Project 2025: Como Trump ameaça o mundo, por Mel Gurtov

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Ampliar agressão econômica e geopolítica à China, potência nuclear. Impor novas restrições ao comércio internacional. Ameaçar Irã, Coreia do Norte, Venezuela e até o México. Visita à delirante (e perigosíssima) agenda externa do candidato

Mel Gurtov – OUTRAS PALAVRAS – 05/11/2024

Uma conspiração de extrema direita às claras

O Projeto 2025, o ambicioso guia de planejamento de políticas da extrema direita publicado como Mandate for Leadership (Mandato para Liderança), foi concebido para desmantelar o “Estado Profundo” e instalar um presidente e aliados leais que levarão adiante a agenda autoritária de Donald Trump. Agora, ele supostamente não existe mais – mas não é verdade. A campanha de Trump, preocupada com a má impressão que o Projeto 2025 estava recebendo, ordenou que ele fosse desconectado. Mas não se engane: embora Trump possa discordar de algumas das recomendações, o projeto foi concebido com ele, e somente ele, em mente.

Trump afirma que “não sabe nada sobre o Projeto 2025”, mas seu nome aparece no documento mais de 300 vezes; a CNN conta pelo menos 140 pessoas que trabalharam no documento do Projeto 2025 e que trabalharam anteriormente para o governo Trump; e Trump mantém laços estreitos com a Heritage Foundation, que publicou o documento. Se houver outra presidência de Trump, os colaboradores do Projeto 2025, muitos da Heritage Foundation e outros de uma rede de extrema direita em Washington chamada Conservative Partnership Institute, povoarão seu governo.

Nesta análise em duas partes, exploro os capítulos do Mandate for Leadership que dizem respeito a assuntos internacionais e à política externa dos EUA. Na primeira parte, observarei os aspectos autoritários do documento e, em seguida, examinarei suas propostas de políticas com relação à China e à Rússia. Na parte 2, examinarei o que o documento tem a dizer sobre comércio, armas nucleares e gastos militares, Coreia do Norte, Oriente Médio e América Latina.

O plano para reordenar os Estados Unidos

A maior parte da atenção da mídia dos EUA e dos legisladores democratas tem sido dedicada, com razão, ao lado doméstico da agenda do Projeto 2025 – seus planos para colocar o Departamento de Justiça a serviço do presidente, livrar-se do Departamento de Educação como um passo para emascular a educação pública, tornar os Estados Unidos indesejáveis para imigrantes negros, proibir o aborto em todo o país, dar ao setor de combustíveis fósseis o que ele quiser e conter a dissidência pública.

As ideias sobre relações exteriores seguem essa agenda porque, para serem implementadas, todas elas dependem de um executivo todo-poderoso e de uma burocracia que foi expurgada de liberais e esquerdistas. (“Grande parte da força de trabalho do Departamento de Estado é de esquerda e está predisposta a discordar da agenda e da visão política de um presidente conservador”, diz o documento).

O Projeto 2025 propõe três tarefas essenciais de governança para promover sua causa: reafirmar o papel dominante do presidente na formulação de políticas, desmantelar as principais agências governamentais preocupadas com o bem-estar social e substituir muitos funcionários públicos que não passam no teste de lealdade (eles serão reclassificados como trabalhadores comuns) por funcionários políticos leais ao chefe do Executivo. O plano busca maneiras de contornar a burocracia do governo, o que, por si só, é um objetivo comum a todas as administrações anteriores.

Mas ele difere drasticamente em sua submissão aos impulsos autoritários de Trump. Todas as páginas do documento enfatizam que os funcionários e outros membros da equipe devem alinhar seus pontos de vista com os do presidente, com a forte implicação de que não fazer isso resultará em demissão ou reatribuição. É uma fórmula para limitar o debate político dentro das agências ou entre elas ao que o presidente já decidiu.

Política da China e da Rússia

O Projeto 2025 é absolutamente obcecado pela China. Como já aconteceu com as opiniões dos EUA sobre a União Soviética, agora acredita-se que a China esteja por trás de todas as situações problemáticas em todos os continentes. A China recebe tanta atenção, diz o autor da seção sobre o Departamento de Estado, porque ela é “a ameaça definidora”.

Esse é Kiron K. Skinner, que anteriormente era responsável pelo planejamento da política de Trump no Departamento de Estado e depois se juntou à equipe da Heritage Foundation. Da mesma forma, escreve Christopher Miller na seção sobre o departamento de defesa, “Pequim representa um desafio aos interesses americanos em todos os domínios do poder nacional”. (Miller, um coronel aposentado das Forças Especiais, foi o secretário de defesa interino de Trump por cerca de três meses).

Além disso, a ameaça militar que a China representa é especialmente grave. Ele retrata a China como uma “ameaça imediata” a Taiwan e aos aliados dos EUA no Pacífico, sem mencionar o perigo nuclear, tudo isso sem nenhuma evidência convincente. No entanto, Miller recomenda como prioridade máxima “a construção de um planejamento de força convencional para derrotar uma invasão chinesa em Taiwan antes de alocar recursos para outras missões. . .” Essas outras missões provavelmente incluem a Ucrânia.

Skinner critica a política de Biden para a China por estar tratando a China com indulgência. Ela argumenta que alguns profissionais de política externa “conscientemente ou não, ‘papagaiam’ a linha comunista. Líderes globais, incluindo o presidente Joe Biden, tentaram normalizar ou até mesmo elogiar o comportamento chinês”.

Na verdade, o oposto é verdadeiro. Biden também exagerou a ameaça da China e rotulou Xi Jinping de “ditador”. Quando Skinner escreve que a China é um país “cujo comportamento agressivo só pode ser contido por meio de pressão externa”, ele optou por ignorar como, sob o comando de Biden, os EUA alinharam vários países do Leste Asiático, incluindo Japão, Índia, Coreia do Sul e Filipinas, em uma coalizão contra a China – e é por isso que Pequim acusa os EUA de novamente seguir uma política de contenção.

O tratamento dado pelo Projeto à Rússia está muito distante de sua análise da China. A Rússia é uma ameaça apenas com relação à segurança da Ucrânia. Não há nenhuma consideração sobre a crença de Vladimir Putin no excepcionalismo russo, suas ideias políticas, seu histórico de direitos humanos ou suas ambições imperiais. (O documento do Projeto 2025 dá mais espaço para o Ártico do que para a Rússia).

Skinner observa três vertentes do pensamento conservador sobre a política da Ucrânia e conclui:

“Independentemente dos pontos de vista, todos os lados concordam que a invasão da Ucrânia por Putin é injusta e que o povo ucraniano tem o direito de defender sua pátria. Além disso, o conflito enfraqueceu muito a força militar de Putin e impulsionou a unidade da OTAN e sua importância para as nações europeias.”

Skinner conclui que o apoio dos EUA à Ucrânia deve continuar, desde que seja “totalmente pago; limitado à ajuda militar (enquanto os aliados europeus atendem às necessidades econômicas da Ucrânia); e tenha uma estratégia de segurança nacional claramente definida que não arrisque vidas americanas”.

Alguns desmentidos de Trump

Donald Trump nunca falou sobre o direito de autodefesa da Ucrânia ou sobre a importância da unidade da OTAN diante da agressão russa. Ele também não concorda com o pagamento integral da missão na Ucrânia. A principal preocupação de Trump são as relações com a Rússia e a Europa, não a segurança da Ucrânia. Ele já disse várias vezes que Putin é um grande amigo, que Putin não teria iniciado uma guerra com a Ucrânia se Trump fosse o presidente e que ele, Trump, vai elaborar um acordo de paz muito rapidamente.

Pode ser por isso que a Ucrânia nem sequer seja mencionada na plataforma do Partido Republicano, que se refere simplesmente à restauração da “paz na Europa”. Em resumo, Trump quer se livrar do problema da Ucrânia apaziguando a Rússia. Ele só está na mesma página do Projeto 2025 ao argumentar que a Europa e a OTAN devem ser tratadas em termos transacionais, ou seja, ao insistir que os europeus paguem mais pela defesa e ofereçam mais em termos de comércio.

Trump também pode não estar totalmente de acordo com o Projeto 2025 no que diz respeito a Taiwan. Como ele já demonstrou no passado, o ganho financeiro e a vingança são marcas registradas de sua abordagem às relações internacionais, seja lidando com amigos ou adversários.

Lembre-se de que Trump assumiu o cargo em 2017 acreditando que tanto o Japão quanto a China haviam enganado os EUA nas relações comerciais. Em seguida, ele se distanciou da OTAN, argumentando que seus membros precisam pagar mais por sua defesa ou sacrificar o apoio dos EUA.

Portanto, quando lhe perguntaram, em uma entrevista à Bloomberg News em 25 de junho, qual seria sua política em relação a Taiwan, ele não pensou em defender a ilha, o que os republicanos no Congresso consideram a primeira prioridade, mas sim o seguinte: “Eles ficaram com cerca de 100% do nosso negócio de chips. Acho que Taiwan deveria nos pagar pela defesa. Sabe, não somos diferentes de uma companhia de seguros. Taiwan não nos dá nada”. Isso não significa que Trump abandonará Taiwan; ele pode simplesmente estar pressionando o país a pagar mais, assim como exigiu da OTAN.

Segunda Guerra Fria

Em resumo, o Projeto 2025 é menos uma análise séria e objetiva do que um documento ideológico. Ele eleva o nível das ameaças internacionais aos interesses dos EUA, sendo a China o inimigo central; apoia uma enorme expansão do poder presidencial; pede uma ênfase maior do que a de Biden na modernização e expansão das armas nucleares; deixa para os aliados a principal responsabilidade de confrontar a Rússia; pressiona por grandes aumentos no orçamento militar dos EUA; e defende o fortalecimento da base industrial de defesa dos EUA e o aumento das vendas de armas estadunidenses no exterior.

Não procure por iniciativas diplomáticas, questões de direitos humanos, preocupações ambientais, o papel do direito internacional ou discussões sobre pobreza, autocracia ou democracia. Se uma agenda Trump-Projeto 2025 for implementada, podemos esperar crises cada vez maiores na Europa Central e no Oriente Médio, novas corridas armamentistas com a Rússia e a China, outra guerra comercial com a China e novas tensões no Estreito de Taiwan.

Um “gênio estável” estará no comando. Qualquer pessoa que não tenha vivido a primeira Guerra Fria terá uma oportunidade de vivê-la agora.

O retorno do “Tariff Man”

O capítulo de Navarro está totalmente alinhado com as ideias de Trump, o “Tariff Man”, sobre política comercial. Navarro argumenta que uma política comercial dos EUA que se iguale às altas tarifas da China, da Índia ou de qualquer outro país é a melhor maneira de reduzir o déficit comercial dos EUA. Segundo ele, a imposição de tarifas elevadas também forçará as empresas multinacionais dos EUA a construir fábricas no país e será bom para os agricultores estadunidenses (Lembre-se de que nada disso aconteceu durante o mandato de Trump).

Navarro também é a favor do comércio e da dissociação financeira da China, que ele acusa de nada menos que cinquenta formas de “agressão econômica”. Bem conhecido por sua visão ideologicamente voltada para a China, Navarro escreve que os chineses “nunca negociam de boa fé”. Suas propostas praticamente acabariam com a maior parte do comércio com a China, com os investimentos dos EUA no país asiático e com os investimentos chineses nos EUA. Os intercâmbios educacionais e de pesquisa com a China também seriam bastante restritos.

Os custos dessas propostas para os consumidores e as instituições de pesquisa científica e tecnológica dos EUA, o impacto sobre as cadeias de suprimentos globais, a provável retaliação na forma de uma interrupção das exportações chinesas de terras raras e outros minerais vitais para os EUA e o aumento das tarifas da China em resposta às tarifas mais altas dos EUA – todos esses resultados muito prováveis nunca são considerados por Navarro, assim como não o foram por Trump como presidente.

Alguém poderia ler o capítulo de Navarro e pensar que ele e Trump se opõem aos interesses das corporações multinacionais e estão profundamente preocupados com os interesses dos trabalhadores americanos. Mas sabemos, por experiência própria, como Trump mascarou seu objetivo real de obter favores do grande capital, conforme evidenciado por seus cortes de impostos que beneficiaram principalmente o 1% das famílias mais ricas e sua dependência de grandes doações de alguns dos líderes corporativos mais ricos. Agora, Trump propõe reduzir a alíquota do imposto corporativo de 21% no projeto de lei fiscal de 2017 (que era de 35%) para 15%. E você pode apostar que Trump nomeará chefes da Comissão Federal de Comércio e do Federal Reserve que são fãs da América corporativa.

Políticas: Irã, Coreia do Norte, Venezuela, México, armas

Sobre o Irã, o Projeto 2025 diz: “os Estados Unidos podem utilizar suas próprias ferramentas econômicas e diplomáticas e as de outros países para facilitar o caminho rumo a um Irã livre e a um relacionamento renovado com o povo iraniano”. Como fazer isso? Outra reversão às políticas anteriores de Trump: sanções mais severas, apoio a Israel para “tomar o que considerar medidas apropriadas para se defender contra o regime iraniano” e, por fim, buscar uma mudança de regime. O Oriente Médio recebe pouca atenção.

Sobre a Coreia do Norte: “Os Estados Unidos não podem permitir que a Coreia do Norte continue a ser uma potência nuclear de fato com a capacidade de ameaçar os Estados Unidos ou seus aliados. . . . Não se deve permitir que a RPDC lucre com suas violações flagrantes de compromissos internacionais ou ameace outras nações com chantagem nuclear. Ambos os interesses só podem ser atendidos se os EUA não permitirem o comportamento desonesto do regime da RPDC.” Deixando de lado o significado de “proibir” e “não permitir”, essa proposta segue o fracasso de Trump em fechar um acordo com Kim Jong Un quando ele teve a chance. O Projeto 2025 deixa em aberto a possibilidade de outra rodada de ameaças nucleares entre os EUA e a Coreia do Norte.

A Venezuela é o foco da seção América Latina do Projeto 2025. Ele diz: “o próximo governo deve tomar medidas importantes para colocar os abusadores comunistas da Venezuela em alerta e, ao mesmo tempo, fazer progressos para ajudar o povo venezuelano”. Esse conselho ambíguo foi amplamente superado pelos acontecimentos. A eleição presidencial contestada da Venezuela em 28 de julho já levou os EUA a reconhecer o oponente do presidente Nicolás Maduro, Edmundo Gonzalez, como o vencedor, manter as sanções e oferecer a Maduro anistia e uma carona para fora do país. Por enquanto, o governo Biden tem contado com os antigos amigos da Venezuela – os presidentes do México, Brasil e Colômbia – para tentar persuadir Maduro a renunciar. No entanto, não há sinais de que, sob Biden, os EUA colocarão Maduro “em alerta”.

O México é tratado como um “Estado cartel” que perdeu sua soberania. “O próximo governo”, diz o documento do Projeto, ‘deve adotar uma postura que exija um México totalmente soberano e tomar todas as medidas à sua disposição para apoiar esse resultado da maneira mais rápida possível’. A falta de soberania total do México é um argumento para uma intervenção mais direta dos EUA no México? Sabe-se que Trump já expressou a opinião, enquanto presidente, de que os EUA deveriam considerar invadir o México sob o pretexto de interromper o comércio de drogas.

Com relação a armas nucleares e gastos militares, o Projeto 2025 propõe aumentar a produção e a modernização de armas nucleares e retomar os testes com elas (em violação ao Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares). Essas ideias, totalmente alinhadas com a paixão de Trump por armas nucleares, estão todas ligadas a propostas para grandes aumentos no orçamento militar dos EUA, para fortalecer a base industrial de defesa estadunidense e para aumentar as vendas de armas dos EUA no exterior. Como se Biden já não estivesse gastando o suficiente com as forças armadas e armas nucleares, ou se afastando da venda de armas!

Conclusão

Em resumo, nas relações exteriores e na segurança nacional, o Projeto 2025 eleva o nível das ameaças internacionais aos interesses dos EUA, com a China como inimigo central; apoia uma enorme expansão do poder presidencial, às custas da diplomacia e das descobertas de inteligência; pede uma ênfase maior do que a de Biden na expansão militar-industrial, incluindo a modernização de armas nucleares; deixa para os aliados a principal responsabilidade de confrontar a Rússia; e parece defender a mudança de regime no Irã, na Venezuela e até no México. Como presidente, Trump teria a liberdade de aceitar ou rejeitar qualquer parte das ideias do Projeto 2025. Mas o que quer que ele aceite não será menos perigoso do que qualquer uma das ideias que ele, como um “gênio estável”, carregou consigo do passado.

