de comunicação, e também o enraizamento nas comunidades religiosas, para formar uma máquina de manipulação poderosa. Para mim, a leitura simultânea do livro de Bruno Manso mencionado acima, e da análise dos diversos movimentos no plano internacional, ajuda a entender o deslocamento profundo do que chamamos de política. Trata-se de uma batalha de valores e de civilização. Lembrando mais uma vez que o livro em inglês está disponível gratuitamente online, no link (Anti-Gender Politics in the Populista Momento – Agnieszka Graff, Elzbiet (taylorfrancis.com) Eu recomendaria muito que fosse traduzido e publicado online no Brasil.

O campo democrático e o nosso patrimônio constitucional, por Oscar Vilhena Vieira

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Será preciso reinventar a forma de fazer política para enfrentar ameaças à democracia

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 07/09/2024

Estamos completando 200 anos de uma trajetória constitucional intensa e acidentada. Intensa pois o corpo das sucessivas Constituições e Cartas Constitucionais têm sido o campo onde se travaram as principais disputas em torno do destino da nação. Da unidade nacional à Abolição, passando pelo federalismo, a construção da ordem conservadora, o desenvolvimentismo, assim como a promoção da democracia e dos direitos, tudo passou pela arena constitucional.

Essa constante disputa gerou, no entanto, uma história constitucional acidentada, que nos levou a adotar diversas linhagens de constituição. Quatro Cartas centralizadoras e conservadoras, impostas por governantes autoritários; e quatro Constituições liberais ou progressistas, resultantes de processos mais ou menos inclusivos.

Além das cicatrizes deixadas pelas rupturas, há, de um lado, sequelas crônicas das promessas constitucionais não cumpridas, como a violência, as profundas desigualdades e as dificuldades econômicas. De outro lado, um forte ressentimento com tudo aquilo que ameace privilégios e a hierarquia social.

Nosso constitucionalismo sempre esteve submetido a uma forte tensão entre aqueles que apostam no aprofundamento da democracia, do federalismo, do Estado de Direito e da ampliação de direitos e os que acreditam que apenas o fortalecimento do poder central e da ordem conservadora serão capazes de promover o desenvolvimento. Em comum, ambos os polos parecem tolerantes com um ineficiente capitalismo de compadrio.

A Constituição de 1988 foi, em grande medida, uma resposta a essa tensão. Ponto culminante do processo de transição, resultou de um compromisso entre as principais correntes que povoaram nosso terreiro político. Adotou um sistema político consensual, como resposta à tradição populista e autoritária do presidencialismo. Fortaleceu o Parlamento, o Judiciário e a federação. Ampliou direitos, especialmente dos grupos vulneráveis e tradicionalmente discriminados. Olhou para a frente, determinando investimentos obrigatórios em educação e saúde e protegendo o meio ambiente. Fez tudo isso sem, no entanto, remover privilégios, mecanismos regressivos e um capitalismo impotente.

Nos últimos anos, esse projeto de Constituição, de linhagem pluralista e social-democrática, vem sendo desafiado não apenas pelas tradicionais forças da ordem conservadora e hierárquica como por uma concepção libertária e pré-política. Um individualismo radical, focado no sucesso individual, que não aceita regras e despreza valores democráticos.

Figuras como as do multibilionário Musk e do multimilionário Marçal, que capturaram o noticiário político brasileiro nesta semana, ameaçando e debochando das instituições, simbolizam os novos desafios que as democracias constitucionais, não apenas a brasileira, terão que enfrentar na próxima quadra.

A defesa da democracia constitucional não pode ser deixada apenas sob a responsabilidade de suas instituições. A Justiça não substitui a política. Sem que o campo democrático seja capaz de reinventar a forma de fazer política e cumprir suas promessas, dificilmente legará às futuras gerações o seu patrimônio constitucional, ainda que imperfeito, que recebeu.

Brasil sufoca em fumaça e a culpa é do agro, por Marcelo Leite

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Setor ruralista vai pagar caro por cegueira diante da crise do clima

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo – 07/09/2024

Faz mais de duas semanas que brasileiros de todos os quadrantes do território respiram fumaça e vivem cansados ou doentes. Um belo Sol tingido de vermelho não compensa o sofrimento.
O país passa por estiagem excepcional, que alguns proprietários irresponsáveis aproveitam para tocar fogo em sua área ou monturos de detritos. Faíscas e chamas se espalham dizimando matas, empesteando o ar.

Crianças e idosos são os que mais sofrem, com laringites, rinites e pneumonias que logo retornam. Mas todo mundo, moço ou velho, anda irritado. Não é uma condição favorável a enxergar o óbvio: a culpa é do agronegócio.

Considere o Dia do Fogo em São Paulo, no final de agosto. Levantamento do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) constatou que 81,3% de 2.600 focos de incêndio entre os dias 22 e 24 tiveram origem em áreas de agropecuária.

Verdade que muitos canaviais se incineraram, com prejuízo para o setor sucroalcooleiro. Decerto usineiros não têm interesse em ver a plantação arder. Só que eles integram a banda menos atrasada do agro, não são representativos da média ruralista.

O protótipo do homem do campo é um pecuarista useiro em queimar o pasto para se livrar de pragas. Subestimam o risco decorrente do clima seco e dos ventos quentes, depois não conseguem manejar o fogo.

Isso quando as queimadas não são mera atividade criminosa, como no caso da queima de troncos e galhos resultantes de desmatamento ilegal. Não adianta proibi-las; governos mal conseguem fiscalizar o corte raso e sofrem ainda mais para monitorar o fogo.

É ingenuidade pensar que o poder público possa resolver o problema enviando brigadistas do ICMBio para combater as chamas. Nenhum governo do mundo pode se preparar para conter incêndios que abrangem milhões de quilômetros quadrados e produzem mantas de fumaça contínua visíveis por satélite.

É imperioso prevenir, não remediar. E a prevenção só se tornará eficaz quando atingir o bolso dos incendiários, criminosos ou não.

A iniciativa Map Biomas já demonstrou a eficiência de automatizar alertas de desmatamento. Seria agora o caso de investigar a possibilidade técnica de desenvolver sistema similar para fogo não autorizado.

A seca atual abarca 58% do território e é a pior desde 1950, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Não parece mero acaso que o dado tenha saído um dia após o IBGE divulgar o PIB trimestral assinalando que o agro encolheu 2,3% quando a economia crescia 1,4%.

O colunista Bráulio Borges estima que anomalias em chuvas desde 2012 subtraíram entre 0,8 e 1,6 ponto percentual do PIB brasileiro. E isso tem a ver com o setor rural: “A produtividade da agropecuária, que cresceu cerca de 4% ao ano entre 1970 e 2011, avançou apenas 1,5% a.a. no período 2012-2021”, escreveu.

Não fosse a valorização das commodities agrícolas em 2020/22 e do dólar após a pandemia, analisa, a renda no campo teria sofrido muito nos últimos anos. De quanto prejuízo no bolso o agro vai precisar para escapar das garras do negacionismo climático e da banda ogra que o representa no Congresso?

As mãos divinas do mercado, por Belluzzo & Back

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Manfred Back & Luiz Gonzaga Belluzzo

A Terra é Redonda – 30/06/2022

Nossa autoridade monetária voltou ao caminho da fé financista, viu a luz no caminho de Damasco…Faria Lima! Amém…

“A liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam”
(Baruch Espinosa).

Na última reunião do comitê de política monetária do Banco Central do Brasil (Copom), por unanimidade foi ratificada a manutenção da Taxa Selic em 10,5% ao ano e a suspensão temporária de cortes na taxa básica. No Templo dos Milagres do Financismo, localizada na Faria Lima, o pastor J. P. Morgan no final do culto bradou em êxtase: Amém, Irmãos! A credibilidade voltou!

Nossas preces foram ouvidas, somos o povo escolhido para ganhar dinheiro, nossa verdade, é a nossa fé! Os fiéis gestores do dinheiro alheio fizeram o coro: Oh a credibilidade voltou, oh oh…

O Deus Mercado sempre está certo, amém irmãos! Quem melhor entende do vil metal? Nós ou o Banco Central? Nossa autoridade monetária voltou ao caminho da fé financista, viu a luz no caminho de Damasco…Faria Lima! Amém…

O dilúvio da desancoragem das expectativas inflacionárias foi salvo pelas mãos divinas do mercado. Contra a fé e o dogma metamorfoseados em Ciência, ninguém pode! Nem o Bacen! Amém, duas vezes, irmãos!

