Estratégia usada pelo nazismo e fascismo italiano é reeditada no século 21 por movimentos populistas e pela ultradireita
Ana Luiza Albuquerque, Repórter de Política, é mestre em Jornalismo Político pela universidade Columbia (EUA) e autora do podcast Autoritários.
Folha de São Paulo, 01/09/2024
[RESUMO] A fabricação do mito de um passado glorioso, estratégia utilizada nas experiências fascistas do século 20, é reeditada no século 21 pela extrema direita e pela direita populista, com o mesmo intuito de implementar valores reacionários e fustigar o modelo de Estado de Direito liberal. No Brasil, percebe-se isso no movimento bolsonarista e na construção de um passado compartilhado judaico-cristão.
“Ele é o leão da tribo de Judá”, cantava a senhora com a mão direita ao alto e a mão esquerda no microfone. O animal aparecia no manto que ela carregava nos ombros, junto às bandeiras de Israel e do Brasil. “Oh, esperança de Israel”, a mulher repetia, entoando os versos de uma canção carimbada nos cultos evangélicos.
Naquele domingo, a reunião não era religiosa. O canto da senhora enchia a esvaziada casa de eventos que abrigou a convenção municipal do PRTB em São Paulo, confirmando a pré-candidatura do influenciador, empresário e ex-coach Pablo Marçal à prefeitura da capital.
Sem o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Marçal ativou símbolos caros para a direita bolsonarista: Deus, família e os perigos do comunismo, das drogas e da “ideologia de gênero”. Israel foi mais um deles.
Cinco meses antes, as bandeiras do país judaico haviam tomado as ruas da avenida Paulista, no centro da cidade, em manifestação em defesa de Bolsonaro. Do alto do carro de som, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) pregou que política e religião devem, sim, se misturar, e anunciou que o povo brasileiro é cristão.
Terminou seu discurso com um recado ao Senhor: “Que tua verdadeira shalom esteja dentro dos muros de Israel. Nós abençoamos o Brasil. Nós abençoamos Israel. Em nome de Jesus, amém”.
Lá embaixo, na avenida, três senhoras envoltas pela bandeira do país judaico gravaram uma entrevista que viralizaria nas redes. Questionadas por qual motivo usavam o adereço, uma delas respondeu: “Porque somos cristãs, assim como Israel”.
A defesa fervorosa de Israel é reflexo da construção de uma gramática judaico-cristã, com o estabelecimento de uma origem em comum —um passado de glória compartilhado. É o que afirma Michel Gherman, professor de sociologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor do livro “O Não Judeu Judeu: A Tentativa de Colonização do Judaísmo pelo Bolsonarismo”.
A história mostra que movimentos fascistas se empenharam na construção do mito de um passado vitorioso para fortalecer a identidade nacional, alavancar valores reacionários e promover mudanças alinhadas com esses valores. No século 21, a extrema direita e a direita populista seguem a mesma estratégia –um de seus instrumentos é a adoração a Israel.
Segundo o professor, a construção deste mito ajuda a ativar alguns símbolos importantes para movimentos reacionários. Primeiro, a imaginada civilização judaico-cristã se afasta dos vínculos com a África. “É o Oriente Médio que se vê como europeu”, diz.
Além disso, as referências aos reinos de Salomão e Davi exploram a violência como um elemento positivo, de resistência e reação ao inimigo. “Salomão e Davi como símbolos fundamentais da conquista e da expansão”, afirma Gherman.
Ele também menciona o vínculo deste mito com o empreendedorismo, considerando que o reino é independente do Estado. “Tem uma leitura ultraliberal, no sentido da ausência do estado. Tem a presença do rei, que é o representante de Deus.”
Mas se engana quem pensa que esse movimento de adoração a Israel é religioso, afirma Gherman. “Você pertence a uma comunidade política que já foi de vencedores. A religião é um detalhe. Não é um discurso religioso. É um discurso de pertencimento a um lugar que tem que ser resgatado”, diz.
“A questão do reino de Salomão não é religiosa. É militar, política, expansionista. É um erro a gente achar que está falando de religião. A gente está falando de política.”
