Crescimento Econômico

0

Apesar das dificuldades constantes das questões fiscais, a economia brasileira apresentou um crescimento de 0,9% no último trimestre, gerando sentimentos interessantes, uns grupos ressaltam o crescimento econômico do período de forma positiva, destacando a resiliência na estrutura produtiva nacional mesmo num ambiente marcado por grandes instabilidades e inseguranças.

De outro lado, percebemos grupos econômicos e políticos que acreditam que o crescimento econômico está diminuindo, perdendo tração, destacando a fragilização fiscal e que as perspectivas não são muito positivas, apostando que a economia nacional chegou no seu limite máximo e, se continuar crescendo, vai produzir impactos inflacionários que tendem a aparecer com maior força, levando o Banco Central a intensificar o incremento nas taxas de juros, reduzindo os investimentos produtivos, aumentando o desemprego e limitando a renda agregada, como força de reduzir os impactos sobre os preços.

Vivemos num momento de grandes incertezas, o tão sonhado crescimento econômico e a redução do desemprego, visto como muito positivo, tende a pressionar os preços relativos e a inflação cresce com maior rigor e intensidade, gerando pressões crescentes sobre o governo federal para adotar medidas mais profundas para encontrar o equilíbrio fiscal, reduzindo os repasses para os grupos mais fragilizados, esse grupo é visto como o grande responsável pelo retorno do presidente Lula ao governo numa eleição fortemente polarizada.

A economia brasileira apresentou indicadores que sinalizam um crescimento em torno de 4%, um número visto por muitos economistas ortodoxos como algo muito elevado para o potencial da economia nacional. Vivemos momentos de forte crescimento da demanda, motivado pelo consumo crescente e pelos investimentos em ascensão, que tendem a diminuir nos próximos meses, mostrando que para continuar crescendo e com redução no desemprego, precisamos aumentar os investimentos produtivos. Neste cenário, percebemos que, com as taxas de juros que temos , nosso crescimento tende a diminuir de forma acelerada, o chamado voo de galinha, que acontece com a economia nacional a muitas décadas.

 

Milei supera oposição e joga sozinho em 1º ano de governo, por Fabio Giambiagi

0

 Em cenário de turbulências e oposição dividida, presidente pode ser divisor de águas na Argentina

Fabio Giambiagi, Economista especialista em finanças públicas e Previdência Social. Autor, entre outros, do livro “Tudo Sobre o Déficit Público: Um Guia Sobre o Maior Desafio do País Para a Década de 2020” (Alta Books).

Folha de São Paulo, 01/12/2024

[RESUMO] Javier Milei completa no dia 10 seu primeiro ano como presidente da Argentina, período marcado pelo início da implementação de um programa de corte de gastos e de diminuição estatal sem precedentes na história de seu país, frente a uma oposição peronista enfraquecida. Embora resultados até aqui exitosos em alguns indicadores inspirem prognósticos otimistas, ainda é cedo para dizer se a Argentina caminha mais uma vez para o desastre ou se Milei, figura folclórica cheia de bizarrices, levará o país a uma economia estável de livre mercado.

O variado conjunto de esquisitices que marcou a irrupção do presidente argentino Javier Milei na política fez com que muitas vezes fosse encarado apenas como uma figura folclórica. O objetivo deste artigo é mostrar como, a despeito de tais bizarrices, ele pode vir a se tornar um divisor de águas na história da Argentina, pela profundidade do ajuste e das reformas que vem tentando implementar.

A exemplo de Jair Bolsonaro, Milei é um personagem que desperta emoções intensas. Traçar uma avaliação isenta do seu primeiro ano de governo, portanto, é um desafio.

Tentarei, no restante deste texto, não cair nos extremos, tanto de quem diz que ele está liderando uma economia em “recuperação em forma de V”, como da postura da oposição peronista, que julga que ele está destruindo o país, esquecendo-se do que foram as últimas décadas da Argentina, cuja decadência, na verdade, começou na última Presidência de Juan Domingo Perón (1973-1974).

O ajuste

A base de toda a estratégia oficial é atingir e manter o tão almejado “déficit zero” nas contas públicas, ou seja, o equilíbrio entre receitas e despesas totais. Se o governo conseguir, seria realmente um feito notável que, mantido a longo prazo, marcaria um contraste completo em relação às décadas de desequilíbrio fiscal responsáveis pelas múltiplas crises econômicas argentinas desde o pós-guerra.

Por enquanto, esse resultado vem sendo conseguido, ao menos até outubro, graças a uma estratégia de “arrocho” da despesa —que, em quaisquer outras circunstâncias que não as da Argentina atual, teria levado os responsáveis por essa política à beira da destituição, por falta de condições para se manter no poder.

Entretanto, na Argentina de 2024, qual é o pano de fundo? Três governos anteriores fracassados (Cristina Kirchner, Maurpicio Macri e Alberto Fernandez), uma inflação em 2023 na casa de três dígitos anuais, um nível muito elevado de pobreza antes de Milei assumir, a oposição estraçalhada, e Fernandez suspeito de praticar corrupção e indiciado por agressão contra ex-primeira-dama.

Nesse contexto, Milei  reuniu absoluto em 2024 no campo da política com uma espécie de “cheque em branco” inicial da sociedade para fazer “o que fosse preciso” para cumprir a promessa de acabar com a inflação.

O seu governo então promoveu uma contração real do gasto, até outubro, de nada menos que 28%, na comparação com os mesmos meses do ano anterior, com reduções de 19% da despesa em benefícios previdenciários, de 30% em subsídios, de 68% nas transferências discricionárias para as províncias e de 78% no investimento público.

Isso levou o país não apenas a obter superávit primário nas suas contas, como inclusive a ter um pequeno superávit fiscal nominal nos primeiros dez meses do ano, mesmo incluindo os juros.

A repetição constante da expressão “no hay plata” para dizer “não” às demandas por mais despesas levou muitos analistas a admitir que o país está passando por uma “mudança de época”, uma espécie de novo zeitgeist em relação à cultura tradicionalmente estatista e gastadora da política argentina.

A dúvida, no caso, é se a sociedade suportará estoicamente esse rigor e premiará o presidente com uma vitória eleitoral nas eleições parlamentares de 2025 e na reeleição em 2027, ou se, no meio do caminho, não voltará a dar uma chance ao velho peronismo ressurgindo, mais uma vez, das cinzas.

Inflação

Em algumas entrevistas nos anos que antecederam a sua eleição, quando era presença constante em programas de televisão e de YouTube, Milei reconheceu que “a diferença entre um gênio e um louco é o sucesso”. Como ele trouxe elementos disruptivos positivos, mas, ao mesmo tempo, está longe de ser considerado uma pessoa que funciona dentro das condições normais de temperatura e pressão, a forma como passará à história argentina dependerá do que ocorrer com a inflação.

Se houver um “antes” e um “depois” da Presidência dele, como foi o caso do Plano Real aqui, será visto pelos livros como “o presidente que derrotou a inflação”, da mesma forma que FHC está associado à ideia de conquista da estabilidade.

Por outro lado, se a inflação, após uma queda temporária, voltar a subir, Milei ficará conhecido para sempre pelo título da biografia não autorizada que um jornalista lançou sobre ele em 2023, “El loco”. E o que foi que aconteceu com a inflação, até agora?

Os dados mostram uma queda muito expressiva da variação mensal dos preços depois de dezembro, quando Milei assumiu o governo. No começo de sua gestão, ele adotou uma maxidesvalorização que gerou um salto inicial da inflação, até então ligeiramente superior a 10% ao mês.

Na disputa política, o peronismo imputa os 26% de inflação de dezembro a Milei, mas é óbvio que, na guerra de narrativas, este joga a culpa no governo anterior, devido à forte expansão monetária durante a campanha eleitoral.

Depois disso, a taxa de variação mensal dos preços foi caindo seguidamente, com uma ou outra oscilação, para 21% em janeiro, 13% em fevereiro, 11% em março e assim sucessivamente, até menos de 3% em outubro.

O governo ainda se aferra ao poder de convergência relacionado com o crawling peg, minidesvalorizações diárias da taxa oficial, de 2% ao mês, que em 2025 será de apenas 1,4 %, com o que Milei aposta em obter uma inflação mensal de 1% a 1,5% ano que vem.

Para um país que parecia flertar com a hiperinflação, isso pode parecer detalhe, mas o problema é que a cada mês que a desvalorização nominal fica abaixo da inflação, a taxa de câmbio real se aprecia mais, o que inspira preocupações naturais acerca da competitividade da economia e do que poderá acontecer caso o governo deixe a taxa de câmbio flutuar livremente.

O que vai ocorrer com a inflação e com a taxa de câmbio está ainda em aberto, indo desde o otimismo do governo, que menciona chegar no futuro a uma mítica “inflação zero”, até as cassandras habituais da oposição.

Elas citam, semana sim e a outra também, com evidente frisson, os finais desastrosos de Alfonsín em 1989, De la Rua em 2001 e Macri tendo que pedir uma ajuda bilionária ao FMI para o país não quebrar em 2018.

Com essas lembranças presentes na memória do país, fazem menção ao “dia em que vai explodir tudo” —uma espécie de “tara” da política local, pouco acostumada a alternâncias tranquilas de poder. Por enquanto, porém, Milei navega de braçada, como dizendo “so far, so good” (por enquanto, tudo bem).

Recessão

É importante lembrar que em 2023 a Argentina enfrentou a pior seca dos últimos 100 anos. Portanto, em condições normais, 2024 deveria ser um ano de recuperação, nem que seja pelo retorno à normalidade do setor agropecuário, chave na economia do país.

O fato de, após a queda do PIB de 2023, o país se preparar para um novo encolhimento no ano em curso, da ordem de 3%, dá uma ideia da intensidade da crise.

Fazer história contrafactual é um exercício tão difícil quanto fútil, de modo que cada um pode imaginar o que quiser acerca do que poderia ter acontecido com os números de crescimento, se o candidato do peronismo tivesse vencido o segundo turno das eleições presidenciais em 2023.

Após o início de um declínio que, em termos dessazonalizados, já tinha começado antes de Milei assumir, a queda do nível de atividade alcançou proporções dramáticas no primeiro semestre, com o investimento chegando a cair a taxas interanuais de mais de 25% (24% no primeiro trimestre e 29% no segundo).

Chama a atenção, pela sua elevada importância relativa e pela sua intensidade, a dimensão da queda observada no consumo das famílias, com reduções interanuais de 7% no primeiro trimestre e de 10% no segundo. Há dados inequívocos, entretanto, de que o terceiro trimestre do ano marcou uma clara mudança, sendo que o governo espera que a economia cresça 5% em 2025.

As exportações estão “voando”, mas olhando para a frente, excetuando-se a recuperação do crédito em curso no rastro de uma queda da incerteza inflacionária e a possibilidade de algum “efeito rebote” do investimento após o “fundo do poço” de 2024, não está claro quais seriam os drivers do crescimento sustentado durante vários anos.

A economia operará em um ambiente onde o investimento público terá ido quase a zero; a taxa de juros real, com uma política monetária convencional, nos próximos anos, deveria aumentar em relação a 2024 em um regime de taxa de câmbio flutuante; e o grau de confiança estará longe de ter um incremento expressivo, enquanto existir a possibilidade de que um eventual novo governo em 2028 promova um giro de 180 graus em relação às políticas atuais, na ausência de acordos políticos com alguma semelhança com o famoso Pacto de Moncloa espanhol. Enfim, vale a velha expressão: “A ver”.

Pobreza

A população argentina tem passado, ao longo dos últimos 15 anos, por um calvário: cada vez que um governo acaba, o país está pior. Isso vale para diversas estatísticas. Uma delas é a da pobreza, talvez um dos indicadores mais emblemáticos da situação de um país.

Aqui a comparação com o passado distante fica prejudicada pelo “apagão” estatístico do segundo governo de Cristina Kirchner, quando o INDEC (IBGE/Argentino) passou de uma fase de “sovietização” dos dados. É razoável inferir, contudo, que no final daquele período (2012/2015) o país tinha mais pobres que no começo.

Depois, a pobreza continuou aumentando nos governos Macri e Fernández. O INDEC faz duas medições, uma por semestre, e revelou um forte crescimento também sob Milei, passando de 42% no final de 2023 (com 12% de indigência) para 53% no final do primeiro semestre de 2024 (18% de indigência), ainda que o governo atual acene com uma rápida queda no contexto de melhora do PIB no segundo semestre.

O fato é que até agora, na comparação com o começo da Presidência Macri, em 2016, a pobreza passou de 30% para 53%, e a indigência de 6% para 18%, com responsabilidades compartilhadas entre as gestões de Macri, Fernández e Milei. É muito impressionante.

Evidentemente, a economia poderá se recuperar (é razoável que haja uma boa melhora em 2025) e sempre haverá o argumento de que o ocorrido no primeiro semestre deste ano foi um efeito da necessidade de “limpar a bagunça” do caos deixado pelo kirchnerismo.

Politicamente, porém, considerando a famosa frase de Milei de que “a justiça social é um roubo”, é difícil que a oposição não explore esses números para convencer o eleitorado de que tudo decorre da insensibilidade social do presidente e de seu plano de ajuste.

O que o mercado olha?

O dólar, mais uma vez, está no epicentro do debate acerca dos rumos da economia argentina. Esta vive há anos uma situação particularmente ingrata.

Normalmente, as dívidas são roladas e, muitas vezes, aumentam. Os empréstimos do FMI são concedidos, justamente, para situações emergenciais, após as quais os países voltam aos mercados.

O problema da Argentina, porém, é sua fama, compreensível, de “caloteira serial”. Lembre-se o que, certa vez, disse David Lipton, antigo diretor do FMI: “Los argentinos son estafadores [vigaristas] simpáticos”.

A Argentina não teve, nos últimos anos, como repagar os quase US$ 45 bilhões que devia ao FMI, pois não conseguia recursos nos mercados internacionais. Tendo levado “calote” quatro vezes em quatro décadas, os investidores externos, por sua vez, ficaram escaldados com o país e só voltarão a apostar nele depois de estarem convencidos de que “dessa vez vai ser diferente”.

O que o mercado olha, então? Basicamente, cinco coisas: 1) as negociações com o FMI, para avaliar se há chances de a instituição emprestar ao país, o que requer um plano sólido de reformas e certa flexibilidade do organismo, para o qual a Argentina se converteu numa grande dor de cabeça nos últimos anos; 2) o spread entre o dólar paralelo e o oficial, como sinalizador da situação das contas externas; 3) a trajetória da inflação (continuará caindo? ficará estacionada ali pelos 3% mensais?); 4) os resultados fiscais mês a mês, para se ter certeza de que o ajuste é “pra valer”; e 5) as pesquisas sobre popularidade do governo, para medir a temperatura de até que ponto a população continuará a apoiar um presidente que fez o “maior ajuste fiscal da história”, como Milei não cansa de se gabar.

Nesse contexto, em algum momento, o governo terá que decidir o que fazer com o cepo cambial, um conjunto de restrições vigentes há 5 anos que limitam a demanda por dólares ao câmbio oficial.

O ideal para Milei seria acabar com as restrições, sem que no dia seguinte ocorra um salto da cotação cambialO outro extremo seria haver uma corrida e o dólar escalar. “Nesse caso, o governo terá acabado”, como diz Ricardo Arriazu, um dos economistas que mais apoiam a política oficial.

Por enquanto, o governo “vai levando” —nos últimos meses, inclusive, o spread chegou a diminuir expressivamente, no que a imprensa chamou de “veranito” financeiro.

“Y ahora, qué?”

Os primeiros meses de processos de transformação são incertos, pois no começo não se sabe se estamos na etapa inicial de uma nova era ou num interregno antes do retorno a algo que se imaginava ter ficado atrás.

Em 2024, sabemos que o Plano Real deu certo, mas em 1995 ainda havia muitos temores. Em 2024, sabemos que o câmbio flutuante de 1999 veio para ficar, mas as primeiras semanas do novo regime foram de pânico, com muitas dúvidas acerca do futuro.

Hoje, é difícil fazer apostas taxativas de que a Argentina esteja no limiar de uma transformação definitiva para se tornar uma economia estável e competitiva de livre mercado. Será que, no final, não assistiremos a um novo fracasso? Ninguém tem uma resposta categórica.

No cerne da questão, há um tema crucial: o que acontecerá com o país, 20 anos à frente? Há condições de serem estabelecidos entendimentos que, em caso de mudança de governo, possam ser respeitados, preservando políticas sensatas, como no Uruguai, onde as gestões se alternam sem grandes mudanças do menu econômico?

Olhando os dados fiscais e de inflação, há razões para otimismo. Já observando-se o comportamento do presidente, que com seu descontrole verbal chama de “ninho de ratos” o Congresso, enquanto os seus “trolls” qualificam como “fracassados” ou até “velhos mijões” os consultores críticos acima dos 60 anos, com campanhas de perseguição midiática de rara brutalidade, é difícil não encarar o futuro com reservas, acentuadas pelas dúvidas acerca da capacidade de conservar uma taxa de câmbio que foi se apreciando em termos reais.

“Pensei que não havia nada mais apaixonante do que uma corrida de touros, até que ouvi dois argentinos discutindo sobre política”, disse certa vez o mexicano Octavio Paz. A desunião foi sempre uma receita de fracasso no país.

Milei conseguiu fazer um ajuste impressionante sem apoio político, apenas a partir de determinação e liderança difundidas nas novas mídias. Se as pesquisas deixarem de sorrir para o governo, a lista dos inimigos dá três voltas na Casa Rosada.

Por enquanto, porém, com a inflação em queda, o dólar parado, a oposição dividida e o peronismo capitaneado pela figura fantasmagórica de Cristina Kirchner, Milei “les pasa por arriba” (esmaga) a todos.

 

Estamos vivendo numa democracia? por Oded Grajew

0

Que modelo é este que produz terríveis desigualdades?; mudanças no IR são justas, mas pobres continuarão a ser penalizados

Oded Grajew, Presidente emérito do Instituto Ethos, conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis e membro do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades

Folha de São Paulo, 02/12/2024

A democracia poderia ser definida como um regime político em que o poder é exercido de forma participativa pelos cidadãos, diretamente ou por meio dos seus representantes. Sendo assim, na democracia exercida em sua plenitude, as políticas públicas deveriam beneficiar de forma equitativa o conjunto da sociedade, resultando num país com poucas desigualdades.