No livro Poder e progresso Daron Acemoglu e Simon Johnson relembram Edmund Burke, contemporâneo de Jeremy Bentham e Adam Smith. Edmund Burke referia-se às leis do comércio como “as leis da natureza e, consequentemente, as leis de Deus. Como alguém poderia se opor às leis divinas?”

Assim, vamos excomungar os infiéis do Federal Reserve, sempre dispostos a renegar nossas crenças. Eles dizem: “Desde o final de 2008 até outubro de 2014, a Reserva Federal expandiu grandemente a sua detenção de títulos de longo prazo através de compras no mercado aberto com o objetivo de exercer pressão descendente sobre as taxas de juro de longo prazo e, assim, apoiar a atividade económica e a criação de emprego, tornando as condições financeiras mais acomodativo”. (site do FED).

“O dinheiro que utilizamos para comprar obrigações quando estávamos a realizar a flexibilização quantitativa não provinha de impostos nem de empréstimos governamentais. Em vez disso, tal como outros bancos centrais, podemos criar dinheiro digitalmente sob a forma de “reservas do banco central”.

“Usamos essas reservas para comprar títulos. Os títulos são essencialmente notas promissórias emitidas pelo governo e pelas empresas como forma de pedir dinheiro emprestado”.

“Agora que estamos a reverter a flexibilização quantitativa, alguns desses títulos vencerão e estaremos vendendo outros aos investidores. Quando isso acontecer, o dinheiro que criamos para comprar os títulos desaparecerá e a quantidade total de dinheiro na economia diminuirá”. (site do Banco da Inglaterra)

Felizmente, dizem os Sacerdotes da Seita Faria Lima, o Banco Central do Brasil, está impedido de fazer esse tipo de operação amaldiçoada, praticada sem pejo por nossos irmãos anglo-saxões, tão admirados aqui. No Brasil a autoridade máxima monetária não pode determinar, intervir ou ancorar a estrutura a termo da taxa de juros. Nossa crença exige que a autonomia operacional seja contida nos limites da fé imposta pelo sacramento das Metas de Inflação.

Segundo os mandamentos da Seita Faria Lima, o Banco Central só pode definir a taxa Selic a cada 45 dias, em conformidade com o Boletim Focus, o santo graal das expectativas. Só eles falam com Deus Dinheiro! Os mortais das fábricas de parafusos não entendem de âncoras, só de parafusos! Amém, duas vezes irmãos!

Reza a legislação dos crentes Brazucas: “O objetivo fundamental do BC é assegurar a estabilidade de preços, além de, acessoriamente, zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”. (site do BACEN).

Para apaziguar o espírito dos crentes, graças às prescrições do Velho Testamento do Senhor Dinheiro, a autoridade monetária não deve fazer política monetária e escapa do objetivo enganoso de suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Por quê?

Porque negar os mandamentos do Deus Mercado é pecado sem remissão!

Nos cultos aos domingos, os mais concorridos, o cântico final é o mais esperado, onde o pastor J. P. Morgan puxa a reza final: fiscal, fiscal, fiscal! A oração mais esperada: o dinheiro nosso que estás no céu. Contra satã: a dívida pública explosiva e o estado esbanjador!

As ditas operações compromissadas, são um instrumento comum dos bancos centrais para controlar a taxa básica fixada no mercado interbancário. No nosso caso, diferente de nossos irmãos do Norte, a autoridade monetária usa título público federal com clausula de recompra, para manter a taxa básica. Muito lucrativa aos bancos, e risco zero. Cabe uma observação importante, instituições financeiras existem para ganhar dinheiro. O que podem ou não podem fazer, cabe a autoridade monetária definir. Aqui podem quase tudo, afinal, são elas que garantem a credibilidade do Banco Central.

As operações compromissadas são registradas como dívida pública federal. Estimam-se entre 20 a 30% do total, seria na ordem de quase dois trilhões de reais. São operações de política monetária, nada a ver com o financiamento do déficit público. Mas serve ao mantra da congregação da faria lima: fiscal, fiscal…

Para barrar as incursões de Galileu Galilei o Cardeal Belarmino escreveu para outro clérigo: “… querer afirmar que realmente o Sol está no centro do mundo e gira apenas sobre si mesmo sem correr do oriente ao ocidente e que a Terra está no 3º céu e gira com suma velocidade em volta do Sol, é coisa muito perigosa não só de irritar todos os filósofos e teólogos escolásticos, mas também de prejudicar a Santa Fé ao tornar falsas as Sagradas Escrituras”.

Voltamos aos heréticos do Federal Reserve: Durante o processo de normalização da política que começou em dezembro de 2015, a Reserva Federal utilizou pela primeira vez acordos de recompra reversa overnight (ON RRPs) – um tipo de OMO – como uma ferramenta de política suplementar, conforme necessário, para ajudar a controlar a taxa de fundos federais e manter dentro da faixa-alvo definida pelo FOMC.

Em setembro de 2019, a Reserva Federal utilizou acordos de recompra (repo) a prazo e overnight para garantir que a oferta de reservas permanecesse ampla, mesmo durante períodos de aumentos acentuados nos passivos não relacionados com reservas, e para mitigar o risco de pressões do mercado monetário que poderiam afetar negativamente política de implementação.

A Reserva Federal continuou a oferecer acordos de recompra overnight e, no contexto do stress relacionado com a COVID por volta de março de 2020, os acordos de recompra a prazo e overnight desempenharam um papel importante para garantir que a oferta de reservas permanecesse ampla e apoiar o bom funcionamento dos mercados de financiamento de curto prazo em dólares dos EUA.

Na Declaração sobre acordos de acordo de recompra divulgada em 28 de julho de 2021, o Federal Reserve anunciou o estabelecimento de um mecanismo de recompra permanente (SRF) nacional. Ao abrigo do SRF, a Reserva Federal realiza diariamente operações de recompra overnight contra títulos elegíveis. “O FUR serve de apoio nos mercados monetários para apoiar a implementação eficaz da política monetária e o bom funcionamento do mercado”. (site do FED)

Nosso irmão do Norte, faz o mesmo tipo de operação, e não é contabilizado como dívida pública! Indagam os hereges: “Cadê nossa autonomia operacional? Por que não implementar os depósitos voluntários, e acabar de vez com as compromissadas, como a grande maioria dos bancos centrais no mundo?”

A Seita Faria Lima não deixa. Amém irmãos!

Prosseguem os malditos hereges: “A taxa de juros sobre os saldos de reservas (taxa IORB) é determinada pelo Conselho e é uma ferramenta importante para a condução da política monetária do Federal Reserve. Para a configuração atual da taxa IORB, consulte a nota de implementação mais recente emitida pelo FOMC. Esta nota fornece as configurações operacionais para as ferramentas de política que apoiam a meta do FOMC para a taxa de fundos federais”.

“Os depósitos a prazo facilitam a implementação da política monetária, proporcionando uma ferramenta adicional através da qual a Reserva Federal pode gerir a quantidade agregada de saldos de reservas detidos pelas instituições depositárias. Os fundos colocados em depósitos a prazo são retirados das contas de reserva das instituições participantes durante a vigência do depósito a prazo e, assim, drenam os saldos de reserva do sistema”. (site do FED).

Alô, Cardeal Belarmino, é hora de convocar a Inquisição!!!

*Manfred Back é professor de economia e mercado de capitais na ESPM.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros,
de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).

Governo alemão deporta refugiados, por Flávio Aguiar

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Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 04/09/2024

Há na Alemanha mais de 50 mil ordens de deportação contra refugiados que tiveram negados seus pedidos de asilo

O governo alemão decidiu endurecer sua política em relação a refugiados considerados como em situação ilegal no país. Na semana passada já houve a deportação de um primeiro grupo para seu país de origem, o Afeganistão.

A decisão aconteceu na sequência de um atentado a facadas na cidade de Solingen, perto de Colônia e Bonn, a antiga capital da Alemanha Ocidental. O atentado deixou um saldo trágico de três mortos e vários feridos, alguns com gravidade. A polícia deteve um suspeito, um cidadão sírio que pedira asilo no país e o tivera negado. O acusado desapareceu, só reaparecendo no trágico incidente em Solingen.

Ele fora admitido na Bulgária, e deste país passou para a Alemanha. O governo alemão aprovara sua deportação para aquele país, de onde viera. A Bulgária concordou com a deportação, mas ela acabou não acontecendo devido a desaparição de acusado.

A organização Estado Islâmico divulgou um vídeo em que reivindicava a autoria de atentado como uma “vingança” pelo que estava acontecendo com os palestinos na Faixa de Gaza.