 

Gabinete Trump – de, por e para os ricos, por Branko Marcetic

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O alto-escalão do novo governo dos EUA será ocupado por bilionários e CEOs, como Elon Musk. Objetivos estão traçados: menos impostos para corporações, desregulamentações e austeridade para pobres e classe média. É o cinismo de um presidente que se diz “pró-trabalhador”

Branko Marcetic – OUTRAS MÍDIAS -14/11/2024

O alto-escalão do novo governo dos EUA será ocupado por bilionários e CEOs, como Elon Musk. Objetivos estão traçados: menos impostos para corporações, desregulamentações e austeridade para pobres e classe média. É o cinismo de um presidente que se diz “pró-trabalhador”

Após uma derrota eleitoral desmoralizante, o Partido Democrata está mergulhado em debates e acusações enquanto tenta descobrir o que realmente quer ser nos próximos anos: um partido de trabalhadores ou de CEOs e bilionários. O lado de Donald Trump, enquanto isso, já decidiu: vai com os CEOs e bilionários. Tudo o que estamos vendo sobre os planos do novo governo por meio de pessoas de dentro deixa bem claro que este será um governo de, por e para grandes empresas.

Os assessores de Trump disseram à Axios que, no primeiro dia, o novo presidente vai promover “uma agenda favorável aos negócios de cortes de impostos, desregulamentação e expansão da produção de energia” e “preencherá seus altos escalões com bilionários, ex-CEOs, líderes de tecnologia e legalistas”. Há planos em andamento para reduzir ainda mais as taxas de impostos corporativos, desregulamentar uma variedade de setores como criptomoedas, inteligência artificial e grandes bancos, e expulsar a presidente antimonopólio da Federal Trade Commission, Lina Khan, para abrir caminho para mais uma vitória corporativa.

Isso não é nenhuma surpresa, já que Trump já entregou as rédeas de sua presidência para a elite empresarial. A transição de Trump está sendo liderada por dois doadores milionários para sua campanha: Linda McMahon, que como ex-CEO da World Wrestling Entertainment acumulou um longo histórico enganando trabalhadores (e pode ser recompensada ainda mais com o posto de Secretária de Comércio), e o CEO da empresa de negociação Cantor Fitzgerald, Howard Lutnick, que cortou financeiramente as famílias de seus funcionários mortos no ataque de 11 de setembro apenas um dia depois de chorar na televisão sobre suas mortes. O recém-nomeado chefe de gabinete de Trump é um lobista corporativo que trabalhou para empresas de tabaco, seguros e carvão. Alguns gestores de fundos de hedge estão concorrendo para ser seu secretário do tesouro.

Esses são apenas alguns dos bilionários e executivos que silenciosamente moldam a futura presidência de Trump nos bastidores, incluindo o ultra-capitalista Marc Andreessen e o ex-presidente da Marvel Entertainment, Ike Perlmutter. Mas um nome merece menção especial: o bilionário Elon Musk.

Musk é mais um megadoador da campanha de Trump que agora está tendo o favor retribuído pelo presidente eleito. Ele será encarregado, ao que parece, de cortar US$ 2 trilhões de suposto desperdício e fraude do governo, uma ideia que foi pessoalmente endossada por Trump em público. O que está sendo sinalizado é um programa de austeridade implacável para os pobres e a classe média, um que Musk admitiu aberta que mergulhará os americanos em “dificuldades” e uma crise econômica “severa”, mesmo que o governo enriqueça os ultra-ricos.

Não é de se admirar, então, que os dez homens mais ricos do mundo já tenham aumentado sua riqueza em US$ 64 bilhões com a vitória de Trump na última terça-feira, o que fez o mercado de ações ferver com antecipação para a elite empresarial?

Com a eleição garantida, Trump e sua equipe nem se preocupam mais em fingir que passarão os próximos quatro anos lutando contra a elite econômica em nome do trabalhador americano oprimido. Em vez disso, eles vão, muito abertamente, unir forças com essa elite para seguir uma agenda que empobrecerá ainda mais os muitos eleitores que depositaram sua confiança em Trump para tirá-los das atuais dificuldades econômicas.

A reformulação da marca do velho Partido Republicano como o “partido dos trabalhadores” sempre foi uma farsa, especialmente vindo de um líder cuja principal realização legislativa no primeiro mandato foi um corte massivo de impostos para os ricos. Tudo sugere que eles estão prestes a tornar essa “reformulação de brading” mais uma piada.

Branko Marcetic é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.

 

Tecnologia não é sinônimo de progresso, por Suzana Herculano-Houzel

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Parar de pensar acentua as desigualdades

Suzana Herculano-Houzel, Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Folha de São Paulo – 15/11/2024

Estou achando difícil ser um animal da espécie humana ultimamente, quando meu vício profissional é pensar o tempo todo em como chegamos aqui: somos fruto de uma sequência de oportunidades amplificadas exponencialmente por um truque tecnológico, o pré-processamento do que comemos, que colocou mais calorias em nossas bocas, mais neurônios em nosso cérebro, e mais tempo em nossas mãos.

A história sobre como alcançamos a biologia que temos, radicalmente transformada pela primeira tecnologia que nossos antepassados criaram, que foi o uso de pedras lapidadas na forma de ferramentas para modificar o que comiam, é a história da evolução biológica da nossa espécie.

A história sobre como nos tornamos os humanos que somos hoje é outra coisa: uma história de progresso. Evolução é apenas mudança ao longo do tempo, nem para pior, nem para melhor. Progresso, agora sim, é mudança que melhora a situação: que traz mais possibilidades, que abre portas, que gera complexidade que torna a vida mais interessante.

Na visão panorâmica da história da humanidade, progresso tem sido o produto do uso de mais e mais novas tecnologias, que geram oportunidades até então inexistentes e mudam a maneira de fazer e pensar. Cordas e machados, depois barro, cimento, concreto e aço transformaram onde vivemos; barro, depois papel e tinta, e então computadores e agora a internet mudaram como estendemos nossos pensamentos e memórias a repositórios externos que podemos consultar à vontade.

Mas esse tempo todo, cabia a nós, humanos, pensar. Juntar coisa com coisa e virar ideias na cabeça, com um problema em mente, até elas fazerem sentido. Usar a tecnologia não como um fim, mas como um meio. As tecnologias armazenavam e traziam informação —mas tornar informação em conhecimento sempre dependeu de humanos usarem a tal informação para melhorar sua vida. O progresso da humanidade não está simplesmente em dispor de mais informação, mas em transformá-la em conhecimento, acumulado e mantido vivo conforme geração após geração aprende a pensar, sintetizar, usar e transmitir.

Donde minha dificuldade, que vem de olhar ao redor e ver minha espécie fazendo muita, mas muita força para automatizar e terceirizar a geração de conhecimento, efetivamente excluindo-se da história. É sério que nós construímos toda uma riqueza de conhecimentos e civilizações diferentes para então gerarmos uma maneira de tornar o cérebro e a experiência humana… obsoletos?

Estou falando, é claro, da tecnologia dita “inteligência artificial” e do seu uso para direcionar a experiência humana. Já escrevi aqui que tecnologias que são apenas algoritmos repetitivos, mesmo que produzam à força de muito treino algo que é indistinguível de linguagem, não têm nada de inteligente, pois inteligência é flexibilidade. Tecnologias não são inteligentes; o uso que fazemos delas é que pode ou não ser.

Mas pior do que confundir algoritmo e automação com inteligência é pensar que todo e qualquer uso dessas tecnologias é inteligente e inevitavelmente traz progresso. Não é, e não traz. A história mostra que automação, sozinha, só enche os bolsos da elite que detém o poder, enquanto acentua a desigualdade.

Meu medo é que a humanidade, encantada com o brinquedo novo, não nota que ele rouba suas oportunidades para parar, pensar, e aprender, e se faz cada vez mais à mercê de uma elite pensante cada vez menor e mais rica.

 

 

Vitória de Trump significa rejeição do liberalismo clássico e inaugura nova era nos EUA e no mundo, por Fukuyama

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Resta saber se republicanos conseguirá cumprir promessas autoritárias e aprofundar degradação das instituições.

Francis Fukuyama, Filósofo e economista americano, é professor da Universidade Stanford e autor dos livros ‘O Fim da História e o Último Homem’ e ‘Liberalism and Its Discontents’ [O Mal-Estar no Liberalismo, em tradução livre].

Folha de São Paulo – 12/11/2024

A vitória esmagadora de Donald Trump e do Partido Republicano no último dia 5 levará a grandes mudanças em áreas importantes na política dos Estados Unidos, desde a imigração até a Ucrânia. Mas o significado da eleição vai muito além dessas questões específicas e representa uma rejeição decisiva dos eleitores americanos al liberalismo e à maneira particular como a compreensão de uma “sociedade livre” evoluiu desde os anos 1980.

Quando Trump foi eleito pela primeira vez em 2016, era fácil acreditar que esse evento era uma aberração. Ele estava concorrendo contra uma oponente fraca que não o levava a sério e, de qualquer frma, Trump não venceu no voto popular. Quando Biden conquistou a Casa Branca quatro anos depois, parecia que as coisas tinham voltado ao normal após uma desastrosa Presidência de um mandato só.

Após a votação do dia 5, agora parece que a anomalia foi a Presidência de Biden, e que Trump está inaugurando uma nova era na política dos EUA e talvez no mundo como um todo. Os americanos votaram nele com pleito conhecimento de quem Trump era e o que ele representava. Não só ele ganhou a maioria dos votos e todos os estados-pêndulo mas os republicanos retomaram o Senado e parecem que vão manter a maioria da Câmara dos Representantes. Dada a sua já existente dominância na Suprema Corte, eles agora estão prontos para controlar todos os Três Poderes do governo.

Mas qual é a natureza desta nova fase da história americana?

O liberalismo clássico é uma doutrina construída em torno do respeito pela dignidade dos indivíduos por meio de um Estado de Direito que protege seus direitos e de controles constitucionais sobre a capacidade do Estado de interferir nesses direitos.

Mas, ao longo do último meio século, esse impulso básico sofreu duas grandes distorções. A primeira foi a ascensão do neoliberalismo, uma doutrina econômica que canonizou os mercados e reduziu a capacidade dos governos de proteger aqueles prejudicados por mudanças econômicas. O mundo ficou muito mais rico ao todo, enquanto a classe trabalhadora perdeu empregos e oportunidades. O poder se deslocou dos lugares onde nasceu a Revolução Industrial para a Ásia e outras partes do mundo em desenvolvimento.

A segunda distorção foi a ascensão do identitarismo ou do que se poderia chamar de liberalismo “woke” (forma como é chamado o discurso de pautas identitárias nos EUA), em que a preocupação progressista com a classe trabalhadora foi substituída por proteções direcionadas para um conjunto mais restrito de grupos marginalizados: minorias raciais, imigrantes, minorias sexuais e afins. O poder do Estado foi cada vez mais usado não a serviço da justiça imparcial, mas sim para promover resultados sociais específicos para esses grupos.

Enquanto isso, os mercados de trabalho estavam mudando para uma economia da informação. Em um mundo em que a maioria dos trabalhadores se senta em frente a uma tela de computador em vez de levantar objetos pesados do chão da fábrica, as mulheres têm uma posição mais igualitária. Isso transformou o poder dentro das famílias e levou a percepção de uma celebração aparentemente constante das conquistas femininas.

A ascensão desses entendimentos distorcidos a respeito do que é o liberalismo impulsionou uma grande mudança na base social do poder político. A classe trabalhadora sentiu que os partidos políticos de esquerda não estavam mais defendendo seus interesses e começou a votar em partidos de direita.

Assim, o Partido Democrata perdeu o contato com sua base da classe trabalhadora e se tornou um partido dominado por profissionais urbanos escolarizados. Os trabalhadores escolheram votar nos republicanos. Na Europa, eleitores do partido comunista na França e na Itália desertaram para Marine Le Pen e Giorgia Meloni.

Todos esses grupos estavam insatisfeitos com um sistema de livre comércio que eliminou seus meios de subsistência, ao mesmo tempo em que criou uma nova classe de super-ricos, e também estavam insatisfeitos com partidos progressistas que aparentemente se importavam mais com estrangeiros e o meio ambiente do que com sua própria condição econômica.

Essas grandes mudanças sociológicas foram refletidas nos padrões de votação na terça-feira. A vitória republicana foi construída em torno de eleitores brancos da classe trabalhadora, mas Trump conseguiu atrair significativamente mais eleitores negros e hispânicos em comparação com a eleição de 2020. Isso foi especialmente verdadeiro para os homens dentro desses grupos. Para eles, a classe importava mais do que raça ou etnia. Não há razão particular para que um latino da classe trabalhadora, por exemplo, deva se sentir particularmente atraído por um liberalismo woke que favorece imigrantes recentes e se concentra em avançar os interesses das mulheres.

Também está claro que a grande maioria dos eleitores da classe trabalhadora simplesmente não se importava com a ameaça à ordem liberal, tanto doméstica quanto internacional, representada por Trump.

Donald Trump não quer apenas reverter o neoliberalismo e o liberalismo woke, mas é uma grande ameaça ao próprio liberalismo clássico. Essa ameaça é visível em várias questões políticas; uma nova Presidência de Trump não se parecerá em nada com seu primeiro mandato. A verdadeira questão neste ponto não é se suas intenções são malignas, mas sim sua capacidade de verdadeiramente cumprir o que ameaça.

Muitos eleitores simplesmente não levam sua retórica a sério, enquanto republicanos tradicionais argumentam que os freios e contrapesos do sistema americano o impedirão de fazer o pior. Isso é um erro: devemos levar suas intenções declaradas muito a sério.

Trump é um protecionista autoproclamado, que diz que tarifa é a palavra mais bonita da língua inglesa. Ele propôs tarifas de 10% ou 20% contra todos os bens produzidos no exterior, por nações amigas ou inimigas, e não precisa do aval do Congresso para fazê-lo.

Como um grande número de economistas apontou, esse nível de protecionismo terá efeitos extremamente negativos sobre a inflação, produtividade e emprego. Será extremamente prejudicial para as cadeias de suprimentos, o que levará os produtores domésticos a solicitar isenções. Isso então proporciona a oportunidade para altos níveis de corrupção e favoritismo, à medida que as empresas correm para agradar o presidente.

Tarifas nesse nível também convidam a retaliações igualmente massivas por outros países, criando uma situação em que o comércio (e, portanto, a renda) colapsa. Talvez Trump recue diante disso; ele também pode responder como a ex-presidente argentina Cristina Kirchner, corrompendo a agência estatística que reporta as más notícias econômicas.

Com relação à imigração, Trump não quer mais simplesmente fechar a fronteira; ele quer deportar o máximo possível dos 11 milhões de imigrantes em situação irregular lá no país. Essa é uma tarefa administrativa tão grande que exigirá anos de investimento na infraestrutura necessária para realizá-la — centros de detenção, agentes de controle de imigração, tribunais e assim por diante.

Terá efeitos devastadores em vários setores que dependem da mão de obra imigrante, particularmente construção civil e agricultura. Também será enormemente desafiador em termos morais, à medida que pais são separados de seus filhos americanos, e criaria o cenário para um conflito civil, já que muitos dos imigrantes vivem em jurisdições democratas que farão o que puderem para impedir que Trump consiga o que quer.

Com relação ao Estado de Direito, Trump se concentrou, durante a campanha, em buscar vingança pelas injustiças que acredita ter sofrido nas mãos de seus adversários. Ele prometeu usar o sistema de justiça para perseguir de Liz Cheney e Joe Biden ao ex-presidente do Estado-Maior Mark Milley e Barack Obama. Ele quer silenciar críticos da mídia retirando suas concessões ou impondo penalidades.

Se Trump terá o poder de fazer qualquer uma dessas coisas é incerto: o sistema judicial foi uma das barreiras mais resilientes aos seus excessos durante o primeiro mandato. Mas os republicanos têm trabalhado consistentemente para inserir juízes trumpistas no sistema, como a juíza Aileen Cannon na Flórida, que rejeitou o forte caso dos documentos confidenciais contra Trump.

Algumas das mudanças mais importantes virão na política externa e na natureza da ordem internacional. A Ucrânia é de longe a maior perdedora; sua luta militar contra a Rússia estava enfraquecendo mesmo antes da eleição, e Trump pode forçá-la a se render nos termos da Rússia ao reter armas, como a Câmara Republicana fez por seis meses no inverno passado.

