Nosso capitalismo de compadres é o oposto do capitalismo comunista chinês, por Rodrigo Zeidan

0

Que pelo menos os subsídios aqui sejam dados com mais cuidado

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 03/02/2024

Capitalismo de compadres é a norma em países de renda média. No Brasil, quase sempre que uma grande empresa vai à bancarrota pode contar com a mãozinha do Estado, que é especialista em transferir renda dos mais pobres para os mais ricos.

Mas não precisa ser assim. Um exemplo vem da China, onde as autoridades ficam olhando sem fazer nada enquanto a Evergrande, empresa com US$ 300 bilhões em dívidas, está sendo liquidada na Justiça. Por incrível que pareça, a China teve seu choque de capitalismo, e sua política industrial revela isso.

Enquanto o Brasil continua a insistir na furada política de substituição de importações, a política industrial chinesa é orientada para exportações. E, mais ainda, não interessa quem vai sobreviver. O processo chinês é feito para que empresas sigam competindo até sobrarem só as mais eficientes.

A ideia é simples: se um setor é considerado estratégico, subsídios são jogados ao mar, e os tubarões avançam. Depois que a indústria começa a exportar, os subsídios são retirados. Quem sobrar sobrou. Foi assim, por exemplo, que a China se tornou o país que mais exporta painéis solares. Em 2021, qualquer subsídio ao setor foi retirado do orçamento federal.

É por isso que os investidores que foram com sede ao pote comprar títulos da empresa Evergrande, que tinha acabado de dar um calote, apostando que o governo a salvaria, deram com os burros n’água. Esses investidores compraram grande parte da dívida da empresa, que totaliza mais de US$ 300 bilhões, com grande desconto, achando que iam receber o valor completo. Agora que a empresa está para ser liquidada, podem perder tudo. Apostar que o governo chinês vai salvar grandes empresas se revelou, nesse caso, uma furada.

A diferença entre o modelo de industrialização chinês e o brasileiro é simples: a China acredita na disciplina do mercado capitalista. Se o setor não ficar eficiente, que morram todas as empresas. Os poucos setores estratégicos de verdade, separados para empresas estatais, acabam tendo o mesmo problema do Brasil: empresas ineficientes que muitas vezes perdem mercado para empresas privadas.

Por exemplo, os bancos estatais são incompetentes e, por isso, surgiu todo um setor financeiro não bancário que roubou os clientes dos bancos estatais. Alipay e Wechat processam mais de US$ 30 trilhões em pagamentos por ano, e pessoas fazem empréstimos e investem através dos apps. Os bancos estatais continuam perdendo mercado, e o governo não faz quase nada.

Essa ideia de que competição é o que importa foi o que levou ao crescimento chinês dos últimos 40 anos. Essa é a grande lição que deveríamos aprender. Mas não parece que o faremos. O governo Lula vai insistir em subsídios que fazem o contrário: limitam competição, com a ideia de que as empresas locais cresçam. Mas, sem a disciplina da competição internacional, o que as empresas fazem é tornar os produtos caros, sem incentivos para inovar.

E, quando a competição vem, as empresas vão para Brasília pedir mais proteção; capitalismo de compadres em escala nacional. O oposto dos comunistas chineses, muito mais capitalistas do que a gente imagina.

Vamos continuar insistindo em políticas que nos jogaram em crise econômica? Lula podia fazer muito melhor que insistir nos erros do passado. Que pelo menos os subsídios sejam dados com mais cuidado.

Será que um dia vamos aprender? Pelo visto não vai ser desta vez.

Política Industrial

0

Vivemos momentos de grandes alterações na estrutura econômica internacional, nações que dominavam todos os espaços do crescimento econômico e produtivo, vem perdendo espaço no cenário global, outros países estão se projetando na nova economia mundial. Estamos visualizando a ascensão de novos atores, novas empresas, novas lideranças e novas corporações, com a fragilização de algumas nações, gerando novos desafios, novas oportunidades e grandes inquietações.

Neste cenário, as nações estão em franca movimentação econômica e geopolítica, buscando reposicionamento na estrutura produtiva global, como forma de alavancar seus setores produtivos, buscando a redução da dependência externa, aumento da soberania nacional, vislumbrando investimentos produtivos, desenvolvimento de tecnologias e a busca crescente de novos espaços no comércio internacional.

Neste momento, as nações estão repensando suas estratégias de inserção no cenário internacional, retomando projetos esquecidos e reestruturando os canais de planejamento econômico e produtivo, reativando as chamadas políticas industriais, utilizadas por todas as nações que conseguiram alavancar suas estruturas econômicas, com fortes investimentos governamentais para fortalecer setores e atividades produtivas, levando muitas nações ao desenvolvimento econômico.

Muitas nações adotaram políticas industriais, mas a adoção destas políticas industriais não garante o tão sonhado desenvolvimento econômico, muitos países tentaram, mas poucas nações conseguiram se desenvolver, transformando suas estruturas produtivas, angariando ganhos econômicos e políticos. O desenvolvimento industrial prescinde de uma visão global de todas as potencialidades da economia, integrando setores, fortalecendo o conhecimento científico e tecnológico, aproximando as universidades e os centros de pesquisas, construindo uma visão sistêmica que abarque todos os setores da sociedade, melhorando os indicadores econômicos e sociais em benefício da comunidade nacional.

No começo do século XX, as estratégias de desenvolvimento industrial eram vistas como um caminho natural para que as nações conseguissem se desenvolver economicamente, desta forma, a indústria era uma forma de melhorar a produtividade do trabalho, incrementando a renda dos trabalhadores, movimentando o mercado de consumo e, desta forma, alavancando fortes investimentos produtivos para impulsionar a economia, diversificando os setores produtivos e melhorando os indicadores econômicos e sociais.

Nos últimos anos as políticas industriais foram criticadas pelos economistas liberais, pelas instituições multilaterais, como o FMI e Banco Mundial, e pelos representantes do setor financeiro, defendendo uma maior liberdade dos mercados e o crescente estímulo da concorrência como forma de alocar investimentos no sistema econômico e produtivo. Com estas transformações econômicas internacionais muitas nações desenvolvidas, que rechaçavam as políticas indústriais, passaram a alterar seu entendimento e estão fomentando estas políticas como forma de defender suas estruturas produtivas e receio de perder espaço das nações asiáticas, países que recorreram fortemente as políticas industriais, com fortes incentivos internos e medidas intervencionistas.

