Medo do crescimento

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O Brasil sempre se caracterizou por uma sociedade profundamente desigual, marcada por uma grande concentração de renda e de propriedade, salários muito baixos, educação deficiente, ausência de saneamento básico e condições de indignidade para uma parte significativa da população, ao mesmo tempo percebemos um país que se destaca por uma grande riqueza natural, clima favorável e com condições naturais positivas.

Ao analisar as condições naturais e geográficas do cenário global, o Brasil deve ser visto como uma das nações mais ricas de recursos naturais do cenário internacional, sempre fomos vistos como um fornecedor global de alimentos e de minérios que auxiliaram no desenvolvimento de outras nações. Desta forma, o Brasil sempre foi inserido no ambiente produtivo internacional, desde o descobrimento estamos inseridos no cenário mundial como uma nação produtora e exportadora de produtos primários de baixo valor agregado e como importadores de produtos manufaturados, cuja relação de troca, no comércio global, sempre foi desfavorável para o Brasil.

No século XX, a sociedade brasileira ganhou relevância no cenário internacional, fomos uma das economias que mais cresceram no século anterior, modificando toda a estrutura produtiva, angariando espaços interessantes no cenário internacional, passando de uma economia de industrialização intermediária e nos tornando uma das dez maiores economias do mundo, levando nações asiáticas a buscarem compreender os passos seguidos pelo Brasil, visto que nos anos 1970 o Brasil se transformou num exemplo claro de expansão e transformação econômica e produtiva.

Depois dos anos 1980 perdemos o dinamismo econômico e produtivo, a indústria nacional perdeu espaço e passamos a perder posições relevantes no comércio internacional. Com o início da abertura econômica dos anos 1990, as privatizações e a redução do papel do Estado na economia eram vistas como novos horizontes de modernidade. Conseguimos estabilizar a economia nacional mas, infelizmente se perderam na política cambial e elevamos demais as taxas de juros, criando uma categoria muito forte, dotada de grande poder econômico e político, os chamados rentistas e financistas, que passaram a controlar os sistemas econômico e financeiro, manipulando as taxas de juros e controlando os lucros, os dividendos e seus retornos imediatos, garantindo suas isenções fiscais e tributárias, que garantem seus ganhos elevados em detrimento de uma classe média empobrecida, desesperançada e marcadas por rancores e ressentimentos.

Depois de décadas de baixo crescimento econômico e produtivo, aumento do desemprego, redução dos salários reais, a fragilização da indústria nacional, além da venda de empresas nacionais ou o repasse dos ativos mais interessantes do Estado para seus apaniguados, percebemos alguns lampejos de recuperação econômica, recuperação dos salários, inflação controlada, superávits comerciais, Bolsas em ascensão e perspectivas de melhorias econômicas. Neste cenário, percebemos ecos de elevação das taxas de juros que impactam imediatamente sob o sistema econômico e postergam a melhora dos indicadores positivos da economia nacional, reduzindo a criação de empregos e limitando o incremento da renda dos trabalhadores e, ao mesmo tempo garantindo mais ganhos financeiros para poucos grupos, perpetuando uma desigualdade em ascensão e nos deixando claro quem são os verdadeiros donos do poder na sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Era da superficialidade

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Estamos vivendo numa sociedade muito interessante, assustadora e preocupante, as pessoas sonham com o enriquecimento, com o luxo e com o glamour, buscam a fama, sonham com os chamados realitys shows, a exposição exagerada e buscam virar celebridade, mesmo que seja por um curto período de tempo, desde que esse tempo seja suficiente para acumular recursos financeiros, neste cenário, os indivíduos acreditam piamente que vão conseguir acumular fortunas sem fazer esforços sistemáticos, sem estudos e sem qualificações cotidianas.

Antigamente as pessoas buscavam uma profissão, queriam estudar, lutavam para adquirir um diploma de um curso superior, buscavam uma qualificação profissional, conversavam com pessoas inteligentes, compravam livros e queriam fazer cursos de capacitação, mas agora, na contemporaneidade o que reina é o sonho da acumulação sem esforços individuais, cultivando a violência, indivíduos malhando o corpo em excesso, se expondo nas redes sociais, cultuando a superficialidade, acreditando que ao ler a “orelha” de um livro o faz especialista em qualquer assunto, difundindo a ignorância e o negacionismo e estimulando o individualismo que se espalham na sociedade, neste cenário, as pessoas se assustam com os rumos da sociedade mundial.

Ao folhear os livros do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, percebemos a importância de refletir sobre a sociedade contemporânea, compreender os desafios dos seres humanos e perceber que estamos num momento imprescindível para analisar os hiatos que crescem nos valores da comunidade.

Educação superior pública: precisamos de um novo caminho, por Piva, Passos e Wongtswski

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Não há forma de o país crescer sem ensino superior de qualidade, e o modelo atual esgotou-se

Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, Empresários.

Folha de São Paulo, 01/09/2024

O Brasil tem 2.574 instituições de ensino superior, das quais 313 são públicas. Dentre as públicas, 134 são estaduais e 119 são instituições federais. Das instituições federais, 69 são universidades. Das instituições privadas, 91 são universidades –as demais são faculdades isoladas ou centros universitários.

Das cerca de 9 milhões de matrículas, 7 milhões estão em instituições privadas e 2 milhões em instituições públicas. Enquanto 8% dos estudantes de entidades públicas usam ensino a distância (EAD), nas privadas 51% dos alunos o utilizam.

O ensino superior no Brasil só atende a 18% dos jovens entre 18 e 24 anos, bem abaixo da meta de 33% estabelecida para 2024 pelo Plano Nacional de Educação, e as taxas de evasão são muito altas: 56% dos alunos das instituições privadas e 39% dos alunos de instituições públicas não terminam os seus cursos.

O governo federal aplica cerca de R$ 150 bilhões por ano em educação; 27% deste valor vai para o ensino superior. Apesar disso, as inovações mais significativas são de iniciativa de instituições privadas. Exemplos são os cursos de engenharia do Insper e do Inteli, ambos em São Paulo, e os programas de graduação de duas organizações sociais, o Impa Tech, no Rio de Janeiro, e a Ilum Escola de Ciência, em Campinas.

O Brasil se sai muito mal nos rankings internacionais. A instituição mais bem colocada segundo o “Times Higher Education Ranking”, a USP (Universidade de São Paulo), está no grupo 201 a 250. A Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), entre 351 e 400. E as demais se situam no arco de 601 a 800 (ou ainda mais atrás).

As universidades brasileiras são muito grandes: a USP tem cerca de 100 mil alunos, a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), 70 mil, e muitas outras (Unicamp, UFMG, UFF, UFRGS, UNB, UFP) têm entre 40 mil e 50 mil alunos. No ranking internacional, as cinco melhores têm uma média de 17 mil, e as 20 melhores, uma média de 20 mil alunos.

É muito difícil ser grande e excelente, a burocracia e o corporativismo sufocam as universidades brasileiras. Mas é pior do que isso: tirando as universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp, Unesp e Univesp) que têm um sistema inteligente de alocação de recursos públicos e grande autonomia de gestão, as federais vivem à míngua, com instalações precárias, obras inconclusas e recursos discricionários (para cobrir todos os custos fora salários) recorrentemente menores do que 10% do seu orçamento. Mais ainda, todas as universidades, por exigência constitucional, devem obedecer “ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Como bem apontam membros da Academia Brasileira de Ciências em artigo recente, “em nenhum país a democratização do ensino superior ocorreu só pelas dispendiosas universidades de pesquisa. Diferentemente do nosso modelo quase exclusivo de universidades de pesquisa, em diversos países predomina a diversificação de instituições: universidades, faculdades, faculdades comunitárias, instituições de ensino vocacional ou técnico de nível superior, entre outras”.

A solução é clara: criar, segundo um processo meritocrático, garantida certa diversidade regional, um grupo menor de universidades de pesquisa públicas federais, que teriam forte apoio e recursos para atender aos seus objetivos constitucionais, e transformar as demais em instituições destinadas primordialmente ao ensino superior. Estas deveriam ter outra solução institucional que assegurasse, simultaneamente:

  1. alta qualidade docente;
  2. instalações físicas adequadas que atraíssem alunos e facilitassem o aprendizado;
  3. sistema de contratação que incentivasse a presença de docentes com atuação profissional fora do ensino;
  4. poder à organização para contratar e demitir docentes, assegurando dinamismo e qualidade de ensino;
  5. escolha de cursos em áreas em que haja demanda da sociedade.

Esta seria a melhor maneira de atender ao clamor dos jovens por ensino de qualidade, flexibilidade e possibilidade de migração de uma parcela dos formados para universidades de pesquisa.

Há outras questões que devem ser endereçadas neste processo, como a necessidade de atração de estudantes e docentes estrangeiros, compatibilização do ensino presencial com o EAD em um sistema híbrido, melhora da governança das instituições públicas, simplificando a sua estrutura e procedimentos e aumentando a influência e o poder da sociedade em sua gestão e, finalmente, criação de um sistema externo poderoso de avaliação de cursos e formados.

Não há forma de o país crescer sem ensino superior de qualidade. O modelo atual esgotou-se e não atingiremos as metas do Plano Nacional de Educação sem reformas profundas no ensino público. Este é um dos nossos grandes desafios, e uma das poucas formas de promover a formação de cidadãos, a mobilidade social e o aumento de produtividade, justas demandas da sociedade brasileira.

 

Fragilidade fiscal da União colocou Brasil em enrascada, por Salto e Pellegrini

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País está vulnerável e precisa construir consenso político em torno de medidas de ajuste das contas públicas

Felipe Salto, Economista-chefe da Warren Investimentos. Foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022) e diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Josué Pellegrini, Doutor em economia pela USP e economista da Warren Investimentos. Foi diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Folha de São Paulo, 29/09/2024

A estabilização da dívida pública federal, necessária para lidar com a situação frágil das finanças da União, requer um ajuste de dois pontos percentuais do PIB, argumentam autores, que sugerem medidas como a redução de benefícios tributários e de transferências para estados e municípios, pelo lado da receita, e alteração da política do salário mínimo, reformulação de programas sociais e nova fórmula de cálculo de emendas parlamentares, pelo lado da despesa.

Após várias decisões tomadas ao longo dos anos que fragilizaram as finanças da União, o país se se meteu em uma enrascada. As iniciativas partiram tanto do Congresso Nacional quanto do Executivo federal. A debilidade deste Poder diante daquele e a polarização política agravaram o problema.

Uma parcela da população foi beneficiada por essas mudanças, mas também grupos de interesse, empresas e entes subnacionais. Em muitos casos, as decisões não seriam justificáveis, submetidas a uma análise mais detida, pelo menos não na dimensão dos custos assumidos.

Concretamente, a fragilidade da União se traduz em déficits primários sucessivos e elevados, vale dizer, despesas mais elevadas que as receitas, já descontadas as receitas e as despesas financeiras e a partilha da receita com os demais entes federados. Como os déficits precisam ser financiados, a dívida pública sobe continuamente, sem perspectiva de estabilidade em um horizonte aceitável.

A dívida pública do Brasil, medida pela dívida bruta do governo geral, chegou a 78,5% do PIB em julho e cresce rapidamente, 4,1 pontos percentuais do PIB apenas neste ano. Relativamente a países de nível similar de desenvolvimento, nossa dívida é uma das maiores. A comparação com países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), como EUA e Japão, não faz sentido, pois os “limites” e as condições são bem mais dilatados nesses casos.

De acordo com nossas projeções para o déficit primário e a taxa de juros, a dívida deverá chegar a 95% do PIB até 2033. É muito tempo com um passivo crescente. Não se pode operar testando limites, sem margem para enfrentar imprevistos, como tragédias climáticas ou de saúde pública, eventos cada vez menos raros.

Os reflexos na economia da fragilidade fiscal da União são vulnerabilidade a crises e taxas de juros elevadas, dois dos principais inimigos dos investimentos produtivos. Esse é o canal que leva ao crescimento sustentável, com aumento da capacidade produtiva e da produtividade. A parcela mais pobre da população é a mais afetada pelo desempenho aquém do esperado.

Qual o tamanho do desafio?

Em 2024, o déficit primário do governo central deverá ser de 0,5% do PIB. Em 2025, dificilmente ficará abaixo de 0,6% do PIB, conforme se depreende do PLOA (projeto de lei orçamentária anual) da União, recém-enviado ao Congresso Nacional. Mesmo que o déficit vá a zero em todo o período 2026-2033, a dívida ultrapassará os 90% do PIB em 2032.

Será preciso gerar superávits primários para estabilizar a dívida pública em proporção do PIB. Supondo-se ação imediata, com revisão do PLOA 2025, se o resultado melhorar 0,5 ponto percentual de PIB por ano, a partir do déficit de 0,5% do PIB de 2024, chegaremos ao superávit de 1,5% do PIB em 2028. Com isso, a dívida estabilizará perto do nível de 82% do PIB, permitindo alguma redução do superávit nos anos seguintes.

Se precisamos passar de déficit de 0,5% do PIB em 2024 para superávit de 1,5% do PIB em 2028, o ajuste requerido é de algo como dois pontos percentuais do PIB, ou cerca de R$ 230 bilhões, com base no PIB de 2024. Seriam quase R$ 60 bilhões por ano no período.

O ajuste necessário poderá ser maior se o chamado déficit estrutural, de 2024, estiver acima de 0,5% do PIB. Esse conceito de déficit desconta as receitas e as despesas atípicas ou afetadas pelo ciclo econômico. Se assim for, o ponto de partida seria pior, o que exigiria mais tempo para chegar ao superávit desejado, com a estabilização da dívida em um nível mais alto.

A boa notícia é que o custo do ajuste pode ser reduzido pelo efeito da melhoria progressiva do resultado primário da União sobre a taxa de juros. Isso dependeria da apresentação de um programa confiável, com detalhamento das medidas de ajuste e respectivos impactos esperados para cada ano do período coberto. A aprovação da LOA 2025 com as medidas necessárias para levar ao déficit zero, por exemplo, já produziria importante impacto nesse aspecto.

Os efeitos positivos seriam mais significativos com a inclusão do programa no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, algo também recomendável por se tratar de um programa que envolveria mais de um mandato presidencial. Vale observar que a busca da sustentabilidade fiscal está prevista em artigos da Constituição Federal.

O que fazer pelo lado da receita?

O diagnóstico acima talvez não gere grandes controvérsias. Discordância maior reside nas medidas de aumento de receitas e de corte de despesas a serem adotadas para fortalecer as finanças da União. A distribuição dos custos parte da definição de prioridades e passa pela análise dos efeitos positivos e negativos das diferentes políticas públicas existentes.

A carga tributária do Brasil parece ter encontrado um limite máximo, já que não tem ultrapassado os 33% do PIB desde os anos 1990. Esse percentual já está bem próximo da média de 34% do PIB dos países da OCDE.

A opção mais promissora para aumentar a receita em relação ao PIB (e melhorar a progressividade) é reduzir os benefícios tributários, de modo que a carga cresce, mas apenas para os antigos beneficiários dos respectivos incentivos.

Outro modo de incrementar as receitas da União é reduzir a participação das partilhas com os entes subnacionais. Em relação ao PIB, as transferências subiram de 3,5% do PIB, em 2013, para 4% do PIB, em 2023, enquanto a receita primária total da União caiu de 22,5% do PIB para 21,5% do PIB. Como consequência, a relação entre as transferências e a receita primária total da União subiu de 15,7% para 18,6% no mesmo período. Esses percentuais correspondem à média de cinco anos.

Essa mudança na participação tende a elevar as despesas do setor público, assim como o déficit e a dívida. Os entes subnacionais não têm a sustentabilidade fiscal e a estabilidade macroeconômica entre suas atribuições, não havendo razão para gerar superávits primários. Um motivo para isso seria a necessidade de pagar a dívida junto à União, mas as sucessivas renegociações dessa dívida e o uso de meios judiciais desde 2014 reduziram significativamente os pagamentos feitos.

Nesse sentido, dois projetos complementares que tramitam no Congresso Nacional agravam o problema fiscal do país, de modo que recomendamos fortemente a não aprovação. O projeto de lei complementar número 121, de 2024 , aprovado no Senado e em tramitação sob regime de urgência na Câmara dos Deputados, alonga o prazo da dívida estadual junto à União e abre margem para a redução a zero da taxa de juros incidente sobre essa dívida.

Por sua vez, o projeto de lei complementar número 164, de 2012, já aprovado na Câmara e em tramitação no Senado, muda o artigo 19 da Lei de Responsabilidade Fiscal, com o objetivo de afrouxar os limites para a despesa de pessoal dos entes federados.

Outra mudança veio com os artigos 12 e 13 da emenda constitucional número 132, de 2023. Foram criados dois fundos que transferem mais recursos da União para os estados. Essas transferências começarão com R$ 8 bilhões em 2025, mas subirão continuamente até chegar a R$ 40 bilhões ao ano em 2033 e a R$ 60 bilhões em 2043.

Essa perda da União não foi considerada no ajuste fiscal requerido calculado acima de dois pontos percentuais do PIB. Francamente, assim, a conta não fecha. Esses artigos da emenda precisam ser revistos. Eis aqui um exemplo de como a vulnerabilidade política do Executivo federal tem permitido aprovar medidas danosas ao país.

A proposta de redução da partilha em relação à receita total da União não significa diminuição das transferências em percentual do PIB. Para tanto, seria necessário destinar exclusivamente à União os ganhos de receita com a redução dos benefícios tributários, mediante emenda constitucional. Vejamos como isso operaria.

A renúncia estimada com benefícios tributários subiu de 3,5% do PIB na média do triênio 2009-2011 para 4,7% do PIB no triênio 2022-2024. A retirada de benefícios não gera receita equivalente à estimativa de renúncia por causa da esperada reação dos contribuintes.

Mesmo assim, a revogação de benefícios de modo a reduzir a renúncia de volta para os 3,5% do PIB poderia render, digamos, algo como 1% de PIB de receitas para a União, ótima contribuição para um ajuste esperado de dois pontos percentuais do PIB.

Se o 1% do PIB fosse integralmente destinado à União, esse ente recuperaria os 22,5% do PIB de receita total observados em 2013 e as transferências permaneceriam em 4% do PIB, mantendo o aumento de meio ponto a mais que os entes subnacionais tiveram nos últimos anos. A relação entre as transferências e a receita total da União, por sua vez, cairia de 18,6% para 17,8%, ainda bem acima dos 15,7% observados em 2013.

É claro que o nosso sistema tributário precisa ser mais equânime, neutro e simples, mas para isso vemos providências que levam mais à redistribuição da carga entre diferentes contribuintes do que à elevação dessa carga, que é o relevante do ponto de vista fiscal.

Em que pese a frágil situação fiscal da União, pululam propostas de desoneração tributária. Evidentemente, elas precisam ser rechaçadas. Uma proposta que pode gerar perdas significativas é a que estende a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física para R$ 5.000, de iniciativa do próprio Executivo federal.

Se for aprovada, terá que ser juntamente com uma fonte certeira que compense as perdas, como determina o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esperamos que não reproduza o interminável embate pela compensação da desoneração da folha de pagamento das empresas e municípios.

Aliás, a história da desoneração da folha, iniciada em 2011 (terminará em 2027?), é um verdadeiro estudo de caso sobre como é difícil retirar um tratamento favorecido, uma vez que entra no ordenamento e no Orçamento.

O que fazer pelo lado da despesa?

Se houver a preferência dos governantes ou da própria sociedade por distribuir igualmente os custos do ajuste entre receitas e despesas, então, o ponto percentual do PIB de ajuste restante recairia sobre as despesas. Aqui, a missão é mais árdua, pois é preciso também conter aumentos em curso de componentes da despesa obrigatória. Sem isso, não há regra fiscal que sobreviva.