Trump ameaçou reservadamente sair da Otan, mas mesmo que não o faça, ele pode enfraquecer gravemente a aliança ao não cumprir sua garantia de defesa mútua do Artigo 5. Não há líderes europeus que possam substituir os Estados Unidos como líder da aliança, então sua futura capacidade de enfrentar a Rússia e a China está em grave perigo. Pelo contrário, a vitória de Trump inspirará outros populistas europeus, como a Alternativa para a Alemanha e a Reunião Nacional na França.

Aliados e amigos dos EUA no Leste Asiático não estão em posição melhor. Embora Trump tenha falado duramente sobre a China, ele também admira muito Xi Jinping por suas características autocráticas e pode estar disposto a fazer um acordo com ele sobre Taiwan. Trump parece avesso por natureza ao uso do poder militar e é facilmente manipulado, mas uma exceção pode ser o Oriente Médio , onde ele provavelmente apoiará completamente as guerras de Benjamin Netanyahu contra o Hamas, o Hezbollah e o Irã.

Há fortes razões para pensar que Trump será muito mais eficaz em cumprir essa agenda do que foi durante seu primeiro mandato. Ele e os republicanos reconheceram que a implementação de políticas depende da equipe. Quando foi eleito pela primeira vez em 2016, ele não entrou no cargo cercado por um grupo de assessores leais; em vez disso, teve que contar com republicanos do establishment.

Em muitos casos, eles bloquearam ou retardaram suas ordens. No final de seu mandato, ele emitiu uma ordem executiva que retiraria todas as proteções de estabilidade dos servidores federais e permitiria que ele demitisse qualquer burocrata que quisesse. Um renascimento dessa medida está no cerne dos planos para um segundo mandato de Trump, e os conservadores têm estado ocupados compilando listas de potenciais funcionários cuja principal qualificação é a lealdade pessoal a Trump. É por isso que ele tem mais chances de executar seus planos desta vez.

Antes da eleição, críticos, incluindo Kamala Harris, acusaram Trump de ser um fascista. Isso foi equivocado na medida em que ele não estava prestes a implementar um regime totalitário nos EUA. Em vez disso, haveria uma decadência gradual das instituições liberais, assim como ocorreu na Hungria após o retorno de Viktor Orbán ao poder em 2010.

Essa decadência já começou, e Trump causou danos substanciais. Ele aprofundou uma polarização já significativa e transformou os EUA de uma sociedade de alta confiança para uma de baixa confiança; ele demonizou o governo e enfraqueceu a crença de que ele representa os interesses coletivos dos americanos; ele tornou o discurso político mais grosseiro e deu permissão para expressões abertas de intolerância e misoginia; e ele convenceu a maioria dos republicanos de que seu antecessor foi um presidente ilegítimo que fraudou a eleição de 2020.

A amplitude da vitória republicana, estendendo-se da Presidência ao Senado e provavelmente à Câmara dos Representantes também, será interpretada como um forte mandato político confirmando essas ideias e permitindo que Trump aja como quiser. Só podemos esperar que algumas das barreiras institucionais restantes sigam de pé. Mas pode ser que as coisas tenham de piorar muito antes de melhorarem.

 

Incertezas crescentes

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A sociedade mundial vem passando por grandes alterações econômicas e produtivas, com impactos generalizados sobre todas as regiões, alterando comportamentos arraigados, alterando a agenda das comunidades, com o incremento de desenvolvimentos científico e tecnológico que transformaram os  modelos de negócios, reconfigurando o mercado de trabalho, aumentando as exigências para todos os trabalhadores, movimentando as estruturas políticas e democráticas dos Estados Nacionais e gerando novos desafios para toda a comunidade global.

Diante destes desafios contemporâneos que agitam a sociedade internacional, percebemos ventos de mais protecionismos dentro das comunidades locais, nações que pregavam enfaticamente o livre comércio, que eram árduos defensores de mais concorrência como forma de alavancar o crescimento econômico e estimulavam a diminuição do Estado na economia estão revendo princípios e valores que eram vistos como intocáveis.

Neste cenário, percebemos o crescimento de políticas protecionistas para proteger suas estruturas econômicas e produtivas, com fortes investimentos subsidiados pelos governos nacionais, além do incremento de tarifas de importação para reduzir a entrada de produtos estrangeiros, desta forma, garantem a sobrevida de setores nacionais que perderam espaço no comércio global e foram substituídos por concorrentes estrangeiros mais eficientes, mas produtivos e detentores de tecnologias mais modernas e mais sofisticadas.

Com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, percebemos o renascimento de um discurso fortemente protecionista e messiânico, centrado nos interesses norte-americanos, com forte teor protecionista e imediatista, com o incremento de políticas anti-imigração e de deportação em massa, além da intensificação do conflito comercial entre EUA e China, reversão de políticas adotados no governo atual que estimulavam os conflitos militares em curso na sociedade mundial e o afastamento dos tratados internacionais, principalmente os vinculados ao Meio Ambiente.

Internamente, percebemos que o novo governo Donald Trump deve adotar políticas protecionistas para fortalecer estados e regiões inteiras que foram fortemente desindustrializadas nos momentos de ascensão da chamada globalização. Estados que sempre se caracterizaram por forte desenvolvimento industrial, pela pujança econômica, por uma classe média consolidada e que perderam a capacidade de competição global, levando uma massa gigantesca de empresas nacionais a fecharem suas unidades locais e abrirem filiais em outras regiões, notadamente na Ásia, onde a mão de obra era mais barata, mais abundante, com os custos de produção imensamente menores.

O protecionismo estadunidense pode gerar graves constrangimentos internos e externos, deportar imigrantes, sobretaxar produtos estrangeiros, adotar políticas agressivas contra os interesses de empresas chinesas e pressionar empresas transnacionais para incrementar novos investimentos internos, tais políticas podem gerar graves constrangimentos inflacionários, levando as Autoridades Monetários ao incremento das taxas de juros e levando nações a desequilíbrios nas contas externas.

Vivemos momentos de grandes incertezas e instabilidades. Depois dos problemas ambientais, dos desequilíbrios energéticos, das guerras fratricidas que crescem em escalas ascendentes, dos desajustes do mercado de trabalho, das desesperanças que crescem em todas as regiões do globo, percebemos que mais desequilíbrios e intolerâncias crescem todos os momentos na comunidade global. A eleição nos Estados Unidos nos traz uma grande lição, a melhora econômica e os bons indicadores da economia são insuficientes para garantir a manutenção do poder…abram os olhos!

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Qual fantasia subjaz à reeleição de Trump? por Vera Iaconelli

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Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo – 12/11/2024

Embora ninguém pudesse afirmar de antemão que a gata Harris estava morta dentro da caixa, a notícia de sua derrota foi recebida com surpreendente conformismo. A que se deve tal reação, ou a falta dela? A reeleição de Trump implicou uma escolha que não foi feita às cegas, que não se justifica apenas pelas fake news e na qual a narrativa de outsider não existe mais. Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando. Como bem resumiu Oliver Stuenkel, haveria quatro “is” envolvidos nessa escolha: inflação, imigração, instabilidade global e insegurança masculina. Além dos bilhões de dólares investidos na campanha, claro.

Mais do que se debruçar sobre a infindável —e imprescindível— investigação das razões pelas quais essa figura execrável foi reeleita para governar o país mais poderoso da atualidade, há que se pensar também sobre a desrazão, tema crucial da psicanálise. Embora hoje tenhamos que conviver com o ultraje de ver associado ao nome da psicanálise as palavras “positiva”, “evangélica”, “de direita”, “certificada” ou ainda “certificada pelo MEC”, nosso trabalho é de outra ordem.

O analista convive com uma rotina nada glamourosa de escutar a repetição da queixa do paciente, por vezes, ao longo de anos. Alguns sintomas podem até ceder, mas a mudança da posição do sujeito diante da vida, que o leva a um sofrimento insistente, requer um trabalho mais radical. Não raro, o paciente troca de trabalho, sexo, marido/esposa ou casa sem que isso o faça sair da posição que o mantém numa existência miserável.

O prazer inconfesso que se obtém com a repetição de certos padrões de comportamento está recalcado sob a queixa. Daí a importância de ajudá-lo a reconhecer sua parte naquilo do qual se queixa. O analista não tem a pretensão de modificar a escolha do paciente, mas de fazê-lo assumir sobre que bases se dá essa escolha. A atitude aqui é ética, de responsabilização, e não moral, de dever a ser cumprido.

A escolha por Trump —o exterminador do futuro das mulheres, dos negros, dos pobres e, por fim, do próprio planeta— se revela como renovação na aposta na objetificação do outro, a quem, a depender da posição relativa na escala social, poderemos continuar explorando. Trata-se, enfim, da renovação da aposta capitalista em sua versão turbinada, neoliberal. Algo como: sofro, mas não me privo de fazer o outro sofrer, alucinando a possibilidade de um dia estar na posição mais alta da hierarquia social. Aquela na qual roubar, abusar, matar não seriam atos passíveis de responsabilização. Lembremos da pilha de condenações ligadas ao candidato em questão.

Embora a guilhotina tenha feito seu papel, nunca superamos inteiramente o sonho monarquista, no qual o presidente-rei paira incólume sobre os pobres mortais. Como acabar com esse jogo perverso se não conseguimos abrir mão da esperança de um dia ser nossa vez de brincar de todo-poderoso?

Psicanalistas se orientam pelo que repete incessantemente na clínica porque é a partir da identificação da repetição que se pode localizar a fantasia inconsciente que nos move. No caso de Trump, a fantasia é de delírio de grandeza e de gozar impunemente. Temos nosso exemplar no Brasil, que não deveria sequer voltar às capas desse jornal.

Direita vai bem, Bolsonaro vai mal e Trump não pode salvá-lo, por Christian Lynch

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Nova configuração de poder emerge no Brasil, com controle do centrão e conservadorismo mais pragmático que radical

Christian Lynch, Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), editor da revista Insight Inteligência, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa

Folha de São Paulo – 11/11/2024

[RESUMO] O domínio do centrão nas eleições deste ano, sustenta o autor, aponta que o sistema político brasileiro, depois de um período de forte instabilidade e polarização extrema, passa por um processo de reequilíbrio, marcado por um presidencialismo de coalizão fraco e níveis menores de radicalidade ideológica. Partidos de centro-direita têm interesse em manter a inelegibilidade de Bolsonaro, e a esquerda, sem novos líderes, depende cada vez mais de Lula.

Os resultados das eleições municipais deste ano confirmam que o sistema político brasileiro passa por um processo de reequilíbrio em torno de novas bases ideológicas e de governabilidade. Bases distintas daquelas que definiram o período de estabilização do regime democrático entre os anos 1990 e 2010, assentadas sobre um eixo ideológico de centro-esquerda e do presidencialismo de coalizão forte ou imperial como modelo de governabilidade, que levava a reboque o chamado centrão.

Há cerca de dez anos, o eixo ideológico começou a se deslocar para a centro-direita, sustentado por partidos de centro-direita e direita, que deixaram a periferia do sistema para se tornar seu núcleo de estabilidade e controle. O modelo de governabilidade, perdido ou desarranjado durante aqueles anos de transição, parece agora se estabilizar na forma de um presidencialismo de coalizão fraco ou, conforme seus críticos, um “parlamentarismo bastardo”.

Essas mudanças decorrem de uma crise de legitimidade do sistema representativo, que estalou nas jornadas de 2013, se aprofundou com o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2015 e culminou, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro (à época no PSL). Crise gerada pela emergência de uma nova direita que não se percebia no sistema político da República de 1988 e o hostilizava.

Embora Bolsonaro representasse a nova direita radical, que canalizava o ressentimento popular contra o sistema e o suposto establishment, o centrão renovado pela mesma eleição se adaptou à nova conjuntura, assumindo uma postura conservadora pragmática e reforçando seu papel como pilar de estabilidade. Passou a agir para limitar tanto as prerrogativas da Presidência quanto do STF.

Tudo aponta para uma tendência em direção a um novo equilíbrio sistêmico e ao afrouxamento da polarização para níveis menores de radicalidade.

A Constituição de 1988 foi concebida em um contexto progressista, em que havia um consenso de que o país deveria se afastar das práticas autoritárias da ditadura militar e se comprometer com um projeto de inclusão social e liberdades públicas. Esse espírito se refletiu nas primeiras décadas de democracia, em que o eixo ideológico predominante esteve à esquerda, sustentado por uma Constituição com fortes valores social-democratas.

Entre os anos 1990 e 2010, o sistema político se estabilizou em torno do chamado presidencialismo de coalizão, um arranjo em que o presidente, mesmo minoritário no Congresso, usava seu vasto poder sobre o Orçamento e a máquina governamental para construir maiorias legislativas e garantir a governabilidade.

Esse modelo se consolidou a partir do Plano Real, que gerou estabilidade econômica e legitimidade para Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Tanto ele quanto Lula e Dilma Rousseff, seus sucessores, governaram formando coalizões com partidos mais conservadores que se alinhavam pragmaticamente ao governo em troca de cargos e influência.

Era esse um presidencialismo forte ou imperial, marcado pelo poder de agenda do chefe de Estado na definição de políticas progressistas, voltadas para promover um ambiente de maior liberdade política, civil e econômica, mas também maior igualdade social, racial e de gênero.

No entanto, a partir dos anos 2010, o consenso progressista começou a dar sinais de desgaste. O contexto político e social havia mudado: a sociedade brasileira, transformada por décadas de políticas sociais e de inclusão, se tornou mais complexa e polarizada. Em paralelo, denúncias de corrupção e o colapso do modelo de presidencialismo alimentaram uma crise de legitimidade.

As manifestações de 2013 expressaram o descontentamento generalizado com a classe política e marcaram o início de um período de grande instabilidade. Bancado pela PGR (Procuradoria-Geral da República) e pelo STF, a “revolução judiciarista” pautou a Operação Lava Jato, derrubou Dilma Rousseff, quase derrubou Michel Temer (MDB), além de prender e condenar dezenas de figuras do establishment a título de purgá-lo da corrupção.

Esse processo abriu espaço para que o centrão reagisse em busca de sobrevivência. Para alcançar esse fim, precisaria deixar de ser apenas um grupo de apoio pragmático e passasse a atuar de forma mais autônoma e ativa, buscando consolidar sua hegemonia.

Nesse contexto, o centrão se adaptou para sobreviver e fortalecer sua influência. Até então, seus partidos haviam operado pragmaticamente, compondo com presidentes de diversos espectros políticos. Entretanto, após o impeachment de Dilma e com a ascensão de figuras mais conservadoras, assumiu sua posição conservadora sem perder o pragmatismo, perseguindo primazia sobre os demais Poderes.

Na impossibilidade de aprovar o semipresidencialismo, esse processo culminou em uma nova forma de presidencialismo de coalizão, agora fraco, menos centralizado na Presidência e mais ancorado no Legislativo. Uma espécie de parlamentarismo bastardo.

Por meio de estratégias como o uso de emendas parlamentares (como as emendas Pix e o orçamento secreto), o centrão passou a controlar a distribuição de recursos e fortalecer suas bases locais, garantindo seu domínio sobre a política nacional, o que contribuiu para a vitória de seus candidatos na última eleição municipal e fortaleceu sua influência. Essa apropriação do Orçamento e da máquina pública se tornou um mecanismo de autossustentação, tornando tais partidos cada vez mais independentes do presidente, seja ele de direita ou de esquerda.

O resultado foi um conservadorismo inercial que garante estabilidade ao sistema político ao custo de fazê-lo rodar muito mais lentamente.

As ideologias passaram a ocupar um lugar mais central na organização e na definição das identidades políticas do centrão. Seu conservadorismo sempre existiu, mas estava adormecido pelo consenso progressista. Findo este, saiu da incubadora.

Mas se trata de um conservadorismo moderado, mais pragmático que doutrinário, voltado principalmente para a proteção dos mecanismos de sua autorreprodução com pouca interferência do governo e do Judiciário. Daí a defesa daquilo que eufemisticamente chamam de prerrogativas do Congresso.

A crise de legitimidade vivida pela democracia brasileira e, em paralelo, o avanço da nova direita na década passada deram força política, em estilo abertamente populista, a ideologias radicais que antes estavam à margem, como o reacionarismo e o libertarianismo. A social-democracia identificada com o PT entrou em crise.