Neste cenário, as nações ocidentais estão retomando as políticas públicas e o Brasil começa esboçar uma nova política de reindustrialização, como forma de alavancar a indústria nacional e melhorar as condições de competitividade, diminuindo as importações de produtos industrializados. A nova política de reindustrialização brasileira está canalizando 300 bilhões de reais para o setor industrial e está escolhendo setores vistos como estratégicos para a economia brasileira, tais como a digitalização da indústria e das médias e pequenas empresas, fomento da cadeia agroindústrial e da bioeconomia, a mobilidade urbana, a internalização da produção de insumos da saúde e das tecnologias críticas de defesa nacional.

O retorno de discussões econômicas mais heterodoxas no cenário internacional, como as políticas industriais é salutar e quando percebemos que instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), revistas como The Economist e a prestigiada Harvard Business Review estão defendendo fortemente estas políticas, percebemos que estamos voltando para o lado certa da história.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Novembro 2023

0

O mês de novembro de 2023 foi marcado por grandes discussões referentes ao crescimento do poder do Congresso Nacional, o crescimento do conflito entre o Hamas e o Estado Israelense, além de questões econômicas internas, as brigas entre o governo federal e a oposição, onde percebemos que o embate é mais ideológico entre grupos com visões de vida diferente.

No front econômico, percebemos que a economia nacional vem passando por grandes modificações, pela primeira vez percebemos que o governo federal se esforça pra efetivar uma reforma tributária, com o objetivo de rever medidas que impactam sobre o consumo das famílias, com o intuito de simplificar o sistema tributário, visto como um dos mais detalhista do mundo, responsável por grandes imbróglios jurídicos e graves constrangimentos para todos os grupos que tentam empreender na economia brasileira. Depois de grandes embates, os grupos econômicos e políticos conseguiram chegar a um acordo prévio, quase consensual e marcar a votação para o mês seguinte. Se isso acontecer e a reforma for aprovada, a sociedade será beneficiada, com pontos positivos para a economia nacional.

Neste embate entre o governo e a oposição, percebemos grandes confrontos no centro do poder, com ameaças de todos os lados, onde cada um deste grupo tentam mostrar seu poder e aumentar a sua capacidade de controlar o outro. Neste embate constante, percebemos que o maior prejudicado é a população, postergando medidas imprescindíveis para alavancar o crescimento econômico e produtivo, atrasando investimentos estratégicos para a economia brasileira e para a melhora dos indicadores econômicos gerais.

Mostra ainda, que o governo não possui condições de governabilidade total, sua força política no Legislativo é limitada, não conseguindo passar políticas públicas e mudanças constitucionais que acreditam ser importantes para seu governo e seu projeto político. Contrariamente, percebemos que os grupos oposicionistas são mais fortes do que acreditavam, com força política para fragilizar o governo federal e gerar graves constrangimentos na gestão política.

Atualmente, o governo federal vem perdendo espaço em detrimento do fortalecimento do Legislativo, este último está numa posição cômoda, não tem o ônus da gestão pública e fica com todos os bônus das propostas. Destacamos ainda, que o crescimento do Legislativo federal está diretamente ligado o surgimento de governos fracos, tais como os governos Temer e Bolsonaro, este último delegou ao legislativo papeis importantes que deveriam ser feitos pelo Executivo.

No front externo, percebemos variados problemas que podem levar a economia a uma retração produtiva. De um lado, o conflito entre Ucrânia e a Rússia, que muitos especialistas acreditavam que levaria os russos a graves constrangimentos internos e seria atropelado pela junção da Ucrânia e os exércitos da Otan (Organização do Tratado do Atlântica Norte), mas a realidade está se mostrando diferente, onde os ucranianos estão destruídos economicamente, com sua infraestrutura massacrada e com a morte de milhares de combatentes, gerando uma verdadeira degradação da nação.

No campo russo, os embargos que foram feitos para destruir a Rússia, mas na realidade, aconteceu o inverso. Muitas empresas ocidentais foram absorvidas por empresas russas, muitas empresas foram vendidas a preços módicos e fortaleceu o setor produtivo russo.

A guerra levou os países europeus a apoiar a Ucrânia e levou os russos a aumentarem o preço da energia, impactando fortemente os preços dos combustíveis, gerando aumento de preços internos e o incremento da inflação, obrigando os governos, como o alemão, a subsidiar a energia interna e, para isso, reduziu os repasses para as políticas públicas governamentais, gerando graves constrangimentos internos, queda da renda da população, redução dos investimentos produtivos e um maior desemprego, um verdadeiro constrangimento político que está contribuindo para p fortalecimento dos grupos políticos de extrema direita.

No outro front externo, é fundamental destacar que o conflito entre Hamas e Israel vem gerando constrangimentos para a sociedade internacional, motivando variados grupos políticos a confrontos generalizados, uns defendendo as políticas de Israel, destacando que como o país judeu foi atacado por Hamas com mais de 1,2 mil mortes sangrentas, tem o direito de se defender e partir para cima do Hamas como forma de retaliar os ataques recebidos. De outro lado, destacamos que a retaliação de Israel foi muito agressiva e desproporcional, atacando toda a região, matando milhares de civis, principalmente mulheres e crianças, destruindo a região da Faixa de Gaza e levando a morte de mais de 20 mil palestinos, uma desproporção pouco vista na história militar da humanidade.

Esse conflito vem gerando graves constrangimentos para toda a comunidade, motivando todos os setores, todas as nações a se posicionarem de um lado ou outro, levando a África do Sul representar contra o governo de Israel, onde o país africano defende que o Tratado Penal Internacional puna Israel pelo genocídio dos palestinos. O Brasil adotou uma posição a favor da representação da África do Sul, motivando críticas imensas entre os judeus e a posição do governo brasileiro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

‘Quem não sabe controlar dinheiro precisa de terapeuta, não de consultor financeiro’, diz autor

0

Morgan Housel, autor especializado em economia comportamental, foca o que nunca muda em nova obra

JÚLIA MOURA, FOLHA DE SÃO PAULO, 27/01/2024

SÃO PAULO Se alguém pudesse prever o futuro, essa pessoa certamente seria rica. Apesar de ser impossível, tentar antecipar o que está por vir está por trás de muitas decisões cotidianas, especialmente as relacionadas a investimentos.