Seguiu-se um tumulto político, em que o líder do principal partido de oposição, Friedrich Merz, da União Democrata Cristã, acusou o governo do chanceler Olaf Scholz, do SPD, Partido Social Democrata, de negligência, e propôs uma ação conjunta para solucionar o problema.

Surpreendentemente o chanceler aceitou a proposta, o que levantou receios de que sua coalizão de governo, formada também pelo Partido Verde e o liberal FDP, rachasse. Isto não aconteceu, pois os líderes deste partido apoiaram a decisão de Olaf Scholz.

Há na Alemanha mais de 50 mil ordens de deportação contra refugiados que tiveram negados seus pedidos de asilo. Entretanto destas, até o momento, somente pouco mais de 20 mil foram efetivadas. A esmagadora maioria delas atinge originários de países africanos ou do Oriente Médio, muitos dos quais entraram na União Europeia através de outros países, dirigindo-se depois para a Alemanha. Olaf Scholz comprometeu-se a restringir essa possibilidade de acesso, além de agilizar as deportações já aprovadas e o julgamento dos casos pendentes.

O debate e as medidas restritivas ocorrem num momento em que aconteceram eleições regionais em estados do antigo Leste alemão, a Turíngia e a Saxônia, e o governo federal se vê acossado pelo crescimento das votações da oposição tradicional – a União Democrata Cristã – e da extrema direita, no partido Alternative für Deutschland, Alternativa para a Alemanha. Este, radicalmente voltado contra imigrantes e refugiados, vem ditando a pauta sobre esta questão na Alemanha, assim como acontece em outros países do continente.

Para complicar o cenário, a economia alemã vem se retraindo nos últimos tempos, num processo de desindustrialização, apesar dos esforços por parte do governo de revitalizar a indústria bélica alemã.

Neste quadro, à beira do abismo de uma recessão prolongada, a busca de bodes expiatórios prospera, e os candidatos mais cotados para esta função são os emigrados provenientes do chamado Terceiro Mundo, em particular os muçulmanos, sobre os quais sempre paira a suspeita, no mais das vezes indevida, de adesão a grupos terroristas.

Organizações de defesa dos direitos humanos, como a Caritas, vêm manifestando preocupação de que esta circunstância possa desandar num quadro de discriminação generalizada.

Estes últimos desenvolvimentos na Alemanha se dão num contexto continental de crescimento das discriminações contra estrangeiros não europeus, como aconteceu recentemente no Reino Unido, onde um ataque fatal contra crianças, também a facadas, deflagrou uma série de vandalismos contra mesquitas e centros de acolhimento de imigrantes, insuflados por mensagens mentirosas, de extrema direita, sobre a identidade do assaltante, divulgadas na internet.

Durante a década e meia do governo da chanceler Angela Merkel, da União Democrata Cristã, a Alemanha destacou-se por uma política generosa de acolhimento de imigrantes e refugiados de todas as partes do mundo. Agora está abertura vem se fechando gradativamente, em parte por pressões de seu próprio partido, que, em disputa com o Alternative für Deutschland, arrisca voltar-se, também como a coalizão governamental, para políticas que revigoram o fantasma da xenofobia e da discriminação.

Da Rádio França Internacional especialmente para a Agência Rádio Web, Flávio Aguiar, direto de Berlim.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo)

Apostas estratégicas

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A sociedade vem passando por grandes transformações nas últimas décadas, novas oportunidades e novos desafios surgem diariamente, levando as nações, as empresas e os seres humanos à tomada de decisões estratégicas, sob pena de perder espaço na economia internacional, perderem competitividade e serem ultrapassados pelos concorrentes diretos e indiretos.

Num ambiente de constantes transformações, todos os agentes econômicos e produtivos são impulsionados a escolhas e apostas cotidianas, levando-os a tomada de decisões urgentes e imprescindíveis, traçando horizontes, desenvolver conhecimentos, compreendendo as movimentações corporativas, aprendendo com os novos modelos de negócios e fazendo apostas estratégicas.

Os indivíduos apresentam desafios generalizados, tanto profissionais como pessoais e emocionais, muitas profissões que sempre atraíram muitas pessoas estão perdendo relevância, gerando imensas massas de profissionais desempregados ou na informalidade, criando uma desesperança, aumentando o medo e os ressentimentos que podem culminar em depressão e desequilíbrios emocionais. Neste cenário, percebemos a importância de se capacitar constantemente, uma constante atualização profissional, novas experiências intelectuais e culturais contribuem muito para a formação do profissional. Anteriormente os trabalhadores competiam localmente, em muitos casos até nacionalmente, agora a competição é global, encontramos pessoas nas mais variadas regiões do mundo, com suas especificidades, seus comportamentos, suas identidades, seus valores e suas variadas culturas.

As organizações precisam construir novas estratégias organizacionais como forma de qualificar seus sistemas produtivos, capacitar fortemente seus trabalhadores, criando estímulos constantes, além de uma grande capacidade de motivação e de liderança, além de satisfazer os anseios variados de seus consumidores, que mudam constantemente seus desejos, suas vontades e suas necessidades, desta forma, as empresas precisam construir uma cultura de constante movimentação, criatividade, agilidade e flexibilidade.

As nações precisam se atentar para os grandes desafios contemporâneos, num momento de grandes transformações geopolíticas e comerciais as oportunidades crescem, exigindo posicionamentos estratégicos, fortes investimentos em capital humano, capacitando seus cidadãos para compreenderem as oportunidades crescentes da sociedade globalizada, centradas no desenvolvimento tecnológico e pela maior competição, exigindo transferências de tecnologias dos parceiros comerciais estratégicos, além de forte solidariedade nos momentos de instabilidades e de incertezas da economia mundial.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes desafios e oportunidades, além de inúmeras possibilidades, com variadas escolhas, levando os atores econômicos e produtivos a aumentarem as suas apostas cotidianas, gerando ganhos elevados, altos retornos ou, muitas vezes, inúmeras frustrações, além de prejuízos que podem trazer graves constrangimentos.

Neste momento de constantes transformações da sociedade internacional, marcada pelo incremento da competição e pelo desenvolvimento de novas tecnologias, percebemos que todos os atores produtivos precisam adotar estratégias arriscadas, que podem influenciar e vislumbrar novos horizontes, muitas organizações que lideraram seus mercados e foram referências em suas épocas fizeram escolhas equivocadas, apostando em caminhos errados, perdendo espaços e foram ultrapassados pelos concorrentes, lembremos de empresas como Xerox, Yahoo, Nokia, Kodak, dentre outras.

Vivemos momentos de grandes transformações, mas o que caracteriza este momento da comunidade internacional é a rapidez destas transformações, que exigem mudanças cotidianas, rapidez de raciocínio e agilidades constantes, levando os indivíduos e as organizações a uma sensação de constante exaustão, estresse, ansiedade e desequilíbrios emocionais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário

Em busca de maior Autonomia Tecnológica, por Fernando Nogueira da Costa

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A Terra é Redonda – 02/09/2024

Alcançar autonomia tecnológica no Brasil requer uma abordagem multidisciplinar e integrada, envolvendo educação, infraestrutura, políticas públicas, incentivos financeiros e colaboração internacional

A economia brasileira, apesar de ser uma das maiores do mundo (8ª.) e possuir avanços superiores em setores como agricultura, mineração, extração de petróleo e aviação, ainda apresenta lacunas tecnológicas em várias indústrias estratégicas. Nestas áreas, o Brasil depende de multinacionais para atrair investimentos, transferir tecnologia, ou precisa importar produtos e tecnologias avançadas para suprir as demandas do mercado interno.

Por exemplo, em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), embora o país tenha uma indústria de software crescente e um setor de startups em expansão, ainda depende de multinacionais para o fornecimento de hardware, semicondutores, e tecnologias avançadas de comunicação, como equipamentos para redes 5G. Grande parte dos equipamentos de telecomunicações, componentes eletrônicos e sistemas de computação avançada são importados, com destaque para países como Estados Unidos, China, e Taiwan, dominantes do mercado global de semicondutores.

O Brasil tem uma indústria farmacêutica especializada na produção de medicamentos genéricos, mas ainda dependente de multinacionais para o desenvolvimento de medicamentos inovadores, vacinas, e biotecnologias avançadas. O país importa grande parte dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs) e tecnologias para a produção de biomedicamentos. A pandemia de COVID-19 ressaltou essa dependência, quando o Brasil teve de importar vacinas e materiais para sua produção.

A produção de semicondutores é crucial para várias indústrias, incluindo eletrônicos, automotiva e telecomunicações. O Brasil não possui uma indústria relevante de semicondutores e depende de importações para suprir a demanda.