No entanto, o pacto pragmático do liberalismo democrático centrista com o conservadorismo tradicional da direita moderada tem garantido que o sistema permaneça estável, coibindo o avanço de pautas progressistas, ora decadentes, mas, também e principalmente, o avanço do populismo autoritário.

Essa relação entre ideologia e pragmatismo se revela na ambiguidade de líderes da direita do centrão, como Ciro Nogueira (PP) e Valdemar Costa Neto (PL). Querem o estoque eleitoral do populismo radical, mas submetendo-o à disciplina partidária tradicional e, assim, podando seus efeitos antissistêmicos.

Mesma ambiguidade visível em Tarsício de Freitas (Republicanos), que representa no governo de São Paulo o impossível “bolsonarismo moderado”, com que busca atrair eleitores de centro-direita acenando periodicamente para o radicalismo. Na centro-direita, Gilberto Kassab (PSD) segura Tarcísio com a mão direita e Lula com a esquerda, estabelecendo as alianças amplas que elegeram o maior número de prefeitos neste ano.

A direita brasileira está consolidada, e seu sucesso cria novos problemas. O maior reside na oposição entre moderados ou sistêmicos, identificados, de um lado, com Kassab e Eduardo Paes (PSD), e radicais antissistêmicos, como Bolsonaro e Pablo Marçal (PRTB).

A liderança de Bolsonaro, inelegível e sem expectativa de poder, está francamente decadente. Egoísta e inábil, o ex-presidente confia sempre e unicamente na sua camarilha de bajuladores e pretende submeter toda a direita ao seu objetivo particular de fugir da cadeia por meio de uma anistia que reverta sua inelegibilidade ou lhe permita lançar à Presidência um candidato subserviente.

Por essas e outras razões, com toda a sua ambiguidade, a própria direita moderada centrônica o percebe como um estorvo e não vê a hora de se livrar dele definitivamente. Prefere gente como Tarcísio e Ronaldo Caiado (União Brasil), este em rota de colisão com Bolsonaro.

A decadência de Bolsonaro se dá também no campo da direita radical. Aparentemente, a apologia da tortura, da ditadura e do golpe militar saíram de moda. Nesse contexto, a figura de Marçal emergiu como um populista neoliberal, camaleão que busca capitalizar o sentimento anti-establishment de gerações mais novas, mais preocupadas com enriquecimento rápido e que veem a religião como terapêutica para problemas pessoais e familiares.

Em termos eleitorais, Bolsonaro também se engajou pessoalmente em campanhas municipais, não só contra a esquerda, mas contra gente da própria direita, e saiu derrotado em quase todas. Muitas igrejas evangélicas também já desinvestem do radicalismo, pregando a despartidarização da religião ou mudando de lado.

Em outras palavras: a direita vai bem, Bolsonaro vai mal. A direita populista, a despeito de sua força eleitoral e histrionismo, continua longe de ameaçar os centrônicos. A eles interessa manter a inelegibilidade de Bolsonaro, fingindo ajudá-lo a escapar quando, na verdade, mais o aproximam do abismo. Mas também lhes interessa a inelegibilidade de Marçal.

Ao mesmo tempo, é improvável que a própria Justiça Eleitoral declare a inelegibilidade de Tarcísio pela declaração que fez a respeito de Guilherme Boulos (PSOL) no dia do segundo turno. Tarcísio pode dar suas “bolsonaradas” à vontade: o sistema o percebe como um dos seus.

Já a esquerda, que historicamente liderou o processo de redemocratização, enfrenta uma situação complexa. Com seu declínio e a falta de renovação de suas lideranças, o PT perdeu o protagonismo e depende cada vez mais da figura de Lula para se manter relevante.

Se Bolsonaro não consegue ser maior que a direita, Lula consegue ser maior que a esquerda. Ele se reinventou como piloto de uma frente democrática ou ampla e se comportou assim nas eleições, se afastando o tanto quanto possível da imagem de partidário.

Em outras palavras: a esquerda vai mal, mas Lula vai relativamente bem. Ao mesmo tempo que a esquerda se torna cada vez mais “lulodependente”, o presidente se vê obrigado a se mover cada vez mais para o centro para preservar e aumentar seu arco de alianças. Enquanto o governo vai se tornando cada vez menos de esquerda, a fissura entre os socialistas se aprofunda. Alguns acham que falta pragmatismo, outros acham ser preciso recuperar as bandeiras históricas do socialismo.

O retorno de Donald Trump à Presidência dos EUA, um reacionário golpista, condenado criminalmente e movido pelo desejo de vingança e de escapar da cadeia, põe a democracia americana em uma posição frágil. Sua influência direta sobre o Brasil, contudo, encontra limites importantes.

Primeiro, o Brasil não enfrenta uma crise de decadência geopolítica ou de imigração para catalisar o tipo de ressentimento e identidade nacionalista que Trump mobiliza.

Segundo, o sistema político brasileiro, embora tenha falhas, possui mecanismos institucionais que oferecem resistência a investidas autoritárias, como a independência do STF e um sistema constitucional mais recente e adaptado às necessidades de uma sociedade democrática.

O sistema bipartidário, que permite que todos os setores conservadores se aglutinem em torno de um radical como Trump, tampouco existe no Brasil. Bolsonaro não consegue ascendência nem sequer sobre Valdemar Costa Neto. Além disso, o centrão não possui interesse em uma ruptura autoritária que abale o equilíbrio de poder do qual depende para manter influência e controle sobre o governo.

Assim, apesar de uma possível pressão da internacional reacionária liderada por Trump e das tentativas de importar mais uma vez sua retórica e seu messianismo, nada indica que ele abalará o atual modelo de governabilidade de tendência conservadora, mas pragmática do Brasil. Bolsonaro, que tentou sempre emular Trump, está cada vez mais isolado.

Da mesma forma, nenhuma das alternativas conservadoras à Presidência se mostra disposta a romper o presidencialismo de coalizão fraco. Aparentemente, querem todas ser apenas um Michel Temer com votos. Nem a Justiça Eleitoral, nem o governo, nem o STF parecem dispostos a anistiar Bolsonaro para que ele volte a se candidatar.

Nesse quadro, o que Trump poderá efetivamente fazer de útil para Bolsonaro? Bolsonaro quer, claro, explorar em benefício de sua anistia a tese delirante de que Trump mandará fuzileiros navais prenderem Alexandre de Moraes.

Trump estará ocupado redesenhando as instituições e a sociedade norte-americana à sua feição. Está interessado em reduzir a presença militar dos EUA no mundo, não em aumentá-la. Se precisar de um bajulador sul-americano, já tem à mão um Milei para posar ao seu lado. Mais provável são tuítes destemperados apoiados por Elon Musk ou a concessão de asilo diplomático na calada da noite.

As eleições municipais de 2024, ao consolidar o controle do centrão e do conservadorismo pragmático sobre a política local, indicam que o Brasil está caminhando para uma nova configuração de poder. Esse processo de normalização do sistema, que agora gira em torno da centro-direita, sugere que a polarização política extrema dos últimos anos pode estar cedendo lugar para uma moderação pragmática.

No entanto, essa normalização enfrenta desafios, especialmente no que diz respeito à convivência com o STF, visto por muitos como o último bastião de um sistema democrático e liberal. Há arestas entre o tribunal e o centrão, decorrentes da tentativa de preservar o avanço feito pelo Congresso sobre o Orçamento.

Sabe-se que, no quadro de fraqueza imposta ao governo pelo “parlamentarismo bastardo”, o governo também conta com a maioria do STF como parceiro para restabelecer alguma paridade de armas. É o “judiciarismo de coalizão”, identificado principalmente com o ministro Flávio Dino.

Enfim, tudo indica uma tendência ao reequilíbrio sistêmico em torno do centro-direita e um afrouxamento da radicalização ideológica.

É cedo para discutir as eleições de 2026. Não se sabe se Lula passará o bastão a Fernando Haddad (PT) ou se será candidato à reeleição, opção que parece cada vez mais provável. Nem se sabe para que lado penderia a centro-direita de Kassab, apoiando um candidato como Tarcísio, mais seguro à reeleição em São Paulo, ou Caiado. A reversão da inelegibilidade de Bolsonaro é remota, e Marçal deve ser declarado inelegível pela falsidade assacada contra Boulos durante a campanha em São Paulo.

Do ponto de vista sistêmico, porém, a depender do resultado das eleições de 2026, saberemos se o sistema político absorveu definitivamente, como parece, as tensões subversivas da direita radical ou se sofrerá o ataque de um populista apoiado por cerca de um quarto do eleitorado e, talvez, pela internacional reacionária.

 

Efeito dominó do desmatamento na Amazônia, por Márcia Castro

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Danos acumulados não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais

Márcia Castro, Professora de Demografia e Chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo – 08/11/2024

Na última quarta-feira (6), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inep) divulgou dados do desmatamento. De agosto de 2023 a julho de 2024, o desmatamento na amazônia caiu 30,6% comparado ao período anterior.

Um dia depois, dados do Observatório de Clima mostram que o Brasil reduziu em 12% a emissão de gases de efeito estufa em 2023. Na amazônia, as emissões devido ao desmatamento tiveram uma queda de 37%.

Os dois indicadores são positivos e estão relacionados. Mas muito ainda precisa ser feito.

Os efeitos acumulados em função do histórico de desmatamento não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais. Além da contínua redução das perdas ambientais, são necessários programas efetivos, de larga escala e sustentáveis de recuperação ambiental.

A equação é simples: menos árvores resultam em menos umidade do ar, o que reduz a potência dos rios voadores, resultando em menos chuvas e, portanto, redução do nível de água dos rios. Esse efeito dominó acelera o processo de mudanças climáticas.

Além disso, afeta a segurança energética do país, já que a energia hidrelétrica, em 2023, responde por 48,6% da capacidade instalada e 60,2% da geração total.

Um estudo da PUC-Rio mostra que 17 das 20 maiores hidrelétricas do Brasil estão na rota dos rios voadores e, portanto, são afetadas pelo desmatamento na amazônia. Destas, apenas oito estão localizadas na amazônia.

Fica claro que os efeitos do desmatamento não respeitam fronteiras. O estudo mostra que o desmatamento na amazônia entre 2002 e 2022 resultou em uma perda de geração de cerca de 3% nas hidrelétricas localizadas na bacia do Paraná.

A redução da geração de energia hidrelétrica em momentos de seca demanda o uso de usinas térmicas que, além de terem um custo maior, são emissoras de gases de efeito estufa, acelerando as mudanças climáticas.

Cabe relembrar que os possíveis efeitos das mudanças ambientais e climáticas na futura capacidade de geração de energia hidrelétrica no Brasil já haviam sido ressaltados no Projeto Brasil 2024 que, infelizmente, foi ignorado.

Os efeitos do desmatamento também são sentidos na saúde. Um estudo recente mostra que, entre 2003 e 2022, a cada aumento de 1% na área mensal desmatada houve, em média, um aumento de 6,3% nos casos de malária na amazônia no mês seguinte ao desmatamento. Esse efeito varia por estado e chega a 10,6% de aumento da malária no Amazonas.

Esses e tantos outros efeitos do desmatamento ressaltam a necessidade da recuperação ambiental.

Imagine que a amazônia é um órgão do corpo humano. Os rios são as artérias. As árvores são as veias. Não é preciso remover todas as árvores ou contaminar todos os rios com o mercúrio usado no garimpo para que amazônia deixe de existir.

A falência do órgão acontece quando o estrago chega a um ponto que compromete o seu funcionamento. Essa é a ideia do ponto de não retorno. Evitá-lo demanda redução do desmatamento e recuperação de áreas degradadas.

Estamos a um ano da COP 30 em Belém. O Brasil pode, deve e precisa assumir o protagonismo na agenda ambiental. Precisa fazê-lo pelo Brasil e pela humanidade. Afinal, após a eleição de Trump, esse protagonismo é de extrema importância.

 

Alunos de Gestão Empresarial da Fatec Catanduva – 2024

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Trump: promessas e perspectivas

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Nesta semana Donald Trump ganhou a eleição para a Presidência dos Estados Unidos, neste percebemos que as nações estão todos alvoroçadas, afinal a presença de Trump na presidência dos EUA gera incertezas e instabilidades de todas as regiões.

Governos nos mais diferentes matizes ideológicos estão preocupados, mas destacamos as nações que mais geram preocupações da sociedade norte-americana, como a China, a Rússia, o Irã, o México, a Coréia do Norte e o México, países que, de uma forma ou outra, ameaçam a liderança estadunidense.

Neste cenário, onde a sociedade estadunidense perde a sua hegemonia global e percebe ainda, o crescimento de novos atores econômicos, políticos e sociais, as reações do governo Donald Trump podem alavancar constrangimentos para a sociedade mundial, como a adoção de fortes políticas protecionistas, limitação da atuação de agências multilaterais, tais como a ONU, a OMC, a OMS, dentre outras, que podem culminar no refluxo da globalização.

Me chamou a atenção na campanha eleitoral, as promessas, que são sempre muito interessantes, muitas delas bastante exóticas e irreais, onde o ganhador ameaçou aumentar a proteção tarifária da economia norte-americana, taxando as importações que geram constrangimentos para a economia e impacta fortemente os trabalhadores, principalmente das regiões industrializadas, essas regiões que antes eram fortes exportadores de produtos industrializados, perderam espaço no comércio global e, suas populações estão perdendo renda, empobrecendo e aumentando a degradação social e levando grande parte da população para votarem em candidatos de extrema-direita.

As tarifas alfandegárias podem reduzir as importações internas e acomodar a produção interna, mas sabemos que as outras nações não vão aceitar passivamente, que podem gerar um conflito comercial, cujos efeitos são assustadores, preocupantes e podem aumentar os confrontos entre as nações.

Outro ponto que devemos destacar neste ambiente, é que, a redução da importação global dos Estados Unidos, como forma de proteger a indústria americana, vai impactar fortemente sobre o consumo interno, com elevação dos preços dos produtos e gerando um incremento da inflação, cujo impacto imediato é a elevação das taxas de juros que tendem a reduzir os investimentos produtivos, diminuindo o crescimento dos empregos e a queda da renda agregada.

O mundo globalizado é muito mais complexo do que as pessoas imaginam, muitas promessas são impossíveis de serem implementadas, desta forma, muitos políticos eleitos perdem a legitimidade, com inúmeras promessas na campanha que são difíceis de serem colocadas em práticas, gerando o descrédito, a desesperança e a repulsa a todos os candidatos, para todos os partidos políticos e para todo o sistema democrático, gerando um verdadeiro retrocesso.

A ascensão de Donald Trump pode motivar uma nova agenda internacional, menos multilateralismo, crescimento da extrema direita, o incremento da turbulência e com a imigração perdendo espaço, já que a promessa de endurecer a entrada de pessoas de outras nações nos Estados Unidos podem contribuir para que o mundo fique, cada vez mais, centrado nas incertezas, nas instabilidades e nas crescentes volatilidades.

 

 

O economista de Donald Trump, por Alessandro Octaviani

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Alessandro Octaviani – A Terra é Redonda – 07/11/2024

É um erro tomar Peter Navarro, um dos raros economistas a quem Trump dá alguma credibilidade, como “excêntrico”, “retrato de um acidente”, ou “desvio, que em breve será arrumado”

Peter Navarro é atualmente diretor do Office of Trade and Manufacturing Policy, do Governo Federal dos EUA, e um dos raros economistas a quem Donald Trump dá alguma credibilidade. [1]

Durante a crise do Covid-19, sua atuação foi ainda mais marcante. Como noticiado, em 2 de abril de 2020, “Donald Trump recorreu (…) à Lei de Produção de Defesa para ajudar as empresas que fabricam respiradores (…). (…) General Electric, Hill-Rom Holdings Inc, Medtronic Plc, Resmed Inc, Royal Philips NV e Vyaire Medical Inc”. [2]

Esse reforço para as empresas nacionais norte-americanas ficou a cargo de Peter Navarro, que se incumbe da missão como um verdadeiro “Falcão Econômico”: “Sobre sua ‘nova autoridade sobre empresas e suas redes mundiais de suprimentos’, ele conta como a usou com a 3M, que tem fábricas na China: ‘A empresa não estava disposta a informar sobre a distribuição das máscaras que produz ao redor do mundo e a fornecê-las ao povo americano. Ela quer agir como uma nação soberana (…). E nesta crise existe apenas um país e apenas um presidente”. [3]

A imprensa noticiou recentemente o movimento jurídico de Donald Trump rumo à tentativa de monopolizar, para os EUA, a exploração mineral na Lua e em outros corpos celestes: “Em meio à pandemia do coronavírus, que já contaminou mais de 360 mil estadunidenses, o presidente dos EUA, Donald Trump, envolve-se em mais uma polêmica após publicar um decreto que dá ao país o direito à exploração dos recursos da Lua, contrariando o acordo feito sobre o satélite natural do planeta Terra. ‘Os americanos devem ter o direito de se envolver em exploração comercial, recuperação e uso de recursos no espaço sideral, de acordo com a lei aplicável. O espaço exterior é um domínio legal e fisicamente único da atividade humana, e os Estados Unidos não o veem como um bem comum global. (…)’, diz o decreto assinado por Trump, que foi rechaçado por Moscou”.[4]

Essa proposta também tem o dedo de Peter Navarro, como se lê em Death by China (escrito em parceria com Greg Autry, para ser uma espécie de programa de ação para o Estado capitalista norte-americano ante o perigo chinês e a ameaça à sua hegemonia global): dentre as proposições concretas para “confrontar o desafio espacial chinês” consta “reivindicar a Lua antes que a China o faça”. [5]

Para Peter Navarro, a China é uma ameaça aos EUA, em razão de sua ascensão industrial capitaneada pelo Estado chinês e suas políticas de cunho mercantilista, protecionista, imperialista, planejadas e agressivas.