Em um primeiro momento, a compressão das despesas discricionárias leva à flexibilização da regra (vide o subsídio à compra do gás de cozinha, ainda em tramitação no Congresso). Em um estágio posterior, a ameaça de interrupção do funcionamento da administração pública culmina na revogação, sob a alegação de que a regra seria muito severa.

Entre as despesas obrigatórias, destaque para a despesa previdenciária, que representa 40% da despesa total, excluindo-se precatórios e sentenças judiciais. Tal despesa subiu de 6,6% do PIB, na média de 2012-2014, para 7,8% do PIB, em 2023, mesmo sob os efeitos da reforma aprovada no fim de 2019.

Essa despesa subirá ainda mais devido ao envelhecimento da população e da nova fórmula de correção do salário mínimo. Será preciso uma nova reforma, em breve, bem como a revisão da política do mínimo ou a desvinculação entre o mínimo e o menor benefício. Entretanto, ainda que se adotem essas providências, não se pode esperar mais delas que a estabilidade da despesa previdenciária em relação ao PIB.

As despesas assistenciais respondem por outros 15,5% da despesa total. Incluem-se aí o abono salarial, o seguro-desemprego, o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa Família. Houve aumento desse conjunto de gastos, de 1,9% do PIB na média de 2012-2014 para 3% do PIB em 2023, especialmente em razão dos saltos do Bolsa Família em 2022 e 2023 (incluindo o extinto Auxílio Brasil).

Aqui, também se aplica a necessidade de alterar a política do salário mínimo ou desvincula-lo dos benefícios. Mas cabe ainda uma reformulação geral que integre os programas assistenciais, de modo a evitar o pagamento duplicado e a levar a resultados mais efetivos, especialmente quanto ao enfrentamento da pobreza. Além da contenção da despesa em relação ao PIB, seria possível obter uma economia equivalente ao orçamento do abono salarial, que chegou a 0,23% do PIB em 2023.

Precatórios e sentenças judiciais, complementação do Fundeb (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), gastos com saúde e educação e emendas parlamentares também vêm crescendo. Nesses casos, entendemos que as providências poderiam visar à redução, em relação ao PIB, frente ao patamar atual.

Os precatórios e sentenças judiciais subiram de 0,32% do PIB na média de 2012-2014 para 0,86% do PIB na média de 2022-2024. Quando essa despesa entra no Orçamento, só resta pagar. O foco de ação deve ser nas fases anteriores, evitando a judicialização e a perda das ações. É um trabalho contínuo e persistente, a exemplo da revisão de gastos. Alguns entendem que um estoque de decisões judiciais está sendo desovado, mas não há certeza do que teremos pela frente.

As regras da complementação da União ao Fundeb também poderiam ser ajustadas, pois a aplicação da emenda constitucional nº 108, de 2020, elevará progressivamente essa despesa de 0,2% para 0,48% do PIB entre 2020 e 2026.

Trata-se de aumento muito brusco, não compatível com a atual situação fiscal da União. A reversão gradual do atual percentual de complementação, de 19%, para 15% em 2028, levaria essa despesa para 0,31% do PIB. O espaço fiscal iria de 0,06% do PIB em 2025 para 0,17% do PIB em 2028, mas manteria a complementação em valor bem superior ao observado em 2020.

Na sequência, temos os gastos com saúde e educação e as emendas parlamentares, todos vinculados à evolução da receita da União. Trata-se de procedimento impróprio, pois o gasto não é dado pela necessidade, mas pelo simples fato de a receita ter mudado. Ademais, somam-se às despesas obrigatórias para “espremer” ainda mais rapidamente as discricionárias, não protegidas.

O desejável seria não haver vinculação de qualquer tipo de despesa à receita, mas, na impossibilidade, alguma fórmula alternativa poderia ser tentada para a saúde. A correção pelo mesmo fator aplicado para calcular o limite de despesa a partir de 2025 traria espaço fiscal, mas apenas se tomasse como base o gasto de 2023. O ganho seria de 0,12% do PIB, no primeiro ano, crescendo para 0,15% do PIB em 2028. Ainda assim, o mínimo da saúde ficaria em 1,6% do PIB, mesmo percentual gasto em 2023.

Essa mesma proposta não é apropriada no caso das emendas parlamentares. São duas as questões envolvidas. A primeira é do uso adequado dos recursos. A discussão que começou por iniciativa do STF deverá trazer avanços importantes. Quanto à segunda questão, diz respeito à fragilidade fiscal da União.

As emendas simplesmente chegaram a um montante inviável, próximo de R$ 50 bilhões, na LOA de 2024. O artigo 166 da Constituição teria que ser revisto para retirar a vinculação à receita e, eventualmente, definir alguma fórmula que chegasse a um montante razoável.

Uma opção seria um percentual das despesas discricionárias. Em caso de contingenciamento, haveria partilha proporcional automática do corte entre as emendas e as demais discricionárias. No biênio 2018-2019, as emendas totais correspondiam, na média, a cerca de 8% das despesas discricionárias. Considerando-se as discricionárias atuais, esse percentual equivaleria a R$ 16 bilhões, bastante expressivo. Se tal comando vigorasse em 2024, criaria um espaço fiscal de 0,27% do PIB.

As quatro propostas acima levam a um ajuste da despesa de 0,82 ponto percentual de PIB (0,23 + 0,17 + 0,15 + 0,27). O restante 0,18 ponto percentual do PIB poderia vir da chamada revisão do gasto, com base no emprego da avaliação de políticas públicas, além do combate à fraude, análise mais criteriosa dos pedidos de benefícios e providências para enfrentar a judicialização. A revisão de 0,18 ponto representaria um corte de menos de 1% do total das despesas da União, atualmente acima de 19% do PIB, sem perda de bem-estar.

Conclusões

O país está vulnerável, sujeito a crises e baixo crescimento, o que dificulta o enfrentamento da questão social, devido a decisões que fragilizaram a situação fiscal da União.

O ajuste requerido para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB é de dois pontos percentuais do PIB. Sugerimos providências que levam a um ponto percentual de receita extra para a União e um ponto percentual de corte de despesa.

Todas as medidas requerem amplo consenso político, algo difícil de alcançar. O fato é que o país não poderia ter chegado a essa situação. Fomos sinceros ao dizer que estamos em uma enrascada. Não será a primeira em nossa história. Outros países passaram ou passam pela mesma situação. Temos que superar.

 

Subordinação (mal) camuflada, por Ricardo Antunes.

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 08/08/2024

Prefácio do livro recém-lançado de Vanessa Patriota

Conheci a procuradora do trabalho Vanessa Patriota há alguns anos, durante um Seminário sobre Trabalho em Plataformas, realizado em Fortaleza, do qual foi uma das organizadoras. Pude constatar, durante sua apresentação, que clareza, lucidez e contundência se mesclavam em sua reflexão. Traços que agora se repetem neste livro, resultado de sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na linha de pesquisa direito do trabalho e teoria social crítica, rica e originalmente desenvolvida ao longo de décadas, sob a liderança do Professor Everaldo Lopes Gaspar de Andrade.

Autônomos ou subordinados? Este é o dilema central deste livro, que é devidamente esmiuçado e desvendado. Para realizar tal empreitada, foram pesquisadas várias modalidades de trabalho em plataformas digitais, especialmente aquelas realizadas por motoristas e entregadores/as, definidas como crowdwork offline (mas contemplando também um paralelo com uma gama ampliada de outras plataformas caracterizadas como crowdwork online), evidenciando a predominância efetiva da subordinação real e jurídica, ao contrário da proposição central das grandes plataformas que se utilizam de todos os mecanismos e armadilhas possíveis para apresentar o trabalho como “autônomos”, de modo a desconsiderar a legislação protetora do trabalho vigente nos países onde atuam.

Sabemos que essa processualidade destrutiva em relação ao trabalho somente foi possível por uma conjugação complexa e simultânea de várias causalidades: (i) a eclosão de uma crise estrutural desde 1973, que se agudizou a partir de 2008/9, posteriormente, com a Covid-19 e mais recentemente com o grave contexto belicista internacional; (ii) um sistemático e ininterrupto processo de reestruturação produtiva permanente e global do capital e das corporações.

(iii) Uma rigorosa hegemonia financeira moldada em clara sintonia com o ideário neoliberal; (iv) a ampliação do desemprego em amplitude global, ainda que mais acentuado no Sul Global; (v) com a explosão das tecnologias de informatização e comunicação, da robotização, inicialmente no ramo industrial e depois na agroindústria e especialmente nos serviços privatizados, que se tornaram laboratórios de expansão célere dos algoritmos, Indústria 4.0, Inteligência Artificial, ChatGPT, etc.

A principal consequência desse complexo movimento, no universo laborativo, foi o advento e expansão exponencial de um mosaico diferenciado de atividades laborativas, sendo seu mais recente exemplo o denominado trabalho “plataformizado” ou “uberizado”. Utilizando-se dos artefatos digitais e da abundância de força de trabalho desempregada, bem como das “flexibilizações” da legislação do trabalho que geraram a terceirização, o aumento da informalidade e “invenção” dos trabalhos intermitentes, foi assim que as grandes plataformas digitais puderam gestar as atuais modalidades de trabalhos cujo traço distintivo central se encontra na recusa em cumprir a legislação do trabalho que existe nos diversos países e que regulamenta as relações entre capital e trabalho.

Não é por outro motivo que as grandes plataformas se apresentam como “prestadoras de serviços”, “fornecedoras de tecnologia”, de modo a obliterar a real condição de assalariamento e subordinação que configura a realidade dos trabalhos que lá se desenvolvem, além de lhes possibilitar a exclusão do pagamento de tributos que regulam o universo empresarial.

Foi esse o desafio que Vanessa Patriota se propôs a desvendar. Em suas próprias palavras: “Esta tese centra-se no estudo de plataformas digitais de trabalho com o objetivo de: (a) identificar a vertente da subordinação jurídica presente crowdwork offline de motoristas e entregadores/as.

(b) Analisar as características do crowdwork online, a fim de verificar se os trabalhadores e as trabalhadoras nele inseridos podem ser albergados/as pelo Direito do Trabalho e se, para tanto, é necessário reconfigurar o conceito de subordinação na relação empregatícia”. Através desse percurso sua investigação demonstra que as grandes plataformas, em suas diversas modalidades de trabalho, utilizam-se de todos os meios e formas, com o objetivo “inegociável” de manter empregados/as sempre excluídos dos direitos do trabalho no Brasil.

Para obter suas principais respostas analíticas, a autora perseguiu as seguintes indagações: as novas modalidades de organização e do processo de trabalho, desenvolvidas a partir da expansão das tecnologias informacionais e digitais, podem comportar um “manto protetor” no âmbito do Direito do Trabalho? a regulamentação existente no Brasil oferece e contempla os elementos necessários para reconhecer a subordinação presente nos trabalhos plataformizados? ou, ao contrário, é preciso “ampliar o espectro de proteção trabalhista” de modo que a subordinação possa ser amparada pelo Direito do Trabalho?

Para realizar esse desafio, Vanessa Patriota, ao longo de nove sólidos capítulos, abarcou um amplo espectro de evidências empíricas e percorreu densos caminhos analíticos, dialogando amplamente, tanto com a bibliografia presente nos estudos jurídicos do trabalho como também realizou um diálogo fértil com a crítica da economia política e também com a sociologia do trabalho, o que conferiu ainda mais força e contundência ao seu estudo. Por conta deste movimento, seu livro poderá ser lido e utilizado tanto na esfera jurídica, no âmbito do direito do trabalho, quanto por aqueles/as que buscam melhor compreender a materialidade econômica, social, política e ideológica que plasma o mundo jurídico que versa sobre o trabalho.

Um olhar no amplo sumário de Subordinação (mal) camuflada demonstra a riqueza do estudo realizado.

Na Primeira Parte, analisa os sentidos do trabalho e o papel do direito no capitalismo, com suas transformações na esfera produtiva e no âmbito das classes sociais em seus embates. Uma adequada análise da subordinação jurídica, da parassubordinação e da autonomia encontra-se respaldada em uma cuidadosa compreensão de conceitos como trabalho humano, tecnologia, relações de trabalho, mercadoria, individualismo contratualista, classe e consciência de classe, taylorismo, fordismo, welfare state, crise, acumulação flexível, sempre procurando relacionar a realidade do Brasil com a contextualidade internacional, o que lhe permite demonstrar como se desenvolvem as fraudes trabalhistas.

Na Segunda Parte, a autora enfrenta o difícil e decisivo debate acerca do trabalho produtivo e improdutivo, bem como a importância dessa reflexão para uma melhor intelecção dos significados essenciais do trabalho plataformizado no capitalismo atual, fortemente financeirizado e celeremente digitalizado. Analisa as principais características presentes nas pesquisas que se debruçaram sobre o trabalho nas plataformas de transportes de pessoas e entregas. Faz um sólido diagnóstico dessa realidade, utilizando o material empírico presente nas provas obtidas em inquéritos do Ministério Público do Trabalho, envolvendo as plataformas Rappi, iFood, Cabify, 99 e Uber, o que lhe permite indicar os traços que configuram a subordinação clássica que permeia esta modalidade de trabalho.

Expõe ainda os principais artifícios utilizados pelas plataformas de modo a negar o vínculo empregatício, artifícios estes que se encontram em aguda contradição frente às condições de trabalho vivenciadas pelos/as trabalhadores/as. Assim procedendo, demonstra como as plataformas reiteram o caráter subordinativo presente na efetividade e no direito do trabalho, acentuando as contradições existentes entre as diversas legislações existentes nos distintos países e a forma assumida pelo trabalho em plataformas, que têm amplitude e abrangência transnacional, aspecto este que é decisivo para se enfrentar a dilemática da regulamentação.

Conclui seu estudo com a necessidade imperiosa de equacionar o dilema central do direito do trabalho no Brasil (e no mundo hoje), ao se pensar no trabalho em plataformas: trata-se de lutar pelo trabalho regulamentado e protegido ou preservar e ampliar o enorme retrocesso e devastação social presentes nestas atividades? O que leva a autora a reafirmar a importância das lutas emancipatórias para dar concretude à regulação do trabalho, bem como para enfrentar a questão nodal do controle social dos algoritmos, utilizados pelas grandes plataformas digitais, que são de uso secreto, restrito e absoluto das plataformas, visando tanto à intensificação da exploração do trabalho quanto de seu ocultamento.

E, para rechaçar a mistificação de que o mundo algorítmico é expressão distinta de “uma nova realidade” no mundo do trabalho, Vanessa Patriota acrescenta uma argumentação central, de modo cristalino: mesmo “que se possa falar em controle algorítmico e em gerenciamento digital ou cibernético, não se afastam a intensidade de ordens e as práticas disciplinares típicas da subordinação clássica. Tal conclusão é de extrema importância na medida em que o conceito de subordinação clássica ainda é adotado de forma prevalente tanto na jurisprudência e doutrina nacionais quanto nas estrangeiras”.

O que acentua a importância em “despir a subordinação de suas vestes atuais, para revelar o que ela realmente apresenta: ordens intensas, constantes e vinculantes, que ensejam punições disciplinares em caso de descumprimento e que são emitidas diretamente pelas empresas, mas através da programação algorítmica”.

Ao refutar, com fortes evidências empíricas e riqueza argumentativa, a falácia do “empreendedorismo”, este livro nos oferece um retrato da realidade na qual uma enorme massa de trabalhadores/as labora durante longas e intensas jornadas de trabalho, encontrando-se, entretanto, completamente desguarnecidos/as e desprovidos/as dos direitos presentes na legislação protetora do trabalho no Brasil.

Suas conclusões são precisas: “As plataformas digitais de trabalho analisadas foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida […]; em que as entidades sindicais estão extremamente fragilizadas, dificultando suas lutas; em que os Estados-nações são capturados pelas grandes corporações, e são elas que se encontram por trás da plataformização dos serviços; em que a precarização do trabalho é altíssima e as empresas detentoras de plataformas digitais vão intensificá-la ainda mais; enfim, em um contexto em que a racionalidade neoliberal faz crer que não há alternativas ao proletariado, senão aceitar os postos precários de trabalho que lhes são ofertados por benevolência”.

É por isso que o livro de Vanessa Patriota não poderia ser publicado em melhor e tão crucial momento, exatamente quando no Congresso Nacional tramitam diversos nefastos projetos de lei que, uma vez aprovados, estarão dando um passo desastroso em direção à devastação dos direitos do trabalho no Brasil, conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora em muitas lutas, travadas durante incontáveis décadas.

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Referência

Vanessa Patriota. Subordinação (mal) camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais. Belo Horizonte, RTM educacional, 2024

 

Considerações a partir do livro clássico de Eduardo Galeano, por Claudio Katz

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Claudio Katz – A Terra é Redonda – 13/11/2021

As Veias Abertas da América Latina começa com uma frase que resume a essência da Teoria da Dependência. “A divisão internacional do trabalho consiste em que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os tempos remotos”. Esta breve oração oferece uma imagem concentrada e altamente ilustrativa da dinâmica da dependência. Por essa razão, foi citada em inúmeras ocasiões para retratar o status histórico de nossa região.

O livro de Galeano é um texto chave no pensamento social latino-americano, que convergiu com a formação da Teoria da Dependência e contribuiu para popularizar essa concepção. A primeira edição desse trabalho coincidiu com o auge da abordagem dependentista. Mas, em todas as suas páginas, demonstrou uma afinidade especial com a vertente marxista dessa teoria, que foi desenvolvida por Ruy Mauro Marini, Theotonio Dos Santos e Vania Bambirra. Essa visão postulou que o subdesenvolvimento latino-americano corresponde à perda de recursos gerada pela inserção internacional subordinada da região.

Galeano difundiu precocemente essa abordagem no Uruguai, e seu livro repassa a história latino-americana em chave dependentista. Ele ilustra de forma muito acabada como “o modo de produção e a estrutura de classes foram sucessivamente determinados de fora… através de uma cadeia infinita de dependências sucessivas… que nos levaram a perder até mesmo o direito de nos chamarmos americanos”. Ele lembra que “como parte do vasto universo do capitalismo periférico”, a região “foi submetida à pilhagem e aos mecanismos de espoliação”[ii].

Essa caracterização do desenvolvimento frustrado da América Latina ligava os anos 70 a uma ampla produção historiográfica de mesmo signo. Esses estudos relacionavam os impedimentos impostos pela dependência com a repetição da expansão alcançada pela economia estadunidense. Galeano retomou uma ótica muito semelhante àquela exposta pelas pesquisas de Agustín Cueva e Luis Vitale[iii].

O pensador uruguaio desenvolveu uma história sintética da região, centrada nos quatro componentes do marxismo latino-americano da época. Denunciou a espoliação dos recursos naturais, criticou a exploração da força de trabalho, enfatizou a resistência dos povos e aderiu a um projeto socialista de emancipação.

Galeano desenvolveu seu texto combinando várias disciplinas e deu luz a um relato que impacta por sua beleza literária. Seu entusiasmo comove o leitor e gera um efeito explicitamente pretendido pelo livro.

O escritor uruguaio decidiu difundir um “manual de divulgação que fale de economia política no estilo de um romance de amor”. E alcançou um sucesso avassalador para este empreendimento surpreendente. Galeano comentou que seguiu o caminho de “um autor não especializado”, que embarcou na aventura de desvendar os “fatos que a história oficial esconde”[iv].Abordou este objetivo com uma linguagem afastada das “frases feitas” e distante das “fórmulas declamatórias”. Conseguiu consumar esse ambicioso propósito num trabalho impactante.

Galeano deixou para trás o enrijecimento, o academicismo e o discurso frio. Usou uma linguagem que sacudiu milhões de leitores e inaugurou um novo código para visibilizar a dramática realidade latino-americana. Veias abertas inspirou uma legião de escritores que adotaram, desenvolveram e enriqueceram essa forma de retratar a espoliação e a opressão sofridas por nossa região.