Semicondutores são importados principalmente de países asiáticos dominantes da produção mundial. O Brasil precisa atrair multinacionais ou desenvolver capacidades locais para reduzir essa dependência.

Quanto às Tecnologias de Energia Renovável Avançada, embora o Brasil seja um líder mundial em energia hidrelétrica e tenha uma base crescente de energia eólica e solar, a produção de equipamentos de alta tecnologia para esses setores, como turbinas eólicas e painéis solares de última geração, depende de empresas multinacionais. Equipamentos e tecnologias avançadas, como inversores solares, turbinas de alta eficiência, e tecnologias de armazenamento de energia, são importados de países como Alemanha, China e Estados Unidos.

A Embraer é um destaque na aviação regional, mas o Brasil depende de multinacionais para tecnologias de ponta na Indústria de Defesa Aeroespacial, como sistemas de radar, mísseis, satélites, e aeronaves de combate avançadas. Para desenvolver capacidades mais avançadas, o Brasil precisa importar ou firmar parcerias com empresas de países como Estados Unidos, Israel e Rússia. Têm tecnologias mais avançadas nesses setores.

A indústria automotiva brasileira é de grande porte, mas a produção de veículos elétricos, híbridos e autônomos, requerem tecnologias avançadas. Aqui está em estágio inicial. A maioria das tecnologias relacionadas a baterias de lítio, motores elétricos, e sistemas de inteligência artificial para veículos autônomos são importadas de países como China, Alemanha e Japão.

A nanotecnologia é uma área emergente com aplicações em setores como medicina, eletrônicos e materiais avançados. No entanto, o Brasil não desenvolveu plenamente essa indústria e depende de importações e parcerias para avançar. Equipamentos, materiais e know-how em nanotecnologia são importados, com destaque para parcerias com empresas e instituições de pesquisa de países como Estados Unidos, Japão e Alemanha.

O Brasil tem feito avanços em inteligência artificial, principalmente em setores de serviços e fintechs, mas depende de tecnologias estrangeiras para aplicações mais avançadas em robótica, automação industrial, e inteligência artificial aplicada. A maioria dos sistemas avançados de robótica e plataformas de IA utilizadas em indústrias brasileiras são desenvolvidas por empresas estrangeiras, em geral, dos mesmos países antes citados.

A economia brasileira, apesar de seus avanços em várias indústrias, depende de tecnologias estrangeiras e da presença de multinacionais em setores estratégicos. A importação de produtos e a atração de empresas globais são essenciais para preencher essas lacunas, enquanto o país trabalha para desenvolver suas capacidades tecnológicas e reduzir a dependência externa a longo prazo. Iniciativas de políticas públicas voltadas para inovação, pesquisa e desenvolvimento, assim como parcerias internacionais, serão cruciais para fortalecer a base tecnológica brasileira nessas áreas.

Para o Brasil alcançar certa autonomia tecnológica, é necessário implementar uma série de ações coordenadas e políticas estratégicas desde a formação de capital humano até o desenvolvimento de infraestrutura e fomento à inovação.

A base para qualquer desenvolvimento tecnológico é educação e capacitação de capital humano em quantidade e qualidade. É crucial investir na qualidade da Educação Básica, especialmente em áreas como Matemática e Ciências Exatas, além da alfabetização digital. A Educação Superior também deve ser fortalecida, com ênfase em Engenharia, Ciências da Computação, Biotecnologia, e outras áreas técnicas críticas.

É essencial expandir a formação de pesquisadores, engenheiros e técnicos especializados. Programas de pós-graduação devem ser ampliados e alinhados com as demandas tecnológicas estratégicas do país.

Com o avanço rápido da tecnologia, é necessário promover programas de educação continuada e requalificação profissional para garantir a força de trabalho se manter atualizada e capaz de lidar com novas tecnologias.

O governo deve oferecer incentivos fiscais e subsídios para empresas investirem em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), criando um ambiente favorável para a inovação. Políticas públicas (como a Lei do Bem: Lei 11.196/2005) oferecem benefícios fiscais para empresas investidoras em pesquisa.

Cabe promover colaborações entre universidades, centros de pesquisa e o setor privado para desenvolver tecnologias e soluções inovadoras. As Parcerias Público-Privadas (PPPs) ajudam a transformar descobertas científicas em produtos e serviços comercializáveis. Necessita desenvolver e expandir parques tecnológicos, incubadoras e aceleradoras de startups para apoiar a criação e crescimento de empresas de base tecnológica.

Um objetivo chave é ampliar e modernizar a infraestrutura de telecomunicações, garantindo acesso universal à internet de alta velocidade e expandindo as redes de fibra óptica, 5G e outras tecnologias de comunicação essenciais. Investir na criação e modernização de centros de pesquisa e laboratórios com infraestrutura avançada propicia apoiar pesquisas em áreas estratégicas, como biotecnologia, nanotecnologia, inteligência artificial, e energia renovável.

A Nova Indústria Brasil, isto é, a política de reindustrialização), é norteada por metas aspiracionais relacionadas a cada uma de suas seis missões.

1 – A garantia da segurança alimentar e nutricional dos brasileiros passa pelo fortalecimento das cadeias agroindustriais (missão 1).

2 – Na área da saúde (missão 2), a meta é ampliar a participação da produção no país de 42% para 70% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos.

3 – Para melhoria do bem-estar das pessoas nas cidades (missão 3), investirá em infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis.

4 – Para tornar a indústria mais moderna e disruptiva, há a meta de transformar digitalmente (missão 4) 90% do total das empresas industriais brasileiras (hoje são 23,5%) digitalizadas e triplicar a participação da produção nacional nos segmentos de novas tecnologias.

5 – Entre as metas estabelecidas com foco na bieconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas (missão 5) está a de ampliar em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes — atualmente os combustíveis verdes representam 21,4% dessa matriz.

6 – Por fim, na área da defesa (missão 6), pretende-se alcançar autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas de maneira a fortalecer a soberania nacional.

Em síntese, alcançar autonomia tecnológica no Brasil requer uma abordagem multidisciplinar e integrada, envolvendo educação, infraestrutura, políticas públicas, incentivos financeiros e colaboração internacional. A construção de um ambiente favorável à inovação, combinado com o desenvolvimento de capacidades internas em áreas estratégicas, permitirá ao país não apenas reduzir sua dependência de tecnologias estrangeiras, mas também posicionar-se como um líder global em setores chave.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

Informação não é conhecimento, e IA é a tecnologia mais poderosa da história, diz Yuval Harari

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Em entrevista à Folha sobre seu novo livro que aborda o assunto, autor de ‘Sapiens’ defende que ferramenta seja regulada como carros e remédios
Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo – 03/09/2024

São Paulo – O israelense Yuval Noan Harari, um dos autores mais populares da atualidade, alerta para um futuro aterrador em seu novo livro, “Nexus: Uma Breve História das Redes de Informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial”, cujo lançamento mundial ocorre nesta terça-feira (3).

Segundo ele, a humanidade está pisando no acelerador do desenvolvimento da inteligência artificial, mas não sabe como freá-la.

“A IA é a tecnologia mais poderosa já criada pela humanidade, porque é a primeira que pode tomar decisões: uma bomba atômica não pode decidir quem atacar, nem pode inventar novas bombas ou novas estratégias militares. Uma IA, ao contrário, pode decidir sozinha atacar um alvo específico e pode inventar novas bombas”, diz à Folha o historiador, que vendeu 45 milhões de exemplares com “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 Lições para o Século 21″.

Para Harari, o primeiro passo é concordar que precisamos regular a IA da mesma forma que regulamos produtos, medicamentos e carros”. Leia a seguir a entrevista, feita por e-mail.

Por que o sr. decidiu escrever um livro sobre tecnologia e inteligência artificial?
Este não é um livro apenas sobre IA. Ele explora a história das redes de informação desde a Idade da Pedra. A ideia é ter uma perspectiva histórica sobre a revolução da IA estudando o impacto das revoluções de informação anteriores.

Por exemplo, como a invenção do livro levou à Bíblia e ao cristianismo. Como a invenção da imprensa levou a uma onda de teorias da conspiração, caça às bruxas e guerras religiosas na Europa do século 16. E como os soviéticos usaram a tecnologia da informação moderna para criar sua polícia secreta.

O objetivo é entender a interação entre tecnologia e seres humanos. Especialistas em IA acham difícil entender como uma nova tecnologia influenciará a religião, a cultura e a política. Especialistas em computação tendem a ter visões ingênuas sobre a história.