Dentre os instrumentos chineses, estariam (i) a formação de uma rede complexa de subsídios ilegais à exportação; (ii) moeda astutamente manipulada e brutalmente desvalorizada; (iii) flagrante falsificação, pirataria e subtração descarada da propriedade intelectual norte-americana; (iv) envolvimento em degradação ambiental significativa; (v) padrões de saúde e segurança do trabalho excessivamente frouxos; (vi) tarifas e quotas de importação ilegais; (vii) fixação de preços e uso de demais práticas predatórias com vistas a expulsar rivais estrangeiros dos principais mercados de recursos para, então, cobrar excessivamente dos consumidores por meio de monopólio de preços; e (viii) impedimento de todos os competidores internacionais de estabelecerem seus negócios em solo chinês. [6]

As cinco partes de Death by China são nomeadas em termos militaristas, “preparando a guerra” (que viria de fato a se instalar alguns anos depois de sua publicação, quando suas formulações revelaram-se adequadas às concepções de Donald Trump): “‘Buyer beware’ on steroids”, “Weapons of job destruction”, “We will bury you, Chinese style”, “A hitchhiker’s guide to the Chinese gulag” e “A survival guide and call to action”.

São elencadas medidas estratégicas a serem modeladas, em caráter amplo e urgente, várias das quais atualmente em pleno curso: (i) evitar os produtos chineses; [7] (ii) desmantelar as armas de destruição de empregos da China; [8] (iii) fixar limites rígidos para a espionagem chinesa e guerra cibernética; [9] (iv) confrontar e combater a crescente ameaça militar chinesa; [10] (v) combater o colonialismo global chinês; [11] (vi) frear as mortes na China pela China; [12] (vii) enfrentar o desafio espacial chinês. [13]

É um erro tomar Peter Navarro ou Donald Trump como “excêntricos”, “retratos de um acidente”, ou “desvios, que em breve serão arrumados”. Eles representam a expressão arraigada do Estado capitalista norte-americano e sua disciplina jurídica, vertidos, sempre, à defesa radical de seus interesses e da manutenção de suas posições de poder.

Não se trata de “excepcionalismo”, mas de “estrutura profunda”, que ecoa a célebre modelagem da “Super 301” – instrumento jurídico dos EUA para punir unilateralmente países que os afetem comercialmente – e a atuação do deputado Richard Gephardt, que propunha a incidência do diploma automaticamente “contra países que tivessem saldos superavitários excessivos em suas balanças comerciais com os EUA. Segundo o projeto, seriam feitas duas exceções: países com dificuldades de balanços de pagamentos e casos em que a ação 301 pudesse significar dano aos interesses econômicos dos EUA. (…) Derrubada por veto do Presidente Reagan, sob a justificativa de que era ‘por demais draconiana para ser efetiva’, a chamada ‘emenda Gephardt’ deu lugar à Super 301, como seu dispositivo substituto”. [14] Substituiu-se a obrigação automática de sancionar outros países pela possibilidade discricionária de atacá-los…

*Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP.

Notas

[1] Cf., entre outros, ROGIN, Josh. “How Peter Navarro got his groove back”. The Washington Post. Publicado em 27/02/2018.

[2] Publicado em 2/04/2020.

[3] Publicado em 8/4/2020.

[4] Publicado em 7/4/2020.

[5] NAVARRO, Peter; AUTRY, Greg. Death by China: Cronfronting the Dragon – A Global Call to Action. New Jersey: Pearson FT Press, 2011, p. 257-259.

[6] Ibidem, p. 1-11.

[7] Ibidem, p. 234-239. Algumas das proposições específicas: não comprar produtos “made in China”; leis mais duras contra a China e produtos chineses que prejudiquem os americanos.

[8] Ibidem, p. 239-245. Algumas proposições concretas: enviar emissário secreto à China para avisá-la sobre a intenção americana de estigmatizá-la como manipuladora de moeda; frear o sequestro dos trabalhos de pesquisas e desenvolvimento; proibir as empresas estatais chinesas de comprarem empresas privadas.

[9] Ibidem, p. 245-249. Algumas proposições concretas: penalizar de forma mais séria e agressiva os espiões chineses; declarar os ataques cibernéticos promovidos por Estados nacionais como atos de guerra.

[10] Ibidem, p. 249-252. Exemplos de propostas: reconhecer que os EUA precisam conseguir um maior retorno do complexo industrial militar, em vista da superioridade quantitativa crescente do armamento chinês; evitar uma corrida armamentista com a China, que está numa situação econômica e militar muito mais favorável do que os EUA.

[11] Ibidem, p. 252-255. Propostas: expandir e mensagem dos EUA pelo mundo, como forma de ganhar acesso a mercados e difundir os valores democráticos; substituir o ensino de francês e alemão nas escolas de ensino médio por mandarim, como forma de conhecer o inimigo.

[12] Ibidem, p. 255-257. Algumas proposições concretas: reinstituir os direitos humanos como elemento da política externa americana (os EUA devem continuar a exercer pressão sobre a China a fim de que ela respeite os direitos humanos); realização de investimentos em empresas e moedas de países ricos em recursos, como Austrália e Brasil, que se expandem tanto quanto a China.

[13] Ibidem, p. 257-259. Proposições concretas, como mencionado acima: reivindicar a Lua antes que a China o faça; concessão de bolsas, empréstimos estudantis e subsídios/financiamentos educacionais direcionados de forma desproporcional às áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática.

[14] ARSLANIAN, Regis. O Recurso à Seção 301 da Legislação de Comércio Norte-Americana e a Aplicação de seus Dispositivos Contra oBrasil. Brasília: Instituto Rio Branco, 1994, p. 77.

 

Donald Trump — mais um prego no caixão da democracia liberal, por Luis Felipe Miguel

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Luis Felipe Miguel –  A Terra é Redonda – 07/11/2024

 Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense

Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.

A vitória de Donald Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original — operários e rednecks e empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quanto ao eleitorado negro e latino.

Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Donald Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.

De fato, o Partido Democrata parece não saber o que oferecer ao eleitorado. Em 2020, Joe Biden obteve uma vitória apertada — em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Donald Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.

Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.

No começo do mandato, em gesto ousado, Joe Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” — reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.

Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.

Quando a incapacidade física e mental de Joe Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e — após um longo e desgastante processo — ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.

Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.

Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Kamala Harris fez uma campanha errática.

Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.

Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.

Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.

O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.

A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.

Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.

A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela — ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.

Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica)

 

 

A guerra civil psicótica de volta à Casa Branca, por Franco ‘Bifo’ Berardi

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Franco ‘Bifo’ Berardi – OUTRAS PALAVRAS – 06/11/2024

Entender Trump exige política e psicanálise. Ele sintetiza a desintegração do capitalismo em meio à miséria, violência e depressão. E mobiliza a psicose coletiva que aliena multidões em nome de um ideal: “vencer a qualquer preço”

Tal como as algas mutantes e monstruosas que invadem a lagoa de Veneza, as nossas telas de televisão estão povoadas, saturadas, de imagens e opiniões “degeneradas”. Outra espécie de algas que vale a pena ter em conta, desta vez relacionada com a ecologia social, consiste nesta liberdade de proliferação concedida a homens como Donald Trump, que se apoderam de bairros inteiros de Nova Iorque, Atlantic City, etc., para os “renová-los” no processo em que os alugueis sobem e expulsam milhares de famílias pobres, a grande maioria das quais estão condenadas a perder a sua casa, sendo este caso o equivalente, para os nossos propósitos, a peixes mortos na ecologia ambiental. (Félix Guattari: Les trois écologies, Paris, Éditions Galilée, 1989, p. 34.)

Nestas linhas, escritas quando Trump começava a ocupar a cena pública, Guattari prevê o que agora é mais claro que a luz do dia: a desregulação neoliberal permite que algas monstruosas contaminem as águas. Tudo se desenrolou pontualmente e agora o mar superaquecido desencadeia tempestades terríveis, que matam centenas de pessoas na costa espanhola. Além disso, a desregulação permite a proliferação de fontes de declarações destinadas a contaminar a mediosfera e, consequentemente, a psicosfera. Aconteceu pontualmente: turbas de psicoadictos votam num sem-vergonha, que promete a maior deportação de migrantes da história. Estas poucas linhas de Guattari descrevem a gênese de um ambiente venenoso, que gera violência e opressão, ao mesmo tempo que desencadeia a guerra de todos contra todos, gerando as condições para uma tirania cínica, barroca e destrutiva.

Reconsideremos as premissas distantes daquilo que chamamos de desregulação. No início está a criação tecnológica do paradigma rizomático. Graças à comercialização de tecnologias electrônicas durante as décadas de 1960 e 1970, tornou-se possível a difusão democrática de fontes autonomas de informação. Na Itália e na França criamos centenas de estações de rádio livres depois de travarmos uma batalha cultural contra o monopólio estatal da informação. Então, a criação da world wide web possibilitou a proliferação de inúmeros centros de netcultura ao redor do mundo. Mas pela fenda aberta pela criatividade difusa entraram grandes grupos econômicos e mafiosos (Berlusconi em Itália, Trump nos Estados Unidos e indivíduos semelhantes em todos e cada um dos países do mundo), cujo objetivo não era certamente a criação, a cultura ou a informação, mas a acumulação de capital e a aquisição de poder político ilimitado sobre as mentes de uma sociedade psiquicamente subjugada.

Zed is dead, baby

Vi The Apprentice (2024), filme de Ali Abbasi, que aborda o período de aprendizagem do candidato republicano das atuais eleições estadunidenses. O título é habilmente retirado do programa televisivo em que, há algumas décadas, Donald Trump submetia os candidatos a diversas humilhações, que apareciam diante dele para serem insultados, ridicularizados, questionados e, por fim, despedidos (“You’re fired”). Havia filas para serem ridicularizadas publicamente por aquele indivíduo loiro. Porque? O enigma de Trump demonstra que os instrumentos de análise política já não são úteis. Na verdade, para compreender tal monstruosidade ética, psíquica e política, é necessário falar em humilhação, tristeza epidêmica, autodepreciação, é necessário falar em liberdade ilimitada para escravocratas, tiranos psicóticos e fabricantes de armas. O filme de Abbasi consegue isso até certo ponto: pode ser não seja um grande filme, mas é útil para compreender alguns dos antecedentes psíquicos, existenciais e mafiosos em que Trump cresceu. É útil compreender as ferramentas de seu domínio sobre a psique de um povo miserável e imensamente ignorante.

O filme não é sobre o programa The Apprentice, do qual apropriadamente tira o título, mas na verdade sobre o aprendizado do próprio Trump. Como se tornou o que é? Para responder a esta questão, a psicanálise pode ser mais útil do que a teoria política. A sobrinha do homem laranja, Mary L. Trump, psicóloga de formação, escreveu um livro intitulado Too Much and Never Enough: How My Family Designed the World`s Most Dangerous Man (2020), no qual ela tenta entender seu tio de um ponto de vista psicanalítico. A primeira impressão que tive ao ler o livro é que a vida desse indivíduo foi (e é) imensamente triste. O pai de Trump era, na opinião de Mary, uma pessoa sociopata, mas eficiente. O filme de Abbasi também consegue mostrar como a relação com o pai foi decisiva. Donald viveu sua infância e adolescência com medo da humilhação a que seu pai o submeteu sistematicamente, o que lhe causou profundas feridas psicológicas. “A crença fundamental de Fred (o pai sociopata) é esta: na vida há sempre apenas um vencedor e todos os outros são perdedores; a amabilidade, por outro lado, significa apenas fraqueza”. “Ou você é um perdedor ou é uma pessoa que aposta tudo”, diz o pai ao pequeno Donald. Partindo de tais premissas, é impossível desfrutar das relações com os outros, pois essas relações só podem ser de competição, agressão ou submissão. Mas, infelizmente, não será este um traço decisivo da personalidade coletiva dos habitantes deste país, que não teria existido sem o genocídio dos nativos americanos e sem a deportação e a escravidão?

As três regras que Donald aprende com um advogado racista da máfia (Roy Cohn) são as seguintes:

1.Ataque, ataque, ataque.
2. Sempre minta.
3. Sempre declare vitória e nunca admita a derrota.

Como observa um personagem do filme, que é jornalista do The New York Times, esses três princípios descrevem muito bem a política externa estadunidense dos últimos 30 anos. Eu diria que eles definem o espírito público dos Estados Unidos da América, do princípio ao fim. O inconsciente coletivo dos estadunidenses brancos é um porão fétido de onde emergem monstros como aquele que Tarantino retratou em Pulp Fiction (1994). Você se lembra de quando Bruce Willis liberta Marcellus daquele porão, onde Zed, o torturador, o mantém amarrado para abusar dele? Não há melhor maneira de explicar os anos Trump, embora, infelizmente, me pareça que Zed está vivo e bem, preparando-se para pisotear um bando de pobres.

Nomen est omen

No início de 2021, logo após o ataque ridículo ao Capitólio pelas tropas do general Trump, publiquei um ensaio intitulado “The American Anyss” no e-flux. Quatro anos mais tarde, esse abismo está se tornando mais profundo e um perigo torna-se cada vez mais evidente: a desintegração da mente estadunidense pode desencadear uma reação em cadeia que acabará por aniquilar a vida humana na Terra. Às vezes penso no nome desse indivíduo: trump significa vencer, superar, subjugar, mas o substantivo trump também significa peido, peido fedorento. Se alguma vez a frase “nomen est omen” [o nome é tudo] foi verdade, é esse o caso. O homem laranja é um peido fedorento, que se propõe (e consegue) a empestear a atmosfera psíquica, humilhando e ameaçando. Se eu tivesse a infelicidade de ser cidadão estadunidense, não votaria em nenhum dos candidatos: a senhora Harris, que prometeu que os militares dos EUA estarão sempre equipados com a letalidade máxima, é mais perigosa do que o senhor Trump do ponto de vista europeu, porque com a senhora Harris como presidente, a guerra na Ucrânia se estenderia até o limiar atômico. Trump, que representa consciente e explicitamente os interesses da raça branca, seria uma catástrofe para os palestinos e, de forma mais geral, para os migrantes, a quem Trump e Vance prometeram “a maior deportação da história”. Mas é difícil imaginar como Trump poderia ser mais implacável do que Biden e Obama, que deportaram mais migrantes durante as suas presidências do que o homem peido. E é difícil imaginar como é que ele poderia ser mais implacável com os palestinos do que Biden, que nunca deixou de apoiar financeiramente ou de enviar armas aos exterminadores israelenses. Talvez eu fosse menos hipócrita.