Em 1922, no mesmo ano em que se tornou primeiro-ministro da Itália, Benito Mussolini discursava no congresso fascista em Nápoles: “Nós criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. Não precisa ser uma realidade. E a esse mito, a essa grandeza, nós subordinamos tudo”.
Dois anos depois, na Alemanha, o principal ideólogo do nacional socialismo, Alfred Rosenberg, escrevia: “A compreensão e o respeito pelo nosso próprio passado mitológico e pela nossa própria história constituirão a primeira condição para ancorar mais firmemente a próxima geração no solo da pátria original da Europa”.
As duas falas são lembradas no primeiro capítulo do livro “Como Funciona o Fascismo”, de Jason Stanley, professor de filosofia na Universidade Yale (EUA). Nele, o autor argumenta que o fascismo tem um objetivo claro ao invocar o mito de um passado puro, que foi tragicamente destruído pelos progressistas, pelo liberalismo e pelo globalismo. É na criação desse sentimento de nostalgia que os fascistas vão tentar realizar seus ideais no tempo em que vivem.
“A cultura fascista está centrada em torno de alguns mitos, e o maior deles é o de um passado patriarcal, no qual a nação era ótima, e que agora está sendo destruído pelo liberalismo. Está sendo destruído pelo feminismo, pelas pessoas LGBTQ. [Grupos] que desafiam as bases dessa nação e dessa civilização”, diz Stanley à Folha.
O professor defende que o nazismo estava fundamentado no que hoje se chama de teoria da Grande Substituição – a ideia conspiratória de que existe um plano das elites globais para substituir cidadãos brancos por imigrantes não brancos.
“[Para os nazistas] A Alemanha era ótima, mas então foi humilhada pela Primeira Guerra Mundial, e eles passaram a ser humilhados pela imigração. [A ideia nazista era que] Os judeus fizeram com que a Alemanha perdesse a Primeira Guerra. Que eles eram traidores que tinham esfaqueado a Alemanha pelas costas. E que passaram a abrir as fronteiras para trazer imigrantes e derrubar a raça branca, a raça ariana. [Para os nazistas] Então você precisava que Hitler parasse a destruição da nação”, afirma Stanley.
Se no século 20 o fascismo acusava os judeus de terem destruído o passado de glória, nos tempos atuais ganha corpo entre a extrema direita um filossemitismo deturpado, que submete os judeus a um determinado passado mítico.
“O que acontecia no fascismo histórico é que tinha um grupo muito importante na Europa que não tinha passado, ou que o passado era não europeu. Um passado desconhecido, de traição, de não reconhecimento do verdadeiro Deus”, diz Gherman.
Hoje, o professor continua, o passado ideal para a extrema direita não é mais, como no século 20, referente aos bárbaros arianos ou ao Império Romano. “A novidade é um elemento fundamentador desse passado: o reino de Salomão, o reino de Judá.”
Agora, ele argumenta, cria-se a ideia de um passado compartilhado, uma origem comum entre cristãos e judeus em um reino glorioso, de grandes conquistas, anterior a Cristo, no território israelense.
“Em vez de você perseguir um judeu sem passado, o que você faz agora é impor aos judeus um passado: o passado do reino. Os judeus existem para dar à luz a esse passado do reino de Salomão”, diz Gherman. “Esse modelo de passado vai ser compartilhado por todos da extrema direita. É isso que eu chamo de judeu imaginário.”
Apesar da construção desse passado comum com os cristãos, nem todo judeu agrada ao grupo, afirma o professor. Apenas aquele visto como descendente do reino.
“Você nunca vai ver, por exemplo, nas lógicas desse judeu imaginário, o judeu moderno. Nunca vai ver um judeu secular, um judeu progressista”, diz. “Não é que eles deixaram de ser antissemitas.
Eles refundam o antissemitismo, que passa a ser vinculado a um tipo de judeu e não a todos os judeus.”
Gherman faz uma analogia para explicar por que é efetiva a construção do passado mítico pela extrema direita. “Eu sempre brinco com a ideia de que todo mundo que vai fazer visita a vidas passadas acaba descobrindo que era rainha, rei, descendente de um grande assessor do rei.