 

Afinidades conceituais e políticas

Galeano alinhou-se com a corrente radical da dependência liderada por Marini e Dos Santos, em franca contraposição com a vertente eclética e descritiva liderada por Fernando Henrique Cardoso. A afinidade de Veias Abertas com a primeira concepção é verificada em todos os enunciados do livro.

Neste trabalho, não se limitou a descrever o atraso econômico resultante de modelos políticos equivocados, nem observou a dependência como um traço ocasional ou meramente negativo. Também não endossou as associações com o capital estrangeiro que Cardoso promovia como solução para o atraso da região. Quando esse intelectual assumiu a presidência do Brasil, desdisse seus textos antigos, repudiou seu passado e objetou seus próprios escritos. Mas a semente de sua involução neoliberal estava presente na abordagem da dependência que postulou polemizando com Marini e Dos Santos.

A visão de Galeano também estava distante da CEPAL. Em nenhuma parte do livro esboçam-se ilusões heterodoxas sobre a superação do subdesenvolvimento regional através de uma industrialização capitalista liderada pela burguesia nacional. O protecionismo e a regulação estatal não são considerados como os caminhos a seguir para erradicar os males econômicos da América Latina.

A oposição a esse percurso verifica-se também nas inúmeras críticas à impotência das classes dominantes locais para colocar em marcha alguma modalidade efetiva de desenvolvimento regional. Destaca-se essa incapacidade para comandar um crescimento industrial semelhante ao alcançado pelas poderosas economias centrais.

Tal questionamento era o eixo do programa político inaugurado pela Revolução Cubana e conceitualizado pela teoria marxista da dependência. Esta abordagem propiciava uma transição direta e sem interrupções para o socialismo, afastando qualquer etapa intermediária de capitalismo nacional.

Veias Abertas inscreve-se nessa corrente de pensamento e compartilha o entusiasmo gerado pelo sucesso inicial da Revolução Cubana. Em numerosos parágrafos, irrompe o espírito de Che, o tom romântico e a esperança no triunfo dos projetos radicalizados. Também enfatiza as raízes históricas das lutas populares em toda a região.

Em nenhum momento Galeano esquece a base econômica estrutural da dependência que os estudos da Gunder Frank enfatizavam. Mas, ao contrário desses estudos, enfatiza a centralidade das resistências populares. Não fala apenas de estanho, mineração, latifúndio e plantações. Destaca as façanhas de Louverture no Haiti, a rebelião de Tupac Amaru no Peru e a ação de Hidalgo no México.

O livro resgata essas tradições de luta popular, destacando como a história oficial dilui a visibilidade destas resistências. Lembra que essa operação de ocultação muitas vezes leva o próprio oprimido a assumir como sua “uma memória fabricada pelo opressor”.

Galeano não apenas detalha como a América Latina foi estruturada durante séculos pela exploração dos índios e a escravidão dos negros. Ressalta também que os sujeitos afetados por esta espoliação reagiram com revoluções e revoltas. Essas sublevações abriram um horizonte alternativo de libertação.

Veias Abertas recorda também o nexo entre essas rebeliões e o assunto pendente da integração regional, legado pelo projeto inacabado de Bolívar. Essa ênfase no papel insurgente dos povos ilustra a afinidade de Galeano com o projeto político revolucionário da Teoria da Dependência.

 

Primarização e extrativismo

A sintonia de um livro escrito há cinquenta anos com uma concepção marxista em voga naquela época não constitui nenhuma surpresa. Mais problemático, contudo, é desvendar a atualidade de ambas as visões. Em que terrenos se verifica a vigência de Veias Abertas e do dependentismo?

Há muitos fragmentos de um livro escrito em 1971 que parecem aludir a situações de 2021. Estes aspectos duradouros do texto (e da teoria que o inspirou) correspondem à condição dependente da América Latina e são corroborados sobretudo pelo extrativismo.

A especialização exportadora da região em produtos primários – que bloqueou seu desenvolvimento no passado – continua obstruindo a decolagem da região. Esse impedimento combina-se, ademais, com um agravamento inédito da deterioração do meio ambiente. A mineração a céu aberto concentra grande parte dessas calamidades e tornou-se o epicentro de numerosos conflitos em todos os países.

Primarização e extrativismo são os dois termos usados atualmente para denunciar a obstrução ao crescimento produtivo e inclusivo, que Galeano destacava há cinco décadas. Veias Abertas descreve como a submissão da região ao mandato externo dos preços das commodities gera essa asfixia.

Mas essa vulnerabilidade já não é mais vista como um simples efeito de processos inexoráveis de desvalorização das exportações de produtos primários. Muitos economistas desvendaram a dinâmica cíclica desses preços no mercado mundial e estudaram o complexo processo de sucessivos encarecimentos e barateamentos das matérias-primas. O grande problema é que essas flutuações sempre obstruem o desenvolvimento devido à condição dependente de toda a região.

A América Latina nunca aproveita os momentos de valorização das exportações e sofre invariavelmente nos períodos opostos de depreciação. Na conjuntura atual de preços altos, essas adversidades são verificadas, por exemplo, no encarecimento dos alimentos. A exportação de trigo e carne tornou-se uma desgraça para a aquisição cotidiana de pão e o consumo de proteínas.

Galeano descreveu uma desventura econômica resultante do manejo adverso da renda agrária, mineira e energética em toda a região. A centralidade dessa remuneração à propriedade dos recursos naturais acentuou-se nas últimas décadas. As grandes potências disputam – com a mesma intensidade que no passado – o precioso espólio das riquezas latino-americanas. A região continua sofrendo o confisco sistemático desse excedente, numa dinâmica que combina a erosão da renda com sua expropriação.

Atualmente os Estados Unidos disputam com a China (e em menor medida com a Europa) a apropriação dos recursos naturais da região. Os gigantes mundiais já não obtêm apenas excedentes de grão ou carne. Capturam também minerais estratégicos como o lítio e depredam sem nenhuma restrição a fauna marinha.

Ao contrário de outras economias não metropolitanas (como a Austrália ou a Noruega), que se aproveitam da renda para seu desenvolvimento, a América Latina sofre a drenagem desse excedente. É incapaz de transformá-lo em investimento produtivo devido à sua posição subordinada na divisão global do trabalho. Essa sujeição também explica o comércio desfavorável com os grandes compradores das exportações da região.

A América Latina não negocia em bloco suas trocas com a China, e os resultados das negociações país por país são invariavelmente adversos. As desventuras retratadas por Galeano há cinquenta anos são recicladas novamente na atualidade.

 

Retrações da indústria

Veias Abertas descreve como os processos históricos de industrialização foram obstruídos na América Latina pelas políticas livre-cambistas. Esse “industricídio” aniquilou a produção interna na Argentina e destruiu o desenvolvimento incipiente do Paraguai, que procurava lançar as bases para uma estrutura fabril independente. Posteriormente, as redes ferroviárias construídas em torno dos funis portuários garantiram o estrangulamento industrial. A mão visível do estado não interveio – como nos Estados Unidos – para assegurar o surgimento de um poderoso tecido industrial.

Este estrangulamento industrial foi parcialmente modificado na segunda metade do século XX pelos processos de substituição de importações. Esse modelo deu origem ao surgimento de estruturas industriais frágeis, mas ilustrativas do potencial expansão manufatureira. Galeano escreveu seu livro no ocaso desse esquema, e, cinquenta anos depois, o panorama industrial é novamente desolador na maior parte da América Latina.

A atividade industrial recuou na América do Sul e tende a especializar-se, na América Central, nos elos básicos da cadeia global de valor. Este cenário adverso é frequentemente descrito com retratos de uma “desindustrialização precoce” da região, que é diferente, por sua maior nocividade, das deslocalizações prevalecentes nas economias avançadas. Em todos os cantos da América Latina, aprofundou-se o distanciamento em relação à indústria asiática e muitos empreendimentos fabris desaparecem antes de atingirem a maturidade.

Nos países medianos, essa deterioração afeta o modelo criado para abastecer o mercado local. No Brasil, o aparato industrial perdeu a dimensão dos anos 80, a produtividade estancou, o déficit externo expande-se e os custos aumentam no compasso de uma obsolescência crescente da infraestrutura. Na Argentina, o declínio é muito maior.

O modelo das empresas maquiladoras mexicanas também enfrenta graves problemas. Continua montando peças para as grandes fábricas estadunidenses, mas perdeu centralidade diante dos concorrentes asiáticos. A renegociação do tratado de livre-comércio com os Estados Unidos simplesmente deu lugar a outro acordo (T-MEC), que renova a adaptação das fábricas fronteiriças às necessidades das empresas do Norte.

A maioria dos países da região continua negociando (e aprovando) acordos de livre-comércio que corroem o tecido econômico local. Em todos os casos, garante-se a desproteção interna contra a invasão incontrolável das importações. Essa adversidade não impediu as negociações do Mercosul para assinar um tratado de livre-comércio com a União Europeia, nem as negociações para acordos unilaterais com a China.

A regressão industrial que afeta a região atualiza todos os desequilíbrios do ciclo dependente estudado pelos teóricos da dependência. Nos anos 70, destacavam a drenagem sistemática de recursos que afetava o setor manufatureiro, através da remessa de lucros. A maior predominância do capital estrangeiro acentuou nas últimas décadas essa obstrução ao processo local de acumulação.

Mas, ao contrário dos anos 70, o retrocesso atual da indústria latino-americana coexiste com a grande ascensão de suas congêneres asiáticas. Basta observar o aumento da distância entre a Coréia do Sul e o Brasil ou a Argentina para notar a magnitude dessa mudança. Enquanto a América Latina era funcional ao velho modelo de mercados internos do capitalismo do pós-guerra, o Sudeste Asiático tende a otimizar o salto registrado na internacionalização da produção.

Muitos autores heterodoxos supõem que a divergência entre as duas regiões se deve apenas à implementação de políticas econômicas opostas. Acreditam que os asiáticos optaram pelo caminho adequado, que foi rejeitado por seus pares da América Latina. Mas essa visão ignora todas os condicionamentos estruturais impostos pela maximização do lucro na divisão mundial do trabalho.

As teses dependentistas destacam esse condicionamento, que o livro de Galeano também detalha. Ali são explicadas as adversidades históricas estruturais que a região enfrenta.

 

Despossessão e exploração

Veias Abertas denuncia o sofrimento da população explorada em todos os cantos da América Latina. Não fala apenas da escravidão e do servilismo do passado. Descreve as condições desumanas de trabalho que prevaleciam há cinco décadas. A atualidade dessas observações é particularmente impactante no contexto dramático de deterioração social do presente.

O neoliberalismo não só agravou o desemprego e a informalidade laboral. Além disso, consolidou uma terrível ampliação das diferenças de renda, na região mais desigual do planeta. Essa polarização explica a escala aterradora da violência que impera nas grandes cidades. Das 50 cidades mais perigosas do mundo, 43 localizam-se na América Latina.

A degradação social que afeta a região deve-se, em grande medida, à renovada expulsão de camponeses imposta pela transformação capitalista do agro. Essa mutação potencializou a expansão descontrolada de uma massa de excluídos que chega às cidades para ampliar o exército de desempregados. A falta de trabalho nas grandes cidades e a baixíssima remuneração dos empregos existentes explicam o enorme aumento da informalidade. Neste contexto, a narco economia generalizou-se como um refúgio para a sobrevivência.

A especialização latino-americana em exportações de produtos primários é complementada, em algumas economias da América Central, pelo crescimento desarticulado do turismo. É a única atividade criadora de empregos em muitas localidades dessa região. Em todos os casos, a ausência de postos de trabalho multiplica a emigração e a consequente dependência familiar das remessas. Enormes contingentes de jovens desempregados são simultaneamente impedidos de criar raízes e de emigrar. Não encontram trabalho em suas localidades de origem e são perseguidos ao ingressar nos Estados Unidos.

As médias regionais de pobreza continuam transbordando na América Latina para o segmento precarizado e afetam uma enorme parcela dos trabalhadores estáveis. Estes dados não mudaram desde o aparecimento do livro de Galeano.

A fragilidade da classe média também persiste, numa região com uma presença reduzida desse estrato. Em comparação com os países avançados, os setores médios proporcionam um colchão muito exíguo ao abismo que separa os abastados dos empobrecidos. Esse segmento é formado principalmente por pequenos comerciantes (ou autônomos) em vez de profissionais ou técnicos qualificados.

Este cenário adverso piorou de forma dramática durante a pandemia do último biênio. Em termos percentuais, a América Latina foi a região com o maior número de contágios e mortes do planeta e também sofreu o maior impacto econômico e social da doença.

A queda do PIB na região foi o dobro das médias internacionais e essa deterioração aprofundou a desigualdade. Metade da força de trabalho (que sobrevive na informalidade) foi severamente afetada pela retração econômica imposta pelo coronavírus. Estes setores tiveram que aumentar suas dívidas familiares para compensar a queda brutal da renda.

A desigualdade digital também aumentou em toda a região e impactou severamente as crianças empobrecidas que perderam um ano de escolaridade. Essa deterioração na educação tem efeitos explosivos em virtude de seu entrelaçamento com a crescente precarização do trabalho. As grandes empresas aproveitam o novo cenário para reduzir os custos laborais, com novas formas de teletrabalho que multiplicam a exploração dos assalariados.

Nas últimas cinco décadas, os capitalistas recorreram a inúmeros mecanismos para compensar sua debilidade internacional, explorando ainda mais a força de trabalho. Por essa razão, a diferença salarial entre a região e as economias centrais aumentou significativamente. A tendência mundial de segmentação do trabalho – entre um setor formal-estável e um informal-precarizado – apresenta uma escala assustadora na América Latina.

Essa disparidade ratifica a vigência do diagnóstico dependentista e confirma a continuidade dos mesmos problemas que Galeano observou no mundo do trabalho. Cinquenta anos depois, todas as suas observações são corroboradas em outra escala.

 

O velho pesadelo do endividamento

Em Veias Abertas, denunciava-se a triplicação da dívida externa entre 1969 e 1975 e a consequente consolidação de um círculo vicioso que asfixia a economia da região. Esse encadeamento obriga a América Latina a seguir um roteiro de aumento das exportações, estrangeirização industrial e auditoria dos banqueiros imposta pelo FMI. Galeano destacava que essas exigências consolidam, por sua vez, a ação dos capitalistas estadunidenses, que controlam grande parte da região através da gestão das finanças.

Nos últimos cinquenta anos, esse pesadelo foi mantido sem mudanças estruturais, e acentuou os desequilíbrios fiscais e os déficits externos, que aumentam os passivos e precipitam novas crises.

Durante a era neoliberal, houve períodos de gravidade variável dessa vassalagem financeira. Na última década, a apreciação das matérias-primas e o ingresso de dólares permitiram certo alívio, mas quando o fôlego comercial desapareceu, o endividamento ressurgiu com grande intensidade. Atualmente, o FMI e os fundos de investimento intervêm novamente de modo protagonista na administração de uma dívida impraticável.

Nos momentos mais dramáticos da pandemia, o FMI emitiu mensagens hipócritas de colaboração. Mas, na prática, limitou-se a convalidar um alívio irrisório do passivo entre um pequeno grupo de nações ultra empobrecidas. Repetiu a atitude assumida em relação à crise de 2008-2009, quando combinou apelos formais para a regulamentação internacional das finanças com exigências crescentes de ajuste para todos os devedores.

A tradição dependentista tem evitado a análise do endividamento em termos de simples especulação financeira. Destaca que o crescente peso dos passivos expressa a fragilidade produtiva e comercial do capitalismo dependente. A vulnerabilidade financeira da América Latina só complementa essas inconsistências.

Há uma sobrecarga com o pagamento de juros, com refinanciamentos compulsivos e com inadimplência sem razão do perfil subdesenvolvido das economias primárias, marcadas pela fraqueza industrial e pela alta especialização em serviços básicos. O endividamento não é desencadeado apenas pela “pilhagem dos financistas”. Reflete a crescente debilidade estrutural dos processos de acumulação.

A região não está isenta do processo de financeirização que caracteriza todas as classes dominantes do planeta. Mas a mutação central que se verificou na América Latina foi a transformação das antigas burguesias nacionais em novas burguesias locais.

O texto de Galeano ainda estava inscrito no primeiro período. Desde então, os grupos capitalistas que priorizam a expansão da demanda com uma produção orientada para o mercado interno perderam sua centralidade. Ganharam peso os setores que priorizam as exportações e preferem reduzir os custos em vez de ampliar o consumo.

 Esse giro também confirmou todos os diagnósticos dependentistas do entrelaçamento do grande capital latino-americano com seus pares do exterior. A localização de grandes fortunas locais em paraísos fiscais e a estreita associação criada pelas principais companhias da região com empresas transnacionais ilustram esta simbiose. O endividamento denunciado por Galeano sustentou essa mutação das classes dominantes.

 

Crises tempestuosas

O livro do escritor uruguaio comove pelo retrato desolador que apresenta da realidade cotidiana da América Latina. Este cenário é condicionado pela irrupção sistemática de crises sufocantes que o capitalismo dependente impõe. Estas convulsões derivam, por sua vez, do estrangulamento externo e da periódica redução interna do poder aquisitivo.

A era neoliberal que sucedeu a publicação de Veias Abertas foi marcada por crises econômicas mais frequentes e intensas, que precipitaram recessões mais profundas e induziram socorros gigantescos dos bancos. Essas turbulências foram invariavelmente desencadeadas pelos estrangulamentos do setor externo, levando a desequilíbrios comerciais e perda de recursos financeiros.

Como as economias latino-americanas dependem da flutuação dos preços das matérias-primas, nos períodos de valorização das exportações, as divisas afluem,  apreciam-se as moedas e os gastos expandem-se. Nas fases opostas, os capitais migram, o consumo decresce e as contas fiscais deterioram-se. No auge dessa adversidade, irrompem as crises.

Essas flutuações, por sua vez, aumentam o endividamento. Nos momentos de valorização financeira, os capitais ingressam para lucrar com operações de alto rendimento, e nos períodos opostos, a saída de capitais generaliza-se. Tais operações são consumadas pelo aumento do passivo dos setores público e privado.

Outro fator determinante das crises regionais são as reduções periódicos do poder aquisitivo. Essas amputações agravam a ausência estrutural de uma norma de consumo de massa. A debilidade do mercado interno e o baixo nível de renda da população explicam essa carência. A expansão da informalidade laboral, os baixos salários e a estreiteza da classe média acentuam a fragilidade do poder de compra.

As duas modalidades de crise – pelo desequilíbrio externo e pela retração do consumo – foram verificadas em todos os modelos das últimas décadas. Despontaram inicialmente durante a substituição de importações (1935-1970) e reapareceram com maior virulência na “década perdida” de estagnação e inflação (anos 80). Tornaram-se mais intensos no início posterior do neoliberalismo, como consequência da desregulamentação financeira, da abertura comercial e da flexibilidade laboral.

A teoria da dependência sempre estudou essas tensões com critérios multicausais e sublinhou a ausência de um único determinante da crise. As convulsões na região são desencadeadas por forças diversas, que combinam os desequilíbrios externos com as restrições do poder de compra.

Essa combinação de determinantes externos e internos teve um impacto devastador nos últimos dois anos da pandemia. A América Latina sofreu a maior contração planetária de horas de trabalho, em consonância com declínios semelhantes na renda popular. Após cinco anos de estagnação, a Covid acentuou uma enorme deterioração da estrutura produtiva. Para piorar a situação, os sinais de recuperação são tênues e as previsões de crescimento são inferiores à média mundial. Outro capítulo de Veias Abertas ocorreu na região durante o “Grande Confinamento” do último biênio.

 

O cenário político

A afinidade de Veias Abertas com a Teoria da Dependência não se limita ao estreito domínio da economia. Na tradição expositiva desta última concepção, o livro evita sobrecarregar o leitor com meros números e estatísticas intrincadas. Destaca com exemplos o impacto da dominação imperialista no subdesenvolvimento regional. Denuncia especialmente os golpes de estado, que sempre utilizaram as embaixadas estadunidenses para instalar governos favoráveis às grandes empresas do Norte.