Quando a internet surgiu, os gigantes da tecnologia prometeram que ela espalharia a verdade e a liberdade e levaria à queda de ditadores e ao fortalecimento da democracia. Isso não aconteceu.
Hoje temos a tecnologia de informação mais sofisticada da história, mas as pessoas estão perdendo a capacidade de conversar umas com as outras. Democracias em todo o mundo estão sendo minadas. Um conhecimento da história pode nos ajudar a entender o porquê.

Hoje, há uma quantidade recorde de informações em circulação, e a tecnologia nunca foi tão avançada. Mesmo assim, a humanidade nunca esteve tão próxima do autoextermínio por causa do aquecimento global e das guerras. Os luditas [trabalhadores têxteis que se opunham à introdução de novas máquinas durante a Revolução Industrial] estavam corretos?

Informação não é conhecimento. A maior parte da informação é lixo. Conhecimento é um tipo raro e caro de informação.

Por exemplo, é fácil inventar uma fake news atraente —você simplesmente escreve o que quiser.

Mas é difícil escrever uma reportagem verdadeira, porque pesquisar e apurar é caro. E a notícia verdadeira que você produz provavelmente atrairá menos atenção do que a fake news, porque a verdade tende a ser complicada, e as pessoas não gostam de histórias complicadas.

Podemos comparar informação com comida. Há cem anos, a comida era escassa. Então os humanos comiam qualquer coisa que encontrassem, gostavam especialmente de comida com muita gordura e açúcar. Hoje, a comida é abundante, e somos inundados por “comida lixo”, artificialmente rica em gordura e açúcar. Se as pessoas comem muito lixo, ficam doentes.

O mesmo vale para a informação, que é o alimento da mente. Estamos inundados por muita informação lixo. A informação lixo é artificialmente cheia de ganância, ódio e medo —coisas que atraem nossa atenção. Toda essa informação lixo deixa nossas mentes e sociedades doentes. Precisamos de uma dieta de informação.

O sr. chama de conceito ingênuo de informação a ideia de que quanto mais informação, melhor, e que as melhores ideias e a verdade prevalecerão naturalmente. Mas também rejeita a ideia de o governo atuar como um Ministério da Verdade. Qual é o meio-termo?

Devemos partir do pressuposto de que todos são falíveis. As corporações são falíveis, assim como o governo. Portanto, nunca devemos dar autoridade absoluta a uma única entidade.

O poder de regular a tecnologia da informação deve ser distribuído entre o governo, as corporações, os tribunais, a mídia, a academia e as ONGs. Isso é complicado, mas a complexidade é uma característica da democracia. A ditadura é simples —uma única pessoa manda em tudo e nunca admite nenhum erro. A democracia é complicada —muitas pessoas conversando e corrigindo os erros uns dos outros.

O primeiro passo crucial, no entanto, é concordar que precisamos regular a tecnologia da informação da mesma forma que regulamos produtos, medicamentos e carros.

Quando uma empresa automobilística decide produzir um novo modelo de carro, ela investe uma parte significativa de seu orçamento em segurança. Se uma empresa automobilística negligência a segurança, os clientes podem processá-la em busca de indenizações, e o governo pode impedi-la de vender seus carros.

Existem muitas leis que limitam aonde os carros podem ir, quem pode dirigir e a velocidade que podem atingir. Exatamente os mesmos padrões devem ser aplicados aos algoritmos.

Em um ensaio de junho de 2023, o bilionário Marc Andreessen disse que a inteligência artificial não destruirá o mundo; na verdade, pode salvá-lo. Faz sentido?

Andreessen está certo ao dizer que a IA pode melhorar muito nossas vidas. Ela pode criar o melhor sistema de saúde da história e ajudar a prevenir o colapso ecológico. Mas não devemos ignorar suas ameaças.

É a tecnologia mais poderosa já criada pela humanidade porque é a primeira que pode tomar decisões. Uma bomba atômica não pode decidir quem atacar nem pode inventar novas bombas ou estratégias militares. Uma IA, ao contrário, pode decidir sozinha atacar um alvo específico e pode inventar novas bombas, estratégias e até novas IAs.

A coisa mais importante a saber sobre a IA é que ela não é uma ferramenta em nossas mãos —é um agente autônomo, fazendo coisas que não esperávamos. O que acontecerá conosco quando milhões de agentes não humanos começarem a tomar decisões sobre nós e a criar coisas novas —de novos medicamentos a novas armas, de novos textos religiosos a novos tipos de dinheiro?

No livro, o sr. menciona várias vezes o ex-presidente Jair Bolsonaro como exemplo de líder populista que usou a informação como arma. Por que lhe pareceu importante incluí-lo?

Muitos livros sobre a revolução da IA focam demais os Estados Unidos e ignoram o resto do mundo.

Mas alguns dos piores efeitos da IA podem ser sentidos em lugares como o Brasil antes dos EUA. Vimos isso anteriormente na história, por exemplo, com a Revolução Industrial.

O senhor fala sobre o perigo de a IA, sem mecanismos de autocorreção, ser usada por líderes autoritários. Qual seria o cenário no Brasil, com um líder autoritário governando com a ajuda da IA?

Um grande perigo é a criação de regimes de vigilância total.

Ao longo da história, ditadores quiseram monitorar toda a população 24 horas por dia para garantir que todos estavam obedecendo às suas ordens e ninguém estava resistindo ou mantendo opiniões dissidentes. No entanto, até agora os ditadores não conseguiam fazer isso.

Primeiro, faltavam espiões suficientes. Por exemplo, a ditadura militar no Brasil nos anos 1970 não conseguia seguir 100 milhões de cidadãos brasileiros 24 horas por dia. Isso teria exigido 200 milhões de agentes da polícia secreta (porque até mesmo os agentes do DOI-Codi precisavam dormir às vezes).

Em segundo lugar, a ditadura não tinha analistas suficientes. Se todos os dias os espiões coletassem informações sobre 100 milhões de brasileiros, de onde o regime poderia obter analistas suficientes para processar todas essas informações?

Com a IA, um futuro ditador não precisaria de milhões de agentes humanos para espionar todo mundo. Smartphones, computadores, câmeras, microfones e drones poderiam fazer isso. Nem precisaria de milhões de analistas humanos. A IA poderia processar a enorme quantidade de informações e punir qualquer dissidência.

Isso já está acontecendo em algumas partes do mundo. No Irã, por exemplo, existem leis rígidas que obrigam as mulheres a usarem o hijab sempre que saem de casa. Anteriormente, era difícil fazer cumprir essas leis. Mas o regime iraniano agora usa IA. Mesmo que uma mulher dirija seu próprio carro sem hijab, as câmeras de reconhecimento facial identificam esse crime.

Quais são os mecanismos de autocorreção essenciais para garantir que a IA seja segura?
Precisamos criar instituições que possam identificar rapidamente problemas e reagir a eles.

Serão novas instituições regulatórias que atrairão alguns dos maiores talentos e serão financiadas por um imposto sobre os lucros dos gigantes de tecnologia.

Criar apenas uma instituição regulatória será perigoso, porque ela terá poder demais. Precisamos aderir ao princípio democrático da divisão de poder.

Há entusiastas da IA que nos dizem que não precisamos dessas instituições no momento.

Regulamentações retardariam o desenvolvimento e talvez dessem vantagem a competidores em outros países. Eles dizem que, no futuro, se descobrirmos que a IA é perigosa, podemos focar nossos esforços na segurança. Mas isso é insano.

Quando você aprende a dirigir um carro, a primeira coisa que ensinam é como brecar. Só depois de saber como usar os freios é que ensinam como apertar o acelerador. Isso também se aplica à IA.

Quanto ao argumento de que investir em segurança daria vantagem a competidores —isso é um absurdo. Se seus concorrentes desenvolverem um carro sem freios, isso significa que você também deve desenvolver um carro tão perigoso?

RAIO-X | Yuval Noah Harari, 48
Nascido em Israel, é professor na Universidade Hebraica em Jerusalém e pesquisador na Universidade de Cambridge. Formado em história militar e medieval na Universidade Hebraica, tem doutorado pela Universidade de Oxford. Autor dos best-sellers mundiais “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, “Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã” e “21 Lições para o Século 21”, traduzidos para 65 idiomas.

Extrema direita fabrica mito do passado glorioso para avançar agenda reacionária, por Ana Luiza Albuquerque

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Estratégia usada pelo nazismo e fascismo italiano é reeditada no século 21 por movimentos populistas e pela ultradireita

Ana Luiza Albuquerque, Repórter de Política, é mestre em Jornalismo Político pela universidade Columbia (EUA) e autora do podcast Autoritários.