Psicose memética

Em 6 de janeiro de 2021, enquanto o novo presidente democrata se preparava para assumir o seu lugar na Casa Branca e o Congresso se reunia para realizar os seus rituais institucionais, uma multidão heterogênea respondeu ao apelo de Trump para salvar a América e alguns milhares de perturbados marcharam em direção ao Capitólio. Sem encontrar qualquer resistência séria por parte da polícia, estes lunáticos entraram nas salas do Capitólio, quebraram os vidros das janelas, vociferando enquanto agitavam bandeiras confederadas e bandeiras com suásticas. Donald Trump incitou os alvorotados a recuperar o poder pela força. “Você nunca recuperará seu país com fraqueza. Devem mostrar força e ser forte. […]. Lutem, lutem como homens condenados. E se vocês não lutarem como condenados, não haverá país para vocês”. No final do dia a multidão voltou para casa, como faz depois de um belo passeio de domingo. Algumas pessoas ficaram feridas e uma foi morta após tiros de um policial. Os comentaristas democratas ficaram realmente indignados, como não compreendê-los, mas a indignação dos Democratas perante as falsidades contadas por Trump e nas quais os seus seguidores acreditam é pueril. Depois de 2008, os estadunidenses brancos, atolados em duas guerras insanas, humilhados pelo empobrecimento provocado pela crise financeira e aterrorizados pelo colapso demográfico, agarraram-se desesperadamente às suas armas, aos seus SUVs, ao seu direito de comer carne e ao seu direito de matar.

O que aconteceu em Washington no dia 6 de janeiro de 2021 não foi uma insurreição ou um golpe de Estado, mas sim um episódio ridículo e criminoso da guerra civil americana, que é o entrelaçamento de vários conflitos, ou seja, um conflito entre o nacionalismo branco e o globalismo liberal, um conflito entre a população branca e a população negra, latina e asiática, um conflito entre as metrópoles e as áreas rurais empobrecidas e um conflito cultural entre secularistas e fanáticos de algum Jeová sintético, mas esta guerra está diante de uma guerra civil psicótica guerra de lunáticos armados, que decidem matar a primeira pessoa que se coloque no caminho. Este é o abismo estadunidense, não a propagação de fake news. Em 2016 aconteceu o impensável: um nazista loiro tingido venceu as eleições. A partir desse momento ficou claro que a maior potência do mundo is running amok [está fora de controle], que perdeu a cabeça, enquanto tem 120 armas de fogo para cada cem habitantes. Os Democratas queixam-se de que as redes sociais produzem uma avalanche de falsidades, mas só uma pessoa ingênua não perceberia que as falsidades não podem ser erradicadas, porque os Estados Unidos são o reino da falsidade.

Entre 1º de janeiro e 31 de agosto de 2023, ocorreram 28.293 mortes por armas de fogo nos Estados Unidos. As mortes em ações de mass-shooting (como traduzir uma palavra tão ligada à língua dos pistoleiros?) foram 474. Os homicídios não intencionados por arma de fogo, ou seja, os mortos por acidente no manuseio de arma, foram 1.070.

Um pai estadunidense

Apesar de consumirem quatro vezes mais eletricidade e muito mais carne do que qualquer outra pessoa no planeta (ou talvez por causa disso), os cidadãos dos Estados Unidos levam vidas miseráveis. A expectativa média de vida na Espanha é de 83,3 anos, na Suécia 83,1, na Itália 82,7, na China 77,1. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida nos últimos anos é de 76,1 anos. 65% dos habitantes não têm poupanças e, se adoecerem, têm boas chances de acabar nas ruas. Em 2022, se produziram 100 mil mortes por overdose de opiáceos. A maior potência militar do planeta está se desintegrando. A palavra “impensável” é recorrente no discurso público estadunidense nos últimos anos.“Precisamos pensar o impensável sobre o nosso país” é o título de um editorial do The New York Times publicado em 13 de janeiro de 2022, escrito por Jonathan Stevenson e Steven Simon:

As próximas eleições nacionais serão inevitavelmente disputadas sanha e talvez violência. É correto afirmar que a ameaça que a direita representa aos Estados Unidos – e o seu objetivo evidente de lançar as bases para tomar o poder ilegitimamente, se necessário, em 2024 – é politicamente existencial. […] O pior cenário é este: os Estados Unidos como conhecemos poderão desintegrar-se.

The Unthinkeble: Trauma, Truth, and the Trials of American Democracy por outro lado, é o título de um livro de Jamie Raskin, publicado em 6 de janeiro de 2022, no primeiro aniversário da insurreição psicótica. O autor não é apenas um escritor, mas um importante membro do Congresso, eleito em Maryland para as fileiras do Partido Democrata. Além disso, Jamie Raskin é professor de Direito Constitucional, autodenomina-se liberal e pai de três filhos na faixa dos vinte e trinta anos. Um deles, Tommy, de 25 anos, ativista político, apoiador de causas progressistas e defensor dos animais, morreu na noite do último dia do ano de 2020. Tommy escolheu morrer, suicidou-se como dizem. Fez isso depois de uma longa depressão, mas também como consequência da longa humilhação moral que o trumpismo infligiu aos seus sentimentos humanitários. Para Jaimie Raskin, a decisão final de Tommy não é apenas uma catástrofe emocional, mas o início de uma reconsideração radical das suas convicções. Ao ler este livro, partilhei a dor de um pai e o tormento de um intelectual, mas ao mesmo tempo foi revelada a profundidade da crise que está dilacerando o Ocidente e, em particular, obscurecendo o horizonte cultural da democracia liberal. O pai não tem mais nenhum mundo de valores para transmitir ao filho. No livro, três histórias diferentes se desenrolam simultaneamente e se alimentam reciprocamente: a primeira é a história do fascismo estadunidense emergente. A segunda é a vida de Tommy, a sua educação, os seus ideais e a constante humilhação da sua sensibilidade ética. A terceira é o efeito da covid-19 nas mentes da geração mais jovem, aquela que mais sofreu com as regras de distanciamento. Tommy sofria de depressão e, em sua última mensagem, fala sobre isso: “Perdoe-me, minha doença venceu”.

Jamie Raskin escreve:

Tal como muitos jovens da sua geração, Tommy foi arrastado pela covid-19 para uma espiral maligna. Com os centros educativos fechados, a sua vida social foi reduzida a um ponto frágil acompanhado da máscara, as viagens tornaram-se um pesadelo. As relações tornaram-se difíceis, forçadas a uma intimidade prematura e torpe ou de fato condenadas ao esquecimento virtual. Muitos jovens sofreram com o desemprego, a falta de oportunidades econômicas e uma profunda incerteza. Muitos, como Tommy, foram obrigados a voltar para a casa dos pais e ficar em uma sala cheia de livros de bacharelado […]. Tommy declarou-se antinatalista porque não podia aceitar a perspectiva de comprometer outro ser humano com uma vida destinada a ser dominada pela dor da tristeza e do sofrimento.

Por mais que Sarah e eu tentássemos descrever para ele a alegria de ter filhos, Tommy não renunciava a sua determinação, porque ninguém tem o direito de impor a outra pessoa a inevitável experiência de dor. Não me dá muito conforto saber que uma parcela enorme e crescente da sua geração sente o mesmo em relação à opção de não ter filhos.

O antinatalismo é provavelmente um efeito da depressão – como não seria? – mas mostra que a depressão pode ser uma condição de sabedoria e não apenas uma doença. Torna-se uma doença quando não compreendemos a sua mensagem e tentamos desesperadamente conformar-nos com as normas dominantes de produtividade, eficácia e dinamismo. Rechaçar a mensagem da depressão, reafirmar a força de vontade contra a mensagem que ela nos envia, é uma forma de cair numa tendência suicida. Se formos capazes de compreender o significado e a sabedoria da depressão, é possível uma evolução consciente e partilhada da mesma. No caso de Tommy isto é evidente: o seu denatalismo é talvez mais sábio do que a decisão irresponsável de dar à luz a inocentes destinados a uma vida quase certamente infeliz.

Após a morte do filho, a percepção de Raskin muda: seu otimismo constitucionalista vacila diante da explosão da força bruta, que tende a anular a força da razão, enquanto suas certezas democráticas vacilam diante da proliferação da depressão.

De repente, meu otimismo constitucional me deixa numa situação difícil, como se fosse uma vergonha. Temo que o meu resplandecente optimismo político, que muitos dos meus amigos apreciaram em mim, se tenha se tornado uma armadilha de auto-engano massivo, uma fraqueza que pode ser explorada pelos nossos inimigos.

O otimismo político deste generoso professor de Direito Constitucional é abalado pela súbita constatação de que a democracia liberal está sentada em alicerces frágeis. De fato, ele escreve:

Sete dos nossos primeiros dez presidentes eram proprietários de escravos. Estes fatos não são acidentais, mas nascem da própria arquitetura das nossas instituições políticas.

A escravidão faz parte da bagagem psíquica da nação estadunidense. Como pode esta nação esperar servir de exemplo para as outras? Como podemos não pensar que esta nação é um perigo para a sobrevivência da humanidade?

A lei do pai não tem mais poder sobre o caos

Trump poderá voltar a ser presidente dos Estados Unidos da América [este texto foi escrito antes da vitória do ex-presidente estadunidense], enquanto o mundo entrou, por meio das instâncias estadunidenses, num ciclo de guerra civil psicótica, cujos resultados são imprevisíveis e, na verdade, verdadeiramente impensáveis. O pai não tem mais um mundo de significado para legar ao filho. A lei do pai não tem mais poder sobre o caos. Quem quer que ganhe estas eleições dopadas de bilhões de dólares, o caos está garantido.

 

Revisão dos gastos

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Vivemos momentos de grandes incertezas econômicas e financeiras que impactam sobre todo o sistema produtivo, com aumento nas taxas de juros, desvalorização cambial e preocupações crescentes sobre a inflação, desta forma, percebemos a piora dos indicadores econômicos e o incremento dos desequilíbrios políticos.

Neste cenário, os agentes econômicos e financeiros usam seus instrumentos de pressão para pressionar o governo federal para revisar os gastos públicos para evitar que a dívida pública cresça de forma acelerada, impactando fortemente sobre a economia nacional e melhore as perspectivas econômicas, estimulando o sistema produtivo e contribuindo para a recuperação nacional.

Desde a crise financeira internacional de 2008 e, principalmente, depois da pandemia os governos nacionais foram incentivados a adotarem uma política mais intervencionista, com aumento dos gastos públicos e uma visão mais protecionista com o objetivo de proteger seus setores produtivos, garantindo mais empregos e incremento dos salários, desta forma, a economia retomaria seu caminho de mais investimentos produtivos e uma maior geração de renda agregada.

Depois de grandes estímulos fiscais e financeiros, os governos nacionais buscam um maior equilíbrio fiscal, reduzindo os estímulos e reorganizando as contas públicas, reduzindo ineficiências e adotando medidas mais efetivas para melhorar a arrecadação nacional como forma de evitar o estouro da dívida pública. Neste ambiente, os mercados pressionam o governo nacional para uma maior racionalização das contas públicas, impedindo que a dívida pública cresça e a inflação impactem sobre taxas de juros maiores, refletindo negativamente sobre as atividades econômicas.

A revisão dos gastos públicos deve ser feita por todos os governos como forma de aumentar a eficiência e a melhor alocação de recursos públicos, objetivando uma melhora dos serviços públicos e evitando os desperdícios que acometem a gestão pública. Neste momento, percebemos a grande dificuldade do Estado Nacional para rever os gastos públicos e a racionalização dos recursos da comunidade, afinal rever gastos de grupos privilegiados pode ser visto como uma declaração de guerra. Todos falam a favor da redução dos gastos públicos, criticando os dispêndios governamentais, desde que a conta caia sobre os ombros de terceiros. Os grupos sociais mais bem organizados defendem seus privilégios, muitos deles “garantidos” a muitos séculos, mesmo sabendo que seus privilégios existem em detrimento de outros grupos sociais, que muitas vezes querem apenas garantir um direito essencial, gerando incertezas e instabilidades que desestabilizam os governos de plantão.

Neste momento, os palácios governamentais estão discutindo como fazer para restringir os gastos públicos e dar racionalidade ao arcabouço fiscal, reduzindo os recursos com o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o Abono e os seguro-desemprego, que impacta fortemente sobre os grupos mais fragilizados da sociedade brasileira, tudo isso garantiria recursos adicionais para melhorar o ambiente econômico e uma melhora dos horizontes, principalmente dos financistas. Neste momento, a sociedade brasileira está perdendo tempo, devemos fazer uma revisão geral dos gastos públicos, adotando taxação de lucros e dividendos, revendo isenções fiscais e tributárias que consomem bilhões, acabando com penduricados que engordam salários elevados, além da tributação das grandes fortunas, desta forma, o ajuste  fiscal contribuirá para que o sistema tributário nacional seja menos regressistas e tão desigual.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Pragmatismo e desinteresse de Trump devem marcar relação com a América Latina, por Monica Hirst

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Apesar de sua condição periférica, regiao sofrerá impactos do novo governo na questão migratória; crise na Venezuela deve ser ponto de contato, mas sem visão coordenada.

Monica Hirst, Professora da Universidade Torquato di Tella (Buenos Aires) e pesquisadora-colaboradora do IESP-UERJ; autora de livros sobre a relação EUA-Brasil

Folha de São Paulo – 06/11/2024

A vitória de Donald Trump encontra uma América Latina prostrada, dividida e silenciosa. Mantendo-se fiel ao perfil de baixa prioridade estratégica para a grande potência do Norte, a região já não se projeta internacionalmente como um coletivo com voz política própria e difenciada. Trata-se de uma zona geográfica de poucas palavras, de peso decrescente na economia mundial, cobiçada por interesses extrarregionais em razão de suas riquezas minerais, de seu lugar como pulmão verde de um planeta que respira mal e de sua sistemática capacidade de oferta de delito organizado.

Independentemente de sua condição periférica, a região sofrerá o impacto do resultado das urnas americanas, particularmente com referência a três temas: questão migratória, democracia e geopolítica mundial.

Com certa ironia, a região deu seu aporte ao mote Faça a América Grande Outra Vez (“Make America Great again”), slogan que também vem sendo subentendido como Faça a América Branca Outra Vez. Durante toda sua campanha, o republicano mencionou o tema migratório de forma entrelaçada com os problemas causados pela porosidade em vários pontos dos 3,2 mil quilômetros de fronteira com o México.

De fato, trata-se de uma contribuição pelo avesso, já que ela se dá a partir de uma agenda negativa, a qual não só foi de enorme serventia para Trump como atuou como um estímulo de sentimentos que frequentam a agenda do ódio das massas que o apoiam. A menção constante do México e seus migrantes como os grandes responsáveis pela entrada do crime e da violência no país passou a legitimar sentimentos de xenofobia, racismo e agressividade.

A proposta do presidente eleito de uma maciça deportação (em 2022, 45% dos 11,3 milhões de imigrantes em situação irregular nos EUA eram mexicanos) seria uma “bukelização” das práticas migratórias do novo governo, a seguir o exemplo de crueldade de Nayib Bukele no tratamento da sua população carcerária em El Salvador. O sentido racista imbuído na proposta de Trump não deixa também de mostrar seu parentesco com programas de limpeza étnica tão conhecidos ao longo da história do século 20 em diferentes partes da Europa e atualmente posto em prática na Faixa de Gaza pelo governo de Israel.

O segundo tema, da democracia, ganhou um lugar privilegiado nos discursos de Kamala Harris. A inclusão desse ponto na agenda democrata fez eco em alguns países da América Latina, com menção especial ao Brasil. A articulação dos grupos de extrema direita nas redes sociais tornou-se especialmente veloz na região. O calendário eleitoral na década recente foi funcional para dar asas à regionalização de uma nova extrema direita com lideranças que atuam dentro e fora das instituições representativas, junto e dentro de organizações religiosas evangélicas, apoiadas por setores jovens de diversos segmentos sociais cativados pelo ideário libertário. Depois do período 2019-2022 do governo de Jair Bolsonaro, a chegada de Javier Milei ao poder na Argentina em 2023 deu continuidade a essa tendência.

De forma inusitada, o governo Lula se posicionou frente à disputa eleitoral a favor da candidata democrata. O resultado das urnas americanas terminou presenteando às forças opositoras no Brasil um lugar vencedor.

A retomada por Brasília de uma linha de atuação pragmática em seu bilateralismo com Washington, que dê destaque às agendas positivas em campos econômico-comerciais, poderá atenuar esse tipo de reflexo, mas não impedirá o fortalecimento dos laços políticos entre trumpistas e bolsonaristas, especialmente com a mira posta nas eleições de 2026. É de se esperar, portanto, uma via dupla de relacionamento bilateral nos próximos dois anos.