Cinquenta anos depois, essa intromissão de Washington persiste com maiores disfarces, mas com o mesmo descaramento do passado. Os Estados Unidos buscam atualmente restaurar sua hegemonia mundial deteriorada, reforçando seu controle da América Latina, a fim de conter a centralidade crescente da China. A primeira potência está disposta a utilizar seu enorme poder geopolítico-militar para recuperar as posições econômicas perdidas. Por essa razão, a região é mais uma vez tratada como “quintal”, sujeita às normas de submissão estabelecidas pela Doutrina Monroe.

Os Estados Unidos procuram reduzir a margem de autonomia dos três países medianos da região. Exige que o Brasil entregue a supervisão da Amazônia, que o México reforce a infiltração da DEA e que a Argentina aceite as ordens do FMI. Como as invasões diretas (como Granada ou Panamá) já não são viáveis, o Pentágono reforça suas bases na Colômbia e patrocina inúmeras conspirações contra a Venezuela.

Trump implementou esse roteiro com brutalidade e Biden apressa-se para continuá-lo com bons modos. Ele precisa recompor a deteriorada dominação do Norte e reduz os excessos verbais de seu antecessor, a fim de reconstruir alianças com o establishment latino-americano. Mas, da mesma maneira que Trump, prioriza a diminuição da presença da China na região. Todas as iniciativas da Casa Branca desmentem a percepção ingênua “de que os Estados Unidos já não estão interessados na América Latina”. Recuperar a dominação plena do hemisfério é a prioridade principal de Washington.

É por isso que apoia os governos de direita que atuam como herdeiros das ditaduras denunciadas por Galeano. Tal como os teóricos da dependência, o pensador uruguaio indagava nos anos 70o pilar coercivo de todos os sistemas políticos latino-americanos. Retratava como as tiranias implementavam diferentes modelos de totalitarismo e destacava a primazia exercida pelas burocracias militares na gestão do estado.

No período pós-ditatorial das décadas seguintes, esse esquema foi substituído por diversas modalidades de constitucionalismo, que combinaram políticas econômicas neoliberais com a aceitação forçada das conquistas democráticas.

Mas após várias décadas, os regimes de direita tentam recuperar novamente o predomínio no compasso de uma restauração conservadora. Atuam através da continuação de governos reacionários, de novas capturas eleitorais e de golpes institucionais reiterados. No último biênio de pandemia, militarizaram suas administrações e instauraram estados de exceção, com o crescente protagonismo das forças armadas.

A direita regional opera agora de forma coordenada para estabelecer regimes autoritários. Não promove as tiranias militares explícitas dos anos 70, mas formas disfarçadas de ditadura civil. Entre seus expoentes, persiste uma divisão visível entre personagens extremistas e moderados, mas todos unem forças nos momentos decisivos.

A direita implementa uma estratégia comum de proscrição dos principais líderes do progressismo. Recorrem a mecanismos criativos para inabilitar opositores e orquestrar golpes parlamentares, judiciais e midiáticos. Aspiram a alcançar o controle brutal dos governos retratados no texto de Galeano. Recriaram, além do mais, os discursos primitivos da Guerra Fria e as campanhas delirantes contra o comunismo que propagavam quando a primeira edição de Veias Abertas foi publicada.

Mas todas as figuras da direita regional enfrentam uma grande erosão política por sua responsabilidade na gestão desastrosa do estado. Devem lidar, ademais, com o grande ressurgimento da mobilização popular.

Em três bastiões do neoliberalismo (Colômbia, Peru e Chile) verificaram-se enormes revoltas nas ruas, e, em outros casos, os protestos permitiram a reintegração do governo progressista substituído por um golpe militar (Bolívia). Em diferentes cantos do hemisfério, desponta uma tendência convergente para o reinício das rebeliões que convulsionaram a América Latina no início do milênio.

 

Um símbolo de nossas lutas

Em Veias Abertas, há um apelo repetido à construção de uma sociedade não capitalista de igualdade, justiça e democracia. Essa mensagem está presente em várias passagens do texto. Galeano compartilhava com os teóricos da dependência o objetivo de reforçar um projeto socialista para a região.

Nos anos 1960-70, esperava-se avançar em direção a esta meta ao cabo de revoluções populares vitoriosas. Essa expectativa foi confirmada pelas rebeliões anticoloniais, pelo protagonismo do Terceiro Mundo e pelos triunfos do Vietnã e de Cuba.

Posteriormente, prevaleceu uma etapa inversa de expansão do neoliberalismo, o desaparecimento do chamado “campo socialista” e a reconfiguração da dominação global. Na América Latina, contudo, ressurgiram as esperanças com as rebeliões que marcaram o início do novo século, facilitando a emergência do ciclo progressista e o aparecimento de vários governos radicais. O contexto atual é marcado por uma disputa não resolvida e pela confrontação persistente entre os despossuídos e os privilegiados.

Esse choque inclui revoltas populares e reações dos opressores. Num polo, aflora a esperança coletiva, e no outro o conservadorismo das elites. As vitórias significativas coexistem com retrocessos preocupantes, num quadro marcado pela indefinição dos resultados. Está pendente o resultado da batalha entre os desejos do povo e os privilégios das minorias.

Veias Abertas é um texto representativo dessa luta e por essa razão é periodicamente redescoberto pela juventude latino-americana. O mesmo ocorre com a Teoria Marxista da Dependência. Esse instrumento teórico recupera seu público devido à explicação que proporciona para a compreensão da dinâmica contemporânea da região. Desperta o interesse de todos aqueles interessados em mudar a realidade opressora da região.

O livro de Galeano e o dependentismo compartilham da mesma recepção entre as novas gerações que recuperam os ideais da esquerda. Veias abertas é um verdadeiro emblema dos ideais transformadores. É por isso que em abril de 2009, durante a Quinta Cúpula das Américas, o presidente Chávez presenteou publicamente Barack Obama com um exemplar do livro. Com esse gesto, destacou qual é o texto que sintetiza os sofrimentos, projetos e esperanças de toda a região.

Galeano personificava estes ideais e também gerava um fascínio inigualável no público. Transmitia entusiasmo, sinceridade e convicção. Suas palavras convocavam para a construção de um futuro de fraternidade e igualdade e a renovação desse compromisso é a melhor homenagem a sua obra.

*Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).

Como combater a sociedade dos escravos digitais? Entrevista com Ricardo Antunes

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Poucas vezes, na história do capitalismo, a exploração foi tão crua, diz Ricardo Antunes. Ele sustenta: governo Lula resiste a enfrentar o problema; mas os precarizados, constrangidos por tantos obstáculos, estão apenas começando a lutar

OUTRAS PALAVRAS – 13/09/2024

Entrevista a Maria Carolina Santos, no Marco Zero

Desde os anos 1970 o sociólogo Ricardo Antunes, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisa as relações de trabalho. Acompanhou a ascensão dos movimentos sindicais do ABC Paulista e do trabalho feito em computadores, as mudanças provocadas pela pandemia e o home office. Autor de mais de uma dúzia de livros, nos últimos anos ele vem investigando as plataformas digitais como uber e ifood. E está consternado com o que está acontecendo.

Para o experiente pesquisador, a precariedade do trabalho nas plataformas digitais só encontra paralelo lá na Revolução Industrial, há mais de 200 anos. “O capitalismo de plataforma tem algo em comum com a protoforma do capitalismo: a exploração ilimitada do trabalho”, avalia.

Nas entrevistas que faz com esses trabalhadores para suas pesquisas, o comum é escutar que eles cumprem jornadas de 10, 12 horas. “Eu entrevistei um trabalhador que me falou que trabalhou por 20 horas seguidas. Eu quase caí da cadeira. Perguntei então o que ele fez no dia seguinte e ele respondeu: “A mesma coisa, dormi 2 horas e comecei de novo”, contou Ricardo Antunes, para uma plateia que lotou a sala Aloísio Magalhães, no campus do Derby da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), durante a abertura do I Seminário Mundos do Trabalho: da precarização laboral ao adoecimento mental, promovido na semana passada pela Fundaj e os grupos de pesquisa Labor (UFRPE) e Gesto (UFPE) .

Para Antunes, estamos ingressando em uma nova era de subordinação do trabalho ao capital. Agora, sob o comando de ferramentas informacionais que tende a acentuar ainda mais o processo de desantropomorfização – retirando ao máximo o fator humano do trabalho. “No capítulo de O capital em que Karl Marx trata da grande indústria, ele diz que na indústria da revolução industrial, nos séculos XVIII e XIX, os trabalhadores e trabalhadoras se tornam autômatos e atentes da máquina. Hoje nós somos autômatos e atentes desta máquina digital (mostra o celular) que está controlando o nosso tempo. O trabalho humano que nós temos hoje, ele é ainda mais desantropomorfizador, ele perde ainda mais o seu sentido humano”, disse.

As longas jornadas do chamado “capitalismo de plataforma” trazem também formas mais sofisticadas de submissão dos trabalhadores. Há quem chame de subordinação algorítmica, mas a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Vanessa Patriota da Fonseca, que dividiu a mesa de abertura com Ricardo Antunes, prefere caracterizar como subordinação clássica, por entender que não há diferença no controle.

“Há uma parte que tem o capital e outra parte que tem a força de trabalho. Esses termos muito usados pelas empresas, como colaborador, economia de compartilhamento, parceria, foram criados para intensificar o vínculo simbólico que une uma legião de pessoas exploradas às empresas que as exploram”, disse a procuradora. “As plataformas digitais de trabalho foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida e suga um tempo cada vez maior dos trabalhadores e das trabalhadoras. Isso em um mundo onde as entidades sindicais estão extremamente fragilizadas, dificultando suas lutas, e onde os Estados são capturados pelas grandes corporações”, completou.

Ricardo Antunes usou por algumas vezes a palavra “devastação” para falar do momento atual do mundo: devastação ambiental e devastação no trabalho.

“No século XX, a grande Rosa Luxemburgo nos disse certa vez que o dilema do seu tempo era socialismo ou barbárie. Acertou. Só que se Rosa Luxemburgo estivesse viva hoje, ela diria que não é mais esse, pois na barbárie nós já estamos. E o trabalho é a nossa autocracia dessa barbárie”, disse o professor.

A frase, atribuída aos filósofos Fredric Jameson e Slavoj Zizek, de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo” foi citada algumas vezes durante os dois dias de seminário. Mas Ricardo Antunes lembra que a história é imprevisível. E que a luta de classes é o que vai mudar a realidade de precarização de trabalhadores e trabalhadoras.

“Nós vamos ter que lutar. Porque se a gente não fizer isso, os nossos filhos e os nossos netos, se tiver mundo para eles viverem, serão escravos digitais. Então, nós, se não quisermos lutar por nós mesmos, é bom que comecemos a lutar por eles”, alertou.

Ricardo Antunes tem uma fala cativante: é direto e sem papas na língua, arrancando, aqui e ali, risadas da plateia. É também extremamente gentil. No evento da Fundaj não se furtou a nenhum pedido de autógrafos, fotos, selfies ou conversas rápidas com as dezenas e dezenas de leitoras e leitores que o abordaram.

Ao final da palestra, uma longa fila se formou para fotos. Logo em seguida, sem intervalo, ele participou do lançamento do livro Subordinação (mal) Camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais, da procuradora Vanessa Patriota da Fonseca, do qual escreveu o prefácio.

Enquanto a autora autografava os exemplares do livro, Ricardo Antunes arranjou uma brechinha para esta rápida entrevista abaixo.

Nela, afirma que a política de conciliação do governo Lula não vai fazer as mudanças que os trabalhadores e trabalhadoras precisam. “Tem que combater o capitalismo. E lutar por políticas públicas, sociais etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o capitalismo não aceita mais nem regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer a neoliberalização geral. O capitalismo que está fazendo sucesso hoje é o que combina fascismo com neoliberalismo”, alerta.

Confira a entrevista

Como a precarização e a falta de direitos atinge a saúde do trabalhador?

Quanto mais informalidade, melhor para as empresas. Ou seja, trabalha, ganha; não trabalha, não ganha. O mundo das empresas que ainda têm alguma regulação, como bancos e metalúrgicas, só têm regulação porque os sindicatos lutam. Explorar até o limite só tem um resultado: no caso dos motoqueiros, há a morte de mais de um por dia na cidade de São Paulo. Sem falar dos acidentes: esses motoqueiros quebram braço, perna, bacia, cabeça. É um vilipêndio. É uma morte a céu aberto.

A resiliência é trabalhar todo o possível para a empresa. Qual é o resultado da resiliência? É o burnout, é a depressão, é o assédio, é o sofrimento. E muitas vezes o suicídio.

Um bom exemplo do que é o capitalismo é o Japão. A sociedade japonesa é uma das que tem mais suicídios no mundo. Porque até os gerentes de cada um dos intermediários acham que se a empresa faliu ou está indo mal, a culpa é deles. Ficam trabalhando na empresa até morrer. Quando a Telefrance, na França, foi privatizada, aconteceram mais de 50 suicídios lá dentro. Porque a privatização hoje avança para quebrar direitos da classe trabalhadora. Uma classe trabalhadora sem direitos é uma classe trabalhadora empurrada para o sofrimento, para a depressão, para o burnout, para o assédio, para o suicídio e para a morte.

E como é que você muda isso? Tem que combater o capitalismo. E lutar por políticas públicas, sociais, etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o capitalismo não aceita mais nem regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer a neoliberalização geral. No capitalismo, hoje o que está fazendo sucesso é a combinação de fascismo com neoliberalismo. O exemplo mais evidente é a boçalidade indigente e inqualificável do Javier Milei na Argentina. Este é o boçal do nosso tempo: um burguês ilimitado que está destruindo a classe trabalhadora argentina dizendo-se neoliberal e libertário.

Como é que o senhor avalia o que o terceiro governo Lula tem feito para os trabalhadores?

A primeira coisa importante para avaliar o governo Lula é entender que ele pegou um país de terra arrasada. Fundamentalmente, Michel Temer deu legalidade à aberração do arcabouço fiscal, ou seja, não se amplia recursos para saúde, educação e previdência pública. Um país que não amplia recursos para saúde, educação e previdência pública é o país que comete um crime contra a sua população.

E por que não amplia recursos? Porque os bancos querem dominar o capital financeiro. A primeira coisa que teria que fazer é cortar o domínio e a hegemonia dos bancos e do capital financeiro na política econômica do país. E isso o governo Lula não conseguirá porque é um governo politicamente débil e frágil. Mas, por exemplo, o governo Lula está tentando, ao seu modo, lutar por uma coisa importante, que é retirar a autonomia do Banco Central.

O segundo fator é que, politicamente, para derrotar o Bolsonaro, que foi a expressão do neofascismo do Brasil, evidenciou-se que era preciso eleitoralmente ampliar uma frente. No segundo turno, a diferença de Lula para Bolsonaro foi de menos de 2 milhões de votos. O que o Bolsonaro fez nos últimos seis meses do seu governo foi a devastação total para comprar votos dos eleitores pobres. Lula tomou posse e viveu um golpe oito dias depois da eleição, seria então um milagre que nós tivéssemos no paraíso

Outro ponto é que Lula foi eleito com um programa moderado de conciliação de classes. É sempre bom lembrar que Geraldo Alckmin era o homem do neoliberalismo do Brasil até ontem e continua sendo. É que o Alckmin não é fascista e o Bolsonaro é. E, claro, que Alckmin também estava muito fragilizado no PSDB, que praticamente tinha desaparecido.

Dito isto, o Lula que ganhou a eleição está muito aquém do que ele poderia fazer, mas reconheço ações importantes.

Quais? Na área do trabalho?

Não na área de trabalho. A área de trabalho até agora é lamentável. Reconheço, por exemplo, a tentativa de combater o crime organizado na Amazônia e tentar minimizar as condições de sofrimento e adoecimento do povo indígena. Não é fácil você fechar a Amazônia para o crime porque é uma fronteira aberta imensa, o crime entra por todos os lados. Uma parte da polícia estadual muitas vezes é vinculada ao crime, basta pensar que os milicianos que nascem dentro da polícia e se tornam criminosos e outras tantas dificuldades.

Agora, no que diz respeito à questão do trabalho, o governo Lula não fez nada do que poderia. Claro, não estou falando aqui da política econômica, é evidente que tem havido já uma redução do desemprego razoável. Acabamos de ver agora que houve o crescimento do PIB, então há uma tentativa de retomada do crescimento econômico, mas, por exemplo, o que o Lula disse em campanha? Que ia debater com seriedade a “contra-reforma” trabalhista de Michel Temer. Não só não debateu e não fez a revisão, como o PL 12/2024 (o projeto de lei 12/2024 cria a categoria “trabalhador autônomo por plataforma” e atualmente está fora de pauta no congresso) do seu governo é a continuidade do projeto Temer de destruição do trabalho.

O senhor está se referindo ao projeto de lei que estabelece 12 horas de trabalho diário por aplicativo?

Isso, 12 horas para cada aplicativo. Não fala das mulheres – não há uma nota sobre as trabalhadoras! – e não fala da questão crucial. A questão crucial é que quando você avalia o trabalho em plataformas é se é um trabalho que é verdadeiramente autônomo, ou seja, o trabalhador faz o que quer e não faz o que não quer, ou se ele é um assalariado sem direitos.

No artigo terceiro deste PL do Lula, se diz que esses trabalhadores são “autônomos”, que trabalhadores de plataformas de automóveis são autônomos. É criminoso, porque não é verdadeiro, é falso. Você acha que quem trabalha 12, 14, 16, 18 horas por dia é autônomo?

Autonomia é outra coisa. Se eu sou um eletricista autônomo, eu faço o serviço da sua casa, e eu quem vou dizer quanto eu cobro, quando eu posso fazer, quantos dias eu vou levar e como eu quero receber. Você fala que só vou pagar quando terminar, eu falo que não, eu preciso que você me pague antes uma parte para eu comprar material. Isso é que é ser autônomo, é elementar.

No que diz respeito à questão trabalhista, dos direitos do trabalho, o Lula tem algumas questões cruciais e urgentes a enfrentar: extinguir o trabalho uberizadoda “contra-reforma” de Temer; recuperar o mínimo de força sindical que a “contra-reforma” de Temer também arrebentou, tentando minar economicamente os sindicatos; acabar com as tantas formas de precarização, inclusive, do trabalho feminino na “contra-reforma” trabalhista, porque você desobrigou as empresas de uma série de obrigações que ela tinha, até do transporte de levar trabalhadores e trabalhadoras; e quarto elemento, que diz respeito ao trabalho em plataforma, é inaceitável que um ex-operário que durante décadas trabalhou em fábrica, faça um projeto de lei do seu governo que atende a Uber e iFood, que estão contentes e felizes na vida.

Os entregadores não aceitaram essa proposta do PL?

Felizmente, há luta de classes e há resistência. E, neste caso, além de toda a denúncia que muitos fizeram – eu também fiz, porque era inaceitável – os jovens entregadores e entregadoras de motos e bicicletas repudiaram essa proposta e a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos, chamada de Aliança, disse: “não aceitamos”. E saiu da negociação, deixando o Lula levando o pau do bolsonarismo, que é de extrema direita e é fascista, mas levando críticas também dos setores de esquerda que lutam em defesa dos direitos da classe trabalhadora.

Os motoristas aceitaram, não foi?

Os motoristas aceitaram em parte. Não é que eles aceitaram, mas os que estavam lá aceitaram. Mas se você for fazer uma enquete entre eles, a maioria não aceita. E não é por bons motivos que eles não aceitaram, né? Mas quem é o motorista nos aplicativos hoje? Um era veterinário, outro era engenheiro, outro era motorista de caminhão, outro era operário metalúrgico, outro era trabalhador da construção civil, outro era estudante, outro era gestor de pequena empresa, é um compósito heterogêneo de categorias sociais que, de repente, tem um carro ou aluga, tem uma moto ou aluga, tem uma bicicleta e aluga e vai trabalhar.