Mas, e se, em vez de tentar prever as mudanças do futuro, identificássemos o que nunca muda? Essa é a premissa do novo livro de Morgan Housel, 37.

Por meio de diversas anedotas, o autor americano introduz conceitos-chave da economia comportamental em “O Mesmo de Sempre – Um Guia para o que Não Muda Nunca”, lançado pela editora Objetiva no Brasil, no fim de 2023.

Com essas lições, que envolvem histórias sobre Martin Luther King e Bill Gates e evocam reflexões pessoais, Housel espera melhorar a capacidade de tomar decisões dos leitores.

“O Mesmo de Sempre” funciona como uma continuidade do seu best-seller, “A Psicologia Financeira: Lições Atemporais sobre Fortuna, Ganância e Felicidade”, que vendeu mais de 3 milhões de cópias e foi traduzido para 53 idiomas.

Segundo Housel, o propósito do seu novo livro é instilar um pouco de humildade em todos. “Reconhecer que não sabemos o que vai mudar no futuro e focar o que sabemos que não vai mudar”, disse em entrevista à Folha.

Como obter independência financeira? Como controlar melhor as finanças?

Não há regras que sirvam para todos. Há pessoas que vão viver sua melhor e mais feliz vida se estiverem gastando a maior parte do seu dinheiro e também há as pessoas que só vão viver felizes se estiverem economizando muito dinheiro.

Eu acho que nasci com a mentalidade de ser poupador. [Guardar dinheiro] nunca foi um desafio para mim, mesmo quando eu ganhava pouco, sempre foi algo muito natural para mim. Nunca exigiu muito esforço. Mas acho que isso acontece porque é assim que meu cérebro é programado. Há pessoas que, se tentassem fazer isso, ficariam infelizes.

Então, acho que uma das primeiras regras [para ter independência financeira] é se descobrir. Se você sempre teve dificuldade para economizar, talvez isso faça parte de sua personalidade.

Também há as pessoas que genuinamente querem economizar e têm dificuldade para fazer isso. A partir daí, eu olharia internamente e perguntaria: “Qual é a causa de todos os gastos que você está fazendo?”. É porque está apenas tentando acompanhar as necessidades básicas de aluguel e comida? Ou porque está tentando mostrar às pessoas que tem roupas muito boas, um carro legal, um bom apartamento?

Isso pode ser o reflexo de algo mais profundo, que é o fato de você estar tentando ganhar respeito e admiração das outras pessoas por meio dos seus gastos, não por meio da sua amizade ou capacidade de amar, ser empático ou seu senso de humor.

Que dica você daria para alguém que não tem controle sobre o dinheiro?

Nessa situação, você não precisa de um consultor financeiro. Você precisa de um terapeuta que vá
um pouco mais fundo.

Se você é o tipo de pessoa controlada pelo dinheiro, isso é um indicativo de uma ferida mais profunda que você está tentando preencher. Em nove de cada dez vezes essa ferida o leva a tentar fazer com que outras pessoas o admirem e o respeitem, e você pensa que ter mais dinheiro é a única maneira de fazer isso. Reconhecer isso é algo muito importante.

O dinheiro é apenas uma ferramenta para, esperançosamente, dar a si mesmo uma vida melhor. Mas, para muitas pessoas, é mais como uma droga, que você pensa ser a solução para seus problemas, a chave para sua felicidade. Mas, se você é viciado nisso, não é. Na verdade, pode ser a fonte de seus problemas, a fonte de sua dor. E você precisa cavar um pouco mais fundo para descobrir de onde vem essa dor.

No que você investe?

Invisto quase exclusivamente em ETFs (fundos de índice) muito amplos, que contam com ações do mercado dos EUA e internacionais.

Em vez de tentar escolher uma determinada ação ou setor, eu quero possuir toda a economia. Essa é a aposta que estou fazendo porque, se eu mantiver as coisas simples assim, aumenta a probabilidade de eu poder seguir nessa estratégia pelos próximos 50 anos, e deixar que se acumule.

Historicamente, é aí que a maior riqueza foi encontrada.

Na sua visão, o debate em torno do dinheiro e educação financeira melhorou ao longo dos anos?

Melhorou por causa da internet. Antes, na década de 1990, a menos que você fosse rico, não poderia falar com um consultor financeiro. Eles eram restritos a pessoas ricas. Ninguém mais tinha informações, educação, visão do que estava acontecendo.

Hoje, qualquer pessoa com um telefone, não importa quanto dinheiro você ganhe, quanto dinheiro você tenha, tem acesso à informação. Essa democratização da informação tem sido enorme.

Agora, isso também abriu a porta para ver como pessoas ricas vivem, o que pode causar um sentimento de inveja e angústia social que alimenta preocupações com dinheiro. Antes disso, as pessoas de baixa renda socializavam principalmente com outras pessoas de baixa renda e não se sentiam tão pobres.

Qual o seu conselho para que as pessoas não caiam em golpes ou façam investimentos inadequados?

Qualquer pessoa que esteja prometendo a capacidade de ficar rico rapidamente, é certo que estão te enganando. A única maneira de ficar rico é empreender a sua própria ideia, ou acumular capital lentamente ao longo do tempo. Essas são as únicas maneiras de fazer isso.

Qualquer coisa intermediária, como “posso ficar rico com bitcoin rapidamente”, simplesmente não funciona. O mundo não é tão generoso com as pessoas a ponto de permitir que você fique rico da noite para o dia sem esforço.

Todo mundo tem que abrir mão de algo por sua riqueza, seja paciência, sejam os riscos que você assume como empreendedor. Não há caminhos fáceis para fazer isso.

Você se considera rico?

Eu me considero satisfeito, o que significa que tenho o suficiente para cuidar da minha família e dar a eles tudo o que precisam e muito do que querem.

Não usaria a palavra riqueza. Não acho que algo bom venha dessa palavra. Estar satisfeito com o que você tem é o melhor que você pode fazer.