O terceiro ponto do impacto refere-se à geopolítica mundial e ao relacionamento de Trump com a região. O ponto de intersecção entre ambos deverá dar-se com respeito à Venezuela, em um mix de reedição da Doutrina Monroe e do uso de métodos esperados numa Guerra Fria 2.0. Neste caso, se aplicaria uma receita com três modos de atuação, possivelmente complementares: a coerção, com uma robusta e dolorosa aplicação de sanções econômicas; a transação, que implica um acerto amplo com Rússia sobre a Ucrânia e incluiria uma retirada de mãos (hands-off) da Venezuela; e a intervenção, instrumentalizada pelo Comando Sul e apoiado pela Guiana.

Retomando o início desta reflexão, é de se esperar que a América Latina manterá sua posição de “nada a declarar” diante de cada um desses cenários. Na América do Sul, o primado do pragmatismo e a preservação dos vínculos com a China compram o silêncio.

 

As instituições e o Prêmio Nobel, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Faz sentido usar as instituições para explicar o atraso sem considerar as estruturas sociais?

Luiz Carlos Bresser Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

Folha de São Paulo – 07/11/2024

Acemoglu, Robinson e Johnson ganharam o Prêmio Nobel de Economia neste ano. Em 2001, eles explicaram o atraso dos países em relação aos países ricos com a tese de que os países que se atrasaram não foram colônias de povoamento como foram os Estados Unidos ou a Australia. Estavam em parte corretos, porque essa foi a tese clássica de Caio Prado Júnior. Não discutirei aqui esse trabalho.

Em 2005, eles “descobriram” que o atraso dos países periféricos em relação aos países centrais poderia ser explicado pelo fato de suas instituições não terem garantido suficientemente a propriedade e os contratos e, assim, haverem desestimulado os empresários a investir. Estavam, neste caso, errados.

Afirmar a importância de boas instituições para o desenvolvimento é a mesma coisa que dizer que a água é importante. É óbvio que as instituições —as normas que organizam a vida social— são fundamentais.
A questão real não é essa, mas sim se faz sentido usar as instituições para explicar o atraso em vez de considerar as estruturas sociais, como eles fizeram sem saber no trabalho anterior. Elas nos dizem, no caso do atraso, se o país teve uma colonização de povoamento ou de exploração mercantil, como nos países latino-americanos.

Nos primeiros, formou-se logo uma classe média e a evolução para o capitalismo foi quase natural, enquanto nos países periféricos o caráter tradicional da sociedade e a condição colonial ou dependente se mantiveram por muito tempo; no caso da dependência, até agora. Nos dizem qual foi o peso do escravismo em cada sociedade.

O que os novos nóbeis de Economia —ou a escola novo-institucionalista à qual pertencem— subestimam é que as instituições são endógenas. Elas dependem das estruturas sociais; elas mudam conforme mudam essas estruturas.

A partir do livro de 1990 de Douglas North, “Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico”, o institucionalismo se transformou em uma teoria de desenvolvimento. Surgiu, não por acaso, em torno de 1980.

Foi nesse momento que os Estados Unidos e os demais países ricos fizeram a “virada neoliberal” e perceberam que as instituições eram uma forma muito mais cômoda de explicar o atraso da periferia. Dessa maneira, a nova escola livrava-se não apenas de questões estruturais mais difíceis de mudar mas também do imperialismo ao qual os países periféricos foram e continuam sendo submetidos.

A tese novo-institucionalista da propriedade e dos contratos parece verdadeira à primeira vista, mas realmente não faz sentido.

Tomando-se como referência os primeiros anos do século 19: como seria possível comparar países em que a estrutura social era tradicional e a população em grande parte indígena ou descendente de escravos com a estrutura social de países como os Estados Unidos ou a Austrália?

Dar importância às instituições sem considerar as estruturas tornou mais fácil para o centro neoliberal definir o que os países periféricos deveriam fazer. Bastaria fazer as reformas institucionais —privatizar, desregular, liberalizar— e tudo seria resolvido.

Há ainda a considerar que em países de renda média é comum haver instituições mais modernas e adequadas do que nos países em desenvolvimento. Nós, por exemplo, temos a regulamentação dos medicamentos genéricos que poucos países ricos têm. Na Grã-Bretanha, a obtenção de documentos é mais demorada do que no Brasil. Nos Estados Unidos, o uso de armas de fogo é permitido senão incentivado.

Mudar as instituições é fácil, mudar as estruturas é mais difícil, e o país se livrar do imperialismo é mais difícil ainda. Muito mais fácil é realizar as reformas neoliberais, principalmente a completa liberalização comercial e financeira. O centro não quer o desenvolvimento da periferia; ele não quer que esta produza bens com mão de obra barata para com ele concorrer e quer manter a troca desigual entre manufaturas e commodities.

Sim, as instituições, assim como a água, são importantes. É impossível viver sem elas, mas assim como por trás da água estão as nascentes, por trás das instituições estão as estruturas econômicas e sociais.

 

Ajuste fiscal: impacto ao SUS pode ser trágico, por Guilherme Arruda

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Manifesto com forte adesão entre sanitaristas critica proposta de impor mais limites ao gasto social. Alerta é claro: abandonar investimento em áreas essenciais pode ser destrutivo para Saúde e Previdência – e abrir caminho para grande frustração popular

Guilherme Arruda – OUTRA SAÚDE – 01/11/2024

O momento pode ser um divisor de águas. Após um mês de sinais indiretos e especulações na imprensa, ministros como Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento) agora afirmam abertamente que o Governo Federal deve promover cortes nas políticas sociais para cumprir com os rígidos controles de gastos impostos pelo Arcabouço Fiscal e acalmar a chamada “tensão no mercado”. Na quarta-feira (30/10), Haddad confirmou que uma Proposta de Emenda Constitucional contendo um mecanismo de limitação das despesas obrigatórias será apresentada “no mês de novembro”.

A movimentação não ficou sem resposta na sociedade: um manifesto divulgado no mesmo dia se posicionou firmemente contra a proposta de ajuste fiscal, alertando que “ceder a essa lógica de cortes e restrições não é apenas um erro econômico; é um ataque frontal aos direitos sociais e à dignidade da população”. Notavelmente, o documento teve adesão expressiva na área da Saúde, a exemplo do ex-ministro José Gomes Temporão, o diretor do Instituto de Saúde Coletiva da UFF Túlio Batista Franco, o presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde (ABrES) Francisco Funcia e os sanitaristas Ana Maria Costa e Itamar Lages. “O Estado brasileiro tem uma enorme dívida com a sua população e não pode, na sua política fiscal, cortar nos gastos sociais. Pelo contrário, eles devem ser uma prioridade”, afirmou Túlio a Outra Saúde.

Para muitos, a assinatura no manifesto não consiste em uma ação “contra o governo” – mas uma cobrança para que ele se atenha aos compromissos de reconstrução nacional e retomada do investimento social e no SUS que firmou ainda em 2022 com o movimento sanitário, além de todo o povo brasileiro, durante a batalha contra as forças obscurantistas que conduziam o país. “Esse é o tom necessário hoje, porque essa decisão pode levar a uma regressão muito forte das políticas sociais e do direito à saúde. Recuar frente à pressão hegemônica da direita e do mercado? Não dá”, avaliou Ana Maria Costa.

A este boletim, uma dezena de especialistas, acadêmicos de diversas áreas e parlamentares alertaram para o retrocesso que os cortes anunciados podem significar para políticas tão diversas quanto o piso constitucional da saúde e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os riscos, como ilustra o próprio manifesto, são claros: “Ao abandonar investimentos em áreas essenciais, o governo abre caminho para o avanço de discursos autoritários e reacionários que se alimentam do desespero e da frustração popular”.

Uma tese fiscal questionável

No âmbito da Saúde, a discussão em torno do orçamento não é nova. A nível histórico, o movimento sanitário sempre frisou a necessidade de amplos recursos para que o projeto do SUS se materializasse em toda sua potência – assim como alertou sobre o risco mortal que o subfinanciamento acarreta para a concretização dos princípios da universalidade, integralidade e equidade. Mais recentemente, como sempre relembra a própria ministra Nísia Trindade, a PEC de Transição articulada antes da posse de Lula foi decisiva para que o orçamento da Saúde fosse “o maior da história” em 2023. Porém, um terceiro fato é o que realmente faz o tema pairar no ar há mais de um ano: desde a aprovação do Arcabouço Fiscal – e Outra Saúde cobriu o imbróglio em profundidade –, o Ministério da Fazenda lança “balões de ensaio” para testar a viabilidade de flexibilizar o piso constitucional de investimentos na saúde, que prevê que 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) anual deve ir para a área.

No raciocínio da pasta, a flexibilização do piso da saúde – ou outra das medidas atualmente em discussão, como mudanças no BPC e no seguro-desemprego – poderia garantir o espaço fiscal necessário para que o orçamento não fique estrangulado e o “equilíbrio fiscal” seja alcançado. Contudo, na avaliação do economista e presidente da ABrES, Francisco Funcia, essa hipótese é imprecisa: “O que está comprovado desde a pandemia é que aumento do gasto público não inviabiliza em hipótese alguma as contas do governo. Cortar gastos não vai trazer qualquer avanço na busca pelo equilíbrio fiscal. Pelo contrário, a teoria econômica mostra que os gastos sociais, como parte dos gastos públicos, têm um efeito dinâmico na atividade econômica. Não dá para pensar na questão do equilíbrio das contas públicas com um olhar de economia doméstica, como tem sido feito pela mídia e também por alguns setores do governo”.

Funcia aponta que os próprios recursos que o governo garantiu para o orçamento da Saúde em 2023 e 2024 “têm tido um efeito positivo para a dinâmica econômica, além de terem sido uma iniciativa importante na linha da garantia dos direitos da cidadania”, depois da tragédia que o governo Bolsonaro representou para o SUS. Isto é, a nova iniciativa de contenção dos gastos estaria em contradição com os resultados concretos da destinação de recursos para a Saúde até aqui. “Eu acho muito importante destacar que o governo começou resgatando os investimentos sociais e a nova proposta vai na contramão desse resgate”, ele ressalta.

Se é mesmo preciso que uma fatia do Orçamento federal sofra cortes drásticos, como defende a equipe econômica, o manifesto propõe outro alvo: as despesas financeiras, especialmente o pagamento de juros que beneficiam os grandes rentistas. “Nós estamos em uma situação em que a única fatia do orçamento público nacional em que não se mexe é o serviço da dívida”, critica a sanitarista Ana Maria Costa.

Impacto mortal?

Por enquanto, não foi anunciado pelo Governo se os cortes impactarão áreas específicas dos investimentos sociais ou se haverá um mecanismo geral de contenção dos gastos. Contudo, onde quer que recaiam, os prognósticos apresentados por especialistas ouvidos por Outra Saúde são de uma tragédia para a população mais pobre.

Se recair sobre a Saúde, seja na forma da flexibilização do piso de investimentos ou outra, o corte de gastos “vai acabar gerando definitivamente um SUS ruim, de baixa qualidade e insuficiente para a população. A saúde que a Constituição prometeu, que é direito de todos, já não é possível com o atual gasto de 4,2% do PIB, imagine se for menos”, avalia Ana Maria Costa. Em sua visão, o próprio projeto do SUS pode estar em jogo com a futura PEC: “É essencial que se faça essa discussão agora para salvar o projeto político da saúde como um direito universal”, defende a signatária do manifesto.

Por sua vez, caso recaiam sobre a Previdência Social, os cortes “sem dúvida vão fazer com que a velhice e a pobreza voltem a ser sinônimos”, pontua Jorge Félix, professor da EACH-USP dedicado às pesquisas sobre o envelhecimento e a economia. Se as conquistas da Constituição de 1988 tiveram o mérito de melhorar a qualidade da vida dos idosos do Brasil, a “desumana desvinculação do salário mínimo da seguridade social e a estigmatização do BPC” que vem sendo aventadas pelo Governo seriam comparáveis a uma nova Reforma da Previdência em seus efeitos para os mais velhos – gerando empobrecimento e miséria em grande escala.

Parlamentares signatários do manifesto que foram ouvidos por Outra Saúde também concentraram suas críticas nos possíveis efeitos dos cortes sobre os direitos dos brasileiros mais vulneráveis. “As suspeitas de que a busca do equilíbrio fiscal recairia na revisão ou restrição de benefícios socioassistenciais têm que ser logo afastadas. Não se pode buscar ajuste fiscal sobre os mais pobres, mas sobre os mais ricos”, opinou o deputado estadual Renato Roseno (PSOL-CE).

“A previdência pública e direitos como BPC, aposentadoria, FGTS e seguro-desemprego foram duramente conquistados e são muito importantes para garantir um mínimo de dignidade para o povo brasileiro. Para mim, a importância da mobilização em torno desse manifesto é deixar bem claro que a posição de grande parte das pessoas do campo democrático é contrária a qualquer tipo de retrocesso na assistência social e nos direitos”, complementou Luana Alves (PSOL-SP), vereadora de São Paulo e trabalhadora da saúde.

Bandeiras históricas sob ameaça

Estratégico para o clima de inevitabilidade dos cortes sociais, avaliam muitos dos entrevistados, é o bombardeio midiático intenso em prol do fiscalismo. Para a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudiosa da Economia Política de Comunicação, Helena Martins, “a mídia dominante tem exercido um papel fundamental de legitimar essas ações que são restritivas de direitos e apresentá-las como única saída econômica”. Contudo, ela relembra que “em todo o mundo, já se mostrou que o ajuste fiscal pavimenta o caminho da extrema-direita e o governo comete um erro grave ao seguir nessa direção”.

No mesmo sentido, a professora da UFRJ Lena Lavinas destaca que “não é verdade que solapar direitos em nome de um regime monetário e fiscal inadequado seja a única medida ao alcance do governo para promover o desenvolvimento de uma sociedade radicalmente democrática, igualitária e comprometida com a preservação do planeta. Fazer ajustes em cima de direitos essenciais é causa de sofrimento e não caminho para o progresso. Esse governo precisa ouvir e dialogar, para não comprometer o futuro”.

“A política tem sido esvaziada do seu sentido mais pleno, alimentando a descrença e não a esperança. O exercício da cidadania exige mobilização e expressão das demandas populares, tal como faz agora este manifesto, rompendo, portanto, com o marasmo e a apatia que se abateram sobre a sociedade brasileira frustrada crescentemente nas suas expectativas pela manutenção das regras de austeridade”, continua Lavinas.

O sentimento foi ecoado por outros signatários do texto, que o tomam como o alerta definitivo para que o Governo Federal tenha clareza da temeridade que representa a decisão de dar seguimento aos cortes de gastos, pondo em risco conquistas históricas dos trabalhadores. “Se nós não tivermos o tom do manifesto daqui pra frente, vamos perder nosso papel histórico enquanto movimento sanitário. Nós saímos da pandemia com o SUS valorizado pelo povo, não é hora do medo e do recuo”, afirma Ana Costa.

“O abaixo-assinado é um ato amoroso, embora duro e contundente, de solidariedade crítica. Assim, não é o manifesto que expõe e fragiliza o governo, são as medidas que o governo diz que quer adotar”, completa Itamar Lages, professor de Enfermagem da UPE e membro do Cebes Recife.

 

A força do SUS e as lutas por vir, por Túlio Batista Franco

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Embates na saúde pública tem sido duros – mas não é preciso desespero ou derrotismo. Construção coletiva e comunitária, de onde o SUS sempre tirou sua força, será mais uma vez a resposta para os desafios

Túlio Batista Franco Outra Saúde – 05/11/2024

O Brasil debate o Brasil. As eleições municipais recentes estão sendo amplamente discutidas. Independente das opiniões circulantes, estamos vivendo um momento de intensa disputa pelos rumos do país, que poderá conhecer contornos dramáticos no futuro próximo. Urge produzir um engajamento orgânico entre uma proposta política para o futuro e a maioria da população. Um país que seja libertário, livre de todo tipo de preconceito, que admita a diferença como constitutiva da paisagem humana, socialmente justo. Um mundo que caiba todos os mundos dignamente.

O movimento sanitário, que tem a Frente pela Vida como núcleo aglutinador, há 4 anos e meio assume um importante protagonismo na vida nacional. Após o enfrentamento intenso e cotidiano na pandemia, elaborou uma política de saúde para disputar as eleições em 2022, mobilizou entidades e movimentos do país inteiro em apoio à candidatura do presidente Lula e discutiu com a então Comissão de Transição do Governo, na área da saúde, soluções para o SUS. Foi contra incluir o orçamento da saúde no “arcabouço fiscal”, e vê com imensa preocupação propostas de retirada do piso constitucional da saúde, ou qualquer redução do financiamento do setor, bem como da educação, ciência & tecnologia. O que vale para qualquer política social.