Ninguém é simplesmente um operário, um camponês”, diz. “É mais ou menos isso que a extrema direita vende, que você é descendente de uma raça gloriosa.”
O professor lembra que a moeda do fascismo para reunir seguidores era vender a ideia do pertencimento a um grupo que foi soberano no passado. “Se eu pudesse resumir o que a extrema direita pensa em relação ao presente, passado e futuro, é essa ideia de que no passado você tinha alguma coisa muito importante. E que o progresso e a expansão dos direitos destituíram você dessa importância.”
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, é um dos líderes da extrema direita mundial que entenderam e se aproveitam da utilidade do mito do passado glorioso.
Ele frequentemente se refere à bacia dos Cárpatos como uma terra de origem comum de todos os húngaros, dissolvida com o Tratado de Trianon, firmado após a derrota na Primeira Guerra. Mais de 100 anos depois, Orbán insufla na população o ressentimento com o tratado, que, segundo o governo, fez com que a Hungria perdesse dois terços de seu território e 3 milhões de habitantes.
Assim, o país sai como vítima de grandes potências do Ocidente. No passado, dos vencedores da guerra; hoje, da União Europeia, que alerta para o desmonte da democracia húngara e, por isso, é desafiada por Orbán.
As referências à bacia original do povo húngaro e às ameaças enfrentadas ao longo dos séculos sobre o território servem como sustentação para o nacionalismo cristão, ideologia que norteia as práticas do governo. Desde que assumiu em 2010 com uma maioria de dois terços do Parlamento, Orbán aprovou uma série de leis antiimigração e construiu um muro na fronteira com a Sérvia em 2015.
Em discurso em 2021, por exemplo, o primeiro-ministro afirmou que a missão dos húngaros por séculos foi defender a bacia dos Cárpatos contra a ocupação do Império Otomano, a superpotência muçulmana que durou mais de 500 anos.
Na ocasião, Orbán defendeu que a proteção do território e do cristianismo diante da ascensão do mundo muçulmano na Idade Média, da ocupação nazista, da ocupação soviética e da natureza anticristã dos anos de comunismo na Hungria se transformou em uma grande missão de importância nacional e europeia.
László Kövér, um deputado húngaro aliado do primeiro-ministro, foi mais direto ao relacionar o passado mítico com a defesa atual da ideologia nacionalista cristã. Segundo a Radio Free Europe, ao comparar o êxodo populacional pós-Trianon com a crise migratória contemporânea na Europa, Kover afirmou que houve um intercâmbio populacional planejado disfarçado de migração ilegal —acenando para a teoria conspiratória da Grande Substituição.
“Em 1920, nós, húngaros, fomos atacados por potências europeias e grupos de interesse fora da bacia dos Cárpatos. Mas, hoje em dia, potências estrangeiras e grupos de interesse fora do continente estão atacando e destruindo a Europa…. O que é isso, se não a Europa marchando em direção ao seu próprio Trianon?”, disse ele.
Assim como fez a gestão Bolsonaro, com a qual firmou estreitos laços, o governo Orbán também adota uma visão sobre o gênero ligada a um passado patriarcal, prática central nas experiências fascistas.
No livro “Como Funciona o Fascismo”, o professor Jason Stanley argumenta que a defesa do passado patriarcal também representa a defesa do conceito de hierarquia, necessário para a manutenção da própria forma de governo autoritária.
“Em uma sociedade fascista, o líder da nação é análogo ao pai na família patriarcal tradicional.
O líder é o pai de sua nação, e sua força e seu poder são a fonte de sua autoridade legal, assim como a força e o poder do pai de família no patriarcado devem ser a fonte de sua autoridade moral máxima sobre seus filhos e esposa”, escreve o professor. “Ao representar o passado da nação como um passado com uma estrutura familiar patriarcal, a política fascista conecta a nostalgia a uma estrutura autoritária hierárquica organizadora central.”
Na Constituição aprovada a toque de caixa depois que Orbán chegou ao poder, o Parlamento governista determinou que o casamento é a união de um homem com uma mulher, e que a família é a base da sobrevivência de uma nação.