Folha de São Paulo, 01/09/2024

[RESUMO] A fabricação do mito de um passado glorioso, estratégia utilizada nas experiências fascistas do século 20, é reeditada no século 21 pela extrema direita e pela direita populista, com o mesmo intuito de implementar valores reacionários e fustigar o modelo de Estado de Direito liberal. No Brasil, percebe-se isso no movimento bolsonarista e na construção de um passado compartilhado judaico-cristão.

“Ele é o leão da tribo de Judá”, cantava a senhora com a mão direita ao alto e a mão esquerda no microfone. O animal aparecia no manto que ela carregava nos ombros, junto às bandeiras de Israel e do Brasil. “Oh, esperança de Israel”, a mulher repetia, entoando os versos de uma canção carimbada nos cultos evangélicos.

Naquele domingo, a reunião não era religiosa. O canto da senhora enchia a esvaziada casa de eventos que abrigou a convenção municipal do PRTB em São Paulo, confirmando a pré-candidatura do influenciador, empresário e ex-coach Pablo Marçal à prefeitura da capital.

Sem o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Marçal ativou símbolos caros para a direita bolsonarista: Deus, família e os perigos do comunismo, das drogas e da “ideologia de gênero”. Israel foi mais um deles.

Cinco meses antes, as bandeiras do país judaico haviam tomado as ruas da avenida Paulista, no centro da cidade, em manifestação em defesa de Bolsonaro. Do alto do carro de som, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) pregou que política e religião devem, sim, se misturar, e anunciou que o povo brasileiro é cristão.

Terminou seu discurso com um recado ao Senhor: “Que tua verdadeira shalom esteja dentro dos muros de Israel. Nós abençoamos o Brasil. Nós abençoamos Israel. Em nome de Jesus, amém”.

Lá embaixo, na avenida, três senhoras envoltas pela bandeira do país judaico gravaram uma entrevista que viralizaria nas redes. Questionadas por qual motivo usavam o adereço, uma delas respondeu: “Porque somos cristãs, assim como Israel”.

A defesa fervorosa de Israel é reflexo da construção de uma gramática judaico-cristã, com o estabelecimento de uma origem em comum —um passado de glória compartilhado. É o que afirma Michel Gherman, professor de sociologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor do livro “O Não Judeu Judeu: A Tentativa de Colonização do Judaísmo pelo Bolsonarismo”.

A história mostra que movimentos fascistas se empenharam na construção do mito de um passado vitorioso para fortalecer a identidade nacional, alavancar valores reacionários e promover mudanças alinhadas com esses valores. No século 21, a extrema direita e a direita populista seguem a mesma estratégia –um de seus instrumentos é a adoração a Israel.

Segundo o professor, a construção deste mito ajuda a ativar alguns símbolos importantes para movimentos reacionários. Primeiro, a imaginada civilização judaico-cristã se afasta dos vínculos com a África. “É o Oriente Médio que se vê como europeu”, diz.

Além disso, as referências aos reinos de Salomão e Davi exploram a violência como um elemento positivo, de resistência e reação ao inimigo. “Salomão e Davi como símbolos fundamentais da conquista e da expansão”, afirma Gherman.

Ele também menciona o vínculo deste mito com o empreendedorismo, considerando que o reino é independente do Estado. “Tem uma leitura ultraliberal, no sentido da ausência do estado. Tem a presença do rei, que é o representante de Deus.”

Mas se engana quem pensa que esse movimento de adoração a Israel é religioso, afirma Gherman. “Você pertence a uma comunidade política que já foi de vencedores. A religião é um detalhe. Não é um discurso religioso. É um discurso de pertencimento a um lugar que tem que ser resgatado”, diz.

“A questão do reino de Salomão não é religiosa. É militar, política, expansionista. É um erro a gente achar que está falando de religião. A gente está falando de política.”

Em 1922, no mesmo ano em que se tornou primeiro-ministro da Itália, Benito Mussolini discursava no congresso fascista em Nápoles: “Nós criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. Não precisa ser uma realidade. E a esse mito, a essa grandeza, nós subordinamos tudo”.

Dois anos depois, na Alemanha, o principal ideólogo do nacional socialismo, Alfred Rosenberg, escrevia: “A compreensão e o respeito pelo nosso próprio passado mitológico e pela nossa própria história constituirão a primeira condição para ancorar mais firmemente a próxima geração no solo da pátria original da Europa”.

As duas falas são lembradas no primeiro capítulo do livro “Como Funciona o Fascismo”, de Jason Stanley, professor de filosofia na Universidade Yale (EUA). Nele, o autor argumenta que o fascismo tem um objetivo claro ao invocar o mito de um passado puro, que foi tragicamente destruído pelos progressistas, pelo liberalismo e pelo globalismo. É na criação desse sentimento de nostalgia que os fascistas vão tentar realizar seus ideais no tempo em que vivem.

“A cultura fascista está centrada em torno de alguns mitos, e o maior deles é o de um passado patriarcal, no qual a nação era ótima, e que agora está sendo destruído pelo liberalismo. Está sendo destruído pelo feminismo, pelas pessoas LGBTQ. [Grupos] que desafiam as bases dessa nação e dessa civilização”, diz Stanley à Folha.

O professor defende que o nazismo estava fundamentado no que hoje se chama de teoria da Grande Substituição – a ideia conspiratória de que existe um plano das elites globais para substituir cidadãos brancos por imigrantes não brancos.

“[Para os nazistas] A Alemanha era ótima, mas então foi humilhada pela Primeira Guerra Mundial, e eles passaram a ser humilhados pela imigração. [A ideia nazista era que] Os judeus fizeram com que a Alemanha perdesse a Primeira Guerra. Que eles eram traidores que tinham esfaqueado a Alemanha pelas costas. E que passaram a abrir as fronteiras para trazer imigrantes e derrubar a raça branca, a raça ariana. [Para os nazistas] Então você precisava que Hitler parasse a destruição da nação”, afirma Stanley.

Se no século 20 o fascismo acusava os judeus de terem destruído o passado de glória, nos tempos atuais ganha corpo entre a extrema direita um filossemitismo deturpado, que submete os judeus a um determinado passado mítico.

“O que acontecia no fascismo histórico é que tinha um grupo muito importante na Europa que não tinha passado, ou que o passado era não europeu. Um passado desconhecido, de traição, de não reconhecimento do verdadeiro Deus”, diz Gherman.

Hoje, o professor continua, o passado ideal para a extrema direita não é mais, como no século 20, referente aos bárbaros arianos ou ao Império Romano. “A novidade é um elemento fundamentador desse passado: o reino de Salomão, o reino de Judá.”

Agora, ele argumenta, cria-se a ideia de um passado compartilhado, uma origem comum entre cristãos e judeus em um reino glorioso, de grandes conquistas, anterior a Cristo, no território israelense.

“Em vez de você perseguir um judeu sem passado, o que você faz agora é impor aos judeus um passado: o passado do reino. Os judeus existem para dar à luz a esse passado do reino de Salomão”, diz Gherman. “Esse modelo de passado vai ser compartilhado por todos da extrema direita. É isso que eu chamo de judeu imaginário.”

Apesar da construção desse passado comum com os cristãos, nem todo judeu agrada ao grupo, afirma o professor. Apenas aquele visto como descendente do reino.

“Você nunca vai ver, por exemplo, nas lógicas desse judeu imaginário, o judeu moderno. Nunca vai ver um judeu secular, um judeu progressista”, diz. “Não é que eles deixaram de ser antissemitas.

Eles refundam o antissemitismo, que passa a ser vinculado a um tipo de judeu e não a todos os judeus.”

Gherman faz uma analogia para explicar por que é efetiva a construção do passado mítico pela extrema direita. “Eu sempre brinco com a ideia de que todo mundo que vai fazer visita a vidas passadas acaba descobrindo que era rainha, rei, descendente de um grande assessor do rei.

Ninguém é simplesmente um operário, um camponês”, diz. “É mais ou menos isso que a extrema direita vende, que você é descendente de uma raça gloriosa.”

O professor lembra que a moeda do fascismo para reunir seguidores era vender a ideia do pertencimento a um grupo que foi soberano no passado. “Se eu pudesse resumir o que a extrema direita pensa em relação ao presente, passado e futuro, é essa ideia de que no passado você tinha alguma coisa muito importante. E que o progresso e a expansão dos direitos destituíram você dessa importância.”

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, é um dos líderes da extrema direita mundial que entenderam e se aproveitam da utilidade do mito do passado glorioso.