E é muito importante entender que esta categoria, além de ser heterogênea, fragmentada, ela vem de experiências diferentes. Um operário metalúrgico, por exemplo, que virou um uberizado, ele tem a experiência das greves.

O operário, o antigo motoqueiro, tinha a experiência do sindicato dos motoqueiros. Já um engenheiro que está desempregado, ou um pequeno empresário, eles não querem saber. Os mais jovens nasceram – e a maioria é muito jovem, especialmente os entregadores – sob o signo de que o sindicato atrapalha, política é negativa e a CLT é um horror.

E isso é tudo construção ideológica das empresas para poder ter uma classe trabalhadora disponível para a exploração ilimitada. Mas muito importante uma coisa: a luta de 1º de julho de 2020 mostra que os trabalhadores, quando a porca torce o rabo, perceberam que há um problema e aí começaram a lutar.

O senhor é otimista com esse movimento Breque dos apps? Porque já faz quatro anos que aconteceu

Não estou sendo otimista, porque nenhum movimento operário, em toda a história do movimento operário, nasce no primeiro, segundo, terceiro ou quarto ano. Quantos anos o ABC Paulista levou para fazer greve depois das greves de Contagem e Osasco? (em abril de 1968, a primeira grande greve no Brasil após o golpe de 1964). Dez anos. Por quê? Por que eram bobos? Não. Porque era uma ditadura. Veja, pense o seguinte: se eu estou endividado, se eu alugo um carro ou compro um carro, se eu alugo uma moto ou compro uma moto, eu compro um celular e fico endividado, eu vou chegar nessa plataforma e vou começar a lutar contra ela? Não, a primeira coisa que eu quero é ganhar dinheiro e trabalhar que nem louco para pagar o carro, a moto ou o celular.

Quanto tempo a Uber está no Brasil? Ela chegou em 2014. Ela só ganhou corpo na pandemia. Em 2016, 2017 ela era pequenininha, mesmo na Inglaterra, mesmo em outros países. É que com a explosão do desemprego na pandemia, as plataformas se expandiram.

É por isso que a Uber, a 99, a Cabify, a Lyft, a Deliveroo, como exemplos generalizados, pagavam muito mais antes. Quando você tem 10 trabalhadores ou trabalhadoras, você paga X. Quando você tem 100, você paga X menos tanto. Quando você tem 1.000, você paga 100 menos X menos Y. Quanto mais trabalhadores e trabalhadoras disponíveis, desempregados, menor é o seu salário.

Se a economia do Brasil melhorar, o número de trabalhadores de aplicativos também pode diminuir?

Não dá para dizer isso porque os salários médios do Brasil hoje estão muito baixos. Então, por exemplo, todos os trabalhadores que eu entrevistei até hoje, todos eles dizem que preferem trabalhar 12, 13 horas e tirar R$ 5 mil, R$ 6 mil do que trabalhar numa empresa e ganhar R$ 3 mil, com descontos. O trabalhador só vai começar a perceber o problema se ele se acidenta e para de trabalhar, porque aí ele não tem um centavo para sobreviver. Aí ele começa a refletir. Eu tenho acompanhado as movimentações dos trabalhadores em aplicativos em Portugal, Inglaterra, Espanha, Itália, Argentina, Uruguai, Brasil. É uma categoria nova, tem apenas alguns anos.

 

“Nexus”, por Hélio Schwartsman

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Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 29/09/2024.

Vale a pena ler “Nexus”, o novo livro do historiador israelense Yuval Noah Harari. A exemplo do que fez em obras anteriores, ele discute coisas relevantes e escreve maravilhosamente bem.

O tema desta vez são as redes de informação e a inteligência artificial. Mestre das generalizações, Harari discorre sobre esses tópicos encaixando-os numa narrativa totalizante. O mundo é o que é em larga medida por causa das diferentes formas como lidamos com informações e as realidades imaginárias que elas geram.

A diferença entre democracias e ditaduras é que as primeiras imprimem transparência ao fluxo de informações, permitindo que elas sejam avaliadas pelos cidadãos e eventualmente corrigidas, enquanto as últimas buscam apenas controlar os dados para controlar a sociedade.

Outro ponto alto de Harari é que ele entremeia a narrativa principal com interessantíssimas subtramas e anedotas. Em “Nexus”, ele faz ótimas observações sobre religiões, seus livros sagrados e epifenômenos como a caça às bruxas, além de contar boas histórias como a do pombo-correio Cher Ami, herói da Primeira Guerra Mundial.

As virtudes de Harari acabam escondendo alguns defeitos. A narrativa límpida dá a sensação de que tudo o que o autor diz já é dado como líquido e certo pela ciência, o que não necessariamente é o caso. Ele até diz que as coisas são mais complicadas, mas raramente dá voz a argumentos contrários. Falta ao texto um pouco daquela humildade meio forçada do discurso acadêmico, mas que ajuda a mostrar que modelos e chaves-explicativas têm limites.

Outro ponto fraco é o caráter altamente especulativo de teses apresentadas sobretudo nas partes finais do livro, que tratam da IA. Harari não esconde que especula. Mas falta alertar para os riscos. Em seus livros anteriores, ele destacava a ameaça que a IA representava para os empregos; neste ele afirma, sem maiores explicações, que as novas tecnologias que eliminam empregos acabam criando novas funções.

O mundo é mesmo complicado, mas isso não elimina o prazer que é ler Harari.

 

Ajuste Fiscal

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Vivemos num momento de grande ansiedade, todos queremos um ajuste fiscal vigoroso do governo nacional, os grupos econômicos e financeiros querem que o governo reduza seus gastos, querem ainda, a diminuição dos dispêndios dos governos municipais e estaduais e, ao mesmo tempo, ninguém quer abrir de seus subsídios, que aumentam seus ganhos monetários e também ninguém quer pagar mais impostos e, usam seus instrumentos políticos para impedir a redução das taxas de juros, que garantem seus ganhos elevados e seu entesouramento. Ajuste fiscal e controle dos gastos é para os outros… por isso, estamos nesta situação de caos generalizado.

A Justiça do Trabalho em xeque, por Erik Chiconelli Gomes

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Após a “Reforma” Trabalhista ela tornou-se muito menos acessível. Mas, da economia de plataformas ao trabalho remoto, precisará se reinventar. A sociedade se transforma – e ela não é algo “setorial”, mas determinante na redução das desigualdades no país

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 27/09/2024

A relação entre capital e trabalho sempre foi palco de intensos debates e conflitos ao longo da história. No Brasil, a Justiça do Trabalho emerge como uma instituição fundamental para mediar essas tensões, buscando equilibrar os interesses de empregadores e trabalhadores. Contudo, as recentes mudanças na legislação trabalhista, em especial a reforma de 2017, trouxeram questionamentos sobre o papel e a eficácia dessa instituição no contexto contemporâneo.

A formação da Justiça do Trabalho no Brasil está intrinsecamente ligada ao processo de industrialização e urbanização do país no início do século XX. Este período foi marcado por intensas lutas sociais e pela emergência de uma classe operária que buscava melhores condições de trabalho e reconhecimento de seus direitos. Os sindicatos desempenharam um papel crucial nesse processo, atuando como representantes coletivos dos trabalhadores e sendo fundamentais para a conquista de direitos e para a criação de um ambiente de negociação mais equilibrado entre capital e trabalho.

A promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943 representou um marco na história do direito trabalhista brasileiro. Este conjunto de leis buscava não apenas regular as relações de trabalho, mas também estabelecer um patamar mínimo de direitos e garantias para os trabalhadores. Com o fim do regime militar e a promulgação da Constituição de 1988, a Justiça do Trabalho ganhou novos contornos e atribuições. A carta magna reafirmou a importância dos direitos trabalhistas e fortaleceu o papel desta justiça especializada na resolução de conflitos laborais.

O advento da globalização e as transformações no mundo do trabalho trouxeram novos desafios para a Justiça do Trabalho. As pressões por flexibilização das leis trabalhistas ganharam força, sob o argumento de que era necessário modernizar as relações de trabalho para aumentar a competitividade das empresas brasileiras. É neste contexto que surge a reforma trabalhista de 2017, apresentada como uma solução para modernizar as relações de trabalho e reduzir o número de processos na Justiça do Trabalho.

A Reforma Trabalhista e seus impactos

Contrariando as expectativas iniciais, a reforma não resultou em uma redução sustentada do número de processos trabalhistas. Conforme apontado pelo presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Lelio Bentes Corrêa, houve uma queda inicial seguida de um aumento gradual nos anos subsequentes. Uma das mudanças mais controversas da reforma foi a introdução dos honorários de sucumbência, mesmo para beneficiários da justiça gratuita. Esta medida foi vista por muitos como um obstáculo ao acesso à justiça, especialmente para trabalhadores em situação de vulnerabilidade econômica.

A intervenção do Supremo Tribunal Federal, declarando inconstitucionais alguns aspectos da reforma, como o pagamento de honorários por beneficiários da justiça gratuita, demonstra as tensões e contradições presentes na nova legislação trabalhista. A reforma também impactou significativamente a atuação dos sindicatos, ao eliminar a obrigatoriedade da contribuição sindical. Esta mudança afetou a sustentabilidade financeira dessas organizações, potencialmente enfraquecendo sua capacidade de representação e negociação coletiva.

Os efeitos da reforma sobre os trabalhadores são múltiplos e complexos. Se por um lado houve uma flexibilização das relações de trabalho, por outro, muitos argumentam que isso resultou em uma precarização e redução de direitos historicamente conquistados. Instituições como o CESIT (IE/Unicamp), o Dieese e o Ipea têm desempenhado um papel crucial na análise desses impactos, fornecendo subsídios importantes para a compreensão das transformações no mundo do trabalho e na Justiça do Trabalho.

A questão da desigualdade

Historiadores que se dedicaram ao estudo da Justiça do Trabalho, como Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, têm contribuído para uma compreensão mais profunda do papel histórico desta instituição e das transformações nas relações de trabalho no Brasil. Seus estudos revelam que a atuação da Justiça do Trabalho não pode ser dissociada do contexto mais amplo de desigualdade social no país. As decisões e orientações desta instituição têm impactos diretos na distribuição de renda e nas condições de vida dos trabalhadores.

O advento das novas tecnologias e formas de trabalho, como o trabalho por aplicativos, impõe novos desafios à Justiça do Trabalho. A necessidade de adaptar-se a essas novas realidades sem perder de vista a proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores é um dos grandes desafios contemporâneos. Diante das transformações recentes, a Justiça do Trabalho se vê diante da necessidade de encontrar um novo equilíbrio entre a flexibilidade demandada pelo mercado e a proteção dos direitos dos trabalhadores. Este equilíbrio é fundamental para a manutenção da paz social e para o desenvolvimento econômico sustentável.

O futuro da Justiça do Trabalho

O futuro da Justiça do Trabalho no Brasil dependerá de sua capacidade de se adaptar às novas realidades do mundo do trabalho, sem abrir mão de seu papel fundamental na proteção dos direitos dos trabalhadores e na mediação dos conflitos entre capital e trabalho. A análise crítica da reforma trabalhista e seus impactos revela a complexidade e as contradições presentes nas relações de trabalho contemporâneas. É fundamental que a sociedade brasileira continue a debater e refletir sobre estas questões, buscando caminhos que promovam tanto o desenvolvimento econômico quanto a justiça social.

Os desafios que se apresentam para a Justiça do Trabalho no século XXI são múltiplos e complexos. A instituição precisa encontrar formas de lidar com as novas modalidades de trabalho, como a economia de plataforma e o trabalho remoto, que escapam muitas vezes às categorias tradicionais do direito trabalhista. Ao mesmo tempo, é necessário garantir que a busca por flexibilidade e competitividade não resulte em uma erosão dos direitos fundamentais dos trabalhadores.

A experiência histórica da Justiça do Trabalho no Brasil, desde sua criação até os dias atuais, demonstra sua capacidade de adaptação e seu papel crucial na mediação dos conflitos laborais. No entanto, o cenário atual exige uma reflexão profunda sobre seu papel e suas práticas. É essencial que a instituição mantenha sua relevância como guardiã dos direitos trabalhistas, ao mesmo tempo em que se mostra capaz de compreender e responder às mudanças no mundo do trabalho.

Em última análise, o futuro da Justiça do Trabalho no Brasil está intrinsecamente ligado ao futuro do próprio trabalho em nossa sociedade. As decisões tomadas hoje terão impactos duradouros na vida de milhões de trabalhadores e na estrutura social do país. Portanto, é imperativo que essas decisões sejam baseadas em uma compreensão profunda da história das relações de trabalho, em dados empíricos sólidos e em um compromisso inabalável com a justiça social.

A Justiça do Trabalho, ao longo de sua história, tem sido um campo de batalha onde se confrontam diferentes visões sobre o papel do trabalho na sociedade e sobre os direitos dos trabalhadores. Sua evolução reflete as mudanças sociais, econômicas e políticas do país. Agora, diante dos desafios impostos pela reforma trabalhista e pelas transformações no mundo do trabalho, ela se encontra novamente em um momento crucial. O caminho que ela seguirá terá implicações profundas não apenas para os trabalhadores e empregadores, mas para toda a sociedade brasileira.

Referências

BIAVASCHI, M. B. et al. O impacto de algumas reformas trabalhistas na regulação e nas instituições públicas do trabalho em diálogo comparado. In: KREIN, J. D.; GIMENEZ, D. M.; SANTOS, A. L. (Orgs.). Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil. Campinas, 2018.

CARDOSO, A. M.; LAGE, T. As normas e os fatos: desenho e efetividade das instituições de regulação do mercado de trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

DIEESE. A reforma trabalhista e os impactos para as relações de trabalho no Brasil. Nota Técnica nº 178. São Paulo: DIEESE, 2017.

GOMES, A. C.; SILVA, F. T. (Orgs.). A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

IPEA. Mercado de Trabalho: conjuntura e análise. Brasília: IPEA, 2018.

KREIN, J. D.; OLIVEIRA, R. V.; FILGUEIRAS, V. A. (Orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas, 2019.

O TEMPO. Presidente do TST diz que reforma não cumpriu promessa de reduzir processos. O Tempo, 13 set. 2024.

FOLHA DE S.PAULO. Presidente do TST afirma que reforma trabalhista não cumpriu promessa de reduzir processos judiciais. Folha de S.Paulo, ago. 2024.

 

Subsídios do agronegócio, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa

A Terra é Redonda – 23/05/2023

Nota sobre a circulação monetário-financeira entre agronegócio e serviços urbano-industriais

A publicidade contínua na TV busca convencer à desinformada opinião pública brasileira o agronegócio ser tudo na economia brasileira. Ao buscar essa hegemonia, tenta o transformar em uma totalidade merecedora dos privilégios oferecidos pelas políticas públicas – agrícola, comercial, financeira, tributária, fundiária e tecnológica – do Estado brasileiro. Afinal, agro é pop…

O agronegócio exportador recebe incentivos fiscais no imposto de renda, não paga imposto de exportação e pouco paga de Imposto Territorial Rural (ITR). Beneficia-se da moeda nacional depreciada em favor de suas exportações e goza de subsídios no crédito rural. O Tesouro Nacional, isto é, todos os contribuintes, banca a equalização da taxa de juros: um subsídio governamental dado aos produtores rurais quando o governo cobre a diferença entre a taxa de juros praticada no mercado financeiro e a taxa efetivamente paga pelo produtor devedor.

O mito para justificar tudo isso seria a suposta transformação do comércio exterior em um completo dependente de commodities agrícolas. Por um lado, abstrai as exportações de petróleo e minerais, fora a de produtos manufaturados. Por outro, não destaca a grande responsabilidade pelo salto da exportação de US$ 48 bilhões em 1999 para US$ 334 bilhões em 2022 ter sido a demanda externa, em especial, a da China.

Aliás, vale destacar: entre 2003 e 2011, a média das variações anuais da exportação brasileira foi 18,6% aa com uma única queda em 2009; entre 2012 e 2020, essa média foi negativa (-1,7% aa), com altas apenas em 2017 e 2018. Os crescimentos dos anos de 2021 e 2022 foram excepcionais, respectivamente +34,2% e +19%, por conta da recuperação do fluxo dos negócios após a pandemia mundial.

Guilherme Delgado (Diplô, maio de 2023) conceitua o agronegócio como “um pacto de Economia Política, associando complexos agroindustriais integrados com a grande propriedade fundiária e o Estado planejador do lucro da produção e da valorização patrimonial, tendo em vista gerar resultados comerciais externos superavitários como meta primordial”.

O objetivo nacional é o superávit do balanço comercial cobrir o déficit da conta de serviços e renda enviados ao exterior. Por exemplo, em 2022, o déficit do balanço de transações correntes foi US$ 55,7 bilhões, apesar do superávit do balanço comercial em US$ 44,4 bilhões, devido ao pagamento ao exterior de US$ 40 bilhões em serviços e remessa de renda primária de US$ 64 bilhões, seja em investimento direto (US$ 42 bilhões), seja em investimento em carteira (US$ 21 bilhões). Lucros e dividendos remetidos para o exterior predominam: os de filiais para matrizes e os recebidos em carteira de ações.

É uma opção reducionista definir o agronegócio como o capitalismo agrário, assim como seria definir a “financeirização” como o capitalismo financeiro – e assim por diante. Nessa ótica, o capitalismo industrial teria perdido sua hegemonia e isso, de maneira pressuposta, seria um desastre sob o ponto de vista de geração de empregos produtivos e valor adicionado.

Deve-se compreender o funcionamento integrado do conjunto de subsistemas do sistema capitalista: agrícola, pecuário, industrial, mercantil e financeiro. Eles interagem, são interdependentes e não excludentes um do outro, seja em escala nacional, seja em nível global. Corporações multinacionais tendem a controlar o complexo de sistemas com componentes agrícola, industrial, mercantil, financeiro, tecnológico e ideológico.

O agronegócio não é apenas o complexo agroindustrial. É configurado por um complexo de redes interconectadas por governos, políticos, organizações financeiras multilaterais, redes de supermercados, bancos etc. O modelo de desenvolvimento possível para a economia brasileira não é, exclusivamente, o primário-exportador, “voltado para fora”.

A Fisiocracia à outrance é anacrônica. A etimologia do grego significa “governo da natureza”. Foi uma das primeiras teorias econômicas, desenvolvida por franceses do século XVIII na Era pré-industrial. Supunham a riqueza das nações ser derivada unicamente do valor de “terras agrícolas” ou do “desenvolvimento rural”.

Predomina ainda em muitas mentes ideológicas a ênfase fisiocrata no trabalho produtivo como a única fonte de riqueza nacional. Esse pensamento era contrastante como o Mercantilismo. Este focava na riqueza do Reino, no acúmulo de reservas em ouro através de saldo superavitário do balanço comercial.

O Mercantilismo pregava a regra de ouro do comércio: o valor dos produtos da sociedade seria criado por o vendedor vender seus produtos por mais dinheiro daquele preço pago originalmente. A força ideológica da corrente fisiocrática de pensamento econômico foi ter sido a primeira a defender o trabalho ser a única fonte de valor.

No entanto, para os fisiocratas, apenas o trabalho agrícola criava valor nos produtos com o apoio da natureza, semeando mais barato e colhendo mais caro. Todos os demais trabalhos não agrícolas seriam apêndices improdutivos. Comerciantes não produziam bens, apenas distribuíam os produzidos por proprietários agrícolas.

Pior, Karl Marx e seus discípulos adotaram a proposição do trabalho produtivo como um dogma. Na verdade, segundo o esquema marxista, o capital “produtivo” não se opõe ao “improdutivo”, mas sim ao capital no processo de circulação.