O movimento das marés, por Oscar Vilhena Vieira

0

Tudo indica que nos EUA a onda de populismo autoritário voltará com mais força e fúria

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 27/01/2024

É um equívoco achar que as marés simplesmente passam. Elas vêm e voltam. E tudo indica que nos Estados Unidos a onda de populismo autoritário, encabeçada por Donald Trump, retornará com mais força e fúria. Ressentido, Trump não poupará esforços para romper as amarras estabelecidas pela Constituição para que possa exercer o poder sem embaraços.

Se há uma característica comum às diversas vertentes do populismo autoritário é o seu anti-institucionalismo. As instituições liberais, criadas para estabilizar relações e conter o exercício arbitrário do poder, devem ser subjugadas ou capturadas, para atender os desígnios do líder populista.

O emprego da Abin para investigar opositores e autoridades vistas como inimigas por Bolsonaro, além de proteger familiares, se comprovado, é uma amostra de como populistas autoritários instrumentalizam as instituições para atender seus objetivos.

Distintamente dos Estados Unidos, as instituições constitucionais brasileiras se demonstraram mais habilitadas a enfrentar este último ciclo de ascensão de um populista autoritário. Certamente nossa acidentada história política, marcada por golpes, regime autoritários e também por marés populistas, levaram o constituinte de 1988 a ser mais cuidadoso ao dispersar o poder e fortalecer as instituições de controle, especialmente os tribunais, de maneira que a captura e subordinação dessas instituições por um aventureiro de plantão se tornasse mais difícil.

Somado a isso, estabelecemos regras duras para aqueles que são desleais à democracia. No campo eleitoral, o abuso de poder político e o ataque às regras e instituições eleitorais pode levar a inelegibilidade, como aconteceu com Bolsonaro. Da mesma forma, o direito penal foi mobilizado para a defesa do Estado democrático de Direito, com a sanção da lei 14.197, em setembro de 2021, que substituiu a velha Lei de Segurança Nacional.

Necessário anotar que a aplicação da lei penal contra aqueles que conspiraram contra a democracia em 8 de janeiro ainda tem se demonstrado muito seletiva. Mandantes, financiadores, incitadores e aqueles que criaram uma cerca de proteção ao baixo clero golpista continuam impunes.

O sistema de defesa da democracia montado a partir de 1988 demonstrou, no entanto, outras fissuras. O exercício monocrático do poder conferido ao presidente da Câmara dos Deputados, para dar início ao processo de impeachment, e ao procurador-geral da República, para investigar e processar crimes comuns eventualmente praticados pelo presidente da República, aponta para problemas a serem corrigidos. Numa República não deve haver poder pessoal incontrastável.

Mais do que isso, essa falha no sistema, levou à necessidade de um engrandecimento do poder do Supremo, para suprir a omissão de outras esferas de proteção da democracia. Passada a crise aguda, que justificou uma conduta mais ativa da corte na contenção dos ataques autoritários, é fundamental que se busque desescalar o emprego dos mecanismos da “democracia defensiva”. Especial atenção deve ser conferida à questão da imparcialidade do Supremo. É da imparcialidade que deriva a principal fonte de autoridade de qualquer tribunal. Ministros que se tornaram alvos preferenciais das investidas antidemocráticas não podem permanecer responsáveis pela apuração de condutas de que foram vítimas.

Como alertava Benjamin Cardozo, histórico juiz da Suprema Corte norte americana, os juízes não estão a salvo das grande marés e correntes que engolfam as demais pessoas. E elas vêm e voltam.

Futuro e Confiança

0

Todos os indivíduos no mundo contemporâneo estão percebendo que a sociedade vem passado por grandes transformações nas últimas décadas, com impactos generalizados para todos os cidadãos e comunidades, mexendo nos comportamentos, alterando valores e exigindo investimentos crescentes na qualificação e na capacitação individual, como forma de encontrar empregos e recursos para a sobrevivência.

Nesta sociedade, marcada por grandes incertezas e instabilidades, estamos vislumbrando novas formas de organizações social, política e produtiva, alterando todas as bases constituídas na sociedade industrial e, destas modificações, percebemos o nascimento de uma nova comunidade, centrada nas tecnologias, no mundo digital, no imediatismo, no individualismo e na busca crescente pelo lucro e pela acumulação.

A velocidade destas transformações é assustadora, novas tecnologias surgem todos os dias, novos modelos de negócios nascem diariamente motivados pela intensa competição entre os agentes econômicos e produtivos, levando os seres humanos a buscarem qualificações diárias, numa constante concorrência que não é mais local, nem nacional, mas estamos presenciando uma competição global. Nesta nova sociedade, todas as bases que sustentavam as relações sociais da sociedade industrial, tais como a família, a escola, os relacionamentos e a religião vêm sentindo na pele as grandes modificações, gerando medos, ansiedades e depressões, desta forma, percebemos o incremento das preocupações com a saúde mental dos indivíduos, onde o desequilíbrio emocional cresce de forma acelerada, exigindo políticas públicas e intervenções governamentais direcionadas para amainar estes desajustes.

Neste mundo centrado nas incertezas e nas instabilidades, o medo ganha relevância, as certezas estão cada vez mais reduzidas e os ressentimentos ganharam espaço na comunidade, motivando extremismos, violências, polarizações e desagregações, que levam as nações a conflitos sangrentos, confrontos bélicos, gastos estrondosos em equipamentos militares e repressões seletivas. Neste cenário, grupos que difundem o caos generalizado, notícias negativas, degradações, cancelamentos e as violências crescentes se transformaram num grande negócio, garantindo lucros estratosféricos e negócios rentosos, fazendo a alegria dos acionistas destas corporações.

A confiança, historicamente, deveria ser vista como o cimento da consolidação da convivência social na comunidade, onde os agentes econômicos, políticos e sociais deveriam acreditar nas instituições, fortalecendo as decisões democráticas e estimulando a cooperação social como forma de aprofundar as instituições, melhorando as condições sociais, reduzindo as desigualdades e garantindo oportunidades para todos os seus cidadãos.

O sonho democrático vem perdendo espaço na civilização ocidental e, neste cenário, os extremismos crescem, políticos autoritários ganham relevância e fragilizam os ideais de convivência social democrática e, desta forma, o futuro da sociedade contemporânea está sempre em suspeição, os medos aumentam, as ansiedades crescem e os lucros disparam para uma pequena parcela da comunidade, setores que ganham com os extremismos, a balbúrdia, a degradação humana e a violência urbana.