Ele frequentemente se refere à bacia dos Cárpatos como uma terra de origem comum de todos os húngaros, dissolvida com o Tratado de Trianon, firmado após a derrota na Primeira Guerra. Mais de 100 anos depois, Orbán insufla na população o ressentimento com o tratado, que, segundo o governo, fez com que a Hungria perdesse dois terços de seu território e 3 milhões de habitantes.

Assim, o país sai como vítima de grandes potências do Ocidente. No passado, dos vencedores da guerra; hoje, da União Europeia, que alerta para o desmonte da democracia húngara e, por isso, é desafiada por Orbán.

As referências à bacia original do povo húngaro e às ameaças enfrentadas ao longo dos séculos sobre o território servem como sustentação para o nacionalismo cristão, ideologia que norteia as práticas do governo. Desde que assumiu em 2010 com uma maioria de dois terços do Parlamento, Orbán aprovou uma série de leis antiimigração e construiu um muro na fronteira com a Sérvia em 2015.

Em discurso em 2021, por exemplo, o primeiro-ministro afirmou que a missão dos húngaros por séculos foi defender a bacia dos Cárpatos contra a ocupação do Império Otomano, a superpotência muçulmana que durou mais de 500 anos.

Na ocasião, Orbán defendeu que a proteção do território e do cristianismo diante da ascensão do mundo muçulmano na Idade Média, da ocupação nazista, da ocupação soviética e da natureza anticristã dos anos de comunismo na Hungria se transformou em uma grande missão de importância nacional e europeia.

László Kövér, um deputado húngaro aliado do primeiro-ministro, foi mais direto ao relacionar o passado mítico com a defesa atual da ideologia nacionalista cristã. Segundo a Radio Free Europe, ao comparar o êxodo populacional pós-Trianon com a crise migratória contemporânea na Europa, Kover afirmou que houve um intercâmbio populacional planejado disfarçado de migração ilegal —acenando para a teoria conspiratória da Grande Substituição.

“Em 1920, nós, húngaros, fomos atacados por potências europeias e grupos de interesse fora da bacia dos Cárpatos. Mas, hoje em dia, potências estrangeiras e grupos de interesse fora do continente estão atacando e destruindo a Europa…. O que é isso, se não a Europa marchando em direção ao seu próprio Trianon?”, disse ele.

Assim como fez a gestão Bolsonaro, com a qual firmou estreitos laços, o governo Orbán também adota uma visão sobre o gênero ligada a um passado patriarcal, prática central nas experiências fascistas.

No livro “Como Funciona o Fascismo”, o professor Jason Stanley argumenta que a defesa do passado patriarcal também representa a defesa do conceito de hierarquia, necessário para a manutenção da própria forma de governo autoritária.

“Em uma sociedade fascista, o líder da nação é análogo ao pai na família patriarcal tradicional.

O líder é o pai de sua nação, e sua força e seu poder são a fonte de sua autoridade legal, assim como a força e o poder do pai de família no patriarcado devem ser a fonte de sua autoridade moral máxima sobre seus filhos e esposa”, escreve o professor. “Ao representar o passado da nação como um passado com uma estrutura familiar patriarcal, a política fascista conecta a nostalgia a uma estrutura autoritária hierárquica organizadora central.”

Na Constituição aprovada a toque de caixa depois que Orbán chegou ao poder, o Parlamento governista determinou que o casamento é a união de um homem com uma mulher, e que a família é a base da sobrevivência de uma nação.

Em setembro de 2022, o governo Orbán baixou um decreto obrigando mulheres grávidas que buscam aborto a primeiro obter relatório de um médico dizendo que elas foram confrontadas de forma clara com sinais de vida do feto —ou seja, que ouviram o batimento cardíaco.

O governo também aprovou políticas públicas para encorajar as famílias heterossexuais a terem filhos.

Se no nazismo mulheres eram estimuladas a procriar para aumentar o que se entendia como a população ariana, na Hungria de Orbán esse incentivo se dá em meio à crise demográfica do país e receios de que os imigrantes possam substituir os brancos europeus como maioria da população.

“[A ideia da extrema direita é que] imigrantes estão vindo e tornando o país não branco, no caso dos Estados Unidos, e não ariano, no caso da Alemanha [nazista]. Então as mulheres precisam ter mais bebês para restaurar a nação”, afirma Stanley.

Os acenos ao passado glorioso funcionam especialmente em um momento global de crise democrática, com os percalços das democracias liberais e capitalistas que, encaradas como o modelo político ideal e definitivo após a queda do Muro de Berlim, hoje não conseguem responder aos anseios de boa parte dos cidadãos.

“Grande parte da população em países democráticos está pessimista em relação ao futuro”, afirma à Folha Benjamin Teitelbaum, autor de “Guerra Pela Eternidade: O Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista”. “Cada vez mais eles rejeitam a promessa da democracia liberal de que a vida vai melhorar, de que a passagem do tempo equivale a uma vida melhor. Muita gente não acredita mais nisso. Então é poderoso, politicamente, usar esse sentimento.”

É desse sentimento que nasce o slogan do ex-presidente Donald Trump, o “Make America Great Again” (na tradução livre, algo como “Torne a América Grande Novamente”). “Essa frase pertence a uma visão reacionária do passado. É notável por quão pouco ela diz. A frase não diz o que é tão bom sobre a América. Não há conteúdo para o conceito de grandeza. O que importa é a filosofia do tempo que está embutida nessas quatro palavras”, diz o autor.

Conselheiro número 1 de Trump, Steve Bannon tem uma visão singular sobre o passado, na qual Teitelbaum mergulhou para escrever seu livro. Após mais de 20 horas de gravação com Bannon, ele afirma que o estrategista político, como também Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, é um seguidor do tradicionalismo.

Assim como os fascistas, os tradicionalistas condenam o presente. Há, porém, uma cisão importante entre os dois movimentos. Enquanto os primeiros acreditam que poderiam recuperar o passado e criar uma nova realidade ainda superior, os segundos avaliam que nada será melhor do que já foi.

“[Para os tradicionalistas] O caminho para retornar ao que era tão bom sobre o passado é por meio da destruição. Não é uma ideologia de criação, de futurismo. É mais sobre deixar a modernidade se esgotar, tentando derrubar todas as instituições da modernidade com a crença de que no seu lugar o passado dourado vai ressurgir”, afirma Teitelbaum.

Outro movimento de franja de exaltação do passado é o localismo —uma visão antiglobalista, antiliberal e nostálgica que defende que as pessoas deveriam voltar a viver em comunidades pequenas e unidas, centradas nas famílias. Entre seus defensores, estão o escritor conservador e católico Rod Dreher, que vive na Hungria e é um grande entusiasta de Orbán, e o professor, também católico, Patrick Deneen, autor do livro “Por que o Liberalismo Fracassou”.

Os dois já foram citados como influências intelectuais pelo senador J. D. Vance, escolhido para a vice de Trump, novamente em busca da Presidência.

A extrema direita e a direita populista sofreram reveses nos últimos anos, com derrotas importantes, como a de Trump em 2020 e a de Bolsonaro em 2022.

A vertente populista, porém, segue em cena —em junho, a ultradireita nacionalista teve avanços significativos no Parlamento Europeu e, no mês seguinte, assombrou a eleição na França, embora não tenha vencido. Em novembro, Trump tentará voltar à cadeira presidencial. Não só o presente ainda continuará em disputa: o passado também.

Por que tributar as bigs techs? por Adriana Fernandes

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Gigantes de tecnologia pagam tributo no Brasil, mas há um lado da capacidade econômica delas que não é tributado

Adriana Fernandes – Folha de São Paulo – 31/08/2024

O governo Lula tem pela frente um desafio enorme, mas absolutamente necessário, para conseguir que o Congresso Nacional aprove a taxação das big techs.

As gigantes de tecnologia pagam tributo no Brasil? Pagam. Mas há um lado da capacidade econômica dessas empresas que não é tributado.

Com a polarização política no Brasil em torno dos serviços prestados por algumas dessas big techs, o debate tributário tem sido deixado de lado. Não deveria.

A rota começou a mudar com a decisão do ministro Fernando Haddad (Fazenda) de vencer a primeira etapa dessa batalha ao decidir encaminhar ainda neste semestre um projeto para taxar as big techs, informação revelada por esta Folha e depois confirmada pelo secretário Dario Durigan, o número 2 do Ministério da Fazenda.

Durigan diz que há maturidade para fazer essa tributação e sinaliza que a elaboração do modelo de tributação está em fase avançada.

Muitos países já estão enfrentando os desafios de taxar essas companhias, que, segundo o fisco brasileiro, usam artifícios para fugir da tributação.

O secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, há alguns meses, declarou à Folha que essa não seria uma discussão “se o Brasil quer ou não fazer”, mas uma necessidade de essas empresas pagarem por aqui um mínimo em relação aos seus resultados. “Temos de entrar nessa”, disse.

A forma mais simples de fazer essa cobrança é taxando as receitas das vendas, não o seu lucro, principalmente nos casos em que algumas delas, como a rede X (antigo Twitter), não têm representação no Brasil.

A Cide é o tributo federal que deverá ser usado para fazer a cobrança. Além de vantagens operacionais, por ser mais simples, o governo não precisará dividir o valor arrecadado com estados e municípios, como ocorre quando há aumento do Imposto de Renda ou IPI.

Da mesma forma que o governo Lula se movimenta para encaminhar o projeto, as big techs também já estão no Congresso fazendo lobby para barrar a investida tributária.

Elas temem que o Brasil adote várias frentes de taxação e buscam evitar em conversas com o governo que isso ocorra. Em público, seguem dizendo que não há nada a ser tributado, além do que já pagam.

Se a taxação não for aprovada neste ano, o debate no Congresso vai continuar no ano que vem, porque entrou de vez na pauta econômica do Ministério da Fazenda.

Na reta final do ano, após as eleições municipais, o governo quer negociar as medidas de alta de tributo (CSLL e JPC), que foram enviadas nesta sexta-feira (30) para o Congresso com o projeto de Orçamento de 2025, além do imposto mínimo global, que garante a cobrança de uma alíquota efetiva de 15% sobre o lucro das multinacionais. A taxação das big techs e o envio da reforma da renda estão também nessa agenda.

Não parece um tempo crível para aprovar tantas medidas de aumento de tributos ao mesmo tempo.

Mas Haddad e sua equipe vão seguindo com a estratégia de avançar, recuar e insistir de novo com medidas de recomposição da base tributária do país.

O político Haddad, ex-prefeito e presidenciável, não gosta de ser citado como Taxadd pelos críticos. Mas o ministro da Fazenda parece dar de ombros para o apelido ao sinalizar que não vai abandonar a sua estratégia.

Castells: por que o Ocidente não deve bulir com a China

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Lá, a flexibilidade da empresa privada combina-se com forte coordenação do Estado e seus bancos; e a inovação tecnológica alimenta serviços públicos avançados. Lá, não há democracia liberal, mas ampla coesão da sociedade. Enfrentar este país seria trágico

Manuel Castells – OUTRAS PALAVRAS – 19/08/2024

Hangzhou continua balançando às margens de seu belo lago, que se tornou um destino preferido para luas de mel. Antigo centro do comércio de seda facilitado pelo majestoso rio que a atravessa, tem uma significativa história cultural e política, que continua se renovando. Mas a cidade que conheci em 1987 desapareceu. Em seu lugar surgiu uma metrópole de 12 milhões de pessoas, um nó global do setor de comércio pela internet. Ali está a Alibaba, a maior empresa de e-commerce do mundo em número de usuários, maior que a Amazon, com 220 mil trabalhadores e tecnologia de ponta, baseada na nuvem e desenvolvida por seus engenheiros.

Em torno dessa companhia proliferaram empresas auxiliares e de serviços. Juntas, formam um complexo industrial altamente competitivo, com modelo de negócio próprio, baseado em combinar plataformas de entrega a domicílio com a conexão entre fornecedores, seus clientes e empresas financeiras que investiram em todos os mercados.

O fundador da Alibaba, o lendário inovador Jack Ma, tentou criar um império financeiro mediante oferta de ações no mercado internacional sem permissão de Pequim. Foi aí que percebeu que o capitalismo chinês não é como os outros; então, aposentou-se e vive em Tóquio.

Mas onde parece haver ser restrições ao crescimento empresarial está, na verdade, um fator de solidez da economia chinesa. Pois, após várias crises bancárias devidas a operações especulativas, o governo vigia de perto os movimentos do mercado para evitar que sejam ultrapassados limites razoáveis na ambição de expandir o capital sobre bases pouco sólidas.

De fato a China, indiscutivelmente o milagre econômico do século XXI, não é capitalista, mas desenvolveu um híbrido entre a competitividade de suas empresas no mercado global – necessariamente capitalista – e um sistema financeiro interno e serviços públicos geridos pelo Estado. A isso se acrescenta uma visão estratégica sobre onde devem estar os investimentos e os desenvolvimentos tecnológicos em um mundo em plena digitalização, que tem sua máxima expressão na China com o celular como gestor absoluto de toda a vida cotidiana e robôs, desenhados por estudantes, que entregam a comida.

No entanto, a verdadeira força da China reside na coesão social de sua sociedade, ancorada na família, que resiste aos impactos do desemprego juvenil e das aposentadorias insuficientes.

Junto à estabilidade proporcionada por um Partido Comunista onipresente, legitimado por uma ideologia nacionalista frente ao estrangeiro e que estrutura a sociedade. De democracia, nem sinal, mas nunca existiu na China, e a grande maioria das pessoas valoriza, acima de tudo, seu bem-estar material e sua estabilidade.

A sombra inquietante é que a China se sinta ameaçada pelos Estados Unidos e se prepare para a guerra comercial e para a outra. Enfrentar essa China, coesa, desenvolvida e tecnologicamente avançada, seria um gravíssimo erro histórico.

Crescimento Econômico

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A economia brasileira se caracterizou como a nação que mais cresceu economicamente no período entre 1900-1980, gerando uma verdadeira transformação na estrutura produtiva e grandes movimentações sociais e políticas, passando de um país atrasado, eminentemente rural, exportador de produtos primários de baixo valor agregado, com uma população marcada por grande analfabetismo e desprovido de saneamento básico e poucas políticas públicas, para uma nação industrializada, fortemente urbana, com redução do analfabetismo e a construção de inúmeras políticas públicas que contribuíram para a redução da pobreza e da desigualdade.

O crescimento econômico prescinde de uma grande capacidade de planejamento e organização da sociedade, integrando setores, atraindo atores econômico e social, além de um consenso entre os grupos detentores dos poderes políticos, consolidando instituições, utilizando uma constante integração entre governo, mercado e trabalhadores, vislumbrando uma melhoria substancial da qualidade de vida e do bem-estar da sociedade.

O crescimento econômico prescinde da construção e a consolidação do mercado interno como instrumento de desenvolvimento, como destacou o grande economista Celso Furtado, autor do clássico Formação Econômica do Brasil, obra de referência para compreender a formação da história econômica nacional, compreendendo os grandes imbróglios políticos e econômicos que restringem o potencial do desenvolvimento nacional, perpetuando desigualdades e condenando a nação para um papel de subserviência no cenário internacional, como produtor de produtos primários de baixo valor agregado.

Depois dos anos 1980, a economia brasileira perdeu seu dinamismo, estimulando uma acelerada abertura econômica, uma privatização atabalhoada, uma desregulamentação e o abraço do pensamento liberal, acreditando que a abertura econômica, a desnacionalização e a concorrência dos setores produtivos levariam ao desenvolvimento da economia e a redução das desigualdades abissais que caracterizam a sociedade brasileira. O resultado imediato foi uma forte desnacionalização da economia nacional, o aumento do desemprego e da informalidade, além da perda da capacidade de orientar o desenvolvimento econômico, transferindo para o centro do capitalismo mundial as decisões estratégicas do desenvolvimento nacional.

Precisamos resgatar a importância do investimento produtivo para impulsionarmos o crescimento da economia, gerando emprego de qualidade, renda e salários dignos para fomentar as estruturas produtivas, para isso, precisamos fazer um pacto para o desenvolvimento econômico, diminuindo as polarizações que dividem a nação, precisamos reduzir as taxas de juros escorchantes que degradam as estruturas produtivas, endividam as famílias e acabam com as perspectivas de melhorias sociais, gerando ressentimentos e rancores que culminam em políticos oportunistas que visam seus ganhos imediatos e seus asseclas que os financiam.

O crescimento econômico prescinde da circulação de recursos monetários e financeiros, com investimentos maciços em capital humano, com fomento da pesquisa científica e tecnológica, retomando o papel social das instituições, o sentido verdadeiro de coletividade, do planejamento e da busca de um porvir mais esperançosos, mais justo, sem isso, estaremos nos condenando para vivermos no paraíso do rentismo, do parasitismo e do financismo, que incrementam seus ganhos, enchendo seus bolsos, vivendo em ambientes nababescos enquanto a maioria da população sobrevive na degradação, na indignidade e no ressentimento, criando caldos visíveis de grandes violências e exclusão social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.