O capital produtivo organiza, diretamente, o processo de criação de bens e serviços. O capital no processo de circulação organiza a compra e a venda, ou seja, a transferência do direito de propriedade sobre os produtos. O trabalho assalariado, caso seja empregado nessa circulação, não cria valor, apesar de ser explorado?!

Ao serem utilizados para a transferência do direito de propriedade privada, todos os trabalhadores empregados, entre outras “atividades terciárias”, no comércio (compra e venda), no governo (administração pública) e no sistema financeiro (pagamentos, financiamentos e gestão do dinheiro) seriam “improdutivos”? Evidentemente, este é um adjetivo inadequado, porque pode ser confundido como “inúteis”. Ora, eles possibilitam a alavancagem financeira geradores de maior escala de empregos e a realização das vendas com valor adicionado superior aos gastos intermediários.

Em todo o mundo, houve mudança da população das áreas rurais para as urbanas e consequente aumento da proporção de habitantes em cidades. Até 2050, cerca de 64% do mundo em desenvolvimento e 86% do mundo desenvolvido serão considerados urbanizados. O grau de urbanização do Brasil já alcançou este último patamar.

No ano de 1940, apenas 32% da população brasileira vivia em cidades. O censo demográfico de 1970 registrou a ultrapassagem da população urbana sobre a rural.

O processo de urbanização no Brasil se desenvolveu, principalmente, na segunda metade do século XX, a partir do processo de industrialização. Este foi fator de atração para o deslocamento da população da área rural em direção à área urbana. Houve também fatores de repulsão para essa migração campo-cidade, por exemplo, a concentração fundiária sem reforma agrária e a mecanização do campo.

Esse êxodo rural foi sintomático da mudança de um modelo agrário-exportador para um modelo urbano-industrial. O Sistema de Contas Nacionais do IBGE registrou já em 1947 os Serviços (55,7% do PIB) terem superado a Agropecuária (21,4%) e a Indústria (26%). Entre eles, os Financeiros foram contabilizados com 3,3%. Em 1989, a Agropecuária tinha caído para 9,8% e a Indústria Geral aumentado para 46,3% – seu auge aconteceu em 1985 com 48%. Os Serviços Financeiros, neste ano de regime de alta inflação, chegaram a 26,4%!

Em 2022, seu valor adicionado foi contabilizado em apenas 7,5%. Na verdade, o sistema financeiro não agrega, mas sim circula (e se apropria de) valor adicionado em outras atividades. Propicia o carregamento e a proteção da riqueza financeira acumulada por trabalhadores e capitalistas. Ao cumprir essa missão social de gestão do dinheiro viabiliza uma mobilidade social caso se cumpra o planejamento da vida financeira.

A urbanização costuma ser vista como negativa quando há deslocamento de moradores para subúrbios periféricos sem infraestrutura. O desenvolvimento da infraestrutura, com o planejamento estatal em lugar da autoconstrução sem presença do governo local, propicia a redução das despesas com transporte e aumenta as oportunidades de emprego, educacionais, habitacionais e de locomoção.

O crescimento econômico pode não ser regular se for baseado em pequeno número de grandes negócios e dependente de milhares de micro empreendimentos. A falta de acesso a serviços financeiros e de assessoria empresarial, a dificuldade de obtenção de crédito para abrir um negócio e a falta de habilidades empreendedoras são barreiras para novas gerações terem acesso a oportunidades profissionais e empreendedoras.

O investimento em capital humano (capacidade pessoal de ganho), para os jovens terem acesso a uma educação de qualidade, é fundamental. Em conjunto com infraestrutura, para o agronegócio e os serviços urbano-industriais, propicia superar as barreiras.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

 

A quarta Revolução Industrial e o futuro do trabalho, por Elisa Rosa.

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Entenda como as novas tecnologias mudam o cenário de trabalho e as competências e habilidades necessárias para o mercado.

Elisa Rosa – Sebrae – 11/09/2019

O cenário atual

Exemplos atuais: engenheiros ambientais que trabalham com a análise de desmatamento no Brasil. Antes era muito comum que as análises fossem feitas manualmente por várias pessoas. Eles tinham que delimitar a área de desmatamento manualmente ponto por ponto. Trabalho custoso, manual e que demandava muito tempo. Hoje um programa automático substituiu essa tarefa.

Outro exemplo são os caixas de supermercado na Europa. Quando fazemos compras no supermercado, metade dos caixas são automáticos e metade são operados por seres humanos.

Os carros autônomos já são uma realidade. Uber, Google e Tesla estão investindo pesadamente nessa tecnologia e esses veículos estão em fase de testes. E como ficará o emprego dos motoristas quando esses carros autônomos começarem a circular? Apenas hoje, no Brasil, temos mais de 500 mil motoristas de Uber. Imagine o número total, se somarmos os motoristas de táxis, de caminhões, particulares e de empresas.

Claro que existem várias discussões éticas acerca da legalização destes carros, mas a disrupção é intransigente. Ela tem que muitas vezes quebrar as barreiras legais, para que depois as leis se adaptem a elas.

O que esperar do futuro

E o que vai acontecer, então, quando não tivermos mais que dirigir nossos carros, quando não tivermos que operar caixas, quando não tivermos que ter que recepcionar pessoas no hotel e quando não tivermos mais que diagnosticarmos nossas doenças?

No Japão existem hotéis cujos recepcionistas são robôs. Do limpador da vidraça até o cortador de grama, as tarefas que foram automatizadas. Segundo o gerente do estabelecimento, naquele hotel, até 90% dos robôs podem substituir as tarefas desempenhadas pelos humanos.

Nós não estamos em um momento que podemos nos sentar e esperar que os eventos se desenrolem. Para estarmos preparados para o futuro, precisamos entender o que está acontecendo agora.

A quarta Revolução Industrial tem uma parte controversa: ela pode acabar com cinco milhões de vagas de trabalho nos 15 países mais industrializados do mundo, de acordo o Fórum Econômico Mundial de 2017 sobre o tema “A Quarta Revolução Industrial”. Obviamente, o processo de transformação só beneficiará quem for capaz de inovar e se adaptar.

Então quem vai sobreviver? Os que mais se adaptarem a essa nova era porque “não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”, disse Darwin, o pai da Teoria da Evolução.

E não são só os empregos braçais e repetitivos que estão em risco. Em Wall Street e no Vale do Silício já acontecem enormes ganhos na qualidade da análise das tomadas de decisões por meio de inteligência artificial. Então, até mesmo pessoas mais inteligentes e bem remuneradas serão afetadas pela quarta Revolução Industrial.

Oxford fez um estudo sobre as probabilidades de automação das profissões. O site é https://willrobotstakemvjob.com. O site está em inglês, e se você não entende o idioma, tente usar o recurso de tradução automática do browser e procure por profissões como caixa, motorista e contador.

É exatamente por isso (automação dos trabalho e substituição de seres humanos por robôs e inteligência artificial) que empresários como Marck Zuckeberg e Bill Gates falam sobre a necessidade de uma renda básica universal.

Em 2017, no discurso de formatura da universidade Harvard, Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, não falou sobre redes sociais ou empreendedorismo digital. O tema de seu discurso foi “a criação de propósito”. Ele apresentou a ideia de que os Estados garantam uma renda mínima a seus cidadãos, independente de classe socioeconômica, para que seja possível que todos tivessem o básico, para poder desenvolver ideias.

Mas nós sabemos que não dá para esperar esse projeto partir do governo para sustentarmos nosso sistema econômico. Ou seja, vamos continuar precisando de empregos para fazer a economia girar.

Então, essa resposta terá que vir de nós mesmos. Temos que reconhecer as mudanças que estão acontecendo e caminhar lado a lado.  Precisamos pensar sobre como auxiliar como os pequenos negócios do Brasil podem começar a movimentar num ritmo diferente e desenhar novos tipos de empregos que ainda serão importantes na era da robótica.

Em cinco anos, 35% das competências que são consideradas importantes na força de trabalho atualmente terá mudado, de acordo com a Reunião Anual em Davos do Fórum Econômico Mundial. Em 2020, a quarta Revolução Industrial, vai estar ligada às tecnologias disruptivas como a inteligência artificial, machine learning, robótica, nanotecnologia, dentre outras, mudando modelos de negócios e os mercados de trabalho.

Sendo assim, quais habilidades serão necessárias no futuro?

Em 2020

  1. Solução de problemas complexos
  2. Pensamento crítico
  3. Criatividade
  4. Gestão de Pessoas
  5. Empatia com os outros
  6. Inteligência Emocional
  7. Bom Senso e Tomada de Decisão
  8. Orientação para os serviços
  9. Negociação
  10. Flexibilidade Cognitiva

Em 2015

  1. Solução de problemas complexos
  2. Relacionamento com os outros
  3. Gestão de Pessoas
  4. Pensamento Crítico
  5. Negociação
  6. Controle de Qualidade
  7. Orientação para Serviços
  8. Bom Senso e Tomada de Decisão
  9. Escuta Ativa
  10. Criatividade

Fonte:  Relatório “Future of Jobs” World Economic Forum.

Alguns trabalhos vão desaparecer, outros que nem sequer existem hoje se tornarão comuns. O que é certo é que a futura força de trabalho terá de alinhar o seu conjunto de habilidades para manter o ritmo.

E não é nem possível prever quais serão esses empregos do futuro? Como há 20 anos, imaginaríamos que haveria profissões como Especialista em Redes Sociais, Youtuber, Blogger e Influenciador Digital?

O caminho para trilhar

Ao mesmo tempo em que temos essa perspectiva não muito animadora, a quarta revolução tem o potencial de melhorar a qualidade de vida de muitas pessoas, trazendo melhores diagnóstico, prevenindo pessoas de fazerem trabalhos desagradáveis e análises que podem nos ajudar a cuidar melhor do meio ambiente, por exemplo.

Se começarmos a tomar providências agora, para mudar a natureza do trabalho, podemos não criar apenas lugares em que as pessoas amem trabalhar, mas também criar a inovação que precisamos para repor os milhões de empregos que serão substituídos pela tecnologia.

Quando vemos o relatório do Fórum Econômico Mundial e as top 10 habilidades para 2020, já podemos ter uma dica do que nos aguarda. Baseado nessas habilidades, então, o que pode existir é a criação de novos empregos menos centrados nas tarefas que uma pessoa faz e mais focados nas habilidades que ela traz para o trabalho.

Robôs são ótimos em tarefas repetitivas e restritas, mas os humanos têm uma capacidade incrível de usar a criatividade quando enfrentam na resolução de problemas complexos e inéditos.

Enfim, nenhuma exploração sobre o futuro do trabalho será sempre conclusiva. Mas a realidade mostrada é cada vez mais real. Fica, assim, a reflexão sobre como podemos atuar como protagonistas nessa revolução que já está acontecendo e não vai esperar nem um segundo por nós.

Autoria: Elisa Rosa, mestra em Comunicação e analista do Sebrae Nacional

 

Dúvidas econômicas

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A economia brasileira vem apresentando bons indicadores nos últimos meses, a inflação apresenta perspectivas de estabilidade, as exportações crescem de forma acelerada, o superávit comercial cresce e garante um incremento das reservas internacionais e, ao mesmo tempo, as receitas tributárias crescem todos os meses, o emprego é o maior dos últimos dez anos, as Bolsas apresentam valores positivos, mesmo assim, encontramos grandes desafios para a economia nacional, será que estamos vivendo momentos de bonança econômica, com boas perspectivas no campo econômico e produtivo ou estamos vivendo momentos de crescimento sem lastro e, novamente, vislumbrando novas crises, com o aumento do desemprego, de descontrole dos preços relativos e nova rodada de elevação das taxas de juros?

Vivemos momentos de grandes incertezas no cenário internacional, as potências econômicas se digladiam como forma de garantir novos espaços na lógica produtiva mundial, percebemos ainda, o crescimento de políticas protecionistas em todas as nações, medidas de estímulos econômicos para garantir a internalização de produtos estratégicos para alavancar espaços no cenário produtivo global, gerando instabilidades externas, rivalidades crescentes e confrontos geopolíticos.

Depois de mais de trinta anos de baixo crescimento econômico e produtivo, marcados por uma desindustrialização precoce, a adoção de taxas de juros elevadas, com o crescimento do desemprego estrutural e o incremento da financeirização da economia, estamos vivendo momentos marcados por grandes dúvidas econômicas, que restringem os investimentos produtivos, estimulam o rentismo e criam incertezas que prejudicam o funcionamento da economia nacional.

Neste cenário, marcado por grandes incertezas externas, precisamos construir um novo consenso nacional em prol do crescimento econômico e a redução das desigualdades sociais que convivem fortemente na sociedade brasileira, precisamos de políticas públicas sólidas e consistentes que impulsionem a melhoria do ambiente econômico, estimulando os investimentos produtivos, a geração de empregos mais qualificados, melhorando as contas nacionais, reduzindo o desperdício dos gastos públicos, racionalizando os investimento públicos e atraindo conglomerados nacionais e internacionais que podem alavancar setores estratégicos da economia do século XXI, compreendendo que somos dotados de grandes recursos energéticos, além de riquezas vegetais e minerais que nos coloca em condições privilegiadas no ambiente econômico internacional.

Todas as nações que conseguiram se desenvolver economicamente com melhora de suas condições sociais, precisaram aumentar a complexidade de suas economias e de seus sistemas produtivos e, antes de mais nada, fizeram grandes investimentos em educação, priorizando o ensino, a pesquisa e construindo um verdadeiro ecossistema de inovação e empreendedorismo, garantindo oportunidades para todos os talentos nacionais e construindo empregos mais qualificados, com salários dignos e decentes, além de impulsionar o ensino superior, com professores capacitados, valorizados e conscientes de seu papel numa sociedade em constante transformação.

Os desafios são imensos para a economia nacional, para superarmos este momento de grandes dúvidas econômicas, precisamos compreender o que queremos ser no futuro imediato, se queremos continuar sendo um produtor de commodities de baixo valor agregado ou se queremos retomar nosso processo de industrialização, se não definirmos o que queremos do futuro imediato as dúvidas econômicas tendem a aumentar e as incertezas devem afugentar o crescimento, nos afastando do sonho do desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Gestor Financeiro, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Quem sustenta a Civilização do Plástico, por Javati Ghosn.

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Símbolo do descarte e desperdício que marcam o capitalismo, ele contamina rios, mares, solos e corpos. Redução drástico de seu uso é possível e está em debate num tratado internacional. Adivinhe quem trabalha intensamente para sabotá-lo.

Javati Ghosn é professora de Economia na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Délhi em Délhi, Secretaria Executiva da International Devlopment Economics Associates, e membro da Comissão Independente pela Reforma Tributária de Corporações Internacionais.

OUTRAS PALAVRAS, 26/09/2024

Não há como negar que os plásticos trouxeram benefícios imensos ao longo do último século, impulsionando a inovação tecnológica, transformando os cuidados com a saúde e alimentando o crescimento econômico global. Mas, como sabemos agora, esse progresso teve um alto custo.

As consequências adversas da nossa dependência excessiva de plásticos estão bem documentadas. Desde a extração e o transporte dos combustíveis fósseis necessários para produzi-los, passando pelo processo de fabricação, até seu uso e descarte intensos, cada etapa do ciclo de vida dos plásticos implica poluição e degradação ambiental.

A poluição plástica põe em risco a vida selvagem, danifica ecossistemas e representa sérios riscos à saúde humana. Microplásticos, junto com os produtos químicos tóxicos que contêm, são encontrados no ar que respiramos, nos alimentos que ingerimos e podem ser absorvidos pela pele. À medida que os resíduos plásticos se acumulam em oceanos, rios e lagos, produtos químicos nocivos contaminam o solo, prejudicando a vida vegetal. Embora as implicações completas dos nanoplásticos para a saúde humana ainda estejam subpesquisadas, é claro que grupos vulneráveis, como crianças, mulheres, comunidades empobrecidas e trabalhadores na produção de plásticos, gestão de resíduos e reciclagem são os mais afetados por esses perigos.

O debate atual, especialmente sobre plásticos usados uma única vez, geralmente se concentra no descarte, provocando apelos por soluções de “economia circular” como a reciclagem. Mas não existem plásticos verdadeiramente “seguros”, e os rótulos de produtos que afirmam o contrário são enganosos e obscurecem os danos causados pela extração de petróleo e gás, que respondem por 99% dos plásticos do mundo. As toxinas liberadas durante a extração de combustíveis fósseis são conhecidas por prejudicar a pele, os olhos e os sistemas respiratório, nervoso e gastrointestinal, além do fígado e do cérebro.

A produção de plástico não é apenas uma ameaça direta à saúde humana, mas também um dos principais impulsionadores das mudanças climáticas, representando cerca de 3 a 8% das emissões globais de gases de efeito estufa (GEE). No entanto, apesar dos perigos existenciais impostos pela crise climática, a produção de plástico continua a aumentar. Estimativas da OCDE sugerem que, se as tendências atuais persistirem, o uso global de plásticos, e os resíduos que eles geram, poderão quase triplicar até 2060. Espera-se que metade desses resíduos acabe em aterros sanitários, com menos de 20% sendo reciclados.

Ainda mais alarmante é a projeção de que os plásticos reciclados representem apenas 12% de todo o uso de plástico em 2060, enquanto o vazamento de plástico no meio ambiente deve dobrar, atingindo 44 milhões de toneladas anuais, com consequências devastadoras para a saúde humana e os ecossistemas naturais. Se os planos de expansão da indústria se concretizarem, a produção de plástico poderá consumir 31% do orçamento de carbono restante do planeta para limitar o aquecimento global a 1,5°C.

Esse aumento na fabricação está cada vez mais desalinhado com as projeções de demanda futura. Um estudo sugere que a produção global de plásticos como o polipropileno precisa diminuir em 18 milhões de toneladas anualmente até 2030, devido à redução da demanda da China e de outros países. Na verdade, as empresas petroquímicas já estão lidando com um excesso global de oferta, mais um exemplo de como as forças do mercado não conseguem gerar resultados eficientes ou sequer sensatos.

Com as corporações sob crescente pressão para reduzir as emissões de gases do efeito estufa, insistir na produção de plásticos à base de combustíveis fósseis parece não apenas imprudente, mas também economicamente míope. Ainda assim, um estudo recente do Instituto de Economia Energética e Análise Financeira constatou que, mesmo diante de possíveis rebaixamentos de crédito, as maiores empresas petroquímicas do mundo estão “fazendo grandes investimentos na direção errada”.

Diante das apostas envolvidas, fica claro que reduzir apenas o consumo de plástico não será suficiente para proteger a saúde humana, o meio ambiente e o planeta. À medida que o Comitê Intergovernamental de Negociação sobre a Poluição Plástica se aproxima de sua reunião final em Busan (na Coreia do Sul), ainda este ano, os esforços contínuos para concluir um tratado global para acabar com a poluição plástica devem enfrentar a necessidade urgente de conter a produção.

Infelizmente, como em muitas negociações internacionais, a resistência de interesses poderosos pode bloquear a inclusão, no acordo final, de medidas essenciais. A reunião do Comitê em abril, em Ottawa, foi um exemplo disso, revelando divisões profundas sobre estratégias fundamentais. A questão mais polêmica foi a proposta de limitar a produção global de plásticos, que enfrentou forte oposição de fabricantes, seus países de origem e produtores de petróleo e gás. Esses grupos de interesse preferiram uma abordagem mais restrita, focada na reciclagem. Alguns países petrolíferos até argumentaram que o tratado deveria cobrir apenas a gestão de resíduos.

Sem dúvida, a reciclagem é essencial. Mas ela não pode proporcionar as reduções necessárias na produção e no consumo de plástico, nem abordar os efeitos da poluição plástica na saúde humana. Mesmo no melhor cenário, sem medidas mais amplas para controlar a produção, a poluição continuará a aumentar, provocando crises graves de saúde, exacerbando a degradação ambiental e acelerando o aquecimento global.