As pesquisas recentes demonstram que a concentração da renda cresceu fortemente nos últimos anos, garantindo privilégios para poucos grupos sociais e condições degradantes e abjetas para uma grande parte da população. Muitas pessoas acreditam que essa desigualdade crescente se apresenta apenas na sociedade brasileira, ledo engano, o crescimento da desigualdade é um fenômeno global, impacta sobre todas as nações, gerando incertezas e instabilidades, contribuindo para a degradação da vida em comunidade, com o incremento da violência e um medo generalizado do futuro.

A confiança no futuro é fundamental para consolidarmos os ideais democráticos, deixando de lado medidas imediatistas, individualistas e centradas nos ganhos monetários e crucial para reconstruir a convivência social, garantindo educação de qualidade para todos, novas oportunidades, acabando com privilégios de poucos, combatendo injustiças cotidianas, reduzindo violência e vislumbrando horizontes melhores e mais consistentes.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

Narcogarimpo, política e genocídio yanomami, por Camila Rocha

0

Atividade ilegal é motor econômico em Roraima, e população local continuará a rejeitar pautas ambientais

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 22/01/2024

As trágicas imagens do genocídio yanomami em Roraima muitas vezes vêm acompanhadas da figura do garimpeiro. Tidos por parte da imprensa e dos movimentos sociais como “maus elementos”, os garimpeiros são, em sua maioria, pessoas pobres, descendentes de migrantes nordestinos, que passaram a ocupar a região amazônica a partir das décadas de 1960 e 1970 com incentivo de governos militares.

Na época, o apoio estatal ao garimpo era explícito, tanto que, em 1969, foi construído em Boa Vista (RR) o Monumento ao Garimpeiro. Porém, com a demarcação de terras indígenas prevista pela Constituição de 1988, o garimpo se tornou ilegal em tais territórios, o que possibilitou o surgimento do narcogarimpo.

De acordo com o sociólogo Rodrigo Chagas, professor da UFRR (Universidade Federal de Roraima), o termo narcogarimpo é utilizado para enfatizar afinidades eletivas entre as atividades do narcotráfico e do garimpo. Segundo Chagas, há uma complexa rede de aeroportos e portos ilegais por onde trafegam drogas e minérios, e é comum que o ouro extraído dos territórios indígenas seja utilizado para lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas. Hoje, 59% da população da Amazônia Legal vive em municípios com forte presença de facções criminosas.

Vários jovens de Boa Vista, sem maiores perspectivas de futuro, são atraídos por promessas de aventura, poder e riqueza de forma análoga aos jovens de São Paulo e do Rio de Janeiro cooptados pelo crime. Exemplar nesse sentido é Antônio, garimpeiro de 20 anos, encontrado escondido na mata após uma ação do Ibama. Confrontados por repórteres da Folha, o jovem, que garimpa desde os 16 em terras indígenas, indaga: “Como eu vou viver com R$ 3.000 na cidade? Aqui eu posso ganhar R$ 20 mil por mês”.

A despeito dos inúmeros desastres causados pela extração de minérios na região amazônica, se tornou comum que políticos “defendam” os interesses de garimpeiros. Esse é o caso de Jair Bolsonaro, contumaz defensor dos garimpeiros. Nas eleições de 2022, 76% dos eleitores de Roraima votaram no capitão reformado. Lula saiu vitoriosos apenas no município indígena de Uiramutã, onde angariou 68% dos votos.

Além de conquistar eleitores, Bolsonaro procurou atrair o apoio de empresários. Roberto Katsuda, um dos principais revendedores de retroescavadeiras usadas em garimpos no Pará e em Roraima, recebeu das mãos do ex-presidente uma medalha de “imbrochável”. Logo após a “honraria”, Katsuda seria investigado pela CPI do 8 de janeiro por ter financiado atos golpistas, com base em relatórios da Abin.

A agência classifica Katsuda como “notório defensor de garimpos em áreas protegidas e um dos maiores articuladores políticos” do tema. Além dele, Enric Lauriano, outro empresário do garimpo, também foi listado pela Abin como financiador de manifestações golpistas no Pará e em Brasília e participou presencialmente do ato no dia 8 de janeiro.

Como bem aponta o sociólogo Rodrigo Chagas, não há solução de curto prazo para a tragédia em Roraima. Enquanto o narcogarimpo figurar como o principal motor econômico da região, a população local continuará a rejeitar pautas ambientais, celebrar empresários como Katsuda e Lauriano, apoiar políticos pró-garimpo e invisibilizar o genocídio yanomami.

Ódio e violência: o perverso legado do bolsonarismo, por Leonardo Boff

0

Leonardo Boff – A Terra é Redonda, 13/04/2023

O legado pior e mais perverso deixado pelo presidente fujão e ladrão de presentes oficiais foi o de atiçar o ódio e a violência nas relações sociais

Quem durante quatro anos nos governou não foi bem um presidente mas um cappo com sua família, cuja característica principal, utilizando as redes sociais, a linguagem chula, os comportamentos grosseiros, a mentira como método, a vontade de destruir biografias, a distorção consciente da realidade, a ironia e a satisfação desumana sobre a doença do Presidente Lula e da Presidenta Dilma, a omissão consciente no trato do coronavírus que sacrificou pelo menos 300 mil pessoas, o genocídio consentido do yanomami, a aquisição praticamente ilimitada de armas letais, a difusão do ódio e da violência, geraram o que ultimamente assistimos: alguém invade uma creche e assassina quatro inocentes crianças e deixa outras feridas.

Há outros casos de alunos que esfaquearam uma professora e um estudante, outro que mata seu colega de escola e outros tantos crimes desse jaez praticados no âmbito escolar, sem referir a violência policial nas periferias das cidades onde jovens negros e outros pobres são abatidos impunemente. Mata-se por motivos fúteis como a disputa por um pedaço de pizza.

O legado pior e mais perverso deixado pelo presidente fujão e ladrão de presentes oficiais, doados por autoridades de outros Estados, além de inúmeros outros crimes políticos, foi este: atiçar o ódio e a violência desbragada nas relações sociais.