E isto tem polarizado as atenções do momento. Há uma ofensiva do capital financeiro que chantageia o país com especulações, uma forma nefasta de tentar influenciar a política fiscal, notadamente com cortes em gastos sociais. Ao mesmo tempo, entramos na dinâmica da disputa eleitoral de 2026, que vai eleger o novo presidente, governadores e o Congresso Nacional. O país está em questão. O que fazer para que o muito feito até aqui seja intensificado para potencializar as forças progressistas na luta por vir?

“Se muito vale o já feito, mais vale o que será”1, nos aconselha o poeta. Então, recomenda-se haver um esforço adicional na construção mais intensiva das políticas sociais de alargamento de direitos, que faça a população perceber mudanças expressivas na sua vida cotidiana. Uma mobilização que fortaleça os vínculos comunitários nos territórios. É necessário formar uma identidade corpórea com as comunidades. Laços orgânicos de confiança, que produzam uma subjetividade solidária, e sejam capazes de organizar uma resposta coletiva contrária à ofensiva neoliberal, que propõe o empreendedor de si mesmo e o sujeito da concorrência para polarizar a base da sociedade.

Há luta por vir! E para ela contamos com um enorme ativo político, o SUS, que traz a marca da generosidade desde os momentos iniciais da sua constituição, e hoje mobiliza milhares de pessoas nas Conferências de Saúde, além de uma imensa capilaridade que o coloca em relação com a população no seu dia-a-dia. Por exempl: ele se move sobre uma rede assistencial que, só na Atenção Básica, tem 61.262 equipes de Saúde da Família, atingindo uma cobertura de 79,6% do território nacional2. São mais de 3 milhões de pessoas trabalhadoras em exercício no SUS. Destes, 403 mil são Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Endemias3, que têm uma relação cotidiana com os territórios e suas comunidades, sendo uma importante referência de cuidado, vínculo, e participação comunitária. É algo absolutamente extraordinário.

À experiência de participação social soma-se a iniciativa do Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde. Este é um projeto lançado em 2024, liderado pelo Ministério da Saúde, Fiocruz e Conselho Nacional de Saúde, para dar visibilidade, mobilizar, e promover a interação entre entidades e movimentos no âmbito da saúde.

A participação comunitária ganha contornos mais amplos no governo através do Conselho de Participação Social da Presidência da República, do qual a Frente pela Vida participa representando o movimento sanitário. Aqui se constrói uma avançada proposta de participação social, com base nos territórios, e na educação popular como um dispositivo de construção. Esta iniciativa levou a uma ampla participação social na discussão do Plano Plurianual em 2023, que orienta a política econômica e social do Brasil até 2027. Também promoveu o amplo debate do Plano Clima que define as estratégias nacionais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, que causam o aquecimento global, e avançar na adaptação aos impactos das mudanças climáticas. Neste momento, organiza a participação social na Cúpula do G20 Social, que ocorrerá no Rio de Janeiro entre 14 e 16 de novembro de 2024. Por tudo isto, a perspectiva de uma política de saúde promissora na sua missão humanitária continua muito forte no cenário atual, construção que deverá ser coletiva e comunitária.

 

 

Segurança Pública — 21 anos depois, por Soares & Domingos Neto.

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Luiz Eduardo Soares & Manuel Domingos Neto

A Terra é Redonda – 04/11/2024

Hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos

Na quinta-feira passada (31.10.2024), deu-se uma reunião marcada há 21 anos. A convite de Lula, governadores e o ministro da Justiça encontraram-se no Planalto para discutir a Segurança Pública. Essa reunião foi agendada e postergada, depois cancelada, no início do primeiro mandato de Lula, em 2003. O atraso de 21 anos diz muito sobre as dificuldades de enfrentar o problema.

Em 2001, Lula presidia o Instituto Cidadania e era pré-candidato a presidente. Um grupo de trabalho formulou, então, seu programa de Segurança Pública. Profissionais de origens, experiências e perspectivas variadas debateram em audiências públicas, visitas e seminários. A proposição resultante foi entregue por Lula às casas congressuais e ao ministro da Justiça em 27 de fevereiro de 2002.

No ambiente ouriçado de hoje, é difícil imaginar que o então líder da oposição ao governo FHC fosse respeitosamente recebido por dirigentes da situação, todos valorizando a qualidade da proposta.

A edição do jornal O globo em 28.02.2002 destacava: “Tucanos elogiam plano anticrime do PT”. O ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, admitiu adotar medidas. “Não posso deixar de louvar essa iniciativa”, afirmou o presidente do Senado, Ramez Tebet. “Este documento é até agora o mais sério e completo sobre segurança pública já elaborado e apresentado à sociedade”, disse Aécio Neves, presidente da Câmara.

Com debilidades decorrentes, sobretudo, da falta de dados internos às corporações, a iniciativa mudou o debate. Descartou clichês e bordões puídos. Agentes públicos não mais arguiriam o “sempre foi assim”. Parecia chegar ao cabo a reatividade inercial e a falta de crítica aos padrões estabelecidos. Tornar-se-iam necessários diagnósticos e planejamento para a ação pública, que passaria a ser avaliada para que erros fossem monitorados e corrigidos.

O Plano não idealizava a racionalidade técnica e apontava para ajustes de instituições públicas às determinações constitucionais. A democracia seria reforçada. Visava-se o controle da chamada criminalidade, da brutalidade letal das polícias e do sistema de Justiça criminal, do racismo e do viés de classe que encarcera jovens pobres e negros, reproduzindo iniquidades e violências. Instituições refratárias à soberania popular seriam contidas.

Lula venceu as eleições. Em janeiro de 2003, o novo secretário nacional de Segurança Pública[i] e seus colegas tocariam o programa — aperfeiçoado com a ajuda de voluntários de distintas especializações e regiões, graças ao apoio da Firjan.

Era fundamental a adesão dos 27 governadores à tese central, a criação do SUSP, sistema único de segurança pública, inspirado na arquitetura do SUS. Em junho, o endosso unânime foi obtido. O presidente convidou os governadores para celebrar o “pacto pela paz”, como o projeto foi batizado, perante autoridades dos três poderes. A proposta seria entregue ao Congresso, posto que demandava alteração constitucional. Havia otimismo. Lula detinha respaldo popular e o consenso dos governadores fortalecia a proposta.

Os governadores não acataram por entusiasmo com uma segurança cidadã, afinada com os direitos humanos. A negociação individualizada mostrara que lhes interessava dividir o desgaste político com o governo federal. Uma reestruturação que importasse em compartilhamentos e deslocamento de autoridade para a União seria bem-vinda. A insegurança era fonte inesgotável de fragilização política. O acatamento era pragmático e lógico.

Paralelamente, o governo federal encarava o dilema: valeria a pena assumir mais responsabilidades em área tão desgastante? Dizia Leonel Brizola: chamar para si a segurança é abraçar afogado. Por que, então, o secretário nacional de segurança visitaria todos os governadores? A missão espinhosa foi testemunhada pelas mídias locais. Talvez porque não fosse crível o êxito da jornada quixotesca.

O governo federal viu-se subitamente com a batata quente na mão. Como deter a iniciativa evitando constrangimentos? A resposta fica para outro momento. O gabinete presidencial estipulara data para a reunião que seria suspensa. O passar do tempo silenciaria o “pacto pela paz”. O secretário foi afastado e o plano, engavetado. O governo investiu em prisões matutinas espetaculares de suspeitos de colarinho branco.

Mas a semente do SUSP fora lançada. Cedo ou tarde, por exigência histórica, resultaria em algo. Diante de crises, projetos embolorados, devidamente lustrados, circulariam na praça. O SUSP renasceu com sotaque diferente e inegável legitimidade e coerência quando Tarso Genro foi ministro da Justiça. Seu projeto nacional de segurança com cidadania (PRONASCI) incorporava elementos do SUSP, especialmente sua face preventiva. Mas Tarso passou, assim como a reativação indireta do SUSP.

Veio o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. A dramaticidade da insegurança pública crescia e a história aprontou ironia oblíqua, típica das tragédias: coube a Temer ressuscitar o SUSP e criar o ministério da Segurança previsto no plano original, de 2002 (por sugestão de Lula, então candidato, foi convertido em secretaria com status ministerial).

Mas a repetição deu-se como farsa: o SUSP, aprovado pelo Congresso em 2018, foi promulgado para não funcionar. Baseava-se em legislação infraconstitucional. Destinava-se a fazer crer em comprometimento dos governantes com mudanças profundas na Segurança. As novas regras jamais seriam aplicadas porque gerariam conflitos federativos; calculadamente, não tratavam de processos decisórios, de definição da autoridade coordenadora de ações. Tampouco foi casual que a ouvidoria fosse estabelecida como uma agência desprovida de poder.

A vida prosseguiu e o país foi empurrado à beira do abismo neofascista. Os golpistas instrumentalizaram as instituições armadas. A gigantesca e ativa “família militar” açambarcou os contingentes policiais de todas as esferas da União. Escapamos por um triz com a vitória de Lula, em 2022.

Retornando ao Planalto, Lula encontrou-se novamente com a dramática insegurança pública. Durante meses, flertou com o SUSP, reinscrevendo a necessidade de coordenação nacional no centro da agenda. Mas temeu mostrar a nudez do rei: o SUSP infraconstitucional colidiria com a Carta. Só fazia sentido ressuscitá-lo se figurasse na Constituição.

Finalmente, o ministro Ricardo Lewandowski, intimorato, pronunciou palavras banidas do léxico governamental: afirmou que para tratar da Segurança Pública caberia reformar a Carta. Realizou-se, enfim, a reunião marcada há 21 anos.

Neste interregno, regredimos de uma democracia limitada e contraditória para uma institucionalidade deteriorada. A sociedade viu-se acossada pela difusão de valores antidemocráticos, pelo ativismo reacionário de organismos do Estado e por organizações à margem da lei.

A PEC apresentada por Ricardo Lewandowski, embora menos ambiciosa, contém elementos fundamentais da proposta original. Aponta para o estabelecimento de uma coordenação nacional das estratégias da Segurança. Pressupõe uma linha de autoridade indispensável, mesmo que isso não seja enfatizado no discurso público. Enfrenta problema real: a refratariedade das corporações policiais, verdadeiros enclaves institucionais, à autoridade civil e política.

Mesmo que a aparência sugira o contrário, especialmente quando governadores de direita aplaudem práticas policiais condenáveis, o fato é que os executivos estaduais não comandam as organizações policiais. A ampla autonomia viabilizou-se com a omissão do Ministério Público, que deveria exercer o controle externo das polícias, e ameaça o Estado democrático, como demonstramos insistentemente em artigos, livros e entrevistas.

Integrantes de corporações armadas se alinham ostensivamente à extrema direita. Firmam-se como atores independentes, negando a hierarquia e as determinações constitucionais. Os enclaves corporativos instauram poderes rebeldes na medida em que se atribuem autoridade alheia à soberania popular e às mediações institucionais.

Esse quadro ruinoso é mais visível nas Forças Armadas. Comandantes se apresentam impunemente como representantes de um “poder moderador” e condicionam autoridades constituídas. Buscam respaldo no que nomeiam “família militar”, cuja composição inclui componentes das corporações policiais.

A PEC do ministro Ricardo Lewandowski possibilita restringir a disfuncionalidade da segurança pública; oferece amparo mínimo para o enfrentamento da criminalidade e da corrosão da autoridade fundada nos princípios democráticos. Propondo a coordenação nacional, enseja a possibilidade de reduzir o insulamento dos baronatos armados, organizados com ou sem máscara institucional (sob a forma de milícias).

O ministro e o presidente devem saber que a proposta não será aprovada. Mas enseja sinalização importante: tira o governo da defensiva e, pela primeira vez em muitos anos, aponta rumo para deter a barafunda institucional que impede o Estado de garantir segurança à cidadania. Livra a autoridade federal de exibir impotência e de absorver pautas conservadoras de governadores. No mais, deixa com a oposição o ônus da defesa do status quo.

A reação dos governadores tende a ser inversa a de 21 anos atrás porque a luta ideológica se interpôs ao velho cálculo de utilidade. Se a Segurança era somente causa de desgaste político e valia a pena sacrificar parte do suposto poder em benefício da divisão de responsabilidades com a União, hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos.

Há muito a ponderar. Por exemplo: a omissão na iniciativa governamental quanto à ouvidoria e ao papel do MP. Mas cabe saudar a coragem política, mesmo moderada, quando ela retorna à cena.

Falta aplicar essa disposição à Defesa Nacional. As Forças Armadas persistem essencialmente voltadas para o controle da sociedade e nunca abdicaram de se imiscuir na Segurança Pública.

*Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Ex-secretário nacional de segurança pública. Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. (Boitempo)

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar — Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

 

Nações falham ao escolher o jogo errado, por Álvaro Machado Dias.

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Para vencedores do Nobel de Economia, EUA são modelo para o mundo, mas índices de qualidade de vida dizem o contrário.

Álvaro Machado Dias, Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind.

Folha de São Paulo – 05/11/2024

Três raciocínios de interesse nacional emergem dos papers dos nobelistas de economia de 2024.

(1) Uma vez que instituições inclusivas são a base da prosperidade, o golpe militar pode ser descrito como um dos eventos mais danosos da República, posto que as suspendeu por décadas.

(2) Conforme a institucionalidade leva à prosperidade pela via da destruição criativa, segue que o agronegócio monocultor está nas antípodas do enriquecimento nacional. Sendo ou não pop, tech e yellow, o horizonte criativo da banana é bem menor que o da IA.

(3) Mudanças institucionais, como a reforma tributária, tendem a ser ainda mais importantes do que intuímos, porém exceções acumuladas costumam tornar arranjos novos tão ruins quanto os anteriores. Descontos atualmente negociados farão parte de teses futuras sobre as nossas falhas.

Essas perspectivas dão uma medida do grande poder translacional do paradigma dos autores, que em diferentes ocasiões apresentam os Estados Unidos como modelo de institucionalidade.

Aí o caldo entorna: tendo imigrado para lá aos 9 anos de idade, sinto que isso dialoga pouco com o campo. Um país em que é comum crianças invadirem a escola para matar os colegas de fuzil enquanto seus pais se engalfinham em lutas profissionais ferinas não me parece desenhado para revelar o melhor de nós. Do mais, no índice Edelman de confiança nas instituições de 2024, os Estados Unidos estão no fim da fila, abaixo da Colômbia, onde as Farc viraram partido.

A questão é profunda: a riqueza individual, norteadora das teses dos laureados sobre ganhadores e perdedores, não é fim, mas meio, para a realização em ato dos valores fundamentais humanos, os quais Thomas Jefferson acreditava serem “vida, liberdade e a busca da felicidade”.

No Relatório de Felicidade Global de 2024, os EUA aparecem na 23ª posição, empatados com o México, exemplo de falência institucional preferido de Acemoglu. A Costa Rica, que foi colônia extrativista, está na 12ª colocação. Mesmo onde as instituições são sólidas e a cultura próxima, a lógica da prosperidade como desfecho absoluto pede um grão de sal. A Finlândia é o país mais feliz, a Noruega é o 7º, com um PIB per capita 65% maior.

É fato que a pesquisa de felicidade global é limitada pela necessidade de só utilizar dimensões amplamente disponível. A alternativa é o conceito de bem-estar, que inclui o PIB per capita, mas também saúde, desigualdade e outros. Em saúde, os EUA estão mais perto da Arábia Saudita que do europeu menos saudável, a Alemanha (Ray Dalio, 2024). Em desigualdade, são lanterninhas entre as nações avançadas, tensionando a hipótese distributiva pela via da inovação institucionalizada. O Haiti, país das instituições mais frágeis do mundo, é menos desigual.

O que importa não é só considerar que a prosperidade numérica não passa de uma via para a vivencial e que, na vida das pessoas, instituições incluem educação, saúde, estruturas políticas de orientação dialógica e outros determinantes do bem-estar alheios à régua das patentes.

O ponto é que, para elevar a qualidade da vida levada no Brasil, a gente não precisa virar uma Coréia do Sul com PIB per capita de Luxemburgo. Se resolvermos questões mais modestas, como moradia digna e violência, é possível que nos juntemos à Costa Rica e outros exemplos de que, na prática, a teoria pode ser outra.