Em setembro de 2022, o governo Orbán baixou um decreto obrigando mulheres grávidas que buscam aborto a primeiro obter relatório de um médico dizendo que elas foram confrontadas de forma clara com sinais de vida do feto —ou seja, que ouviram o batimento cardíaco.
O governo também aprovou políticas públicas para encorajar as famílias heterossexuais a terem filhos.
Se no nazismo mulheres eram estimuladas a procriar para aumentar o que se entendia como a população ariana, na Hungria de Orbán esse incentivo se dá em meio à crise demográfica do país e receios de que os imigrantes possam substituir os brancos europeus como maioria da população.
“[A ideia da extrema direita é que] imigrantes estão vindo e tornando o país não branco, no caso dos Estados Unidos, e não ariano, no caso da Alemanha [nazista]. Então as mulheres precisam ter mais bebês para restaurar a nação”, afirma Stanley.
Os acenos ao passado glorioso funcionam especialmente em um momento global de crise democrática, com os percalços das democracias liberais e capitalistas que, encaradas como o modelo político ideal e definitivo após a queda do Muro de Berlim, hoje não conseguem responder aos anseios de boa parte dos cidadãos.
“Grande parte da população em países democráticos está pessimista em relação ao futuro”, afirma à Folha Benjamin Teitelbaum, autor de “Guerra Pela Eternidade: O Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista”. “Cada vez mais eles rejeitam a promessa da democracia liberal de que a vida vai melhorar, de que a passagem do tempo equivale a uma vida melhor. Muita gente não acredita mais nisso. Então é poderoso, politicamente, usar esse sentimento.”
É desse sentimento que nasce o slogan do ex-presidente Donald Trump, o “Make America Great Again” (na tradução livre, algo como “Torne a América Grande Novamente”). “Essa frase pertence a uma visão reacionária do passado. É notável por quão pouco ela diz. A frase não diz o que é tão bom sobre a América. Não há conteúdo para o conceito de grandeza. O que importa é a filosofia do tempo que está embutida nessas quatro palavras”, diz o autor.
Conselheiro número 1 de Trump, Steve Bannon tem uma visão singular sobre o passado, na qual Teitelbaum mergulhou para escrever seu livro. Após mais de 20 horas de gravação com Bannon, ele afirma que o estrategista político, como também Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, é um seguidor do tradicionalismo.
Assim como os fascistas, os tradicionalistas condenam o presente. Há, porém, uma cisão importante entre os dois movimentos. Enquanto os primeiros acreditam que poderiam recuperar o passado e criar uma nova realidade ainda superior, os segundos avaliam que nada será melhor do que já foi.
“[Para os tradicionalistas] O caminho para retornar ao que era tão bom sobre o passado é por meio da destruição. Não é uma ideologia de criação, de futurismo. É mais sobre deixar a modernidade se esgotar, tentando derrubar todas as instituições da modernidade com a crença de que no seu lugar o passado dourado vai ressurgir”, afirma Teitelbaum.
Outro movimento de franja de exaltação do passado é o localismo —uma visão antiglobalista, antiliberal e nostálgica que defende que as pessoas deveriam voltar a viver em comunidades pequenas e unidas, centradas nas famílias. Entre seus defensores, estão o escritor conservador e católico Rod Dreher, que vive na Hungria e é um grande entusiasta de Orbán, e o professor, também católico, Patrick Deneen, autor do livro “Por que o Liberalismo Fracassou”.
Os dois já foram citados como influências intelectuais pelo senador J. D. Vance, escolhido para a vice de Trump, novamente em busca da Presidência.
A extrema direita e a direita populista sofreram reveses nos últimos anos, com derrotas importantes, como a de Trump em 2020 e a de Bolsonaro em 2022.
A vertente populista, porém, segue em cena —em junho, a ultradireita nacionalista teve avanços significativos no Parlamento Europeu e, no mês seguinte, assombrou a eleição na França, embora não tenha vencido. Em novembro, Trump tentará voltar à cadeira presidencial. Não só o presente ainda continuará em disputa: o passado também.