Não surpreendentemente, os lobbies da indústria estão pressionando por um tratado internacional sobre plásticos que não seja vinculativo – ou seja, não tenha um mandato legal claro e compromissos obrigatórios. Tratados assim estão fadados a se tornarem pouco mais do que promessas vagas e a rapidamente se tornarem irrelevantes.

Reduzir o uso e a produção de plásticos é crucial para facilitar as mudanças comportamentais necessárias para que a humanidade se adapte às novas realidades ecológicas. Se os lobbies da indústria conseguirem enfraquecer o tratado sobre plásticos, excluindo limites de produção ou tornando suas disposições não vinculativas, eles sabotarão os esforços para combater as mudanças climáticas.

À medida que a crise climática se agrava, reduzir a poluição plástica nunca foi tão urgente, e é por isso que as negociações para um tratado global ganharam tanto impulso. Mas as negociações merecem muito mais atenção e engajamento público. Para garantir um futuro mais sustentável, devemos pressionar os governos a se comprometerem com um acordo internacional vinculativo que limite – e em última instância reduza – a produção e o uso de plásticos.

 

Arauto do atraso, por Lauro Mattei

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Lauro Mattei – A Terra é Redonda – 17/09/2024

As profecias enganosas do grupo Globo sobre a reforma trabalhista e o mercado de trabalho no Brasil

O jornal O Globo de 15 de setembro de 2024 em seu editorial profetizou: “Efeito da reforma trabalhista de 2017 é positivo”. Com base em um estudo da FGV Projetos e de autoria de Bruno Ottoni afirma-se que a lei atendeu demandas específicas e “permitiu o Brasil alcançar o maior número de empregos e atingir a menor taxa de desemprego desde 2012”. Além disso, destaca-se que o rendimento médio da população economicamente ativa subiu 4,8% no segundo trimestre de 2024 em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.

A expansão atual do emprego está sendo creditada ao fato de que a reforma trabalhista de 2017 “aumentou a confiança das empresas pela contratação de mão de obra com carteira assinada desestimulando a indústria de litígio trabalhista, uma vez que o número de processos trabalhistas aventureiros caiu”. Segundo o editorial, esse é o principal legado da reforma trabalhista.

Dentre outros’ benefícios, segundo o editorial, consta a introdução de novas modalidades contratuais: o trabalho em tempo parcial e o trabalho intermitente. No primeiro caso, menciona-se que apesar de ser prática comum entre diversas áreas profissionais, a lei permitiu que tal modalidade tivesse melhor enquadramento legal e rapidez nas contratações.

No segundo caso, informa-se que tal modalidade é mais afeita ao setor de serviços, especialmente nos ramos de bares, restaurantes e hotéis. Assim, informa-se que no período entre janeiro de 2020 e julho de 2024 de cada 10 contratações intermitentes, sete delas foram efetivadas nos ramos anteriormente mencionados.

O referido editorial é concluído com destaque para uma lição da reforma: “deve-se analisar propostas sem preconceitos e depois analisar resultados com base em evidências. A reforma trabalhista de Michel Temer é a prova de que no Brasil é possível haver mudança para melhor”.

Seguindo essa lição que o jornal O Globo quer nos ensinar, vamos apresentar outras evidências que percorrem caminhos opostos. Mas antes é importante destacar o aspecto mais relevante desse editorial: toda a argumentação foi construída com base em um estudo que não representa 6% do que é efetivamente o mercado de trabalho no Brasil. Ou seja, as novas modalidades de contratação (parcial e intermitente), não representam a dinâmica do mercado de trabalho atual, uma vez que este segue com sua lógica tradicional.

Para tanto, vamos apresentar diversas evidências empíricas relativas ao período integral da reforma trabalhista (2017-2024-2º semestre) para mostrar seus verdadeiros efeitos. Analisando o comportamento das pessoas de 14 anos ou mais de idade ocupadas na semana de referência por posição na ocupação e categorias do emprego principal no período integral (2017-2024) observamos que: (a) houve um crescimento maior dos empregados do setor privado sem carteira em relação aos mesmos, porém com carteira assinada. Em montantes, os sem carteiras passaram de 10.775 milhões (2º semestre de 2017 para 13.797 milhões no 2º semestre de 2024.

(b) Que o trabalho doméstico caiu expressivamente durante a pandemia e não atingiu mais a marca dos 5.928 milhões de postos de trabalho existentes em 2017, quando apenas 30% era formalizado; c) que no segundo semestre de 2024 apenas 25% dessa categoria tinha carteira assinada.

Estas informações – e diversas outras – revelam que os problemas do mercado de trabalho se expandiram após a tal da reforma, levando a um grau ainda maior da precarização das relações trabalhistas e, por consequência, das condições de vida da classe trabalhadora brasileira.

Outra evidência nesta direção diz respeito ao percentual de desocupação das pessoas de 14 anos ou mais de idade observado na semana de referência entre homens e mulheres no mesmo período (2017-2024). No caso dos homens, nota-se que esse percentual era de 49,3% em 2017, caindo para 45,8%, no segundo trimestre de 2024.

Já as mulheres partiram de um patamar de 50,7% no início da série para atingir 54,2% no 2º trimestre de 2024. Destaca-se que esse percentual se acentuou durante a pandemia e não se reduziu mais até o presente momento. Tais informações revelam a grande disparidade de gênero que ainda persiste no mercado de trabalho do país.

Esse indicador também permite analisar o comportamento da taxa de desocupação de gênero que prevalece no país. Em 2017 essa taxa era de 11,5% para os homens e de 15,2% para as mulheres, destacando-se que no auge da pandemia (2021) a taxa de desocupação das mulheres atingiu seu ápice (cerca de 18%), enquanto a dos homens foi praticamente idêntica àquela verificada em 2017. Nos dois últimos anos essas taxas caíram para 5,6% (homens) e 8,6% (mulheres).

Há, ainda, um conjunto de indicadores que poderiam ser mencionados como elementos relevantes que apontam no sentido oposto ao mencionado pelo editorial de O Globo. Por um lado, observou-se um aumento expressivo do número dos trabalhadores por conta própria no período considerado. Além disso, vemos que a informalidade do mercado de trabalho no Brasil continua elevada, ou seja, dos 39,7% registrados em 2017 chega-se aos 38,6% atuais.

Todas as informações anteriormente mencionadas fazem parte daquilo que estudiosos do mercado de trabalho classificam como “precarização”, assunto que a tal da reforma trabalhista praticamente em nada alterou, ao contrário, em alguns casos acabou incentivando e estimulando tal processo.

É inegável que a reforma de 2017 contribuiu para a precarização das relações de trabalho no país, ao mesmo tempo em que suprimiu direitos trabalhistas historicamente conquistados. Todavia, o que chama atenção é que somente no momento em que o mercado de trabalho está apresentando melhorias expressivas, busca-se creditá-las à reforma trabalhista.

Esses arautos do atraso se esquecem de mencionar que são as políticas de valorização dos salários e de estímulo ao emprego, concatenadas com as políticas macroeconômicas adotadas recentemente pelo governo atual, que estão impulsionando o crescimento econômico do país, ampliando as oportunidades de trabalho e melhorando o nível de renda de parcelas expressivas da população.

*Lauro Mattei é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do programa de pós-graduação em Administração, ambos na UFSC.

 

A miséria da Economia, entre mitos e preguiça, por Jayathi Ghosh.

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Em meio a uma crise civilizatória aguda, uma disciplina crucial para buscar saídas rende-se a velhas fórmulas, à consagração de “saberes” fossilizados, aos encantos do poder e à arrogância diante de novas teorias. Haverá meios de salvá-la?

Por Jayathi Ghosh | Tradução: Antonio Martins

OUTRAS PALAVRAS – 26/03/2024

A necessidade de mudança drástica na disciplina econômica nunca foi tão urgente. A humanidade enfrenta crises existenciais, com a saúde planetária e os desafios ambientais se tornando grandes preocupações. A economia global já estava mancando e frágil antes da pandemia. A recuperação subsequente expôs as desigualdades profundas e agravadas, não apenas em renda e riqueza, mas também no acesso às necessidades humanas básicas. As tensões sociopolíticas resultantes e conflitos geopolíticos estão criando sociedades que em breve podem ser disfuncionais a ponto de não serem mais vivíveis. Tudo isso requer estratégias econômicas transformadoras. No entanto, a corrente principal da disciplina persiste em fazer negócios, como de costume, como se mexer nas margens, com pequenas mudanças, pudesse ter algum impacto significativo.

Há um problema de longa data. Muito do que é apresentado como sabedoria econômica sobre como as economias funcionam e as implicações das políticas é, na melhor das hipóteses, enganoso e, na pior hipótese, simplesmente errado. Por décadas, um lobby poderoso dentro da disciplina vendeu meias-verdades e até falsidades em muitas questões críticas. Por exemplo, como os mercados financeiros funcionam e se eles podem ser “eficientes” sem regulamentação; as implicações macroeconômicas e distributivas das políticas fiscais; o impacto do mercado de trabalho e a desregulamentação salarial no emprego e no desemprego; como os padrões de comércio e investimento internacionais afetam os meios de subsistência e a possibilidade de diversificação econômica; como o investimento privado responde a incentivos políticos, incentivos e subsídios fiscais e déficits fiscais; como o investimento multinacional e as cadeias de valor globais afetam produtores e consumidores; os danos ecológicos decorrentes de padrões de produção e consumo; se os direitos de propriedade intelectual mais rígidos são realmente necessários para promover a invenção e a inovação; e assim por diante.

Por que isso acontece? O pecado original pode ser a exclusão do conceito de poder do discurso – o que efetivamente reforça as estruturas e desequilíbrios de poder existentes. As condições subjacentes são varridas ou encobertas. Entre elas, estão o maior poder de capital em comparação com os trabalhadores; a exploração insustentável da natureza; o tratamento diferencial dos trabalhadores por meio da segmentação do mercado de trabalho social; o abuso privado de poder de mercado e da busca de rendas; o uso do poder político para impulsionar os interesses econômicos privados no interior das nações e entre elas; e os impactos distributivos das políticas fiscais e monetárias. As preocupações profundas e contínuas com a insuficiência do PIB como uma medida de progresso são ignoradas. Mesmo com todas as suas muitas falhas conceituais e metodológicas, continua sendo usado como o indicador básico, apenas porque está lá.

Verdades inconvenientes

Existe uma tendência relacionada a subestimar o significado crucial das suposições na construção dos resultados analíticos e na apresentação desses resultados em discussões de políticas. A maioria dos economistas teóricos convencionais argumentará que se afastaram das suposições neoclássicas iniciais, como concorrência perfeita, retornos constantes à escala e emprego pleno, que não têm relação com o funcionamento econômico real em qualquer lugar. Mas essas suposições ainda persistem nos modelos que sustentam explícita ou implicitamente muitas prescrições de políticas (inclusive sobre políticas comerciais e industriais ou estratégias de “redução da pobreza”), particularmente para o mundo em desenvolvimento.

As estruturas de poder dentro da profissão reforçam o mainstream de diferentes maneiras, inclusive através da tirania das chamadas “publicações principais” e do emprego acadêmico e profissional. Tais pressões e incentivos desviam muitas das mentes mais brilhantes, que deixam de se dedicar a um estudo genuíno da economia (para tentar entender seu funcionamento e as implicações para as pessoas) e dedicam-se ao que só pode ser chamado de “atividades triviais”. Muitas publicações acadêmicas destacadas publicam contribuições esotéricas que agregam valor apenas flexibilizando uma pequena suposição em um modelo, ou usando um teste econométrico ligeiramente diferente. Os elementos que são mais difíceis de modelar, ou que podem gerar verdades inconvenientes, são simplesmente excluídos, mesmo que contribuam para uma melhor compreensão da realidade econômica. Restrições ou resultados fundamentais são apresentados como “externalidades”, e não como condições a serem abordadas. Economistas que conversam principalmente um com o outro, depois simplesmente proselitizam suas descobertas aos formuladores de políticas, raramente são forçados a questionar essa abordagem.

Como resultado as forças econômicas (que são necessariamente complexas – devido ao impacto de muitas variáveis diferentes – e refletem os efeitos da história, da sociedade e da política) não são estudadas à luz dessa complexidade. Em vez disso, são espremidas em modelos matematicamente tratáveis, mesmo que isso remova qualquer semelhança com a realidade econômica. Para ser justa, alguns economistas convencionais muito bem sucedidos criticaram essa tendência – mas com pouco efeito até agora nos guardiões da ortodoxia da profissão.

Hierarquia e discriminação

A aplicação de hierarquias estritas de poder dentro da disciplina suprimiu o surgimento e a disseminação de teorias, explicações e análises alternativas. Isso se combina com as outras formas de discriminação (por gênero, raça/etnia, localização) para excluir ou marginalizar perspectivas alternativas. O impacto da localização é enorme: a disciplina convencional é completamente dominada pelo Atlântico Norte – especificamente os EUA e a Europa – em termos de prestígio, influência e capacidade de determinar o conteúdo e a direção da disciplina. O enorme conhecimento, os insights e contribuições para a análise econômica feitos por economistas localizados nos países onde vive a maior parte da população do planeta são amplamente ignorados, devido à suposição implícita de que o conhecimento “real” se origina no Norte e é disseminado para fora.

A arrogância em relação a outras disciplinas é uma grande desvantagem, expressa, por exemplo, pela falta de um forte senso de história, que deve permear todas as análises sociais e econômicas atuais. Recentemente, tornou -se elegante para os economistas se envolverem em psicologia, com o surgimento da economia comportamental e “cutucadas” para induzir certos comportamentos. Mas isso também é frequentemente apresentado sem reconhecer contextos sociais e políticos variados. Por exemplo, os testes randomizados de visão focada [worm’s eye tests], que se tornaram tão populares na economia do desenvolvimento estão associados a uma mudança que abandonou o estudo de processos evolutivos e tendências macroeconômicas, para se concentrar nas tendências microeconômicas que efetivamente apagam os contextos que moldam o comportamento e as respostas econômicas. A base subjacente e profundamente problemática do individualismo metodológico persiste, principalmente porque poucos economistas contemporâneos ousam fazer uma avaliação filosófica de sua própria abordagem e trabalho.

Essas falhas empobreceram muito a economia e, sem surpresa, reduziram sua credibilidade e legitimidade entre o público em geral. A disciplina convencional precisa muito de maior humildade, um melhor senso de história e reconhecimento do poder desigual e incentivo ativo à diversidade. Claramente, muito precisa mudar para que a economia seja realmente relevante e útil o suficiente para enfrentar os principais desafios de nossos tempos.

 

Economistas que não se curvam aos dogmas, por Ladislau Dowbor

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De Jayati Ghosh a Thomas Piketty. De Mariana Mazzucato a Wolfgang Streeck. Surgem, em todo o mundo, vozes dispostas a mudar os rumos da Economia e aproximá-la de ideias como a igualdade e a defesa do planeta. Vale conhecê-las

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS -16/09/2024

Acredite ou não, Adam Smith ainda está aqui. Não seus escritos sobre sentimentos morais, é claro, mas a história do padeiro: preocupando-se apenas com seu próprio lucro, ele fará muito pão, com qualidade e a um preço razoável, ou não venderá, e outra padaria abrirá na vizinhança. Assim, cada um trabalhando para maximizar seu próprio lucro, o resultado será o conforto econômico e social. Bem, isso certamente não funciona para as indústrias Nestlé, o megafundo BlackRock, a visa Visa ou os irmãos Koch. Com o alcance global, a conectividade, o dinheiro virtual, os paraísos fiscais e o marketing comportamental, estamos em outra era. Até mesmo a baguete francesa é amplamente recebida crua nas boulangeries de Paris, mas pré-fabricada em grandes quantidades nos arredores da cidade, pronta para o forno de micro-ondas local. Muitos restaurantes seguiram a tendência.

A livre concorrência de mercado deveria trazer ordem em um ambiente liberal, cada empresa tentando trazer melhores serviços. Nenhuma regulamentação pública, por favor, a mão invisível garantirá que o ambiente de livre-arbítrio funcione melhor. Preocupações éticas? “O negócio dos negócios é o negócio”, afirmou Milton Friedman, explicando no documentário The Corporation que uma empresa tem muros, não ética. Muros têm ética? Wall Street amava seu lema “ganância é bom”, “greed is good”. O problema não é Milton Friedman, a economia da justificação sempre esteve por aí, mas com que facilidade a mensagem permeou mentes, jornais, universidades e até igrejas, em nome da liberdade. Libertas… Liberdade no contexto da desigualdade é uma farsa. Experimente a livre concorrência no ambiente da Big Pharma ou com corporações de seguro saúde.

Embora muitas pessoas conscientes estejam convencidas da catástrofe em câmera lenta que estamos construindo neste planeta, muito poucas estão cientes do ritmo acelerado da transformação. Quantas pessoas terão de se afogar em enchentes ou fugir de incêndios até que uma grande maioria se convença de que a mudança é necessária e que é necessário gerar força política suficiente para promover a mudança estrutural? As gigantescas corporações em escala mundial, as plataformas de comunicação e as empresas de gestão de ativos, livres de responsabilidade moral e social e com o poder das novas tecnologias, estão nos levando pelo ralo. Proprietários ausentes, prioridades dos acionistas, dinheiro virtual e sistemas de regulamentação pré-históricos que remontam a Bretton Woods criaram um ambiente de vale-tudo, enquanto a nova geração de tecnologias deu às corporações poder em escala mundial.

Larry Fink, na BlackRock, administra 10 trilhões de dólares, o orçamento de Biden é de 6 trilhões. Isso não é apenas globalização, é uma bagunça global. A maximização dos dividendos dos acionistas é a regra, independentemente das consequências. E economistas tradicionais e severos discutem se a taxa básica de juros deve ser mantida ou aumentada em meio por cento. Isso visto na TV passa uma impressão de seriedade e de conhecimento técnico. Não se preocupe. Michael Hudson tem toda a razão ao chamar isso de economia lixo [junk economics].

Uma questão importante é que os interesses privados são muito eficientes para atingir suas metas delimitadas, enquanto os interesses sociais e ambientais gerais são difusos e, portanto, difíceis de defender. As empresas têm plena consciência disso, e todas elas afirmam sua adesão aos ESGs, mas os interesses pontuais são muito mais imediatos e poderosos, e elas se aproveitam disso. Enfrentamos isso, por exemplo, no Brasil, onde a grande maioria da população quer preservar a Amazônia, mas a gigantesca indústria da soja, do gado e da madeira, com seus interesses concentrados, simplesmente se infiltra. É um sistema que funciona, apesar do impacto devastador. Qualquer tentativa de regulamentação leva a gritos de liberdade ameaçada. Há uma ruptura profunda entre a forma como o sistema deveria funcionar e o que ele consegue alcançar. Basta dar uma olhada na estagnação das metas dos SDGs.

Embora os economistas tenham discutido por muito tempo em um ambiente técnico fechado, isso está mudando, entre outros motivos, porque à medida que os dramas se aprofundam, mais não-economistas querem entender as razões de nossa incapacidade de promover a mudança necessária. O enorme sucesso de Thomas Piketty com seu O Capital no século XXI baseia-se em sua poderosa demonstração de que o processo de acumulação de capital, o coração do sistema, mudou. A financeirização assumiu o controle, pagando cerca de 7% a 9% ao ano, enquanto a produção efetiva de bens e serviços, o PIB, cresce 2,5% no longo prazo. Quando as atividades financeiras, por meio de dividendos para proprietários ausentes e altas taxas de juros, ganham muito mais do que investir na produção, o capitalismo extrativista assume o controle. Nasce a financeirização. Nesse capitalismo, não é preciso gerar produtos e empregos para ficar rico. A população de bilionários está explodindo.