Vejamos o quadro no Brasil: somos o sétimo país mais desigual do mundo, apesar de sermos a oitava maior economia. De acordo com o Observatório Brasileiro das Desigualdades, idealizado pelo Pacto Nacional Pelo Combate às Desigualdades, as nossas desigualdades econômicas, sociais, ambientais, regionais, de gênero e raça são enormes. Por exemplo: 1% da população detém 63% da riqueza do Brasil; os 10% mais ricos obtêm um rendimento médio mensal per capita 14,4 vezes maior que os 40% mais pobres; cerca de 7,6 milhões de brasileiros vivem com uma renda domiciliar per capita mensal menor do que R$ 150; a mulher negra ganha em média 42% do que recebe o homem não negro; as pessoas negras representam 76,9% das vítimas de mortes violentas intencionais e são 83,1% das mortes decorrentes de intervenções policiais; a taxa de mortalidade infantil é 59% maior na região Norte do que na região Sul.

Todos que têm o mínimo de conhecimento de como funciona o nosso sistema político sabem da enorme influência do poder econômico nas eleições e sobre os tomadores de decisões, nas várias instâncias de poder das nossas instituições públicas. Como resultado direto temos políticas e decisões políticas que beneficiam a minoria mais rica e consequentemente sustentam e alimentam as desigualdades brasileiras.

O nosso sistema tributário é um dos mais regressivos do mundo; o Brasil é um dos poucos países que não taxam lucros e dividendos e instituímos diversos mecanismos que fazem com que, atualmente, mais de 70% da renda dos super-ricos não seja tributada. As mudanças no Imposto de Renda anunciadas na semana passada são justas, mas os pobres continuarão a pagar proporcionalmente mais tributos que os ricos porque ainda taxamos muito o consumo e pouco a renda e o patrimônio.

Tudo isso apesar de a Constituição brasileira declarar que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. O que significa que o nosso sistema tributário deveria ser considerado inconstitucional!

O nosso terrível e vergonhoso quadro de desigualdades não foi construído por acaso, é resultado de decisões políticas. Alimenta a descrença na política e na democracia e reforça os movimentos políticos extremos e autoritários (vale lembrar que os Estados Unidos são o país mais desigual entre as nações mais desenvolvidas).

Se quisermos valorizar e defender a democracia e barrar seus detratores precisamos nos empenhar para que as políticas públicas se liberem da influência excessiva do poder econômico, respondam às necessidades de toda a população e não apenas aos interesses de uma minoria —e estejam dedicadas, como manda a Constituição, à redução das desigualdades. Caso contrário, poderemos estar sempre nos perguntando: Estamos vivendo numa democracia? Que democracia é esta que produz tantas e terríveis desigualdades?

O que há por trás dos boicotes, por Ana Paula Vescovi

0

Reações acirradas de grupos franceses ao acordo UE-Mercosul demonstram o quão estratégico ele se tornou

Ana Paula Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil.

Folha de São Paulo, 10/12/2024

Uma carta aberta de uma das maiores redes varejistas francesas iniciou boicote quase despretensioso sobre a compra de carnes do Brasil; a resposta brasileira, vinda do setor produtivo, traz à tona o potencial destrutivo da guerra comercial.

Os produtores sujeitos às restrições impostas pela França reagiram deixando de vender carnes para a rede europeia no Brasil. O movimento foi tão forte que levou a empresa francesa a uma retratação.

O principal prejudicado? O consumidor, sempre.

A proximidade da reunião de presidentes do Mercosul, no Uruguai, na primeira semana de dezembro atraiu o furor de produtores rurais franceses. A diplomacia dos dois blocos —União Europeia e Mercosul— trabalha para pautar e votar pela aprovação do acordo birregional.

O Brasil tem demonstrado com ênfase o seu interesse na aproximação. Do lado europeu, os mais enfáticos são os alemães, os espanhóis e os portugueses. Além da França, Polônia, Áustria e Itália apresentaram algum nível de resistência.

O que está em jogo é uma frente de redução de tarifas, com definição de quotas em alguns casos, para intensificar a corrente de comércio e serviços entre as duas regiões.

Os ganhos de comércio são há muito tempo conhecidos na literatura. São um verdadeiro ganha-ganha. Os países podem se especializar na produção de bens e serviços em que são mais eficientes, levando ao aumento da produtividade geral, do nível de renda e da produção e revelando vantagens comparativas.

Ademais, o comércio internacional promove a concorrência e a contestação de mercados, o que contribui para preços mais baixos, melhor qualidade e práticas de produção e maior inovação. O acesso a mercados maiores permite que as empresas produzam em maior escala, reduzindo potencialmente os custos por unidade e que os consumidores tenham acesso a uma gama maior de produtos e serviços de diferentes países.

Pode facilitar a troca de conhecimento e tecnologia entre países, promovendo inovação e maior crescimento potencial, além de fomentar os investimentos estrangeiros.

Embora alguns empregos possam ser deslocados entre setores e regiões, o comércio internacional cria oportunidades de trabalho em setores exportadores e nas indústrias de apoio. E não apenas empresas grandes exportam.

Os consumidores, por sua vez, podem obter preços mais baixos e maior poder de compra. E os países, por fim, podem se beneficiar com a promoção de laços diplomáticos e a paz entre as nações por meio de uma saudável interdependência econômica.

Além da teoria, a realidade demonstrou isso. Após a entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), em 2001, e economia mundial vivenciou anos de crescimento robusto com inflação controlada e juros baixos. O aumento de renda ampliou a classe média global, movimento que foi mais forte nos países em desenvolvimento. Estimativas apontam crescimento de 50% na América Latina. O que deu errado tem sido objeto de muitos estudos, mas a crise financeira global de 2008/2009 foi uma inflexão, entre outros fatores.

O concreto é que tudo mudou desde então e, nos últimos anos, as guerras comerciais têm prevalecido. As recentes eleições presidenciais nos Estados Unidos sancionaram mais aumentos de tarifas e mais disputas comerciais, o que tende a escalar no próximo ano. Esse é um fator importante por trás da reação dos franceses. A integração comercial entre Mercosul e União Europeia ficou ainda mais estratégica, para os dois lados, depois da eleição dos Estados Unidos.

De um lado, uma região que produz automação industrial de excelência, capaz de impulsionar a modernização do parque industrial na América do Sul. De outro lado, uma região capaz de alavancar os objetivos da transição (e da segurança) energética na Europa. O Brasil produz o crédito de carbono com o menor custo do planeta.

No meio, estão os produtores de alimentos na França e em algumas outras localidades. São acostumados a pesados subsídios e a uma regulação ambiental severa, com estrutura fundiária diferente da nossa (menos concentrada).

A acidez e o tom ofensivo das manifestações na França revelam nada mais do que o tamanho da briga para manter o status quo. Simplesmente negligenciam os anos de avanços tecnológicos e na vigilância sanitária que tivemos. No Brasil, iniciativas no próprio setor privado têm assegurado políticas rigorosas de desmatamento ilegal zero com 100% de rastreabilidade nos seus negócios de exportação. E não somente para a Europa. O uso de satélites de rastreamento e da inteligência artificial já é uma realidade no monitoramento de fazendas exportadoras.

Mas toda crise traz aprendizados. O primeiro deles seria assegurar um caminho consistente de “acreditação” para os nossos exportadores, com avanços consistentes no desmatamento ilegal zero e melhora na aplicação e fiscalização do Código Florestal. E muita disposição para explicar os progressos. O Brasil já se estabeleceu como uma potência pecuária, temos uma das agriculturas mais modernas do planeta, com muitos avanços por vir na área da agroenergia.

Com efeito, há muito o que avançar. E as vantagens do comércio podem trazer fortes incentivos para compromissos de preservação ambiental. Se a Europa está fidedignamente engajada no desmatamento ilegal zero, então não há melhor política do que aprofundar a (saudável) interdependência comercial com os países da região amazônica.

O que vimos com os boicotes foi uma demonstração pedagógica dos efeitos do protecionismo, caminho errado a seguir.

 

 

A Europa prepara-se para a guerra, por Flávio Aguiar

0

Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 27/11/2024

 Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos

Um autêntico calafrio percorreu toda a Europa na semana passada. Noticiou-se com destaque que os governos da Suécia e da Finlândia divulgaram para seus cidadãos manuais sobre como proceder no caso de uma guerra contra terceiros.

O governo sueco distribuiu pelo correio uma brochura de 32 páginas. O finlandês disponibilizou uma publicação online.

Embora o nome não aparecesse, era óbvio que se tratava de uma guerra com a Rússia. A Suécia não tem uma fronteira terrestre com a Rússia. Há uma fronteira marítima entre ela e o enclave russo de Kaliningrado, espremido entre o Mar Báltico, a Lituânia e a Polônia. A Finlândia tem uma fronteira terrestre com a Rússia de 1.343 km.

Ambas mensagens abordam outras crises, como a ocorrência de pandemias, desastres naturais e ataques terroristas. Mas o destaque no noticiário foi para a guerra, graças à existência do conflito direto entre a Rússia e a Ucrânia, que tem o apoio da OTAN, de que não faz muito Suécia e Finlândia passaram a integrar.

Tanto na Suécia como na Finlândia as instruções envolvem a manutenção de estoques de alimentos, água, remédios e dinheiro, a guarda de cartões de crédito, conselhos sobre como se manter informado através do rádio, a busca de abrigos coletivos no caso de ataques aéreos ou nucleares, como neles se comportar ou onde se proteger caso seja impossível chegar até eles.

Logo no começo das instruções suecas, encontra-se a seguinte exortação patriótica: “Se a Suécia for atacada, nós nunca nos renderemos. Qualquer sugestão em contrário é falsa”.

Aos poucos surgiram informações complementares. Em ambos os casos, tratava-se de uma atualização de instruções anteriores. Também noticiou-se que outros governos, como os da Dinamarca e da Noruega distribuíam instruções semelhantes. Nada disto atenuou o impacto midiático do clima de preparação para uma guerra.

Para engrossar o caldo, a Alemanha entrou na dança. A mídia do país noticiou a existência de um documento do Exército até então secreto, com mil páginas sobre a possibilidade e os desdobramentos de uma guerra com a Rússia. Entre outras coisas o documento prevê que a Alemanha se transformaria num imenso corredor por onde passariam centenas de milhares de tropas da OTAN – norte-americanas e outras. O país se transformaria no grande organizador logístico do fluxo de tropas, suprimentos e armas de variada espécie para o conflito.

Outras informações vieram à tona. O Exército está disponibilizando instruções específicas para empresários sobre como adequar suas empresas à circunstância de uma guerra, com destaque para a questão dos transportes.

Para compreender o impacto destas informações, deve-se levar em conta a moldura em que surgiram e alguns antecedentes.

Concomitante a elas noticiava-se uma escalada de fato ou retórica em torno da guerra na Ucrânia e agora também em território russo, com a invasão da região de Kursk por tropas ucranianas.

Noticiou-se a presença de tropas norte-coreanas em território russo, em apoio a Moscou. O governo de Joe Biden autorizou a utilização pela Ucrânia de mísseis de longo alcance contra território russo, e o fornecimento de minas terrestres contra veículos e pessoas para o governo de Kiev. Este anunciou que a Rússia lançara um míssil de longo alcance, capaz de levar uma ogiva nuclear, contra seu território.

Moscou relaxou as normas para utilização se armas nucleares em caso de conflito, sobretudo se atacada por um país que tivesse o apoio de uma potência nuclear. França, Alemanha e Polônia anunciaram estarem aumentando significativamente seus orçamentos militares. O exemplo pode ser seguido por outros países. Os Estados Unidos anunciaram o restabelecimento de mísseis em território europeu.

A TV russa divulgou uma reportagem comentando quais cidades europeias poderiam ser alvo de ataques por mísseis de longo alcance. Não faz muito o governo de Joe Biden aumentou em 20% a presença de pessoal militar e conexo norte-americano no continente europeu, contingente que hoje passa de 120 mil, maior do que, por exemplo, todo o Exército do Reino Unido. Autoridades civis e militares alemãs já falaram abertamente que é possível haver uma guerra com a Rússia em cinco ou seis anos. Em suma, a Europa se prepara para a possibilidade da guerra.

Políticos que admitem o risco usam com frequência o dito popularizado em latim, “si vis pacem para bellum”, “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. Entretanto lembremos que o currículo europeu na matéria não é bom. Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

Parceria Estratégica

0

Com o retorno de Donald Trump ao comando da sociedade norte-americana encontramos muitas inquietações e incertezas nas políticas econômica e comercial, alguns analistas acreditam que o novo governo vai retomar os confrontos com a China, limitando a entrada de imigrantes e deportando milhares de ilegais, outros especialistas apostam no retorno de uma visão mais unilateral, nos moldes do conhecido América primeiro…. que podem levar as nações ao incremento de políticas protecionistas como forma de defender sua estrutura produtiva e seu emprego interno, mesmo sabendo que essa proteção pode gerar impactos preocupantes sobre a economia mundial.

Neste cenário, percebemos que os governos nacionais estão buscando instrumentos para defender seus sistemas econômico e produtivo, evitando a perda de espaço no mercado global, cujos impactos são negativos para as economias nacionais, podendo gerar graves constrangimentos sociais, com incremento do desemprego, queda maciça da renda agregada e desajustes macroeconômicos.

Vivemos numa economia altamente integrada, as estruturas produtivas estão totalmente interligadas e interdependentes, as políticas protecionistas adotadas em uma nação podem gerar represálias comerciais, levando ao aumento dos custos de produção, incrementando os preços e impactando sobre a inflação dos países, levando as Autoridades Monetárias a adotarem políticas mais restritivas, reduzindo a quantidade de moeda em circulação e elevando as taxas de juros, com impactos generalizados sobre o investimento produtivo e, posteriormente, reduzindo a geração de emprego e da renda agregada.

O Brasil, neste cenário, caminha para momentos de grandes decisões estratégicas, que podem impactar fortemente sobre a sociedade brasileira, abrindo novos espaços e novos horizontes de comércio internacional, criando novos laços afetivos e se integrando com novos polos comerciais, produtivos e culturais, mas precisa compreender que as escolhas podem trazer novos constrangimentos políticos e econômicos, além do afastamento de investimentos estrangeiros fundamentais. As decisões exigem maturidade política para fazer as escolhas corretas e precisas, além de ampla capacidade de compreender os inúmeros desafios contemporâneos e das fragilidades internas, que podem limitar nossa capacidade de reposicionarmos na economia mundial.

Neste momento, o governo federal adota políticas efetivas para a reconstrução da indústria nacional, setor estratégico e fundamental para todas as nações e, internamente, perdeu espaço desde os anos 1990, combalida pela desastrada abertura econômica e pela adoção do câmbio como instrumento de estabilização de preços. Atualmente, as relações comerciais com os países asiáticos podem trazer grandes investimentos e novos horizontes econômicos, mas precisamos salvaguardar a estrutura produtiva, entrar numa concorrência com a indústria asiática pode ser vista como o desaparecimento por completo da indústria nacional.

Estamos num momento imprescindível para adotarmos políticas mais agressivas e ambiciosas, somos detentores de grande potencial energético, temos capacidade alimentar que poucas nações possuem e somos vistos como detentores de grande potencial produtivo e cultural. Precisamos ter a maturidade política para exigir, nos fóruns internacionais, transferências de tecnologias, sociedade com atores nacionais e atração de tecnologias para movimentarmos nosso potencial econômico e transformar nossas potencialidades para melhorarmos as condições de vida da nossa população e reduzir as desigualdades que caminham com nossa história nacional, uma trajetória de pilhagem, exploração, concentração e escravização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.  

 

Os CEOs da terra falida, por Giovana Madalosso.

0

Tem criança que sabe falar dois idiomas mas não sabe arrumar a cama

Giovana Madalosso, Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Folha de São Paulo, 25/11/2024

É final de ano e a cidade está cheia de anúncios de escolas chamando para matrículas. Umas oferecem educação com ênfase no amanhã. Outras sugerem desenvolver no aluno o espírito de liderança. Pelo jeito, desistimos de formar cidadãos para formar CEOs. Não é só culpa das escolas: é uma demanda dos pais, preocupados em garantir um futuro de estabilidade profissional e financeira para os filhos.

Só que a vida não é uma empresa. A sociedade não cabe em um organograma. E tampouco estamos sozinhos. Aqui nesta Terra, um sonho se sonha com oito bilhões de pessoas. E uma infinidade de outros seres vivos.

A festa do Cada Um Por Si já se mostrou um fracasso. Não há pulseira VIP que nos impeça de ver a dança mórbida do capitalismo tardio, com uma minoria se refestelando com a maior parte da riqueza.

Se a propaganda da escola fosse honesta, o globo terrestre exibido na mão do aluno sorridente estaria pegando fogo. A lupa não estaria apontada para uma florzinha e sim para uma amostra de microplástico ou de corais mortos pelo calor.

Fora do muro dessas escolas, há aproximadamente oito milhões de brasileiros passando fome. Duzentas mil pessoas em situação de rua. Uma floresta prestes a virar savana. Rios sendo contaminados com mercúrio. Novos poços de petróleo sendo abertos quando mais de duzentos milhões de pessoas já se deslocam pelo mundo por causa de desastres climáticos.

O futuro brilhante vendido pela propaganda tem grande chance de ser uma distopia. E, mesmo com essa perspectiva, há quem não se importe, pensando que, como sempre, o dinheiro irá safar os seus da desgraça coletiva.

E eu só me pergunto: que altura de portão nossos filhos terão que construir para se esconder de tanta tristeza? Haja bônus e pró-labore para tanto tijolo e para tanta cerca farpada. Haja catraca e cancela para se proteger de tamanha desigualdade. Haja dique para se resguardar de uma natureza em fúria. Haja espumante para se entorpecer de tudo e tanto.

Antes nossos heróis corporativos estivessem morrendo de overdose. Estão morrendo de estresse, depressão, ansiedade, pânico, solidão, anorexia. E, mesmo assim, continuamos mirando nesses exemplos. Desviando a luneta dos nossos filhos das Três Marias para mirar nessas cadeiras. Ou numa chair bem longe daqui.

Tem criança que sabe falar dois idiomas mas não sabe arrumar a cama. Antes de qualquer coisa, deveriam aprender a limpar a casa e a escola, a observar quanto lixo cada pessoa produz, a fazer a própria comida. A não depender do outro para realizar a tarefa mais primordial que existe: cuidar de si mesmo.

Só assim mais uma geração de brasileiros não passará pelo constrangimento de estudar em uma sala de aula que só tem crianças brancas, em uma escola que só tem crianças brancas, aspirando a cargos que só são ocupados por brancos, em um país onde a maioria da população é negra e, infelizmente, em parte ainda limpa e cozinha para os outros.

É desanimador mas, por outro lado, não é. Um mundo em crise é um mundo gritando para ser refeito. Um caminho repleto de possibilidades de se agir diferente. Tenho certeza de que essa geração irá encontrar ótimas saídas, desde que tenha a chance de olhar mais para os lados, e não só para o topo.

 

BPC: Caçada aos direitos dos vulneráveis, por Ion de Andrade.

0

Governo aventa corte em benefício para idosos e pessoas com deficiência na miséria – única fonte de renda para muitos. E gerará “efeito rebote” no comércio local e geração de impostos que a proteção social estimula. Vale tudo para manter o arcabouço fiscal?