Nem chorar nem só lamentar, mas procurar entender: donde nos vem a violência bárbara que tantas vítimas fez em nosso pais? Observemos um pouco a história: Alfred Weber,i rmão de Max Weber, em seu resumo da história universal, nos relata que dos 3.400 anos de história documentada, 3.166 foram de guerra. Os restantes 234 anos não foram certamente de paz, mas de trégua e preparação para outra guerra. As guerras do século passado, ao todo, mataram 200 milhões de pessoas. Como se depreende, a violência e seus derivados estão enraizados em nossa história. Ele levanta uma interrogação, expressa na troca de cartas entre Albert Einstein e Sigmund Freud em 30 de julho de 1932.

Einstein pergunta ao fundador da psicanálise, Freud: “há um modo de libertar os seres humanos da fatalidade da guerra…é possível tornar os seres humanos mais capazes de resistir à psicose do ódio e da destruição?”. Freud realisticamente responde: “não existe a esperança de poder suprimir de modo direto a agressividade dos seres humanos. Contudo podem-se percorrer vias indiretas, reforçando o Eros (princípio de vida) contra o Tánatos (princípio de morte). Tudo o que faz surgir laços afetivos entre os seres humanos, age contra a guerra. Tudo o que civiliza o ser humano trabalha contra a guerra”.

A cultura, a religião, a filosofia, a ética e a arte foram sempre expedientes para frear ou sublimar o impulso de morte. Mas mostraram-se insuficientes. Por isso entendemos a resposta resignada de Freud a Einstein: “esfaimados, pensamos no moinho que tão lentamente mói que podemos morrer de fome antes de receber a farinha”.

Na verdade das coisas, os sábios da humanidade nos fizeram entender que somos seres ambíguos. No dialeto religioso dizia Santo Agostinho: “somos simultaneamente Adão e simultaneamente Cristo”.

Não dizia outra coisa Lutero quando afirmava: “somos simultaneamente justos e pecadores”. Nos tempos atuais foi um sábio de 103 anos, Edgar Morin que continuamente nos recorda: pertence à condição humana, sermos ao mesmo tempo sapiens e demens. Isso não é defeito de criação, mas a nossa constituição enquanto humanos. Em outras palavras, somos seres portadores da dimensão de amor e de ódio, de luz e de sombra, da pulsão de vida e da pulsão de morte, do sim-bólico (que une) e do dia-bólico (que desune). Somos a unidade dialética destas contradições.

A opção de base que tomarmos, se o amor, se a luz, se a vida, se o sim-bólico funda nossa ética humanitária. Se assumirmos o contrário instauramos a ética desumana e cruel. Embora ambos os polos convivam e sem podemos eliminá-los nem recalcá-los, é a centralidade que conferimos a uma destas polarizações que define nosso percurso de vida, vital ou letal e nossos comportamentos éticos.

Se o que dissemos é verdade, então importa sermos realistas e sinceros e reconhecer que a violência que se aninha dentro de nós, irrompeu na figura sinistra do presidente anterior. Ele conseguiu que seguidores tirassem a dimensão de ódio que estava neles e deu-lhe franco curso. Utilizou todos os modos possíveis, desde a calúnia, a mentira, as fake news, a violência verbal através dos vários meios digitais, a violência direta, ameaçando de morte pessoas e efetivamente matá-las.

O humano “demasiadamente humano” vale dizer, a porção sombria e dia-bólica ganhou visibilidade e exercício impune sob o regime bolsonarista e com seu incentivador.

O mais grave do bolsonarismo e de seu cappo é ter deseducado os jovens, promovido a linguagem de baixo calão, os comportamentos agressivos, os preconceitos contra os mais vulneráveis, os pobres, os negros, os quilombolas, os indígenas, as mulheres, vítimas de incontáveis feminicídios e pessoas de outra opção sexual. Todos estes foram difamados, perseguidos, violentados e não poucos assassinados, especialmente estes últimos.

Basta esta história de horrores vividos durante quatro anos. Mas o povo deu-se conta de que assim não se pode viver e conviver. Elegeram, pela terceira vez, alguém, um representante da senzala social: Luiz Inácio Lula da Silva. Seu governo se confronta com uma tarefa ingente: reconstruir uma nação devastada no seu corpo e no seu espírito. As raízes desse desumanismo estão ainda aí e estarão sempre, pois, são parte de nossa condição. Mas as mantemos sob controle. O povo e a nação optou pela luz contra a sombra, pelo amor contra o ódio, pelo sim-bólico contra a dia-bólicos.

Devemos nos manter sempre vigilantes, para que os demônios (que junto com os anjos) que nos habitam, inundem a consciência dos bolsonaristas e destruam sistematicamente o que gerações e gerações com suor e sangue construíram. Eles não passarão. Como não passaram outros chefes de estado criminosos e inimigos da vida.

*Leonardo Boff, é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Brasil: concluir a refundação o prolongar a dependência? (Vozes).

A economia brasileira continuará a crescer? por Paulo Nogueira Batista Júnior

0

Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda, 12/01/2024

Baixar os juros favorece o crescimento e afeta favoravelmente a distribuição da renda nacional e as contas públicas, mas o BC precisa manter juros altos para agradar a Patifaria Lima

A economia brasileira continuará a crescer? É a pergunta que muitos fazem e que alguns economistas, temerários, se animam a responder. Fato é que a economia cresceu algo como 3% ao ano em 2022 e 2023, o que configura certa recuperação. Nada de espetacular, verdade, mas já é um começo. O que interessa, entretanto, é saber se o crescimento continuará nos próximos anos. O que esperar de 2024 e 2025?

Depende, em grande medida, da política econômica do governo, em especial da política fiscal e da política monetária. Os economistas dedicados a fazer projeções regularmente não estão muito otimistas. Entraram o ano prevendo um prevendo um aumento do PIB de apenas 1,6 % em 2024 e de 2% em 2025. Resultados medíocres, se as previsões se confirmarem.

Felizmente, podemos dizer que essas projeções não têm grande valia – como vimos em 2022 e 2023, quando as taxas de expansão econômica previstas no início do ano foram largamente superadas pelos resultados observados. Nenhuma novidade. Os economistas sempre demonstraram uma crônica incapacidade de identificar relações funcionais estáveis e, portanto, de antecipar minimamente o futuro. Como dizia Galbraith, a única função das previsões econômicas é conferir certa respeitabilidade à astrologia.