A Oxfam é outra fonte de economia realista, organizando e divulgando fatos básicos: “Desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas. Durante o mesmo período, quase cinco bilhões de pessoas em todo o mundo ficaram mais pobres. A miséria e a fome são uma realidade diária para muitas pessoas em todo o mundo. Nas taxas atuais, serão necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos ter nosso primeiro trilionário em 10 anos.” Mariana Mazzucato chama isso de capitalismo extrativista, pois é basicamente um dreno. Com O Estado Empreendedor, ela mostra que as políticas públicas são fundamentais se quisermos que a economia resgate sua função social. A Economia da Missão traz uma nova abordagem, construindo uma convergência de capacidade empresarial, coordenação pública e centros de pesquisa tecnológica em torno das principais questões sociais: desigualdade, meio ambiente, situações humanas críticas e afins. Não se trata de livre mercado, mas de construir o que precisamos: trata-se de uma sinergia construída de forma racional. Esperar pela mão invisível é, na melhor das hipóteses, ignorância infantil ou apenas raciocínio interessado.

A contribuição de Joseph Stiglitz tem sido fundamental para esses “novos ventos” na economia, denunciando o sistema atual como tal: “O experimento neoliberal – impostos mais baixos para os ricos, desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos, financeirização e globalização – foi um fracasso espetacular. O crescimento é menor do que o registrado no quarto de século após a Segunda Guerra Mundial, e a maior parte dele foi acumulada no topo da escala de renda. Após décadas de renda estagnada ou até mesmo em queda para os que estão abaixo deles, o neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado.” Ao comentar sobre o desastre da Covid-19, ele traz uma ideia óbvia, mas essencial: os líderes políticos dos países desenvolvidos devem reconhecer “que ninguém está seguro até que todos estejam seguros e que uma economia mundial saudável não é possível sem a recuperação de suas partes mais pobres”. Aqui também, e em especial em seu estudo Rewriting the Rules of the American Economy (2015), encontramos uma abordagem sistêmica e a necessidade de os economistas apresentarem diagnósticos e propostas eficazes.

Uma abordagem semelhante pode ser encontrada na contribuição de Felicia Wong, do Roosevelt Institute: “O ideal neoliberal – de que os mercados criariam liberdade econômica e política e que nossa economia e política deveriam, portanto, privilegiar a escolha privada individual e as empresas do setor privado voltadas para o lucro acima de tudo – dominou nosso pensamento nos EUA e em todo o mundo por décadas. No entanto, os resultados empíricos são claros: O neoliberalismo fracassou, dizimando o crescimento econômico e a estabilidade, promovendo a desigualdade racial e de gênero e esvaziando a própria democracia.”

Andrew Osvald e Nicholas Stern trazem os desafios da mudança climática para os economistas. Comentando sobre Por que os economistas estão decepcionando o mundo em relação às mudanças climáticas, eles consideram que “os investimentos das próximas duas décadas são decisivos para o planeta e para o futuro de nossos filhos e dos filhos deles. Esses investimentos serão estabelecidos por decisões tomadas nos próximos anos. A boa economia pode e deve desempenhar um papel fundamental na orientação da estrutura política que influenciará essas decisões. É por isso que é tão importante que nossa profissão acelere seu trabalho agora.”

Jayati Ghosh trouxe contribuições importantes e escreve sobre Como e por que a economia deve mudar (2024): “A economia precisa de mais humildade, um melhor senso de história e mais diversidade. A necessidade de mudanças drásticas na disciplina de economia nunca foi tão urgente. A humanidade enfrenta crises existenciais, com a saúde planetária e os desafios ambientais se tornando grandes preocupações. As tensões sociopolíticas e os conflitos geopolíticos resultantes estão criando sociedades que, em breve, poderão ser disfuncionais a ponto de se tornarem inviáveis. Tudo isso exige estratégias econômicas transformadoras. No entanto, a corrente dominante da disciplina persiste em fazer negócios como de costume, como se mexer nas margens com pequenas mudanças pudesse ter algum impacto significativo. Há um problema de longa data. Muito do que é apresentado como sabedoria econômica recebida sobre como as economias funcionam e as implicações das políticas é, na melhor das hipóteses, enganoso e, na pior, simplesmente errado.” 8

Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, em How to Tax Our Way Back to Justice, consideram que “não há nada inerente à tecnologia moderna ou à globalização que destrua nossa capacidade de instituir um sistema tributário altamente progressivo. A escolha é nossa. Podemos tolerar um setor em expansão que ajuda os ricos a se esquivarem dos impostos ou podemos optar por regulamentá-lo. Podemos deixar que as multinacionais escolham o que querem. Podemos deixar que as multinacionais escolham o país em que declaram seus lucros, ou podemos escolher por elas. Podemos tolerar a opacidade financeira e as inúmeras possibilidades de evasão fiscal que vêm com ela, ou podemos optar por medir, registrar e tributar a riqueza.” O livro deles, The Triumph of Injustice (Norton, 2019), é um poderoso apelo à ação.

Estou apresentando apenas alguns autores aqui, mas o fato é que uma nova geração está nos trazendo à realidade e apresentando os verdadeiros desafios. Trata-se de uma mudança global na economia, com muitas alternativas claras. Thomas Piketty apresenta um conjunto de medidas na linha do “socialismo participativo”, Joseph Stiglitz sugere “capitalismo progressivo”; Wolfgang Streeck, “capitalismo democrático”; Mariana Mazzucato, “economia de missão”; como vimos, Gerald Epstein sugere acabar com o Clube dos Banqueiros [Busting the Bankers Club], enquanto Robert Reich denuncia o “capitalismo corporativo”; Joel Kotkin, o “neofeudalismo”; Zygmunt Bauman, o “capitalismo parasitário”; Shoshana Zuboff, “capitalismo de vigilância”; Grzegorz Konat, “realny kapitalizm”; Raymond Baker, “nosso sistema quebrado”; Brett Christophers, “capitalismo rentista”; Marjorie Kelly, “supremacia da riqueza”; Nicholas Shaxson, “a maldição das finanças”. Bernie Sanders pergunta: “Para onde vamos a partir daqui?”; Noam Chomsky, “quem governa o mundo?”; o relatório da Oxfam em Davos-2024, intitulado Inequality-Inc, nos traz os números básicos chocantes.

Na verdade, ocorreram muitas mudanças estruturais, muitas nuvens sombrias estão se formando, para que possamos continuar como sempre, esperando que as coisas se resolvam sozinhas. Uma nova abordagem sistêmica está ganhando peso. Os economistas têm um papel importante a desempenhar, e é hora de nossas universidades atualizarem seus currículos. Ainda estamos ensinando o conto de fadas da mão invisível.

O que estamos enfrentando? De acordo com David Boyd, relator especial da ONU, estamos enfrentando “um sistema que é absolutamente baseado na exploração das pessoas e da natureza. E, a menos que mudemos esse sistema fundamental, estaremos apenas remexendo as cadeiras do convés do Titanic… Nos últimos seis anos, fiquei enlouquecido com o fato de os governos simplesmente não se darem conta da história. Sabemos que o setor de tabaco mentiu com todos os dentes durante décadas. O setor de chumbo fez o mesmo. O setor de amianto fez o mesmo. O setor de plásticos fez o mesmo. O setor de pesticidas também fez o mesmo… Não consigo fazer com que as pessoas pisquem os olhos. É como se houvesse algo errado com nossos cérebros, pois não conseguimos entender a gravidade da situação.” Precisaremos de muito mais do que economistas conscientes.

 

Brasil deve reinventar suas cidades para o clima do século 21, por Muggan e Lemos

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Nova mentalidade exigirá reformulação radical no desenho, planejamento e gestão de núcleos urbanos

Robert Muggan, Cofundador do Instituto Igarapé e da Bioverse, especialista da SuperNature Labs, membro do Global Future Council on Cities do Fórum Econômico Mundial e autor do livro “Terra Incógnita” (Random House)

Davi Lemos, Sócio-diretor da Supernature Labs, membro fundador do Laboratório de Organizações Regenerativas (ReLab) e tradutor do livro “Sociedade da Escuta” (ed. Afluente)

Folha de São Paulo, 23/09/2024.

No próximo mês, um número histórico de brasileiros irá às urnas em 5.570 municípios. Mas, neste ano, diversos municípios já quebraram outros recordesbem diferentes. Em março de 2024, o Rio de Janeiro bateu o recorde de mais alta sensação térmica já registrada no Brasil, com escaldantes 62,3® C. Dois meses depois, as enchentes em Porto Alegre e em outras áreas do Rio Grande do Sul desalojaram 600 mil residentes urbanos, o maior desastre do tipo na história do Brasil. Neste mês, São Paulo registrou a pior qualidade do ar no mundo. As cidades, onde vivem 85% dos brasileiros, podem ser tanto a causa quanto a solução para o colapso ecológico.

Segundo o IPCC (Painel Intergovernamental para a Mudança Climática, órgão ligado à ONU), as cidades são responsáveis por cerca de 70% das emissões de gases de efeito estufa (GEEs) ao redor do mundo. Os principais culpados são o concreto de nossos edifícios, os sistemas de aquecimento e resfriamento e os meios de transporte. Grande parte do problema se dá por conta de urbanistas, arquitetos e incorporadoras imobiliárias continuarem a usar modelos ultrapassados de planejamento, construção e gestão das nossas cidades, que estão nos afastando da natureza e de uns dos outros. Um novo paradigma é essencial.

O momento de aceleração das mudanças climáticas coincide historicamente com o ápice da expansão urbana desenfreada. Estima-se que, apenas nos próximos 35 anos, as cidades cresçam, em termos de área ocupada, mais do que cresceram ao longo de todo o século 20. Esse processo de transformação de áreas naturais em áreas construídas tem sido responsável não só por enormes quantidades de emissão de GEEs, mas também pela perda significativa de biodiversidade ao redor do planeta.

Nas últimas décadas, as cidades enfrentam um cenário sério de fragilidade, com o aumento das ilhas de calor, a escassez de água, o agravamento das desigualdades e a deterioração da saúde mental. A verdade inconveniente dos dias de hoje parece ser que nossas cidades não foram construídas e não estão preparadas para o clima do século 21. A Confederação Nacional dos Municípios relatou que apenas 1 em cada 5 dos 5.570 municípios do país está preparado para enfrentar as mudanças climáticas.

Algumas cidades estão tomando medidas, mesmo que graduais. Fortaleza, por exemplo, está investindo na transformação verde de áreas públicas visando a redução da poluição urbana e o risco de enchentes. Já Curitiba está investindo em um parque planejado que terá capacidade de estocar 43 bilhões de litros de água para períodos de seca. E, em nível nacional, o Ministério das Cidades começou a acelerar o planejamento de mitigação e adaptação, mas ainda há muito a ser feito.

Há um consenso crescente de que são necessárias não apenas novas políticas climáticas, mas também uma reformulação radical no desenho, planejamento e gestão das cidades. Esse é o objetivo do biourbanismo, movimento nascente que visa mobilizar atores públicos e privados na implementação de pilotos de urbanismo ecológico e regenerativo em cidades brasileiras a partir de 2025. No coração dessas novas abordagens ecológicas ao urbanismo está a aplicação das formas e processos da natureza ao design urbano e aos métodos e materiais construtivos. Entende-se que na intersecção da biomimética com o planejamento e construção de bairros e infraestrutura verde esteja uma grande oportunidade de impulsionar a descarbonização e preparar os nossos núcleos urbanos para as mudanças climáticas.

As cidades bem-sucedidas de amanhã não serão apenas lugares para viver, mas também ecossistemas vivos e que respiram. Não serão geradores de GEEs, mas sim sumidouros urbanos de carbono e centros de inovação e experimentação. Isso requer uma mudança de mentalidade entre os governos municipais, investidores e construtores privados e residentes urbanos. Requer a construção de visões inclusivas, estratégias participativas, métricas alcançáveis e vitórias tangíveis para impulsionar a adoção. Exige uma abordagem de risco, financiamento inovador de fontes públicas e privadas e uma vontade de experimentar e testar novas soluções.

Fogo na mata é pedra cantada, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto,

A Terra é Redonda, 19/09/2024

O Brasil precisa de um tipo de desenvolvimento que sepulte a mentalidade colonial prevalecente, inclusive em importantes parcelas da esquerda

Três ramos industriais muito rentáveis estiveram na aurora da modernidade: o metalúrgico, o naval e o açucareiro. Rivalizavam em sofisticação tecnológica e importância estratégica. A indústria açucareira nasceu globalizada e o teor energético do açúcar mudaria a condição alimentar da humanidade.

Para produzir açúcar além-mar o colonizador assassinou nativos, trouxe escravizados da África e tocou fogo na mata.

O engenho precisava de gado vacum como fonte proteica, força de tração e meio de transporte. O couro servia para mil aplicações. A cultura do tabaco e a extração do ouro também precisaram do boi.

Os sertões foram tomados pelos rebanhos. O colonizador dizimou povos originários e tocou fogo em bioma especialíssimo, favorável à reprodução humana. Na caatinga, o fogo era aceso antes das chuvas para o rápido florescimento de ramagem que engordasse o boi.

Centenas de espécies que ajudavam a nutrir a população sumiram para sempre. A drenagem natural das chuvas foi destroçada. Antigos bebedouros e nascentes desapareceram. No Ceará, já no final do século XVIII, o colonizador criara o maior rico seco do mundo, o Jaguaribe.

Na Europa, a indústria têxtil avançara no século XIX. Mais fogo na mata para produzir algodão.
Os ricos e civilizados aprenderam a beber café e, para produzi-lo, os colonizados continuaram tocando fogo na mata.

No Brasil, as cidades cresciam e demandavam proteína animal. Para a criação de bovinos, seja extensiva (em terras abertas) ou em espaços demarcados, tocava-se fogo na mata.

A reprodução dos rebanhos passou a depender de chapadas montanhosas e, sobretudo, do Vale do Parnaíba. Todos cantavam “o meu boi morreu, o que será de mim, vou mandar buscar outro, maninha, lá do Piauí”. Essa foi a primeira canção entoada de norte a sul do Brasil.

A agressão aos biomas mostraria suas consequências em 1877, quando eclodiu a maior crise humanitária da história do Brasil: meio milhão de pessoas morreram de fome, sede e peste. A população brasileira girava em torno de dez milhões.

Não fosse o refrigério do Vale do Parnaíba, onde havia água, peixe, carne, mel e frutas nativas, a mortandade seria maior. Meio século se passara desde que dois cientistas austríacos descreveram o Piauí como a Suíça brasileira.

Os países industrializados precisaram de cera de carnaúba, óleos vegetais e borracha natural. A exploração avançou nos biomas do Meio Norte e na Amazônia. As divisas resultantes beneficiariam a industrialização concentrada no Sudeste, observou Celso Furtado.

A Ditadura Militar empenhou-se em garantir a venda das riquezas naturais. Abriu estradas na floresta e ofertou grandes glebas ao estrangeiro.

Os governos democráticos persistiram com igual orientação, agora entregando a mata aos monocultores e mineradores. As velhas práticas de dizimação dos povos originários persistiram. Além de fogo, o mato foi atingido por produtos químicos.

A defesa ambiental entrou em pauta há décadas sem que houvesse revisão do modelo agrícola basicamente definido na colonização. O Estado apoiou os agroexportadores.

Essa de “celeiro do mundo” é roubada. O lucro não fica aqui. Vai para o estrangeiro que controla as finanças e o comércio internacional. Beneficia quem produz máquinas e insumos agrícolas.

A agricultura moderna não gera empregos no campo: gera demandas à indústria. No caso brasileiro, não beneficia nem o campo nem a cidade.

Monocultura para exportação é desgraça. Incendeia a mata, empobrece o ambiente e prepara calamidades. Enriquece poucos e deixa o povo sem arrimo. O Piauí, que forneceu proteína para boa parte dos brasileiros, hoje bebe leite de São Paulo.

Desastre ambiental não é emergência, é rotina histórica, velha como a colonização; é traço permanente da economia agrícola prioritariamente voltada para a demanda externa.

Há quem diga que os incêndios de hoje são criminosos, provocados para atingir Lula. Assim, encobre-se perversidade secular. Que os bandidos sejam presos, mas não vale esquecer que o crime maior é o tipo de agricultura incentivado pelo Estado.

Não há plano de combate ao fogo que dê jeito. Nem programa de defesa ambiental que atenue a perda da biodiversidade ou programa assistencial que tire da penúria milhões de famintos de hoje e de amanhã.

O que precisamos é de uma agricultura que produza comida farta, barata, diversificada, saudável e que não nos jogue fumaça nos olhos.

Onde se viu governo progressista bater palmas para o MATOPIBA?

O Brasil precisa de um tipo de desenvolvimento que sepulte a mentalidade colonial prevalecente, inclusive em importantes parcelas da esquerda.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar — Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

Sequestrados por Keynes, por Samuel Pessoa

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Superar o subdesenvolvimento depende de educação e de aumentar a produtividade

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 22/09/2024

Uma das maiores tragédias sociais do século 20 foi a Grande Depressão. Entre 1932 e 1938, a taxa de desemprego nos EUA situou-se acima de 16%, atingindo 21% no pico.

Keynes mostrou que era relativamente simples resolver o problema. Era necessário que os economistas abrissem mão da ideia de que o sistema se corrigia automaticamente. A política fiscal expansionista, esta sim, corrigia o problema. Sem custos, a expansão fiscal colocava a economia para rodar, e o desperdício de recursos e toda a tragédia social podiam ser facilmente superados.

No pós-Guerra, com todo o sucesso da reconstrução da Europa, ficou a impressão de que a superação do subdesenvolvimento poderia ser alcançada da mesma forma que a do desemprego foi atingida.

Toda uma área da economia —chamada de alta teoria do desenvolvimento— tentava encontrar uma falha de mercado e uma ação do setor público que poderia abrir o caminho para a superação do subdesenvolvimento.

A ideia era que o subdesenvolvimento, com o desemprego escondido ou subemprego, representava um desperdício equivalente ao da Grande Depressão e que uma ação do Estado, com alguma política macroeconômica em geral relativamente simples, poderia resolver a falha de mercado.

Todos quiseram ser o Keynes do subdesenvolvimento. Nomes com Paul Rosenstein-Rodan, Ragnar Nurske, Arthur Lewis e, por aqui, Celso Furtado, entre outros, se candidataram. Hoje, o novo-desenvolvimentismo do professor Bresser-Pereira é o filho mais recente desse programa de pesquisa.

Como escreveu Paul Krugman em seu prefácio da edição do aniversário de 60 anos da Teoria Geral, talvez Keynes tenha se deparado com o único problema complexo em ciência social que tinha uma solução relativamente simples. Bastava trocar o motor de arranque que o carro da economia voltava a andar.

Desde os anos 1980, o consenso na teoria do desenvolvimento entre os pesquisadores é que a superação do subdesenvolvimento é um problema de natureza qualitativa muito distinto da redução
da amplitude do ciclo econômico.

A superação do subdesenvolvimento depende da construção de um sistema público de educação fundamental universal de qualidade. Os países latino-americanos, apesar do aumento do orçamento, não têm conseguido avançar.

Adicionalmente, a superação do subdesenvolvimento depende da construção de um marco legal institucional que estimule a eficiente alocação da capacidade produtiva do país.

Em ambos os casos, educação e instituições, temos diagnósticos simples de execução muito difícil.

Em vez da grandiloquência macroeconômica, estamos no campo sem charme das inúmeras reformas microeconômicas que, aos pouquinhos, se conseguirmos fazer tudo certo por muito tempo, produzirão o crescimento da produtividade do trabalho por aqui.

Há espaço para o setor público na oferta de bens públicos, principalmente infraestrutura física e humana, mais esta do que aquela, e no estímulo à absorção de novas tecnologias. Novamente, nada muito charmoso.

Não temos avançado muito nas últimas décadas.