Ion de Andrade – OUTRAS PALAVRAS – 28/10/2024

Recentemente a mídia repercutiu medidas do Ministério da Fazenda dando conta de um plano de cortes que penaliza brutalmente, dentre outros direitos, o BPC.

Mas o que é o BPC? O site do próprio Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome explica:

O Benefício de Prestação Continuada – BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, é a garantia de um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. No caso da pessoa com deficiência, esta condição tem de ser capaz de lhe causar impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo (com efeitos por pelo menos 2 anos), que a impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas. O BPC não é aposentadoria. Para ter direito a ele, não é preciso ter contribuído para o INSS. Diferente dos benefícios previdenciários, o BPC não paga 13º salário e não deixa pensão por morte. Para ter direito ao BPC, é necessário que a renda por pessoa do grupo familiar seja igual ou menor que 1/4 do salário-mínimo.1

Noutras palavras o BPC é o benefício de R$1.412,00 pago a (a) idosos que, sempre subempregados e egressos da miséria, nunca contribuíram para a previdência e (b) portadores de deficiência que sejam pobres.

Esses brasileiros serão alvo do pente fino do Ministério da Fazenda para economizar parte dos 25,9 bilhões de reais previstos.

Vale ressaltar que há pessoas sem receber o BPC, mesmo fazendo jus a ele; por condições de não cidadania e de precariedades imensas nesse contingente populacional, incontáveis brasileiros e brasileiras, idosos miseráveis e portadores de deficiência, por vezes inclusive em situação de rua que estão invisibilizados.

Muitos dos que o recebem, reforçando essa ideia da exclusão social desses beneficiários, foram ajudados por terceiros de boa vontade, preocupados com a miserabilidade extrema daquele ser humano singular, no entanto elegível para receber o BPC.

Ora, se for subtraído do benefício dificilmente, muitos dos que o recebem atualmente reunirão novamente as condições para reivindicar a revisão da decisão negativa, pois precisarão atender a uma burocracia estatal perante a qual estão antecipadamente derrotados.

Recebendo o BPC está portanto, é bom que se diga, a federação dos excluídos e dos miseráveis, gente com distúrbios mentais, idosos que nunca contribuíram, gente que não sabe ler, pessoas simples e vulneráveis de todos os matizes, razão porque muitos dos que têm direito legal não o recebem.

A prova da existência desses invisíveis é o que nos informa o elogioso artigo da Folha de São Paulo em relação às medidas do governo, intitulado “Corte de R$ 25,9 bi prometido por Haddad prevê fim de brechas legais que impulsionaram benefícios” que foi publicado em 5 de julho de 2024, alusivo à iniciativa de cortes do governo. Diz a Folha:

“O gasto com o BPC é um dos que mais preocupam a equipe econômica. O programa tem hoje quase 6 milhões de beneficiários — dos quais 1 milhão foi incluído nos últimos dois anos. A despesa com o programa está prevista em R$ 105,1 bilhões neste ano e poderá crescer mais R$ 10 bilhões no ano que vem se nada for feito. As concessões do benefício tiveram uma aceleração considerável a partir do segundo semestre de 2022. Até então, o público do programa oscilava entre 4,6 milhões e 4,7 milhões, com pequenas variações mensais. Em julho daquele ano, o governo habilitou 93 mil novos beneficiários. No mês seguinte, mais 90 mil. Desde então, as concessões têm se mantido superiores a 50 mil por mês.”2

Ou seja, a aceleração das concessões provavelmente se deve ao fato de que o governo Lula vem identificando, através do MDS mais situações de pessoas não atendidas do que o governo Bolsonaro. A que senhor o Ministério da Fazenda serve?

Carta Capital em 20 de agosto de 2024, nos traz o que pensa o ministro responsável pela pasta sobre o assunto, arrematando o que segue:

“Não podemos correr o risco de tirar do mercado quem pode trabalhar, por uma distorção de um programa mal gerenciado.” Rever as condições do BPC é parte significativa do pacote anunciado por Haddad para cortar 25,9 bilhões de reais em gastos do governo em 2025.3

Ora, com o valor de R$1.412,00 por BPC, cada bilhão de reais amealhados por ano pelo Ministério da Fazenda implicará no corte de, segue a fórmula, (1.000.000.000/1.412,00 = 708.000 benefícios)/12 meses ou 708 mil/12 meses perfazendo 59 mil beneficiários excluídos do benefício por ano.

Isso tem implicações econômicas óbvias: o BPC, quer as famílias tenham ou não os seus dados cadastrais atualizados, conforme estabelece a lei, serve essencialmente para cobrir despesas de sobrevivência indo para a economia assim que é recebido, utilizado que é em compras de comida, medicamentos e gêneros de primeira necessidade…

Isso significa que parte das despesas do governo com o pagamento do BPC volta imediatamente aos cofres públicos, sob a forma de impostos, barateando, portanto e muito o próprio BPC.

Esse BPC barateado, volta para o governo, no entanto, não sem antes ter dado vitalidade à combalida pequena economia local do entorno da moradia dos beneficiários, pois, é a isso que servem. De fato, os beneficiários do BPC não poupam os recursos recebidos, nem o enviam como parte dos lucros ao exterior.

Ao fim do ano fiscal, portanto, aqueles R$1.412,00 investidos no consumo dos pobres e na economia local, terão sido deduzidos fiscalmente de muito do que custaram ao governo, pois terão gerado a arrecadação que está atrelada ao consumo, gerado empregos e renda, configurando um multiplicador keynesiano.

Isso significa que além dos idosos pobres e dos portadores de deficiência pobres os cortes também atingirão a padaria e o mercadinho das favelas e periferias do Brasil, produzindo desemprego e insolvência. Um golaço! Só que contra.

Por que isso está sendo feito?

Como tudo tem que ter um mínimo de legitimidade para ser levado adiante e produzir o devido consenso, o BPC tem algumas atualizações a serem feitas, sobretudo no que se refere aos benefícios pagos por ocasião da covid que talvez pudessem ser suspensos. Diz a Folha:

Um dos casos mais emblemáticos é uma portaria da época da pandemia de covid-19 que permite a concessão do BPC (Benefício de Prestação Continuada) a pessoas que não estão no Cadastro Único ou não comprovam o enquadramento no limite de renda para acessar o benefício.

A medida foi adotada no momento em que o isolamento social era necessário para conter uma doença para a qual ainda não havia vacina. Mais de um ano após a declaração do fim da emergência de saúde pública, o texto segue em vigor.

Mais adiante o artigo arremata, com a verdadeira justificativa que explica tudo:

O governo articula incluir as propostas no projeto de lei que trata da desoneração da folha de 17 setores empresariais e dos municípios de até 156 mil habitantes. O texto tem o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), como relator. Parte da economia de despesas pode inclusive ajudar a compensar o impacto das renúncias fiscais.2

Ou seja, por ser responsável do ponto de vista fiscal, e é, parabéns, o governo tem, para assegurar a sustentabilidade das renúncias fiscais com as quais está plenamente comprometido, que tirar, quanto mais melhor (por isso o pente fino cadastral) o dinheiro minguado das compras famélicas dos mais pobres dos pobres, esgarçando o já frágil tecido econômico das periferias.

Sim pois:

“O plano do governo é, no primeiro momento, convocar para atualização cadastral 900 mil beneficiários do BPC que estão há mais de quatro anos sem passar por reavaliação, bem como aqueles que estão fora do CadÚnico, acima do limite de renda ou tiveram o benefício concedido pela via judicial.”2

Vamos observar aqui que a concessão do benefício por via judicial é tomada pelo Ministério da Fazenda como graciosa, quando esse tipo de situação decorre muitas vezes da costumeira negativa do Poder Constituído de honrar benefícios para evitar os gastos públicos (em cima dos mais pobres, claro). A justiça só pode atuar a bem de assegurar um benefício garantido pela lei…

Entretanto, é claro que o controle do gasto público deve imperativamente ser feito pelo governo, não com o propósito de cortar para reduzir, mas de, sendo o caso, de cortar para garantir que os que realmente fazem jus (e como vimos, nem todos ainda foram cobertos) não sejam em qualquer circunstância prejudicados.

Portanto, se há gente recebendo e que não deveria receber, corte-se o benefício, por dever de ofício e não para ajudar a pagar as renúncias fiscais do próprio governo.

Essa auditoria prevista dos 900 mil, uma blitzkrieg, se dará portanto, para essa gente excluída de tudo, sob a espada da perda do que para muitos deles é a sua única fonte de renda!

Considerando que o propósito não é o da gestão dos direitos do programa para a garantia do que a lei estabelece, mas a da garantia dos benefícios a outro projeto social do governo (a renúncia fiscal dos ricos), estaríamos diante do constrangimento ilegal de centenas de milhares de beneficiários?

O lógico, obviamente, deveria ser o oposto, ou seja:

(a) para assegurar a continuidade do BPC e

(b) a inclusão dos novos contingentes, que fazem jus ao mesmo, mas estavam até aqui invisibilizados pela miséria e adversidade, o governo Lula fará:

(c) uma revisão dos benefícios eventualmente injustificáveis como os da COVID ou de quem recebe e tem renda mais alta e

(d) complementarmente fará também uma blitz krieg em cima das renúncias fiscais dos tais 17 setores da economia beneficiados.

Ora, além desse aparente desvio de finalidade (enxugar para beneficiar terceiros) a caça da renda de sobrevivência dessa gente, é uma grande jogada, porque se quando os orçamentos do SUS foram ameaçados os movimentos da Saúde, pintados de guerra, visitaram o Ministério da Fazenda para dizer um “vem que tem”, desse contingente o Brasil só terá notícia no cruzamento das grandes cidades onde provavelmente haverá mais idosos mendicantes, além de portadores de deficiência em cadeiras de roda implorando a caridade pública.

O pacote ainda inclui uma revisão da multa do FGTS para os demitidos sem justa causa, restrições ao Seguro Desemprego e, escrito com bom humor, também pretende limitar os super salários do funcionalismo público, o que inclui os do Judiciário.

A esquerda não foi bem nas eleições municipais, mas parece não precisar de oposição.

Notas:

1 BRASIL, MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO E ASSISTÊNCIA SOCIAL, FAMÍLIA E COMBATE À FOME, disponível em (https://www.mds.gov.br/webarquivos/assistencia_social/bpc/Perguntas%20Frequentes%20BPC.pdf)

2 Folha de São Paulo, Corte de R$ 25,9 bi prometido por Haddad prevê fim de brechas legais que impulsionaram benefícios” que foi publicado em 05 de julho de 2024 disponível em (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/07/corte-de-r-259-bi-prometido-por-haddad-preve-fim-de-brechas-legais-que-impulsionaram-beneficios.shtml)

3 Carta Capital Haddad defende rever ‘distorções’ no BPC e diz não se tratar de corte em gasto social, disponível em (https://www.cartacapital.com.br/economia/haddad-defende-rever-pagamentos-do-bpc-e-diz-nao-se-tratar-de-corte-em-gasto-social/)

 

A finalidade do trabalho, por Silvane Ortiz

0

Silvane Ortiz – A Terra é Redonda – 24/11/2024

O impacto do neoliberalismo na subjetividade do trabalhador, sob a lente de Ken Loach

“Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são finalmente forçados a encarar sem ilusões a sua posição social e suas relações com os outros homens.” (Marx e Engels. Manifesto do partido comunista).

As condições das relações de trabalho, mediadas e formalizadas pelo direito, sendo ele o organizador e possibilitador da manutenção das relações de produção vigentes em determinada formação social, são índices importantes acerca da conjuntura econômico-política. É possível se depreender muito do espírito de um tempo, quando analisamos as condições das relações laborais daquele período.

No filme Sorry We Missed You (2019) de Ken Loach, conhecido diretor de obras que aprofundam questões sociais candentes, tem-se retratado o panorama do avanço do neoliberalismo (pós-fordismo) em paulatina implantação no Reino Unido desde a década de 1980, com especial atenção aos efeitos deste quanto à degeneração das políticas de bem-estar social, surgidas no período pós-Segunda Guerra Mundial. A social-democracia do período, com seus laivos humanistas, também foi uma forma de contraponto ocidental ao socialismo em desenvolvimento, sobretudo na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Sendo, então, mais uma frente na disputa ideológica crescente, que veio a deflagrar os desdobramentos do período da guerra fria.

Na obra do cineasta britânico, temos um quadro do asselvajamento do atual modo de produção neoliberal. Jogando luz no que por vezes não percebemos, por se dar de forma contínua e gradual, o filme choca ao enfocar o contexto de degradação de uma família, colapsada em seus afetos, pela materialidade de sua condição econômica.

A verossimilhança ali presente causa desconforto por conta do reconhecimento que gera em quem acaba por se reconhecer nos abusos constantes perpetrados sob a tutela dos direitos, na reprodução da sociabilidade. Fazer com que essa relação seja estabelecida e que o encoberto pelo automatismo de sua reprodução seja visto às claras, pode ser um papel da arte, quando firmemente calcada na crítica social.

A crítica ao sujeito de direito, como organizador máximo das relações sociais sob o capitalismo, remonta ao fenômeno de contratualização liberal, onde funda-se a ideia de existência de uma igualdade subjetiva entre os sujeitos, baseada na liberdade contratual. Contudo, seu garantismo formal nunca conseguiu atrelar um conteúdo de igualdade material a essa subjetividade liberal.

Mesmo em momentos de estabilidade econômica, pressuposto crasso para manutenção da estabilidade político-social sob o capitalismo, a discrepância das condições econômico-sociais enfrentadas entre quem detém ou não capital é patente. E a balança jurídico-legal, por seu construto estrutural, é tencionada a pender na maioria das vezes para o mesmo lado.

Nessa formação social, onde granjeiam campo as relações sócio-produtivas do capitalismo neoliberal, há um enfraquecimento das políticas públicas e, por extensão, do próprio Estado. E em seu lugar, nesse movimento reacionário-liberal – dicotomia na abordagem de pautas de costumes e das relacionadas à economia – o mercado é alçado a mediador máximo destas relações. E, uma vez que a legislação protetiva encontra-se rebaixada, a dignidade tende a passar ao largo de todas as relações sociais.

A estrutura da sociedade capitalista é montada para a irrefreável produção de valor. E a relação que entrega esse almejado produto é aquela derivada da venda da mercadoria que todos dispõe, de forma inata, para participar do mercado perante a lei. A força de trabalho é a mercadoria que produz, de forma germinal, o (mais) valor. Assim sendo, com a decadência do balizamento estatal para a proteção da parte mais fraca – pois descapitalizada – dessa relação de produção, a exploração máxima e descomprometida é a concretude que vigora.

Afinal, sob o estágio neoliberal do capitalismo, o trabalhador é um livre prestador de serviço, que contrata em pé de igualdade com pequenas empresas ou megacorporações transnacionais.

No contexto brasileiro isso não é diferente. As constantes reformas que deformam a legislação trabalhista, em contraponto à imutabilidade dos instrumentos que codificam as relações civis, são sinais claros da deterioração das atuais condições sociais dos trabalhadores. Institutos como a Lei 13.874/19, da liberdade econômica e, sobretudo, a lei 13.467/2017, da reforma trabalhista, são pensados e implantados para fomentar o chamado empreendedorismo – quase sempre de si, desregulamentado as relações de trabalho.

Contudo, poucas são as discussões levadas a cabo para a garantia de condições dignas aos trabalhadores e, menos ainda, àqueles que se encontram à margem da proteção conferida pela CLT. A defesa de sua normatividade é, inclusive, tida por anacrônica por alguns analistas, por sua implantação ter se dado no auge do projeto de industrialização da Era Vargas, ainda amalgamado ao ideal de bem-estar social então vicejante.

Essa desconstituição paulatina dos direitos trabalhistas ganhou um novo capítulo com a recente apresentação do Projeto de Lei Complementar nº 12/24, para a regulação das atividades de motoristas por aplicativos. No PL apresentado pelo governo, tem-se replicado o conteúdo proposto pelos representantes das plataformas. O que, portanto, acaba por conferir chancela legal à precarização das condições destes trabalhadores, que ficam, assim, de pronto, reconhecidos como trabalhadores autônomos, abrindo margem para a crescente plataformização do trabalho.

Pois, uma vez reconhecida a inexistência de vínculo trabalhista entre motorista e plataforma, o que passa a subsistir é uma relação de intermediação, o que não guarda lastro na concretude da subordinação do trabalhador à plataforma. E isso configura mais um passo no caminho que vem sendo pavimentado para o esvaziamento da Justiça do Trabalho. Essa desfaçatez do caráter trabalhista de tais relações acabam por retirar de seu foro, lides de cunho evidentemente trabalhista.

Não à toa, com a insegurança gerada por relações de trabalho a cada dia mais instáveis e asselvajadas, as doenças emocionais são o mal que assola o nosso tempo – tempo esse absolutamente líquido, com jornadas sem início ou fim. Esse sujeito acelerado, progressivamente individualizado, quase convertido em pleno autômato, deixa de ver sentido nos laços que o conformam como ser social. E sem horizonte de mudança, não repara na absurdez de ter a vida centrada em relações sociais mediadas pela forma mercadoria (fôrma matriz) e suas derivações.

Estas relações tornam-se, então, assimiladas e são reproduzidas como a realidade da vida, o que acaba realizando o estulto mantra neoliberal de que a sociedade trata de uma ficção. O que passa a existir, concretamente, é o indivíduo e este sofre os sintomas de uma sociedade fantasmagórica.

O que se pode depreender dessa análise é que a real ficção resta na crença de que o ser humano, historicamente entendido como animal que somente prosperou como espécie por sua natureza social e mutualista, pode viver – vida aqui conceituada por um fazer-existir balizado para muito além de uma concepção de utilidade – em um sistema que tem por premissa estruturante a concorrência predatória entre os homens e sua predação concorrente sobre a natureza.

*Silvane Ortiz é graduanda na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Referências

ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão. São Paulo: Boitempo, 2018.

ANTUNES, Ricardo. Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

FAUSTINO, Deivison. LIPPOLD, Walter. Colonialismo Digital. São Paulo: Boitempo, 2023.

FISHER, Mark. Realismo Capitalista. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

KRENAK, Ailton. A Vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013.

SORRY we missed you. Direção: Ken Loach. Produção: Sixteen Films, France 2, Canal +, Le Films du Fleuve. Reino Unido. Le Pacte, Entertainment One. 2019. Amazon Prime.

 

Para onde caminha a humanidade? por Márcia Castro

0

Janela de oportunidade para a virada da chave climática ainda está aberta

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 23/11/2024

Nas últimas duas semanas, dois fóruns multilaterais, o G20 e a Conferência do Clima (COP 29), pautaram agendas sobre mudanças climáticas. No centro das discussões estava o apoio financeiro para que países em desenvolvimento implementem medidas de adaptação.

Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, publicado neste mês, mostra uma lacuna no atual financiamento concedido por países desenvolvidos para implementação de ações de adaptação em países em desenvolvimento.

A estimativa feita por um grupo de 130 países em desenvolvimento é que é necessário US$ 1,3 trilhão. A Declaração de Líderes de Rio de Janeiro ressalta a necessidade de aumentar o financiamento climático de bilhões para trilhões.

Entretanto, as negociações na COP29 não parecem chegar a um consenso, já que números propostos pelos países desenvolvidos giram em torno de US$ 200 a 300 bilhões.

A contradição entre documentos de dois fóruns multilaterais que ocorreram concomitantemente questiona o real compromisso ou capacidade de líderes em cumprir aquilo que assinam. Basta ver o Acordo de Paris.

Um relatório publicado neste mês mostra que, sem mudanças nas atuais metas climáticas, podemos chegar a um aumento de 2,7°C (em relação aos níveis pré-industriais) até 2100. Para que a meta de 1,5°C do Acordo de Paris seja alcançada, o Brasil precisa reduzir suas emissões em cerca de 85% abaixo dos níveis de 2005 até 2035.

Essa redução seria de 25% se não houvesse emissões associadas ao uso da terra e incêndios florestais. Fica nítida a importância da preservação ambiental.

A meta climática divulgada pelo governo brasileiro na COP29, entretanto, está abaixo do necessário. O governo propôs reduzir emissões entre 59% e 67% abaixo dos níveis de 2005 até 2035.

Além de metas climáticas abaixo do esperado, mudanças de liderança em nações podem reverter compromissos previamente assumidos. Não deveriam, afinal são questões que afetam toda a humanidade.

Por exemplo, com a eleição de Donald Trump nos EUA, participação na COP, mobilização em torno de metas climáticas e muito mais serão deixadas de lado. Essa postura não afetará apenas os Estados Unidos, mas todo o planeta, e pode levar outras nações a desacelerarem suas metas climáticas.

Em um cenário em que os EUA se ausentem das discussões (apesar de ser o segundo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo), União Europeia, China e Brasil precisam se unir e assumir a liderança.

A COP30 será em Belém, capital do Pará. Ainda não se sabe quem presidirá o evento.

Paira a dúvida de como Belém vai acomodar o número esperado de participantes (de 50 a 80 mil). Atualmente, a capacidade hoteleira da cidade é de pouco mais de 12 mil leitos.

Além disso, o Pará é o campeão de desmatamento e garimpo ilegal na Amazônia. E, em breve, Belém abrigará a maior refinaria de ouro do país, a North Star, cujos grandes acionistas são acusados ou já foram condenados por comércio ilegal de ouro, segundo reportagem do site Pará Terra Boa.

Incoerências gigantescas.

De nada adiantará mais um evento com “belos” discursos e acordos não cumpridos.

A janela de oportunidade para a virada da chave climática ainda está aberta. Mas o vento para fechá-la não para de soprar.

 

Jayati Ghosh: Como, agora, taxar os super-ricos?

0

 Proposta brasileira foi aprovada por consenso no G20. E agora? Haverá fuga de capitais? E os paraísos fiscais? Como enfrentar declarações fraudulentas? Economista indiana explica os mecanismos para tributar, e redistribuir, 250 bilhões de dólares ao ano

Entrevista à Andy Robinson, OUTRAS MÍDIAS, 22/11/2024

A cúpula do G20, que se realizada nos dias 18 e 19 de novembro sob a presidência brasileira no Rio de Janeiro, está prestes a chegar a um consenso sobre uma proposta ousada de aplicação de um imposto sobre a riqueza ou o rendimento dos chamados “super ricos” do planeta, uma das prioridades do Governo Lula. Se isto acontecer, os Estados poderão ter entre 200 e 250 bilhões de dólares em rendimentos adicionais em todo o mundo. Neste momento, como destacou Lula no seu discurso no início da cúpula, 3 mil pessoas têm uma riqueza superior a 13 bilhões de dólares – mais do que o PIB agregado da América e da América Latina – enquanto 733 milhões de pessoas passam fome. Apenas um dos 19 países reunidos esta semana se opõe à proposta: a Argentina, cujo presidente, Javier Milei, chegou ao Rio após participar do banquete oferecido por Donald Trump em sua residência em Mar-a-Lago, em Palm Beach, para comemorar sua vitória e em que foi fotografado com o apresentador e com o homem mais rico do mundo, Elon Musk.

Nesta entrevista, realizada no mês passado em Washington, a economista Jayati Ghosh, uma das promotoras da ideia do imposto para os super-ricos, explica porque é necessário e como seria concebido. Nascida na Índia em 1955, Ghosh é uma especialista em desenvolvimento da escola heterodoxa, que após 35 anos na Universidade Jawaharlal Nehru, em Deli, ingressou no departamento iconoclasta de Ciências Econômicas da Universidade de Amherst, em Massachusetts, juntamente com Bob Pollin e Isabella Weber.

Eis a entrevista

Como você definiria o termo super rico?

Pois bem, Gabriel Zucman, da Escola de Economia de Paris, que elaborou o relatório sobre o imposto para o G20 no Brasil, propôs aplicá-lo aos bilionários. Mas existem apenas 3 mil bilionários em todo o mundo. Então eu diria que seria para pessoas com 70 ou 50 milhões. Estamos falando de pessoas muito, muito, muito ricas.

Quantos impostos os super-ricos pagam?

Menos que nós. Jeff Bezos, por exemplo, não paga um centavo de imposto de renda. Todos os super-ricos têm consultores fiscais e contabilísticos que os aconselham a contrair dívidas de consumo para pagar juros dedutíveis de impostos e registrar perdas. Deixe-os declarar ganhos de capital não realizados. Então eles não pagam impostos. Existem estudos rigorosos sobre o assunto nos EUA, Canadá e França. E, para os super-ricos, verifica-se que a taxa média de imposto está entre zero e 0,5%. Compare isso com os impostos que você e eu pagamos.

O imposto sobre os super-ricos seria cobrado em cada país separadamente, certo?

Sim. Seriam impostos totalmente nacionais. Temos que gerar nossos próprios recursos fiscais. Os governos de todo o mundo precisam desesperadamente deles. Especialmente países em desenvolvimento como o meu, onde a desigualdade é obscena. Precisamos dele para a proteção social, para o desenvolvimento, para as alterações climáticas. Para tudo. E sabemos que a riqueza, o patrimônio, está distribuído de forma extremamente desigual, ainda mais que o rendimento.

Os bilionários já estão entrando diretamente no poder político.

Sim. A riqueza vem com o poder. Uma vez rico, você terá muito poder para o bem social e econômico. Você pode influenciar governos, comprar uma plataforma de mídia porque gosta da ideia e depois mudá-la da maneira que desejar. Você pode voar para a lua se quiser. Isso é muito poder. Portanto, temos de moderar esse excesso de poder que provém do excesso de riqueza.

Como se explica o aumento da riqueza dos super-ricos?

Nada justifica este excesso de riqueza. Não é resultado da produtividade, mas sim das instituições que criamos. E a razão pela qual a situação está piorando é que os super-ricos podem influenciar essas mesmas instituições para as mudarem a seu gosto. Portanto, por muitas razões, um imposto sobre a riqueza é muito importante.

Há muito apoio à proposta?

É enorme. Houve uma pesquisa do Clube de Roma, do qual sou membro. Fizemos um estudo com a Gallup e 68% das pessoas entrevistadas em 17 países da OCDE apoiam um imposto sobre os super-ricos. Apenas 11% acham que é uma má ideia. Na Índia, o apoio foi de 80% porque temos níveis francamente obscenos de desigualdade de riqueza.

Então qual é a ideia?

Cada super-rico deveria pagar um mínimo de 2% de sua riqueza como impostos. Isso não significa que seja um imposto sobre a riqueza. Pode ser tributado sobre rendimentos de dividendos ou sobre algum outro ganho de capital não realizado. Como tributamos não importa. Quer dizer, existem diferentes maneiras de fazer isso, em diferentes contextos. O FMI acredita que é melhor tributar o rendimento do capital do que a riqueza. E não tenho nenhum problema com isso. A questão principal é que os super-ricos devem pagar 2% dos seus ativos. O economista francês Gabriel Zucman afirmou isso no relatório que preparou para o governo brasileiro visando a sua presidência do G20. Faz parte da agenda brasileira do G20.

Existe algum precedente?

Sim. A ideia é a mesma da taxa mínima de imposto sobre as sociedades de 15% que foi aprovada na OCDE. Isto serve para contrariar o truque empresarial de transferir os lucros das multinacionais para paraísos fiscais. Você sabe, quando, por exemplo, o Google diz ao governo espanhol: “Sinto muito. Eu não gero nenhum lucro em seu país. Tenho que pagar royalties sobre a propriedade intelectual e isso vai para a Irlanda. É uma pena, mas não posso pagar impostos aqui.” E a Irlanda tem uma taxa de imposto muito baixa, apenas 12,5%. É a famosa tática. Mas com o novo plano adotado pela OCDE, o país onde essa empresa opera pode dizer: “Tudo bem, mas se pagar apenas 12,5% na Irlanda, vamos tributar-lhe os restantes 2,5% aqui”.

E o mesmo sistema se aplicaria a indivíduos com alto patrimônio líquido e às empresas, correto?

Sim. É a mesma ideia aplicada aos indivíduos. Ou seja, o princípio deste imposto mínimo foi aceito pela OCDE para as empresas. Também deve ser feito para pessoas super ricas.

Como isso seria aplicado aos indivíduos?

A ideia é esta: que cada país aplique um imposto mínimo de 2% sobre a riqueza dos super-ricos. Se disserem que todo o seu dinheiro está nas Ilhas Cayman, bem, o país onde você reside diz: “Mas você não está pagando nenhum imposto nas Ilhas Cayman, então, de acordo com os novos regulamentos, posso tributar 2% de seus ativos.”

Não haveria problemas com mudanças e fuga de capitais?

Não, porque o Zucman tem outra ideia, que acho muito boa. É verdade que você costuma fazer isso e todo mundo ameaça se mudar. Está ocorrendo na Inglaterra neste momento com o fim do regime “non dom” (residentes temporários). Portanto, Zucman propõe um imposto de saída com base no tempo de permanência no país e na quantidade de riqueza que acumulou enquanto esteve nesse país. Em outras palavras, os super-ricos têm que pagar mesmo que saiam do país.

Mas como seria aplicado um imposto de saída?

Vejamos o caso de Gérard Depardieu. Você se lembra que em 2012 ele se mudou para a Bélgica porque achava que a taxa de imposto francesa era muito alta? Na medida em que ainda tenha alguns negócios em França, essa taxa de partida seria aplicada se quisesse regressar a Paris, por exemplo, para jantar. Antes de regressar à Bélgica, teria de pagar.

Como é que o G20 vai implementar isto?

Já sabe que as cúpulas do G20 são locais onde as pessoas mais falam do que agem. E tudo bem porque é melhor conversar do que ir para a guerra. Mas isso não leva necessariamente a nada. No entanto, o que aconteceu globalmente é que ocorreram duas grandes mudanças. Uma delas foi em 2016, quando conseguimos a troca automática de informações bancárias. 142 países assinaram. Todas as informações bancárias são trocadas automaticamente entre jurisdições fiscais. Muitos paraísos fiscais ficaram de fora; Os Estados Unidos ficaram de fora. Mas isso é o suficiente para começar.

Qual é a outra mudança?

Conseguimos, graças à União Africana, um acordo para criar uma convenção fiscal da ONU. O que é uma grande conquista. Sim. Isso não significa que todos os países terão de implementar os mesmos impostos. Estabelecer apenas os princípios nos quais as leis fiscais podem se basear. Então é uma espécie de harmonização. A transferência de lucros e tudo isso vai ficar muito mais difícil. São avanços muito importantes.

O que resta fazer?

São grandes avanços e o imposto para os super-ricos será outro. Mas os super-ricos não tendem a guardar dinheiro em seus próprios nomes. Eles usam relações de confiança. Portanto, precisamos de registros de ativos que identifiquem os proprietários beneficiários de todos os trustes. Normalmente, o truste é controlado por seu contador ou advogado. A UE introduziu esse regulamento, onde é necessário identificar o beneficiário efetivo. O problema é que eles não compartilham as informações com outras pessoas. Assim, se um bilionário na Índia tiver um truste, a UE poderá saber quem é o beneficiário efetivo. Mas o governo indiano não saberá. Precisamos compartilhar. Cada país deve fazer este registro de ativos e depois partilhar essa informação. Se as pessoas soubessem, exigiriam isso. Não há barulho suficiente sobre isso. Deve ser melhor comunicado. E este é o trabalho de meios de comunicação como o seu.

 

China X EUA

0

Neste espaço, analisamos algumas das grandes transformações da sociedade internacional, destacando as mudanças nos modelos de negócios, transformações motivadas pelos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, modificações no mundo do trabalho e as grandes agitações da lógica geopolítica, onde encontramos um novo confronto entre duas grandes nações, ambas vislumbrando a hegemonia do século XXI, buscando o domínio das estruturas econômicas e políticas. Neste novo século, encontramos uma rivalidade crescente entre os Estados Unidos e a China, deste conflito perceberemos o nascimento de uma nova sociedade global.

A hegemonia norte-americana foi incontestável no período pós segunda guerra mundial, onde os Estados Unidos liderou a recuperação da economia internacional, injetando bilhões de dólares nas estruturas econômicas ocidentais, exportando seu modelo produtivo, levando suas empresas para todas as regiões do mundo, internacionalizando seus valores centrados na concorrência, no individualismo e no imediatismo, liderando a construção de organizações multilaterais, tais como o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, além de outras agências mundiais e impondo à sociedade global a sua moeda como o instrumento monetário e financeiro, transformando o dólar na moeda mais importante do mundo, responsável pelos fluxos comerciais e financeiros globais, garantindo para os Estados Unidos um privilégio exorbitante.

Nos anos 1980, a sociedade chinesa começa um processo de reestruturação interna, abertura econômica, centralização política, com forte planejamento do Estado Nacional, com grandes estímulos nos setores exportadores, centrados em políticas industriais ativas, atraindo interesses estrangeiros e exigindo a transferência de tecnologias para reestruturar os seus modelos econômicas e produtivos, ao mesmo tempo, o governo nacional incrementou os investimentos em educação, pesquisa científica e o desenvolvimento de novas tecnologias, copiando produtos, aprendendo modelos e aprimorando setores econômicos, ganhando mercados externos, com fortes estímulos fiscais e financeiros, levando a economia chinesa a crescer de forma acelerada e se transformando na indústria do mundo.

Na contemporaneidade, percebemos o embate entre dois grandes atores econômicos globais. A China se transformou na indústria do mundo, detentora de grandes tecnologias, retirando mais de 800 milhões de pessoas da indigência, um recorde global, além de criar empresas transnacionais que crescem de forma acelerada e é vista como uma nação marcada por grande disciplina, flexibilidade, autoconhecimento e grande capacidade de transformação nacional. Do outro lado, encontramos uma nação dividida, com forte crescimento das desigualdades, dotada de grande potencial bélico e militar, forte desenvolvimento tecnológico, detentora da moeda mais importante das finanças globais, que vem recorrendo ao protecionismo comercial como forma de evitar o crescimento do grande rival global e evitando a perda de espaço na economia internacional.

Neste ambiente de confrontos geopolíticos, o Brasil precisa compreender a importância de adotarmos uma política externa pragmática, flexível e responsável, fortalecendo a autonomia nacional e consolidando sua soberania política, conversando com todos as nações, negociando com todos os atores internacionais, fortalecendo seu setor industrial, participando dos fóruns globais, exigindo transferências de tecnologias, atraindo grandes empresas estrangeiras em parceria com conglomerados nacionais, fortalecendo a política industrial, incrementando os investimentos em educação, saúde, pesquisa e desenvolvimento tecnológico, reduzindo a dependência externa e fortalecendo setores inovadores e que apresentam grande potencial de desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

Golpismo bolsonarista vem dos porões da ditadura, por Marcos Augusto Gonçalves

0

Golpismo bolsonarista vem dos porões da ditadura

Tramas reveladas pela PF expõem necessidade de cordão de isolamento entre a política e as Forças Armadas

Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha.

Folha de São Paulo, 22/11/2024

As investigações da Polícia Federal acerca das tramas golpistas no entorno de Jair Bolsonaro vão confirmando o que já se sabia: o ex-presidente é um filhote dos porões da ditadura militar, discípulo e admirador de Carlos Brilhante Ustra e da facção de torturadores e fanáticos que viviam nos subterrâneos tenebrosos do regime e acabaram derrotados durante seu processo de decadência.

Mentiroso contumaz, sádico e inimigo da democracia, Bolsonaro foi acusado de indisciplina em campanhas por grupos salariais no Exército e de tramar explosões de bombas para desestabilizar os comandos. Foi considerado culpado por uma junta de três coronéis e depois absolvido por 8 a 4 pelo Superior Tribunal Militar, numa decisão acochambrada, que antecedeu sua saída da Força.

Beneficiando-se de medidas judiciais heterodoxas da Lava Jato, que levaram seu maior rival à prisão, Bolsonaro cresceu num momento internacional de turbulências em democracias. Contou com o apoio de elites econômicas de visão curta, quando não apenas chucras e irresponsáveis, e de uma classe média indignada com a corrupção e com o sistema político. Ganhou ainda o voto de uma massa de “batalhadores”, além de pobres desesperançados, entorpecidos pela mistificação religiosa e pelo moralismo evangélico reacionário.

Com sua experiência de ativista incendiário, Bolsonaro promoveu comícios e alastrou a politização na caserna, sob a sombra cúmplice de figuras sinistras como o general Eduardo Villas-Bôas. Seu partido usava farda.

Visto inicialmente com simpatia por setores expressivos da mídia, que acreditaram numa hipotética revolução liberal na economia a ser liderada pelo mitômano (o termo é de Persio Arida) Paulo Guedes, o ex-capitão não demorou muito a mostrar os dentes, que, aliás, já havia exibido, mas se fingia que não morderiam.

Conhece-se bem o que se passou a viver no Brasil, um vendaval a cada semana. O governo desmontou os mecanismos de proteção ambiental, apostou contra a crise climática e as vacinas, passou a atacar a imprensa, com sua característica perversão misógina, e a solapar a lógica da democracia. O ministério, um horripilante trem fantasma, contava com um general da ativa, Eduardo Pazuello, na Saúde.

Como nunca se viu desde a ditadura, a ocupação de cargos públicos por militares e policiais disparou. Ao mesmo tempo, surgiam as relações com milicianos e apostava-se no armamentismo.