E, no entanto, cabe reconhecer que o pessimismo atual dos economistas não é de todo descabido. Ressalte-se, primeiramente, que uma acentuada desaceleração da economia brasileira está em curso desde o terceiro trimestre de 2023. O crescimento do ano passado apresentou pontos vulneráveis.

Dependeu muito do setor primário-exportador e do consumo das famílias. A indústria de transformação estagnou e a formação bruta de capital fixo caiu. A taxa agregada de investimento, que já era insuficiente, diminuiu mais, ficando abaixo de 17%. Com um rimo tão modesto de investimento e de criação de capacidade produtiva, fica difícil sustentar taxas adequadas de crescimento econômico.

O que explica essa performance sofrível? Uma razão, bem conhecida nossa, é a política de juros altos praticada sistematicamente pelo Banco Central. A autoridade monetária demonstra uma aversão instintiva e profundamente arraigada a tudo que possa parecer crescimento econômico. Ao menor sinal de reativação da economia, acendem-se sinais de preocupação no BC, que logo passa a remar em direção contrária. E tem praticado, como se sabe, as maiores taxas de juro reais do planeta Terra. Quando não são as maiores, estão sempre entre as maiores. Houve, é verdade, certa diminuição dos juros básicos desde meados de 2023, mas foi em ritmo lento, deixando as taxas reais nas alturas.

Pode ser que isso mude. O Comitê Política Monetária do BC, o famigerado Copom, conta agora com quatro integrantes nomeados pelo governo Lula. É verdade que são nove ao todo e o presidente continua a ser aquele foi nomeado pelo governo de Jair Bolsonaro, em razão da lei de autonomia do Banco Central conferir ao comando da instituição mandatos fixos não coincidentes com o do
Presidente da República. De todo modo, quatro em nove já é suficiente para fazer alguma diferença – a menos que os novos membros do Copom se contentem em ser meras vacas de presépio, aceitando bovinamente a linha definida pelo presidente do Banco Central. Não acredito e por isso arrisco dizer que há esperanças.

Até porque são tantos e tão evidentes os malefícios dos juros estratosféricos que podemos supor que, cedo ou tarde, haverá de baixar uma luz providencial lá no Banco Central. O leitor já deve ter escutado, provavelmente mais de uma vez, os argumentos contra a política de juros altos. Mas vale a pena insistir uma vez mais, dado que os juros brasileiros continuam na lua.

São três os malefícios principais. Primeiro, o já referido impacto adverso sobre o crescimento econômico. Com juros altos e crédito escasso, cai a demanda por bens duráveis de consumo e, mais importante, o nível de investimento em capacidade nova de produção. Para que correr o risco de aventurar-se em novos empreendimentos ou na ampliação dos existentes, se o dinheiro pode ficar aplicado em segurança, liquidez e rendendo juros confortáveis? Neste paraíso do rentista chamado Brasil, não compensa ser empresário.

Segundo malefício: a política de juros altos concentra a renda nacional, pois o que ela faz é transferir renda para aqueles que detém patrimônio financeiro, ou seja, para as minorias aquinhoadas. Eis um argumento que deveria sensibilizar os corações e mentes num país como o nosso, que apresenta, desde sempre, uma das piores distribuições de renda do planeta. Deveria, mas não faz nem cócegas nos círculos ilustres da Patifaria Lima. Ali, a preocupação principal, quase exclusiva, repetida ad nauseam, é com o risco fiscal e o desequilíbrio das contas públicas.

E, com isso, chegamos ao terceiro grande malefício dos juros altos e, ao mesmo tempo, a uma notável contradição no discurso da turma (ou turba) da bufunfa. Veja, leitor, que coisa curiosa.

O que é o risco fiscal? Basicamente, o fato de o déficit público gerar uma expansão da dívida que pode ser revelar insustentável. Recomenda-se, portanto, zerar o déficit primário das contas do governo, em linha com o que promete o arcabouço fiscal do ministro Fernando Haddad.

O curioso é que os que alardeiam as suas preocupações com o risco fiscal, raramente, quase nunca, se referem ao componente financeiro do déficit público. É uma omissão sintomática, que reflete os interesses da Patifaria Lima. O assunto omitido nada tem de misterioso. O déficit público reflete menos o déficit primário do que a despesa líquida de juros do governo. Esta por sua vez decorre da política monetária. Em 2023, por exemplo, estima-se que o déficit total tenha representado cerca de 8,3% do PIB, correspondendo a um déficit primário de 1,5% e a uma despesa líquida de juros mais de quatro vezes maior, de 6,8% do PIB.

Não perder de vista que o crescimento da dívida pública, que tanto preocupa os economistas do mercado, está associado ao déficit total e não somente ao primário. Não se justifica, assim, o foco exclusivo ou quase exclusivo no resultado primário, isto é, nas contas exclusive a carga de juros.

No Brasil, a dívida pública é sobretudo interna e o seu custo depende diretamente das taxas básicas fixadas pelo Copom. Para ser considerado monetariamente responsável pela Patifaria Lima, o Banco Central precisa manter juros altos. Pouco importa se essa suposta responsabilidade monetária conflita com as declaradas preocupações com a responsabilidade fiscal.

Em resumo, baixar os juros favoreceria o crescimento e, de quebra, afetaria favoravelmente a distribuição da renda nacional e as contas públicas. Resta saber se juros menores seriam suficientes para garantir a manutenção de um crescimento razoável da economia nos próximos dois anos. Talvez não. A experiência sugere que a política fiscal joga um papel tão ou mais importante que a monetária. O investimento privado depende do investimento público; o consumo, das transferências sociais.

A função mais importante da política monetária na atual conjuntura talvez seja a de abrir espaço para uma política fiscal mais flexível sem que isso se reflita em crescimento preocupante da dívida pública. Aqui entram o arcabouço fiscal e as suas metas ambiciosas de resultado primário para os próximos dois anos: déficit zero em 2024 e superávit em 2025. Metas fixadas, recorde-se, para tranquilizar a Patifaria Lima e aplacar as suas desconfianças em relação ao governo Lula.

Nessa situação estamos. Precisamos de uma política fiscal flexível para reverter a estagnação.