Às primeiras evidências de fracasso político, Bolsonaro entregou a chave do cofre para o centrão e tratou de investir contra as instituições que poderiam certificar uma já factível derrota eleitoral. Tramava-se contra o Estado de Direito, golpistas acampavam diante de quartéis acolhedores, e a urna eletrônica era apedrejada todo dia. Um resultado negativo seria visto como fraude.

A conspiração dos nostálgicos dos porões, que arrastou beócios extremistas à “festa de Selma”, continua se revelando ao país. O complô, que incluía até planos de assassinatos de autoridades, não contava com a maioria da cúpula militar, mas nada pode ser visto como fato isolado. É preciso de uma vez por todas estabelecer um cordão de isolamento entre a política e as Forças Armadas. E revisar na Carta o artigo 142, que só fomenta pretensões fantasiosas na caserna.

Donald Trump e o sistema mundial, por José Luís Fiori

0

José Luís Fiori – A Terra é Redonda – 21/11/2024

Se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja ponto de partida de uma nova corrida armamentista dentro da própria Europa e entre os EUA e a Rússia

A maioria dos analistas está de acordo que o fracasso internacional do governo de Joe Biden teve um papel importante na vitória de Donald Trump, nas eleições do dia 5 de novembro de 2024. Com destaque para a humilhante retirada americana do Afeganistão; para o fracasso da OTAN na Guerra da Ucrânia; ou finalmente, para a ambiguidade dos EUA frente ao genocídio israelense da Faixa de Gaza, dividido entre seus apelos humanitários, e o fornecimento direto das armas, do dinheiro e das informações utilizadas pelo governo de Israel no bombardeio da população palestina.

Neste momento ainda não se pode saber se a reeleição de Donald Trump será apenas uma rodada a mais da “gangorra” política americana. Desta vez, entretanto, Donald Trump não pode reeleger-se e terá um mandato de apenas quatro anos, mas ao mesmo tempo contará com uma maioria conservadora no Congresso, no Senado e na Corte Suprema, e disporá de uma equipe de auxiliares homogênea. O que lhe permitirá, em princípio, levar à frente, de forma rápida e imediata, a sua “agenda nacional”. Mas na área internacional, entretanto, o horizonte é menos claro.

Neste campo a consigna básica de Donald Trump foi sempre a mesma: “a paz através da força”, e não pela guerra. Mas, além disso, o projeto internacional de Donald Trump abre mão da “excepcionalidade moral” dos EUA, e adota o “interesse nacional americano” como a única referência de todas as suas escolhas, decisões e alianças que poderão variar através do tempo. Seguindo-se daí o ataque de Donald Trump contra todas as instituições multilaterais, e contra todos os acordos e regimes comerciais, ou associados com a “questão climática” e a “transição energética”.

As “políticas internas” de Donald Trump envolvem decisões soberanas e autônomas, e poderão ser tomadas sem maiores consultas a outros países e governos. Mas no caso da agenda internacional do novo governo, o problema é muito mais complexo, porque envolve acordos passados dos EUA, e se enfrenta com a vontade soberana de outros países, e de outras Grandes Potencias, como no caso da China, do Irã, da Rússia, ou mesmo dos seus aliados da OTAN.

Com relação à China, é muito provável que Donald Trump consiga negociar acordos comerciais e tecnológicos pontuais. Mas a competição e o atrito entre os dois países deve se manter e aumentar de intensidade nos próximos anos. Até porque a China já foi definida pelos estrategos americanos, já faz algum tempo, como principal competidor e a principal ameaça aos Estados Unidos, no Século XXI. Nesse campo se pode falar inclusive de um consenso bipartidário, entre democratas e republicanos, com diferenças apenas de gradação e intensidade. De fato, o governo de Joe Biden manteve a mesma política protecionista contra China do primeiro governo de Donald Trump.

Com a diferença que agora a China se encontra melhor preparada e não será surpreendida como aconteceu no primeiro governo Trump. Além disto, nestes anos recentes a China aprofundou sua relação econômica com seus vizinhos asiáticos, e com os países africanos e latino-americanos. E desde o início da Guerra da Ucrânia, em 2021, os chineses estreitaram seus laços econômicos e sua aliança estratégica com a Rússia, fechando a porta para qualquer tentativa de repetir a estratégia de Henry Kissinger, do século passado, só que agora invertendo os papéis da China e da Rússia.

Por tudo isto, o mais provável durante o segundo mandato de Donald Trump, é que as relações entre as duas potências sigam regidas pela “armadilha de Tucídides”, com uma aceleração sem precedentes da sua competição tecnológica e militar, com a universalização de sua “guerra comercial”, incluindo-se a possibilidade anunciada por Donald Trump, de punição dos países que não utilizem o dólar em suas transações internacionais, em particular no caso do grupo do BRICS.

No caso do Oriente Médio, também, são muito pequenas as diferenças entre as posições dos democratas e dos republicanos. Donald Trump deve inclusive aumentar o apoio do governo norte-americano à Israel e às suas guerras em Gaza e no Líbano. E deve aumentar a política de “pressão máxima” contra o Irã. Mas neste seu segundo mandato Donald Trump deve encontrar no Oriente Médio uma realidade militar e política muito diferente da que existia no seu primeiro mandato, sobretudo depois do sucesso dos dois ataques militares diretos do Irã contra a território israelense, da ruptura radical da Turquia com Israel, e da reaproximação entre o Irã e a Arábia Saudita, promovida pela China e abençoada pela Rússia.

Por isto qualquer acordo de cessar-fogo imediato que possa ser logrado não significará que Israel e o Irã suspendam a sua disputa de longo prazo, que é do tipo “soma zero”. A hipótese dos “dois estados” parece completamente afastada e a resistência dos palestinos deve prosseguir, assim como a ameaça permanente de uma guerra entre os persas e os judeus com a possibilidade de transformar-se num conflito generalizada dentro do Oriente Médio.

Já na Europa o panorama é completamente diferente, e existe uma oposição radical entre o posicionamento dos democratas e o dos republicanos. Neste caso, a simples vitória eleitoral de Donald Trump, junto com a implosão do governo alemão de Olaf Scholz, provocaram de imediato, um profundo abalo e uma primeira divisão dentro do bloco belicista liderado pela presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e por sua nova Chefe de Política Externa, Kaja Kallas, e apoiado pelo governo Biden, pela francês Emmanuel Macron, e pelo governo do primeiro-ministro inglês, Keir Stramer.

Ainda não está excluída a hipótese de que esta “coalisão russofóbica” se lance num ataque suicida contra a Rússia, antes da posse de Donald Trump. Mas o mais provável agora é que se iniciem de imediato as negociações de paz, com o reconhecimento implícito por parte dos EUA da vitória militar russa. Mas também aqui não há que ter ilusões. Depois de sua vitória militar e econômica os russos não aceitarão mais o mundo unipolar tutelado pelos EUA. E o mais provável é que os EUA e a Inglaterra, junto com seus aliados europeus sigam se armando contra a Rússia, o grande “inimigo externo” que serviu como uma espécie de “princípio organizador estratégico” das potências ocidentais, e em particular da Inglaterra durante todo o Século XIX e dos EUA, no Século XX.

Se este “inimigo necessário” desaparecesse os EUA e a Inglaterra teriam que sucatear parte importante de sua infraestrutura militar global, construída com o objetivo de conter o “expansionismo russo”, envolvendo um investimento gigantesco em armas e em todo tipo de recursos materiais e humanos, civis, militares e paramilitares. E a OTAN, em particular, perderia sua razão de ser levando de roldão a estrutura de poder atual da União Europeia.

Por isto, se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja também o ponto de partida de uma nova corrida armamentista, cada vez mais intensa, dentro da própria Europa, e obviamente, entre os EUA e a Rússia, com repercussões em cadeia, em todas as direções e latitudes do sistema mundial.

Por fim, os países periféricos da América Latina e da África não têm a menor importância dentro do projeto internacional de Donald Trump, que supõe sua submissão pura e simples ao poderia monetário e econômico dos EUA. E neste caso, é muito provável que se repita o que passou na década de 80 do século passado, quando a periferia capitalista foi submetida e/ou derrotada pela política econômica norte-americana do “dólar forte” e do “keynesianismo militar’ de Ronald Reagan, sendo depois “resgatadas” pelas políticas e reformas neoliberais” impostas pelos “programas de ajuste” do FMI.

Só que agora o enquadramento e submissão dos Estados e das economias endividadas da América Latina e África deverá acontecer como derivação ou consequência indireta do novo “protecionismo econômico” anunciado por Donald Trump. Seu efeito imediato deverá ser o aumento da inflação e dos juros dentro dos EUA, e este aumento dos juros deverá provocar uma desvalorização generalizada das demais moedas nacionais, com aumento da dívida externa dos países endividados em dólares, junto com o aumento das suas taxas de inflação, paralisia fiscal dos seus estados e estagnação de suas economias. E no fim, a volta e a submissão provável ao FMI, como no caso patético da Argentina de. Javier Milei.

Resumindo, portanto, o que se deve esperar no campo internacional para os próximos quatro anos da administração Trump: os Estados Unidos abdicam do projeto de universalização messiânica dos seus valores nacionais, e deixam de ser os “Cavaleiros Templários” de uma “ordem mundial regida por regras”. E se propõem atuar dentro do Sistema Mundial a partir exclusivamente dos seus “interesses nacionais” utilizando-se da sua força bruta, financeira, tecnológica e militar para impor sua vontade onde considere que seja necessário. Com um apelo, só em última instância, ao recurso da guerra.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Uma teoria do poder global (Vozes)

 

Por que a guerra comercial de Trump causará caos, por Martin Wolf

0

Tarifas, especialmente sobre um país, levarão a uma bagunça econômica e política desastrosa

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 19/11/2024

Donald Trump deve ser levado ao pé da letra ou a sério? Salena Zito ofereceu essas alternativas em uma coluna no The Atlantic publicada em setembro de 2016. Hoje, antes de ele obter poder pela segunda vez, Trump deve ser levado mais a sério e mais literalmente do que da última vez.

As evidências vêm de suas nomeações, notavelmente Robert F. Kennedy Jr na saúde, Pete Hegseth na Defesa, Tulsi Gabbard na Inteligência nacional e Matt Gaetz na justiça. Essas pessoas mostram que Trump será muito mais radical. Além disso, a política comercial há muito é a área em que ele deve ser levado tanto a sério quanto literalmente; o protecionismo não é apenas uma crença pessoal de longa data, mas uma à qual ele já estava dedicado da última vez.

Infelizmente, o fato de que Trump precisa ser levado ao pé da letra e a sério não significa que ele (ou aqueles ao seu redor) entendam a economia do comércio. Se ele está disposto a acreditar nas bobagens “anti-vacina” de Kennedy, por que se importaria com o que os economistas pensam sobre isso?

Ele comete dois grandes erros: primeiro, não tem noção de vantagem comparativa; segundo e pior, não entende que o saldo comercial é determinado pela oferta e demanda agregadas, não pela soma dos saldos bilaterais. É por isso que sua guerra tarifária não reduzirá os déficits comerciais dos Estados Unidos. Pelo contrário, especialmente no contexto atual, é mais provável que leve à inflação, conflito com o Federal Reserve e perda de confiança no dólar.

Se alguém quer produzir mais de algo —substitutos de importação, por exemplo, como Trump deseja— os recursos devem vir de algum lugar. As perguntas são “de onde?” e “como?”. A resposta pode ser “das exportações, via um dólar mais forte”, já que as tarifas reduzem a demanda por moeda estrangeira, com a qual se compram importações. Dessa forma, um imposto sobre importações acaba sendo um imposto sobre exportações. O saldo comercial não melhorará.

Fundamentalmente, a macroeconomia sempre vence, como Richard Baldwin do IMD em Lausanne nos lembra em uma nota para o Peterson Institute for International Economics. O saldo comercial é a diferença entre rendas e gastos agregados (ou poupança e investimento). Enquanto isso não mudar, o saldo comercial também não mudará.

Os EUA têm gasto consideravelmente mais do que sua renda há muito tempo. Isso é mostrado no fornecimento líquido consistente de poupança estrangeira, que em média foi de 3,9% do PIB, entre o segundo trimestre de 2021 e 2024. Assim, os setores domésticos devem, em conjunto, ter registrado déficits correspondentes.

De fato, o superávit de poupança sobre investimento no setor doméstico foi em média de 2,3% do PIB e no setor corporativo de 0,5%. Em suma, apenas o governo registrou um déficit, que em média foi de enormes 6,7% do PIB. Se alguém quer eliminar os déficits externos, os setores domésticos devem ajustar-se na direção oposta, em direção a superávits maiores de poupança, com o maior ajuste certamente vindo desses enormes déficits fiscais.

No entanto, como Olivier Blanchard observa em outro artigo para o Peterson Institute, Trump prometeu estender os cortes de impostos promulgados em 2017. Além disso, ele sugeriu que os benefícios da Seguridade Social e gorjetas se tornem totalmente não tributáveis, que as deduções de impostos estaduais e locais sejam aumentadas, e que a taxa de imposto corporativo, que foi reduzida de 35% para 21% em 2017, seja ainda mais diminuída para 15% para empresas de manufatura. Ele também sugeriu a deportação em massa de cerca de 11 milhões de imigrantes indocumentados.

Em resumo, ele planeja reduzir a oferta e estimular a demanda. Isso piorará o saldo comercial, não o melhorará. Além disso, também criará pressão inflacionária, que o FED terá que reprimir. Enquanto isso, a dívida federal continuará em seu caminho explosivo, talvez ameaçando a confiança no próprio dólar.

Em suma, não há possibilidade de reduzir o déficit comercial geral com as políticas que Trump propõe. Reduzir o déficit bilateral com a China apenas aumentaria os déficits com outros. Isso é inevitável, dadas as pressões macroeconômicas persistentes. Além disso, suas políticas comerciais discriminatórias, com tarifas de 60% sobre a China e de 10% a 20% sobre outros, estão destinadas a se espalhar.

Trump e seus funcionários verão que as exportações de outros países estão substituindo as da China via transbordo, montagem em outros países ou competição direta. As respostas serão ou a imposição de “regras de origem”, com toda a burocracia que isso requer, ou um aumento nas tarifas para 60% sobre todas as importações de manufaturados. Enquanto isso, sem dúvida, também haverá retaliação.

Tal disseminação de altas tarifas nos EUA e em todo o mundo provavelmente levará a um rápido declínio no comércio e na produção mundial. O Instituto Nacional de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido prevê: “Cumulativamente, o PIB real dos EUA pode ser até 4% menor do que seria sem a imposição de tarifas.”

Meu palpite é que isso é muito otimista, dada a incerteza que também seria desencadeada. No entanto, mesmo assim, os déficits externos dos EUA podem não encolher. Isso dependeria de se os gastos caíssem ainda mais do que a produção. Se isso acontecesse, o saldo comercial melhoraria. Mas isso também significaria uma recessão profunda.

Na semana passada, apontei que a política comercial é muito improvável de reverter o declínio de longo prazo na participação de empregos na manufatura dos EUA.

Esta semana, acrescento que tarifas não apoiadas por uma redução nos gastos agregados em relação à produção não eliminarão déficits externos. Tarifas sozinhas, especialmente tarifas discriminatórias sobre um país, apenas causarão uma bagunça econômica e política, à medida que se espalham como ervas daninhas pelo globo.

Quando o rei Canuto da Inglaterra supostamente se sentou diante da maré que subia, ele o fez para provar que não podia comandar o mar. Donald Trump acredita que pode. Ele ficará desapontado. E, infelizmente, nós também.

 

 

Efeitos dos eventos climáticos nas grandes cidades, por Carlos Nobre.

0

Ilhas de calor urbanas podem ampliar em até 10°C a temperatura nessas áreas

Carlos Nobre, Climatologista, é pesquisador sênior pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e copresidente do Painel Científico para a Amazônia; foi eleito em maio de 2022 membro estrangeiro da Royal Society

Folha de São Paulo, 19/11/2024

As cidades brasileiras são resilientes aos eventos climáticos extremos? Os eventos extremos tropicais são cada vez mais frequentes e trazem às cidades distúrbios diversos, como chuvas excessivas, alagamentos, rajadas de vento, raios e ondas de calor, com forte impacto nas pessoas e na economia local. Uma realidade que exige adaptações das cidades, especialmente nas áreas urbanas e superpopulosas, onde os eventos vêm causando grandes desastres.

A Organização Meteorológica Mundial mostra que desastres naturais nos últimos 50 anos somaram 11 mil eventos, somando US$ 3,5 trilhões de prejuízo e 91% da mortalidade nos países em desenvolvimento. Entre outras características, a resiliência climática de uma cidade pode ser enquadrada como a quebra dos seus serviços de segurança hídrica e de regulação térmica.

A ilha de calor urbana é um fenômeno notado globalmente, com ampliação de temperatura nas áreas urbanizadas em escalas de até 10ºC, com maior ênfase nas grandes cidades. Municípios como São Paulo, superpopulosos, absorvem energia radiativa atmosférica muito superior à de áreas com vegetação.

Os fatores urbanísticos que mais reduzem as mortes e doenças decorrentes do calor urbano excessivo são a utilização de ar refrigerado e pronunciada vegetação próxima às habitações. Porém, essas condições não prevalecem em cidades como São Paulo, que está dominantemente coberta por edifícios e asfalto, com pouca vegetação e utilização de ar condicionado restrita às classes de maior renda.

As condições de eventos climáticos extremos são chuvas prolongadas ou tempestades intensas associadas com fortes rajadas de vento e descargas elétricas. Essas tempestades, que em São Paulo geram 700 mil raios por ano, são justamente estimuladas nas áreas urbanizadas devido ao aquecimento local, e respondem por 80% dos danos à rede de eletricidade.

As estatísticas dos extremos climáticos nas cidades só crescem e o risco tende a ser agravado no futuro. Isso por conta do crescente aumento da população nas áreas urbanas, do aumento da probabilidade de ocorrências, e da maior vulnerabilidade da população, seja pelo seu envelhecimento ou pelo adensamento populacional crescente em regiões de baixa renda.

Cidades consideradas resilientes são pouco penalizadas pelos grandes distúrbios atmosféricos porque, ao terem clareza de seus impactos, se preparam para enfrentá-los. No Brasil, ainda não dispomos desse preparo, que depende de soluções que envolvem planejamento urbano de médio e longo prazos de caráter sustentável, como as interferências de infraestrutura verde, que possam reter mais a água em áreas verdes, sejam elas públicas, privadas ou vegetação viária.

Essas interferências associadas ao incremento e adensamento da vegetação têm efeito na redução da temperatura e, por consequência, na redução de eventos extremos.

 

A miséria da política no Brasil neoliberal, por Giovanni Alves

0

Giovanni Alves – A Terra é Redonda – 14/11/2024

Trechos, selecionados pelo autor, da introdução do livro recém-lançado

A miséria da política no Brasil neoliberal

O objetivo do livro O Estado neoliberal no Brasil: Uma tragédia histórica é explicar a gênese, afirmação e consolidação do Estado capitalista neoliberal no Brasil, uma estrutura política que impede a nação de oferecer respostas efetivas à crise de civilização que a aflige. Esse modelo de Estado é incapaz de combater a desigualdade social, construir um projeto de nação livre e soberana e enfrentar de maneira eficaz os desafios das transições climática, demográfica e epidemiológica, que devem convulsionar a sociedade brasileira nas próximas décadas. Esta é uma verdade inegável.

Na Parte 1, apresento importantes conceitos da teoria política marxista que explicam a miséria política brasileira, responsável pelo colapso da Nova República e pela consolidação do poder da oligarquia financeira – a fração de classe que organiza o bloco no poder do Estado neoliberal no Brasil.

A Parte 2 trata dos sistemas que sustentam o Estado neoliberal no Brasil: o sistema da oligarquia financeira, o sistema de superexploração do trabalho e o sistema de produção da ignorância cultural no país. Por fim, elaboro uma reflexão sobre a construção da sociedade civil neoliberal, a base da hegemonia burguesa que mantém o poder dominante.

O Estado neoliberal é o Estado político do capital na fase do capitalismo global. Como país de capitalismo dependente e subalterno à mundialização do capital, o Estado neoliberal se reproduziu no Brasil com base histórica no Estado oligárquico-burguês, fortalecido e perpetuado pela ditadura civil-militar (1964-1984).

A perpetuação do Estado oligárquico-burguês é secular, refletindo historicamente o poder social das classes dominantes brasileiras: (i) o patronato agrário-industrial, financeiro-rentista parasitário e comercial; e (ii) o patriciado estatal (político-militar e tecnocrático) e civil (eminências, lideranças e celebridades). Como aliados históricos das classes dominantes, temos os setores intermédios (autônomos e dependentes). [1]

No campo da disputa ideológica e política pela sustentação da forma de Estado oligárquico-burguês neoliberal, temos as classes subalternas (operariado, assalariados de serviços e campesinato) e as classes oprimidas (os miseráveis ou a ralé). Como nunca tivemos uma revolução social no Brasil, o poder da oligarquia proprietária e das camadas patriciais se enrijeceu na estrutura material do Estado brasileiro, sendo reproduzido secularmente pelo modo politicista de fazer história no Brasil (negociação, clientelismo, conciliação).

Desde a Independência do Brasil, há 200 anos, a forma estatal oligárquico-burguesa de dominação de classe reflete a hegemonia ideopolítica e cultural do capital, tanto na “sociedade política” (o Estado propriamente dito) quanto na “sociedade civil”. A classe dominante (patronato e patriciado) é também classe dirigente, na medida em que produz e reproduz o metabolismo ideológico-mental adequado à dominação de classe.

A ideologia da classe dominante é a ideologia dominante na sociedade – eis a lei histórica. As classes subalternas e oprimidas nunca conseguiram disputar historicamente a hegemonia intelectual-moral na sociedade civil e a direção político-moral do Estado propriamente dito. As ideias, a cultura e o pensamento social brasileiros refletiram, de certo modo, os humores, idiossincrasias e a visão de mundo burguês oligárquico-senhorial da nossa formação capitalista dependente.

Isso se refletiu inclusive no pensamento da esquerda social e política, que não conseguiu efetivamente ir além das estruturas deformadas da visão liberal do mundo reproduzida pelos donos do poder. Nosso objetivo é criticar o Estado neoliberal enquanto materialidade política ampliada do capital: sociedade política e sociedade civil neoliberais. É essa materialidade política do Estado neoliberal ampliado, tal como iremos apresentar aqui, que reproduz no Brasil a dominação burguesa nas condições históricas da crise estrutural do capitalismo brasileiro.

Nesta introdução, apresentaremos as principais características que configuram a miséria política sob o capitalismo neoliberal: o politicismo, o fisiologismo, o taticismo, o pragmatismo e o burocratismo. Todos eles compõem o complexo da pequena política. Não foi o Estado neoliberal que criou a miséria da política, mas ele exacerbou, com o império da pequena política, as determinações estranhadas da politicidade alienada do capital. Na verdade, a miséria da política nas condições históricas do capitalismo periférico hipertardio e dependente, de extração colonial-escravista, faz parte historicamente da estrutura da materialidade política brasileira e do modo de dominação política da oligarquia brasileira.

No século XXI, com a crise estrutural do capital e a decadência do projeto civilizatório burguês, exacerbou-se – no centro e na periferia – a crise da democracia liberal, devido à falência histórica da esquerda social e política (o grande transformismo) e à incapacidade do centro-direita de resolver os problemas do capitalismo à deriva. Enquanto estrutura de poder, o Estado neoliberal tornou-se a expressão da tragédia histórica brasileira. O Brasil, país de capitalismo periférico dependente e subalterno à ordem mundial do capital, a partir de 1980 – com a crise da dívida externa –, afundou seu projeto de civilização construído desde a década de 1950, entregando-se de vez, a partir de 1990, à programática neoliberal.

Na verdade, esta foi a escolha política da burguesia brasileira, organicamente subordinada aos interesses do poder imperial dos EUA – a mesma burguesia que fez o Golpe de 1964 e sustentou o regime militar autocrático até sua decrepitude acelerada com a crise do capitalismo na década de 1970. Foi a mesma burguesia associada ao imperialismo que operou a transição lenta, gradual e segura para a democracia política – transição pelo alto, concertada com os militares na década de 1980.

A Constituição de 1988 foi produto da correlação de forças sociais e políticas na década de 1980 no Brasil. Ela materializou a hegemonia burguesa sob o nome de Estado democrático de direito, criando, naquela época, um sistema político que pudesse reproduzir o complexo da miséria política que iremos descrever neste capítulo. Foi a burguesia de cariz autocrático e de formação escravista-colonial que – com o medo ontogenético do povo brasileiro – produziu e apoiou o candidato que, a partir de 1990, implantaria o programa neoliberal no Brasil: Fernando Collor de Mello (PRN [2]).

Mas a Nova República, instaurada com a Constituição de 1988, durou até 2016. Com a crise profunda do capitalismo global a partir de 2008 e a longa depressão da década de 2010, a burguesia brasileira, classe dominante e dirigente do Estado neoliberal, operou – mais uma vez – um golpe de Estado – não mais na forma militar (como em 1964), mas na forma jurídico-parlamentar (lawfare [3]), visando destituir a Presidenta Dilma Rousseff (PT), obstáculo político para que a classe dominante e suas frações pudessem reestruturar o capitalismo brasileiro a seu modo, por meio do aumento da taxa de exploração e da espoliação das riquezas nacionais.

Foi assim que foi consolidado o Estado neoliberal no Brasil. Entendemos o Estado neoliberal como a materialidade política do declínio civilizatório no Brasil. Trinta anos de Estado neoliberal foram mais do que suficientes para constatarmos os resultados da política de reforço do sistema da dívida pública (austeridade neoliberal permanente), do sistema de superexploração da força de trabalho (predomínio dos baixos salários) e do sistema de produção da ignorância cultural (manipulação midiática numa intensidade nunca antes vista na história brasileira).

A década de 1990 foi marcada pelas contrarreformas neoliberais no Estado e na economia, bem como pelo fortalecimento do ethos neoliberal na sociedade civil por meio da manipulação midiática. Foi assim que se constituiu o Estado neoliberal, uma estrutura de poder reproduzida nas décadas seguintes por todos os governos – de direita ou de esquerda – da República brasileira. O PT, partido histórico da esquerda brasileira, passou por um Grande Transformismo [4] e conformou-se com a reprodução da ordem dominante.

Durante os governos do PT, sob o espírito do lulismo, afirmou-se o Estado neoliberal. O neoliberalismo eliminou a política, mas isso só ocorreu devido à eliminação do protagonismo antagônico da esquerda social e política contra a ordem burguesa [5]. Tanto quanto o neoliberalismo, o Grande Transformismo foi responsável pelo aprofundamento da miséria política na vida brasileira. Assim, a morte da política pelo neoliberalismo é a morte da esquerda social e política capaz de criticar a ordem burguesa. Isso contribuiu para consolidar o Estado neoliberal, que em 2024 completa trinta anos de domínio efetivo do capitalismo neoliberal no país – com o apoio da esquerda brasileira representada pela figura carismática de Luís Inácio Lula da Silva (PT).

A distinção metodológica entre Estado e governo

É crucial distinguir entre Estado e governo. O governo é uma parte do Estado. Os partidos eleitorais visam apenas administrar a materialidade do Estado político do capital, aspirando, portanto, ao governo para ocupar cargos e gerir o establishment, ou seja, o poder da burguesia. A diferença entre governo e Estado é, de fato, uma questão complexa que tem sido objeto de debate na ciência política por séculos.

De forma geral, pode-se afirmar que o Estado é a entidade soberana que detém o monopólio da força legítima, com o objetivo de garantir as relações de propriedade da classe dominante. Ele é produto de uma construção histórico-social das classes proprietárias, surgindo da necessidade de organizar (dominar/dirigir) a sociedade e assegurar sua ordem e segurança como pré-requisitos para a reprodução social.

O Estado é composto por um conjunto de instituições, entre elas o governo, além do exército, da polícia e do sistema judiciário. O Estado também possui um território definido, uma população e soberania, enquanto o governo é o conjunto de instituições que administra o Estado. O governo, por sua vez, é a instituição que exerce o poder político dentro do Estado, formado por um conjunto de pessoas, geralmente eleitas, responsáveis por tomar as decisões que governam a sociedade.

O governo pode ser dividido em três poderes: executivo, legislativo e judiciário. Portanto, a principal diferença entre governo e Estado é que o governo administra o Estado, ou seja, é responsável por tomar as decisões que regem a sociedade, enquanto o Estado é a materialidade política que garante a ordem e a segurança da sociedade capitalista. O Estado é uma instituição permanente, enquanto o governo é temporário, eleito por um período determinado. O monopólio da força legítima é uma característica do Estado, e não do governo. [4]

No Brasil, o Estado é uma república federativa, o que significa que está dividido em três níveis de governo: federal, estadual e municipal. Cada nível possui suas próprias atribuições e responsabilidades. O governo federal cuida de políticas nacionais, como defesa, economia e diplomacia. Os governos estaduais são responsáveis por políticas estaduais, como educação, saúde e segurança pública. Já os governos municipais tratam de políticas locais, como saneamento básico, transporte público e cultura. Todos os governos eleitos no período da Nova República no Brasil – sejam de direita ou de esquerda – apenas reproduziram e consolidaram o Estado neoliberal. Devido à pressão do bloco no poder, esses governos aceitaram os limites de sua função administrativa.

Mesmo os governos do PT, o principal partido de esquerda do país, renunciaram a uma estratégia de poder que ultrapassasse a materialidade política do Estado capitalista brasileiro, que, desde 1990, foi constituído como um Estado neoliberal. Por exemplo, a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal [6] tornou-se uma cláusula pétrea do Estado brasileiro, que todos os governos optaram por obedecer.

Caso desafiassem essa lei, sofreriam não apenas penalidades legais, mas também as impostas pelo mercado financeiro, que os obrigaria a se submeter a outra cláusula pétrea: o sistema da dívida pública ou sistema da oligarquia financeira. Os governos de esquerda, eleitos a partir de 2002, apenas procuraram operar da melhor forma a nova ordem neoliberal, implantando medidas compensatórias no âmbito social para os mais pobres, sempre respeitando os interesses da classe proprietária. Esse é o espírito de colaboração de classes que caracterizou os governos de esquerda desde então.

À medida que o Estado neoliberal se consolidava, com seus sistemas de dominação de classe, ele sobrepôs-se e subordinou a sociedade civil. Em suma, os dirigentes políticos do maior partido de esquerda no Brasil renunciaram a um projeto de poder que superasse o Estado neoliberal e, em vez disso, buscaram reforçá-lo. Quando eleitos em 2022, a esquerda política, representada pelo PT, paralisou-se diante do poder consolidado do Estado neoliberal, sendo incapaz de implantar seu programa de mudanças sociais, devido à falta de margem de manobra. Esse foi o resultado de mais de 20 anos de conciliação de classes e acomodação ao Estado neoliberal, o que, hoje, tornou inoperante a esquerda social e política.

Estado neoliberal e a tragédia da política

Além de esclarecer o que é o Estado neoliberal, nosso livro busca criticar a esquerda brasileira, que renunciou à crítica do Estado neoliberal, limitando-se a operar a ordem dominante, administrando-a e, enquanto suposta esquerda, tentando torná-la mais humana, mas sem promover um projeto (ou ação) contra-hegemônica. Essa postura política da esquerda social-liberal, representada pelo PT (Partido dos Trabalhadores), esgotou-se e hoje se encontra rendida ao Estado neoliberal.

O horizonte da luta política dessa esquerda social-liberal – como a chamaremos – resume-se à vitória eleitoral e à governabilidade dentro da ordem neoliberal. Enquanto a direita neoliberal e a extrema direita são contrarreformistas, a esquerda social-liberal administra a nova materialidade política e social resultante da nova ordem neoliberal, limitando-se a “reformas de baixa intensidade”. No fundo, ela não possui uma estratégia de contrapoder, mas se dedica a táticas de luta política focadas em eleições, reeleições e ocupação de cargos nas instituições do Estado.

A esquerda neoliberal não é uma esquerda reformista, como era a esquerda social-democrata, mas sim uma esquerda contrarreformista. Por isso, podemos afirmar que a esquerda brasileira faliu de uma vez por todas, à medida que todo seu espectro politicamente relevante – PT e PSOL – incorporou as características estruturais da política burguesa no Brasil, como descreveremos a seguir. Esta é a maior tragédia histórica do Brasil. As formas ideológicas da miséria da praxis política alienada, que têm caracterizado nosso sistema político, servem para reproduzir a ordem do capital.

Essas formas alienadas de politicidade do capital aderiram à praxis política, provocando uma distorção irremediável. Ao incorporar essas determinações da politicidade alienada do capital, a esquerda social-liberal contribuiu para a morte da política e da democracia liberal, ao se identificar com seus oponentes históricos. Embora se apresente como alternativa à direita neoliberal, a esquerda social-liberal tornou-se cada vez mais incapaz de mudar a ordem burguesa, que hoje não consegue atender às demandas civilizatórias.

A morte da política – que é também a morte da esquerda – é uma operação fundamental da ofensiva neoliberal do capital. O capital subsumiu a política de esquerda, degradando-a da mesma forma que degradou o trabalho, o consumo, a cultura e a sociedade. Isso configura o novo sociometabolismo do capital ou o sociometabolismo da barbárie no plano da praxis política. Incapaz de oferecer um projeto civilizatório, o capital produz o sociometabolismo da barbárie.

No caso de países de capitalismo dependente, hipertardio e com formação escravista-colonial, a degradação da política sempre foi uma estratégia de dominação da classe dominante. Contudo, em décadas passadas, havia movimentos de oposição de esquerda capazes de vislumbrar a grande política. Na década de 1980, quando se criou o PT, por exemplo, havia um horizonte para a grande política, apoiada em uma base organizada da classe. À medida que o capital desmantelou a classe operária, também desmantelou sua representação política. Foi isso que mudou com a ofensiva neoliberal do capital – a subsunção da política de esquerda ao capital.

A miséria da política brasileira não foi criada pelo capitalismo neoliberal. Nossa tradição política oligárquica e golpista, há séculos, degradou a atividade política das massas, esvaziando seu valor fundamental. A pequena política, com sua constelação de atributos alienados, domina a praxis política desde a Proclamação da República em 1889. Portanto, não é novidade a cultura do fisiologismo e oportunismo, prática da direita conservadora nacional, impregnada pelo taticismo.

A política foi reduzida a um jogo de interesses esvaziados de ideologia, moldado pelas conveniências do momento. A forma autocrática de dominação burguesa no Brasil contribuiu para esvaziar o valor da política como instância para a transformação social. Isso explica a despolitização ontogenética da sociedade brasileira. “Política não se discute”, diz o ditado popular. A cultura da despolitização, que impregna o imaginário popular, reforça o fisiologismo (ou metabolismo político) da dominação oligárquico-burguesa.

A tragédia do Brasil é que, após uma década de transição para a democracia política, o país se rendeu à ofensiva neoliberal, que, por natureza, é hostil à socialização da política e à democratização da sociedade. A Nova República estava condenada no ato. Assim, elevou-se a um patamar superior a miséria política brasileira, com a esquerda social-liberal incorporando-se a ela ao renunciar à transformação do Estado neoliberal, limitando-se a um projeto de governo. A era do capitalismo neoliberal é a era de decadência histórica do capital, em razão de sua crise estrutural.

Dessa forma, todos os valores caros à civilização burguesa, oriundos da Revolução Francesa, perdem sentido. A democracia liberal, esvaziada de seu significado real, diante da precarização estrutural do trabalho, entra em profunda crise, junto com o sistema político. A ascensão da extrema-direita é o atestado de óbito da democracia liberal.

Após a década neoliberal, a política entrou em uma era de indeterminação. [8] O capitalismo terminal, tornado farsesco, rebaixou a democracia política ao que ela realmente é: um significante poderoso, mas impotente diante da concentração de renda e da desigualdade social, do abismo entre ricos e pobres. A democracia burguesa perde seu valor na era neoliberal porque se torna irrelevante diante da incapacidade visceral do Estado neoliberal de resolver a questão social no século XXI.

Por não ser uma democracia substantiva e de valor universal, transforma-se em uma democracia acessória, desvalorizada pelas massas insatisfeitas, que, ao contrário, cultivam o ódio à democracia.[9]

A pequena política e praxis política alienada

A distinção entre “grande política” e “pequena política” é um conceito do marxismo de Antonio Gramsci, fundamental para caracterizar não apenas a política na era neoliberal, mas também a política historicamente dominante no Brasil desde a fundação da República. A pequena política sempre esteve presente, e o que fazia a diferença era a atuação da esquerda. A pequena política representa a miséria da prática política, em torno da qual gravitam diversos atributos alienados. Ela é uma ideologia da práxis política que a classe dominante brasileira sempre cultivou e disseminou tanto na sociedade civil quanto na sociedade política.

Os conceitos de “pequena política” e “grande política” formam um par conceitual que serve não apenas para definir traços decisivos do conceito geral de política, mas também aparece como um elemento essencial naquilo que Gramsci chama de “análise das situações” e “relações de força”. O predomínio de uma ou outra forma de ação política – seja a “pequena” ou a “grande” política – é decisivo para determinar qual classe ou grupo de classes exerce a dominação ou a hegemonia em uma situação concreta, e de que modo o faz.

Segundo Antonio Gramsci: “Grande política (alta política) e pequena política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). A grande política abrange as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, defesa ou conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política abrange as questões parciais e cotidianas que surgem dentro de uma estrutura já estabelecida, decorrentes de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”. [10]

A hegemonia ancestral da burguesia brasileira degradou historicamente a práxis política, obstruindo qualquer movimento de catarse, elemento central da práxis política segundo Gramsci. Lembrando o conceito gramsciano de “catarse”, podemos afirmar que apenas a “grande política” realiza o “momento catártico”, ou seja, a passagem do particular ao universal, do econômico-corporativo ao ético-político, da necessidade à liberdade. Gramsci nos adverte, contudo, que “é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo à pequena política” [11]. Isso foi o que a burguesia brasileira fez historicamente: excluir a grande política do horizonte prático e sensível das massas.

Em outras palavras, para as classes subalternas, o predomínio da pequena política é sempre sinal de derrota. No entanto, esse predomínio pode ser – e frequentemente é – a condição para a supremacia das classes dominantes. Quando a esquerda social-liberal, a partir da década de 1990, renunciou a operar a transição do particular ao universal, do econômico-corporativo ao ético-político, e da necessidade à liberdade – ao abdicar, por exemplo, da luta pelo socialismo – consolidou a supremacia da pequena política. Essa foi a grande derrota histórica que permitiu a consolidação do Estado neoliberal.

A oposição entre “grande política” e “pequena política” também se aplica à ação dos intelectuais. O “Grande Transformismo” não se limitou à práxis política, mas também envolve a atuação intelectual. O cerne do grande transformismo foi justamente isso: o predomínio da pequena política em detrimento da grande política, no sentido do abandono da perspectiva da totalidade social e da classe social que permitiria um horizonte além do capitalismo e a elaboração de uma perspectiva socialista.

O fato de a esquerda ter sido reduzida à pequena política não impede que a burguesia seja forçada a praticar a grande política. A pequena e a grande política não se resumem a uma distinção entre reação e progresso. Na era do capitalismo neoliberal, a burguesia conduziu a grande política no sentido da reestruturação capitalista, operando contrarreformas e processos de subjetivação catárticos às avessas.

Se o “momento catártico” representa a passagem do particular ao universal, do econômico-corporativo ao ético-político, da necessidade à liberdade, o momento catártico às avessas representa a produção de subjetivações particularistas, incapazes de agir na perspectiva ético-política, resultando no sociometabolismo da barbárie. Ao imiscuir as massas proletárias e a esquerda política e social na pequena política, com a estreiteza de programas e a debilidade da consciência nacional, a burguesia demonstrou um imenso esforço para impedir qualquer mudança radical. E esse esforço imenso da burguesia é, em si, uma grande política. [12]

*Giovanni Alves é professor aposentado de sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Autor, entre outros livros, de Trabalho e valor: o novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI (Projeto editorial Praxis).

Referência

Giovanni Alves. O Estado neoliberal no Brasil: Uma tragédia histórica. Marília, Projeto editorial Praxis, 2024, 302 págs.

 

[1] RIBEIRO, Darcy. Os brasileiros: 1. Teoria do Brasil. Vozes: Rio de Janeiro, p. 97.

[2] O Partido da Reconstrução Nacional (PRN) foi fundado em 1989. Surgiu de uma cisão do Partido Democrata Cristão (PDC) e teve como figura mais proeminente Fernando Collor de Mello, que seria eleito presidente do Brasil no mesmo ano em que o partido foi fundado.

[3] Lawfare é um termo que combina as palavras “law” (lei) e “warfare” (guerra) para descrever o uso estratégico da legislação e dos processos jurídicos como uma forma de guerra. Em essência, o lawfare envolve o uso (ou abuso) do sistema legal para atingir objetivos políticos, econômicos ou militares, prejudicando adversários, enfraquecendo opositores, ou desacreditando figuras públicas. Esse conceito se aplica tanto em contextos nacionais quanto internacionais.

[4] Compreendemos o “Grande Transformismo” como o processo de mudança ideológica e política experimentado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na década de 1990. Essa transformação resultou na conversão do partido em um administrador da ordem burguesa neoliberal, levando-o a abdicar de políticas de reformas sociais abrangentes em favor de políticas públicas focalizadas e programas de transferência de renda. Este fenômeno não se limitou ao Brasil, sendo parte de uma tendência global que afetou partidos de esquerda social-democrata e trabalhista em diversos países. Exemplos notáveis incluem o Partido Trabalhista britânico sob a liderança de Tony Blair e o Partido Social-Democrata alemão sob Gerhard Schröder. O Grande Transformismo representou, portanto, uma mudança significativa na orientação política e nas práticas desses partidos, alinhando-os mais estreitamente com políticas econômicas neoliberais e afastando-os de suas raízes ideológicas originais. Antônio Gramsci utilizou o termo “transformismo” para referir-se à cooptação gradual de elementos da oposição política pela classe dominante ou pelo grupo no poder. Gramsci desenvolveu este conceito analisando a política italiana do final do século XIX e início do XX, particularmente o período do Risorgimento (unificação italiana). O transformismo é um mecanismo pelo qual a classe dominante mantém seu poder, absorvendo e neutralizando potenciais lideranças das classes subalternas. Ao cooptar indivíduos ou grupos da oposição, o transformismo enfraquece movimentos de resistência e mudança social. O objetivo principal é preservar a ordem social existente, evitando mudanças estruturais significativas. Pode ocorrer através de concessões políticas, ofertas de cargos, ou incorporação parcial de demandas da oposição. O transformismo afeta a formação de uma vontade coletiva nacional-popular, dificultando a organização das classes subalternas, sendo uma estratégia para manter a hegemonia cultural e política da classe dominante. Gramsci via o transformismo como uma forma de evitar reformas substanciais, mantendo mudanças superficiais.

[5]  Esta morte da esquerda é o que Francisco de Oliveira denominou de “hegemonia às avessas” no livro homônimo de 2010 (OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (Org.) Hegemonia às avessas: Economia, Política e Cultura na Era da Servidão Financeira. Boitempo editorial: São Paulo, 2010, p. 21). Neste mesmo livro, Carlos Nélson Coutinho comparece com o capítulo intitulado “A hegemonia da pequena política”.

[6] BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: Fragmentos de um dicionário político. Paz e Terra, Rio de Janeiro. p.69-84

[7] A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é uma legislação brasileira que foi promulgada em 4 de maio de 2000, com o objetivo de estabelecer normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal dos entes federativos, ou seja, União, estados, Distrito Federal e municípios. Oficialmente conhecida como Lei Complementar nº 101/2000, a LRF tem como principal meta garantir o equilíbrio das contas públicas, promovendo uma administração mais responsável, transparente e eficiente dos recursos públicos.

[8]  Francisco de Oliveira usou o conceito de “era da indeterminação” para descrever um período histórico em que as antigas certezas e categorias analíticas tradicionais, especialmente aquelas relacionadas à política, economia e sociedade, tornaram-se insuficientes para explicar a complexidade do mundo capitalista neoliberal. Esse conceito aparece em suas reflexões sobre o capitalismo globalizado e o impacto do neoliberalismo, particularmente no contexto brasileiro e latino-americano. O livro intitulado “A era da indeterminação” publicado em 2007 foi organizado por Franscisco de Oliveira e Cibele Saliba Rizek. Na “era da indeterminação”, de acordo com Francisco de Oliveira, há uma crise nas estruturas tradicionais que antes orientavam a sociedade, como o Estado-nação, as formas de trabalho, as ideologias políticas e as instituições democráticas. A indeterminação se refere a um estado de incerteza e de transição, em que os antigos modelos não se aplicam mais plenamente, mas novos modelos ainda não foram estabelecidos de forma clara. Alguns pontos principais do conceito apresentados no livro são os seguintes incluem: (1). Colapso das Certezas Ideológicas e Políticas: Oliveira argumenta que, na era da indeterminação, as distinções tradicionais entre esquerda e direita perdem clareza, especialmente à medida que movimentos de esquerda adotam práticas neoliberais (o que ele mais tarde – em 2011 – denominou “hegemonia às avessas”). Isso gera uma crise de identidade política, onde as categorias ideológicas tradicionais não conseguem mais descrever adequadamente a realidade. (2). Subordinação da Política ao Capital: Um aspecto crucial da era da indeterminação é a subordinação crescente da política ao capital, particularmente ao capital financeiro. Oliveira via o neoliberalismo como uma força que reconfigurou a política, tornando-a cada vez mais incapaz de controlar ou moderar as forças do mercado. Isso leva a uma crise da política, onde as decisões econômicas dominam a agenda, deixando pouco espaço para projetos políticos transformadores. (3). Fragilidade das Instituições Democráticas: Na era da indeterminação, as instituições democráticas se tornam frágeis, com sua capacidade de representar e responder às demandas sociais sendo questionada. Essa fragilidade é exacerbada pela concentração de poder econômico e pela desigualdade social, que minam a legitimidade e a eficácia das democracias. A era da indeterminação é caracterizada por um sentimento generalizado de incerteza e transitoriedade. As regras e normas que antes regulavam as relações sociais e econômicas parecem cada vez mais voláteis e imprevisíveis. Isso se reflete em fenômenos como a precarização do trabalho, a volatilidade dos mercados financeiros e a instabilidade política. (4). Crise da Representação e do Trabalho: Outro ponto central na análise de Oliveira é a crise do trabalho, especialmente em sua forma tradicional. A globalização e o avanço tecnológico transformaram as relações de trabalho, criando novas formas de exploração e precariedade. Ao mesmo tempo, as estruturas de representação dos trabalhadores, como sindicatos e partidos, se mostram incapazes de lidar com essas novas realidades. No Brasil, a era da indeterminação é marcada pela adoção do neoliberalismo, o enfraquecimento dos movimentos sociais e a crise das instituições políticas tradicionais. Para Oliveira, essa era reflete a incapacidade do sistema político e econômico de oferecer respostas adequadas às demandas da sociedade, levando a uma desorientação generalizada. No plano global, a era da indeterminação reflete o colapso das velhas ordens, como o Estado de bem-estar social, e a ascensão de um capitalismo globalizado que escapa ao controle dos Estados-nação. Essa nova realidade gera incerteza e ansiedade, já que os mecanismos tradicionais de regulação e controle se mostram insuficientes para lidar com os desafios do século XXI.

[9] Rancière, Jacques. O ódio à democracia. Boitempo editorial: São Paulo, 2014.

[10] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Volume 3, Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Civilização brasileira, 2000: p. 21

[11] GRAMSCI, Antonio. op.cit. p. 21

[12] COUTINHO, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci: Ensaios de teoria política. Boitempo editorial: São Paulo. p. 124-125.

 

O que economistas têm a dizer sobre a democracia e a riqueza de países? por Claudio Ferraz

0

Vencedores do Nobel construíram modelos matemáticos para incorporar política e instituições em análises da economia

Claudio Ferraz, Professor da Escola de Economia de Vancouver (Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá) e da PUC-Rio.

Folha de São Paulo, 17/11/2024

O Prêmio Nobel de Economia de 2024, concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, coroa décadas de pesquisas voltadas a compreender como instituições criadas durante a colonização moldaram a trajetória da democracia e do desenvolvimento econômico dos países, contribuição fundamental para responder por que algumas nações prosperam e outras fracassam, uma das questões mais primordiais da disciplina.

Em 2003, eu cursava o segundo ano de doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley. Tinha ido para lá decidido em me especializar na área de desenvolvimento econômico e esperava aprender os modelos matemáticos de fronteira que explicavam por que alguns países se desenvolviam e outros não.

A primeira disciplina de desenvolvimento econômico focava as falhas de mercados de países pobres, a chamada microeconomia do desenvolvimento. O livro “Development Microeconomics”, de Pranab Bardhan e Christopher Udry, tinha acabado de sair, e o campo passava por um ressurgimento, com mais ênfase na microeconomia e em trabalhos empíricos.

Cheguei na segunda disciplina com a expectativa de estudar modelos de crescimento econômico e temas como educação, saúde e capital social. Logo na primeira aula, no entanto, percebi que aquele curso seria diferente. O professor não era do departamento de economia, mas de ciência política.

Em vez de enfatizar os trabalhos acadêmicos que iríamos ler, ele buscou nos convencer que, para ter boas ideias, teríamos que ler livros, algo que os economistas, infelizmente, não fazem no doutorado. A primeira leitura seria “Markets and States in Tropical Africa”, livro do cientista político Robert Bates.

Depois de distribuir a ementa, James Robinson foi para o quadro e começou a ensinar o modelo de crescimento de Solow, algo padrão naquela época, mas emendou um modelo matemático de economia e política para tentar apresentar as causas e as consequências econômicas do apartheid na África do Sul. Seu argumento era que a desigualdade que surgiu depois da colonização gerou a repressão e a exclusão de parte da população pela elite branca. Isso tinha desdobramentos não só políticos quanto econômicos.

Para mim e para grande parte do campo da economia nas universidades de ponta dos EUA, aquilo era uma novidade. No começo dos anos 2000, poucos economistas olhavam para a política usando modelos matemáticos. A exceção era um grupo de macroeconomistas, como Alberto Alesina, Torsten Persson e Guido Tabellini, que usava modelos políticos para entender déficits fiscais, ciclos políticos e decisões de estabilização.

Economia política não era lecionada em quase nenhum programa de doutorado de ponta e, no campo do desenvolvimento econômico, aspectos políticos não estavam na agenda, exceto por textos mais descritivos, como um trabalho de Albert Hirschman dos anos 1970.

O Prêmio Nobel de Economia deste ano foi concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, que lançaram luz sobre uma das questões mais fundamentais em economia: por que algumas nações prosperam enquanto outras fracassam? Diferentemente da literatura anterior, que se concentrava nos fatores de crescimento, a contribuição dos três pesquisadores foi trazer quantitativamente aspectos políticos para a análise dos economistas.

Seus trabalhos mostraram que é impossível entender o desenvolvimento econômico dos países sem levar a sério aspectos políticos. O prêmio coroa décadas de pesquisa e celebra duas agendas complementares: uma empírica, que busca compreender as raízes institucionais do crescimento, e outra teórica, voltada a modelos matemáticos que explicam a persistência de instituições ineficientes e as causas econômicas de transições de regimes políticos.

Durante décadas, economistas tentaram explicar as desigualdades de renda entre países. Nos anos 1950, Robert Solow, Nobel de 1987, desenvolveu um modelo que atribuía essas disparidades à acumulação de capital e ao crescimento populacional dos países. Nações que poupam mais e cuja população cresce mais devagar terão renda per capita mais alta a longo prazo.

Uma predição empírica desse modelo: países mais pobres deveriam crescer mais rapidamente, convergindo para o nível de renda dos países ricos, algo que raramente se observou na prática. Em 1997, Lant Pritchett publicou um artigo em que argumentava que a convergência de renda só ocorreu entre os países ricos no século 20. Já os países de baixa renda, com poucas exceções, permaneciam presos em uma armadilha de pobreza.

Como explicar o fato de países ricos continuarem a crescer mais rapidamente que muitos países em desenvolvimento? No final dos anos 1980, economistas como Philippe Aghion, Robert Lucas e Paul Romer começaram a destacar o papel do capital humano e do investimento em inovação como fatores centrais para o crescimento econômico.

Eles mostraram que os países que investiram cedo na educação e direcionaram recursos para pesquisa e desenvolvimento cresceram mais rapidamente na segunda metade do século 20. Estudos empíricos que incluíam educação e ciência se provaram mais eficazes em explicar as diferenças de renda entre os países que modelos que consideravam apenas o capital físico.

Os economistas continuavam, porém, sem entender sistematicamente o que levou alguns países a investir em educação ou inovação tecnológica e outros não. Aspectos políticos não faziam parte da modelagem utilizada pela maioria dos economistas neoclássicos, mesmo que historiadores econômicos como Douglas North e Robert Thomas já tivessem enfatizado, nos anos 1970, a importância das instituições.

Esses autores argumentaram que as regras do jogo que regulam as interações entre pessoas, empresas e governos eram fundamentais para entender a trajetória econômica dos países. Em seus trabalhos, sugeriram que países que protegiam direitos de propriedade, por exemplo, geraram mais inovação e incentivos para o empreendedorismo e que isso acontecia quando instituições políticas restringiam o poder dos líderes.

A tese de que instituições e políticas governamentais eram importantes foi testada por Robert Hall e Charles Jones. Em 1999, eles publicaram um trabalho muito influente que mostrava que diferenças de acumulação de capital e produtividade estavam relacionadas com o que eles chamaram à época de infraestrutura social dos países —instituições e políticas governamentais que determinam o ambiente econômico em que indivíduos acumulam habilidades e firmas acumulam capital e inovam.

Os autores usaram dados de consultorias de risco político e mediram índices de lei e ordem, qualidade burocrática, corrupção e risco de confisco e expropriação. Permanecia, no entanto, a pergunta: por que alguns países tinham infraestrutura social melhor?

Nessa mesma época, o proeminente economista Jeffrey Sachs argumentava que o principal problema dos países pobres era sua geografia. Países localizados nos trópicos têm clima menos propício à agricultura e grande propensão a doenças em razão de suas florestas cheias de mosquitos e malária. Tudo isso contribuiria negativamente para o crescimento econômico e geraria diferenças de longo prazo.

Foi depois de uma palestra de Jeffrey Sachs no final dos anos 1990 que James Robinson começou a pensar no papel histórico da geografia no desenvolvimento econômico dos países. Se a geografia é tão determinista, como países que foram ricos no passado em razão da sua geografia são pobres hoje?

Ao lado de Daron Acemoglu e Simon Johnson, Robinson se debruçou sobre dados históricos. No começo dos anos 2000, os pesquisadores publicaram dois artigos seminais que contestavam a importância direta da geografia como o principal determinante da riqueza das nações. O argumento de Acemoglu, Johnson e Robinson reconhecia que a geografia importava, mas não devido à qualidade do solo ou à proliferação de doenças, como argumentava Jeffrey Sachs, mas pelo efeito que teve sobre a colonização.

Em um trabalho, eles argumentaram que, onde havia recursos abundantes e a colonização era difícil devido à alta mortalidade, os colonizadores estabeleceram uma sociedade que tinha como objetivo extrair riquezas e, em locais mais propícios à sobrevivência, criaram instituições mais inclusivas que facilitavam a sua permanência.

Testar empiricamente a relação entre boas instituições e desenvolvimento econômico não era fácil. O que era causa e o que era consequência? Boas instituições poderiam ter facilitado o acúmulo de riqueza, mas o contrário também poderia ter acontecido. Como saber o que veio primeiro?

Acemoglu, Johnson e Robinson usaram o que economistas chamam de experimento natural. Essas técnicas se disseminaram na economia no final da década de 1980 e no início dos anos 1990 como forma de avaliar o impacto de políticas sociais. A ideia básica é selecionar lugares parecidos, onde uma política foi adotada em só parte deles, e comparar o que aconteceu com cada um deles ao longo do tempo. Até então, essas metodologias não eram usadas para avaliar eventos históricos —eram utilizadas para avaliar programas educacionais ou de mercado de trabalho.

Os três pesquisadores compararam países com diferentes processos de colonização e mostraram que, naqueles onde a mortalidade foi maior no período colonial, existem hoje instituições piores e, na média, os países são mais pobres. O argumento central é que, onde a mortalidade era mais alta, foram estabelecidas instituições extrativistas, sem Estado de Direito e com direitos de propriedade fracos, e que essas instituições persistiram até hoje.

Se as instituições impostas na colonização foram realmente importantes, civilizações que eram prósperas antes de se tornarem colônias devem ser hoje mais pobres como consequência da imposição de instituições extrativistas. Esse argumento já havia sido defendido por outros cientistas sociais, como os historiadores Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff em um trabalho sobre a reversão da riqueza nas Américas. Eles notaram que grandes proprietários fundiários e instituições extrativistas (trabalho escravo) foram favorecidos em locais onde a produção agrícola demandava grandes extensões de terra. Isso gerou desigualdade e concentrou o poder político em uma pequena elite.

Faltava, contudo, uma metodologia capaz de quantificar esses efeitos. Em um trabalho, Acemoglu, Johnson e Robinson compararam a renda per capita dos países no final do século 20 com as taxas de urbanização e densidade populacional por volta de 1500, quando os europeus começaram a colonização. Os pesquisadores descobriram que países relativamente ricos em 1500 são hoje relativamente pobres, o que sugere que a geografia não pode ser um fator determinante no crescimento das nações.

A pesquisa dos vencedores do Nobel impulsionou uma enorme literatura. Diversos pesquisadores chamaram a atenção para problemas com os dados históricos e o tratamento do processo de colonização como experimento natural. A principal crítica veio dos economistas Edward Glaeser, Rafael La Porta, Florencio López de Silanes e Andrei Shleifer, que argumentaram que os colonizadores também trouxeram capital humano, o que pode ter gerado investimentos em educação que explicariam o desenvolvimento a longo prazo.

Uma forma de testar se instituições afetam a prosperidade a longo prazo é focar um país e analisar a variação entre regiões que tiveram experiências históricas distintas.

Melissa Dell, orientada por Daron Acemoglu no MIT, analisou, em um trabalho publicado em 2010, os efeitos de longo prazo da mita, instituição de trabalho forçado em que espanhóis obrigavam aldeias indígenas a ceder parte da sua população para a mineração de prata. Dell demonstrou que locais onde a mita existiu são mais pobres até hoje.

Sara Lowes e Eduardo Montero, alunos de James Robinson em Harvard, estudaram a extração de borracha no Congo belga. Eles mostraram que locais onde houve concessões para essa atividade são hoje mais pobres, têm índices de escolaridade menores e indicadores de saúde piores.

Em relação ao Brasil, Joana Naritomi, Rodrigo Soares e Juliano Assunção publicaram um trabalho em 2012 que mostrou que locais que fizeram parte do boom de cana-de-açúcar ou do ouro no período colonial têm pior governança e pior provisão de bens públicos.

A contribuição acadêmica de Acemoglu e Robinson não se reduz a demonstrar que instituições têm um efeito causal na prosperidade dos países. Eles construíram modelos matemáticos para explicar por que instituições políticas são fundamentais para o processo de consolidação democrática e desenvolvimento econômico. Em países onde o poder político é distribuído mais igualitariamente, políticas públicas e escolhas de instituições econômicas geram mais prosperidade.

Essas ideias contrastam radicalmente com a forma como a maioria dos economistas modelavam o desenvolvimento econômico até os anos 1990, ignorando totalmente aspectos políticos.

Usar modelos em que a adoção de inovações tecnológicas dependem da aprovação do governo é uma forma de pensar a relação entre elites políticas e desenvolvimento econômico. Podemos imaginar uma sociedade agrícola em que a elite mantém seu poder político controlando os trabalhadores rurais. A modernização por meio da industrialização não só muda a atividade econômica predominante, mas leva à perda da capacidade da elite de controlar os trabalhadores. Em um caso como esse, a elite poderia frear a industrialização e atrasar a adoção de tecnologias modernas pelo país por temor de perda de poder político.

Durante os anos 2000, Acemoglu e Robinson publicaram uma série de trabalhos na área de economia política buscando responder por que países não adotam instituições que maximizam o bem-estar da sua população. Como instituições ineficientes são sustentadas ao longo do tempo? Em que contextos acontecem transições de regimes autoritários para regimes democráticos?

Os autores usaram modelos matemáticos para construir uma teoria geral do processo de democratização, consolidação democrática e reversão autoritária por meio de golpes de Estado. Suas teorias, resumidas no livro “Economic Origins of Dictatorship and Democracy “, de 2005, partem de duas premissas. Primeiro, que o povo —mesmo em sistemas autocráticos, em que não tem poder político— pode fazer uma revolução e tirar os ricos do poder. Segundo, que a elite, para evitar que isso aconteça, pode reprimir o povo usando violência ou redistribuir recursos.

Eles mostram que, para satisfazer as demandas da população mais pobre e prevenir uma revolução, a elite precisa fazer concessões, mas que essas concessões podem não ser críveis, já que as condições econômicas podem mudar ao longo do tempo. Mesmo que a elite promova uma redistribuição de renda no presente, a probabilidade de uma revolução pode ser baixa no futuro e a elite decida redistribuir menos.

A questão do compromisso crível é central nos modelos de Acemoglu e Robinson. A democratização, em seus modelos, surge como uma forma de tornar crível a promessa de redistribuição futura. Quando a população mais pobre adquire o direito ao voto, as políticas implementadas tendem a refletir os interesses do cidadão mediano em vez de atender exclusivamente aos desejos da elite. Portanto, a democratização é vista como uma concessão estratégica por parte da elite para evitar uma revolução.

Em modelos posteriores, os pesquisadores ultrapassaram a dicotomia entre ditadura e democracia e se perguntaram por que vemos transições democráticas sem a esperada redistribuição para a população mais pobre. Para explicar esses fenômenos, eles construíram um modelo que distingue as instituições entre regras “de jure” e “de facto”.

Uma coisa é que o que está escrito na Constituição, outra é o que realmente acontece na vida real. Mesmo que um país permita que seus indivíduos mais pobres passem a votar, a elite ainda pode recorrer à compra de votos, à violência ou mesmo a regras eleitorais que façam com que o voto dos mais pobres valha menos.

Um exemplo desse modelo foi testado empiricamente por Thomas Fujiwara que estudou a introdução do voto eletrônico no Brasil em 1996. O economista brasileiro mostrou que, apesar de indivíduos analfabetos terem o direito de votar desde 1985, grande parte dos seus votos eram anulados. A introdução do voto eletrônico mudou essa situação, garantiu mais representatividade “de facto” e mudou as políticas implementadas pelos políticos eleitos.

Os modelos de Acemoglu e Robinson nos ajudam a entender uma variedade de fatores que facilitam ou dificultam a consolidação democrática, como o nível de organização da sociedade civil, a desigualdade entre ricos e pobres e o impacto de crises econômicas. Ao incorporar a dinâmica política nas análises, seus estudos não apenas explicam por que algumas nações fracassam, mas oferecem dicas valiosas sobre como promover o crescimento econômico sustentável e inclusivo.

Em um momento em que a democracia enfrenta desafios globais, focar as instituições políticas é uma contribuição essencial e oportuna.

 

 

Lula na encruzilhada, por José Luis Fevereiro.

0

Por trás da hesitação diante pacote proposto por Haddad, há uma guerra. A Faria Lima e a mídia chantageiam para definir de vez os rumos do governo. O presidente parece ter percebido que, se ceder, caminha para uma derrota desonrosa em 2026.

José Luis Fevereiro – OUTRAS PALAVRAS – 10/11/2024

Lula foi eleito em 2022 numa frente ampla que ia da esquerda até a parte da Faria Lima, mais exatamente a Febraban.

O mesmo acordo, “com o STF com tudo” que tirou Lula de Curitiba e anulou suas condenações fajutas, viabilizou a sua candidatura em defesa das liberdades democráticas e contra Bolsonaro.

A Democracia Liberal não é apenas um conjunto de regras para arbitrar as disputas entre classes sociais, mas também para arbitrar os conflitos intra classes sociais. Bolsonaro era disfuncional para isso e parte da burguesia brasileira decidiu se livrar dele.

O acordo com Lula, a Frente Ampla, não era apenas colocar Geraldo Alckmin na sua roupagem de simpático médico do interior como vice. Alckmin era o símbolo de um acordo.

Lula obtinha um expressivo impulso fiscal garantido pela PEC da transição que somava quase 200 bilhões de reais ao já turbinado orçamento de 2022 com a PEC eleitoral de Bolsonaro, revogava-se o teto de gastos, mas em contrapartida se aprovaria um novo arcabouço fiscal que garantiria novas amarras ao gasto público a serem usadas quando o desemprego baixasse a patamares que elevassem o poder de barganha do trabalho em relação ao Capital, viabilizando ganhos reais de renda além do crescimento da produtividade, reduzindo desta forma a participação dos lucros na renda nacional.

Parte da esquerda achou boa ideia a Frente Ampla e agora manifesta seu espanto quando a Banca cobra o cumprimento do acordado. Desde 2023 que se sabe que o arcabouço fiscal não se sustentaria sem o pleno enquadramento aos seus limites do conjunto dos gastos contidos no orçamento. A quebra dos pisos constitucionais da saúde e educação, a limitação da política de valorização do salário mínimo e os gastos previdenciários acabariam sendo colocados na mesa.

Lula tentou administrar essa situação empurrando com a barriga se possível até depois de 2026. Só que o desemprego caiu ao menor patamar desde 2013 e o trabalho recuperou condições de barganha em relação ao Capital. A burguesia cobra para já o cumprimento do pactuado.

A Faria Lima em si não tem voto, mas os aparatos mediáticos que se alinham com ela, como a Globo, por exemplo, formam opinião e foram importantíssimos na eleição de Lula. E a Faria Lima tem força para chantagear o governo pressionando o câmbio e contando com a colaboração do Banco Central.

Por outro lado, uma investida do governo Lula cortando renda dos mais pobres, tornando mais rígidos os critérios de acesso ao BPC, alterando a política de valorização do salário mínimo, e mexendo nos pisos da saúde e educação, atingirá diretamente a sua base social.

Nestas horas é importante lembrar que o Partido Democrata acaba de perder as eleições, não porque Trump tenha aumentado sua votação (perdeu mais de 1 milhão de votos em relação a 2020), mas porque mais de 10 milhões de eleitores de Biden em 2020 desistiram de votar este ano.

Lula tem dois caminhos pela frente. Manter o pacto da Frente Ampla e garantir mais tempo de trégua com seus aparatos mediáticos (nenhuma garantia de apoio em 2026, porque seguem sonhando com um candidato dos seus sem a disfuncionalidade de Bolsonaro) , pagando o enorme preço da perda de confiança e de motivação de parcela importante da base social que o elegeu com consequências eleitorais dramáticas em 2026; ou romper esse pacto, enfrentar os riscos inerentes a essa ruptura, governar os dois anos restantes sob fogo de barragem da mídia e sob a chantagem dos mercados, mas manter coesa e mobilizada a sua base social.

Em qualquer cenário, perder as eleições em 2026 será uma forte possibilidade. Mas se for para perder que seja defendendo os seus porque isso constrói melhores condições para o futuro. Melhor o risco de uma derrota eleitoral que o risco de uma derrota eleitoral com cara de derrota histórica.

 

Ainda estou aqui, por Erik Chiconelli Gomes

0

Erik Chiconelli Gomes – A Terra é Redonda – 09/11/2024

Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles

Ainda estou aqui transcende a mera representação histórica para se estabelecer como um documento vivo da memória coletiva brasileira. O filme se apropria magistralmente das experiências cotidianas para construir uma narrativa que evidencia as múltiplas camadas de resistência presentes na sociedade brasileira durante o período ditatorial.

A construção narrativa proposta por Walter Salles dialoga intimamente com a ideia de que a história se manifesta através das experiências vividas por indivíduos comuns, especialmente aqueles que se encontram em situações de opressão e resistência. Neste sentido, a escolha de centralizar a narrativa em Eunice, interpretada magistralmente por Fernanda Torres, não é apenas uma decisão estética, mas também metodológica.

O filme evidencia como as estruturas de poder se materializam no cotidiano das pessoas, transformando espaços de convivência em locais de vigilância e opressão. A cena inicial, com o helicóptero sobrevoando a praia do Leblon, estabelece uma metáfora poderosa sobre a onipresença do aparelho repressivo estatal.

A transformação da protagonista de uma típica dona de casa da elite carioca em uma figura de resistência demonstra como as situações históricas podem mobilizar indivíduos para além de suas posições sociais predeterminadas. Esta mudança reflete um processo histórico mais amplo de conscientização e mobilização social.

A narrativa estabelece um diálogo profundo com as práticas de resistência cotidiana, demonstrando como as pequenas ações de enfrentamento ao regime se manifestavam nos gestos mais simples, desde a preservação da memória familiar através de filmagens em Super 8 até a manutenção da esperança em meio ao desaparecimento forçado.

O trabalho fotográfico de Adrian Tejido merece destaque especial por sua capacidade de traduzir visualmente a dialética entre opressão e resistência. O uso consciente da luz e da sombra cria uma atmosfera que reflete as contradições do período histórico retratado.

A presença da câmera na mão em determinados momentos estabelece uma conexão direta com o cinema verdade brasileiro, criando uma ponte entre a ficção e o documento histórico. Esta escolha estética reforça o compromisso do filme com a verdade histórica sem abrir mão de sua potência narrativa.

A construção narrativa do filme dialoga diretamente com as pesquisas historiográficas que evidenciam o caráter sistemático da violência estatal durante o regime militar. A cena da prisão de Rubens Paiva, retratada com uma brutalidade contida, mas impactante, ecoa os relatos documentados pela Comissão Nacional da Verdade sobre os métodos de repressão utilizados pelo Estado.

O ambiente do DOI-CODI, retratado com uma frieza calculada por Walter Salles, representa não apenas um espaço físico de tortura, mas simboliza todo um sistema institucionalizado de repressão. A interpretação de Fernanda Torres nesses momentos traduzida cinematograficamente o que os arquivos do DOPS, hoje disponíveis para pesquisa, revelam sobre o tratamento dado aos prisioneiros políticos.

A narrativa familiar de Paiva serve como microcosmo para compreender uma questão mais ampla: o desmantelamento sistemático das estruturas democráticas brasileiras. O filme evidencia como a classe média intelectualizada, inicialmente apoiadora do golpe, gradualmente também foi vitimada pelo aparelho repressivo que ajudou a legitimar.

O aspecto mais contundente da obra reside em sua capacidade de demonstração como o terrorismo de Estado operava em vários níveis. Para além da violência física, o filme expõe a violência psicológica perpetrada contra as famílias dos desaparecidos políticos. A busca incessante de Eunice por informações sobre o marido reflete uma realidade ainda presente na sociedade brasileira.

Walter Salles consegue capturar, através da transformação de Eunice, o processo de politização forçada que muitas famílias experimentaram durante o regime. O filme dialoga com estudos historiográficos que demonstram como as mulheres, especialmente as esposas e mães de desaparecidos políticos, tornaram-se importantes agentes de resistência.

A constante presença do medo, representada através de elementos sutis como olhares desconfiados e conversas sussurradas, encontra-se paralelamente nos depoimentos coletados por pesquisadores que estudaram a memória do período. O filme evidencia como o terror psicológico foi uma ferramenta deliberada de controle social.

O uso de imagens de arquivo familiar no Super 8 não serve apenas como recurso estético, mas representa uma importante fonte histórica sobre o período. Essas filmagens caseiras, comuns entre famílias de classe média da época, tornaram-se documentos importantes para compreender o cotidiano durante a ditadura.

O filme aborda também a questão da impunidade e do silenciamento institucional. A ausência de respostas sobre o destino de Rubens Paiva reflete um problema maior: a política de ocultamento e negação que persiste até hoje em setores da sociedade brasileira.

A transição entre períodos históricos é magistralmente representada pela presença de Fernanda Montenegro como a Eunice dos anos 2000. Esta escolha narrativa dialoga com estudos sobre memória e trauma coletivo, demonstrando como as feridas da ditadura permanecem abertas nas gerações subsequentes.

O filme evidencia como a estrutura familiar, tradicionalmente vista como espaço de proteção, tornou-se alvo direto da violência estatal. A desestabilização das relações familiares era parte integrante da estratégia de terror renovada pelo regime.

A representação da elite carioca e suas contradições encontra respaldo em estudos historiográficos sobre o papel das classes privilegiadas durante o regime militar. O filme expõe as fissuras dentro dessa classe social, evidenciando como o apoio inicial ao golpe se transformou em resistência quando a violência atingiu seus próprios círculos.

Walter Salles consegue, através de sua narrativa, contribuir para o que os historiadores têm chamado de “dever de memória”. O filme se estabelece não apenas como obra artística, mas como documento importante para a construção de uma memória coletiva sobre o período.

A ausência de respostas definitivas sobre o destino de Rubens Paiva, mantida no filme, dialoga com a luta permanente por verdade e justiça no Brasil. O filme evidencia como o desaparecimento foi uma política de Estado que continua reverberando no presente.

A obra se insere em um importante momento de revisão historiográfica sobre o período ditatorial, contribuindo para desconstruir narrativas que minimizam ou justificam a proteção dos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro.

*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Referência

Ainda estou aqui
Brasil, 2024, 135 minutos.
Direção: Walter Salles.
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega.
Direção de Fotografia: Adrian Teijido.
Montagem: Affonso Gonçalves.
Direção de Arte: Carlos Conti
Música: Warren Ellis
Elenco: Fernanda Torres; Fernanda Montenegro; Selton Mello; Valentina Herszage, Luiza Kosovski, Bárbara Luz, Guilherme Silveira e Cora Ramalho, Olivia Torres, Antonio Saboia, Marjorie Estiano, Maria Manoella e Gabriela Carneiro da Cunha.

 

Bibliografia

 

Alves, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984), Petrópolis: Vozes, 1984.

ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: Mais Nunca . Petrópolis, Vozes, 1985.

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília: CNV, 2014.

FICO, Carlos. Como Eles Agiam: Os Subterrâneos da Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Gaspari, Élio. A Ditadura Escanarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Joffily, Mariana. No Centro da Engrenagem: Os Interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). São Paulo: Edusp, 2013.

PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

Reis Filho, Daniel Arão. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

Ridenti, Marcelo. O Fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

Teles, Janaína de Almeida. Os Herdeiros da Memória: A Luta dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos por Verdade e Justiça no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.