Mas as metas vigentes correm o risco de levar a uma política contracionista, exatamente o contrário do que se necessita. Ave Patifaria Lima, morituri te salutant – os que estão prestes a morrer te saúdam.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 12 de janeiro de 2024.

O que realmente sabemos sobre a economia global, por Martin Wolf

0

Da demografia à tecnologia, devemos prestar atenção nas forças que certamente moldarão nosso futuro

MARTIN WOLF, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 16/01/2024

FINANCIAL TIMES

O que vai acontecer com a economia mundial? Nunca saberemos a resposta para essa pergunta.

Década após década, algo grande e em grande parte inesperado ocorreu —a grande inflação e os choques do petróleo na década de 1970, a desinflação no início da década de 1980, a queda da União Soviética e o surgimento da China na década de 1990, as crises financeiras nas economias de alta renda na década de 2000 e a pandemia, inflação pós-pandemia e guerras na Ucrânia e no Oriente Médio nesta década de 2020.

Vivemos em um mundo de riscos concebíveis e obviamente importantes. Alguns —guerra entre grandes potências nucleares— poderiam ser devastadores. A dificuldade é que eventos de baixa probabilidade e alto impacto são quase impossíveis de prever.

No entanto, também sabemos de algumas características importantes de nossa economia global que não são incertas. Também devemos considerá-las. Aqui estão cinco delas.

A primeira é a demografia. As pessoas que serão adultas daqui a duas décadas já nasceram. As pessoas que terão mais de 60 anos daqui a quatro décadas já são adultas.

A mortalidade pode aumentar, talvez por causa de uma terrível pandemia ou uma guerra mundial.

Mas, a menos que ocorra uma catástrofe desse tipo, temos uma boa ideia de quem estará vivendo daqui a décadas.

Várias características de nossa demografia são bastante claras. Uma delas é que as taxas de fertilidade —o número de filhos nascidos por mulher— têm caído em quase todos os lugares.

Em muitos países, especialmente na China, as taxas de fertilidade estão muito abaixo dos níveis de reposição.

Enquanto isso, as maiores taxas de fertilidade estão na África Subsaariana. Como resultado, sua participação na população global pode aumentar em 10 pontos percentuais até 2060.

Essas mudanças demográficas são resultado do aumento da longevidade, da transformação nos papéis econômicos, sociais e políticos das mulheres, da urbanização, dos altos custos da paternidade, das melhorias na contracepção e das mudanças na forma como as pessoas julgam o que vale a pena em suas vidas.

Apenas grandes choques poderiam concebivelmente mudar qualquer uma dessas coisas.

Uma segunda característica é a mudança climática. Talvez as tendências atuais sejam revertidas a tempo.

Mas as emissões de gases de efeito estufa mal se estabilizaram, enquanto o mundo continua a ficar mais quente à medida que os estoques desses gases na atmosfera continuam a aumentar. É uma aposta segura que isso continuará acontecendo por muito tempo.

Se assim for, as temperaturas certamente subirão muito mais do que 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, que nos disseram ser o limite superior de segurança razoável. Teremos que trabalhar mais para mitigar as emissões. Mas também teremos que investir pesadamente em adaptação.

Uma terceira característica é o avanço tecnológico. O progresso em energia renovável, especialmente a queda no custo da energia solar, é um exemplo. Avanços nas ciências da vida são outro exemplo.

Mas, em nossa era, a revolução nas tecnologias da informação e comunicação é o centro desse progresso.

Em “The Rise and Fall of American Growth”, Robert Gordon, da Universidade Northwestern, argumentou de forma convincente que a amplitude e a profundidade da transformação tecnológica diminuíram, quase inevitavelmente, desde a segunda revolução industrial do final do século 19 e início do século 20.

A tecnologia de transporte, por exemplo, mudou muito pouco em meio século. Mas a transformação no processamento de informações e comunicação tem sido surpreendente.

Em 1965, Gordon Moore, que fundou a Intel, argumentou que “com o custo unitário diminuindo à medida que o número de componentes por circuito aumenta, até 1975 a economia pode exigir a compressão de até 65 mil componentes em um único chip de silício”. Isso estava certo.

Mas surpreendentemente, a lei de Moore continua sendo verdadeira quase meio século depois. Em 2021, o número de tais componentes era de 58,2 bilhões. Isso permite maravilhas no processamento de dados.

Além disso, 60% da população mundial usou a internet em 2020. Mais transformações na forma como vivemos e trabalhamos devem seguir a partir disso. O desenvolvimento e uso da inteligência artificial é o exemplo mais recente.

Uma quarta característica é a disseminação do conhecimento pelo mundo. As regiões em desenvolvimento do mundo que se mostraram mais hábeis em absorver, usar e promover esse conhecimento estão no leste, sudeste e sul da Ásia, que contêm aproximadamente metade da população mundial.

A Ásia em desenvolvimento também continua sendo a região de crescimento mais rápido do mundo.

Dada a capacidade —e a oportunidade— de alcançar, é uma aposta segura que isso continuará. O centro de gravidade da economia mundial continuará a se deslocar na direção dessas regiões.

Isso inevitavelmente criará mudanças políticas. Na verdade, já criou. O rápido crescimento econômico da China é o grande fato geopolítico de nossa era. No longo prazo, o crescimento da Índia provavelmente também terá grandes consequências globais.

Uma quinta característica é o próprio crescimento. De acordo com o trabalho atualizado do falecido Angus Maddison, bem como do FMI, a economia mundial cresceu todos os anos desde 1950, exceto em 2009 e 2020. O crescimento é uma característica inerente à nossa economia.

As Perspectivas Econômicas Globais recentes do Banco Mundial observam que o que se avizinha em 2024 é “um marco lamentável: o desempenho de crescimento global mais fraco de qualquer quinquênio desde a década de 1990, com pessoas em uma em cada quatro economias em desenvolvimento mais pobres do que antes da pandemia”.

No entanto, mesmo nesse período afetado pelo choque, a economia mundial cresceu, mesmo que de forma desigual entre países e pessoas, e de maneira desigual ao longo do tempo. Não estamos entrando em uma era de estagnação econômica global.

É fácil ser sobrecarregado por choques de curto prazo. Mas o urgente não deve ser permitido a superar nossa consciência do importante. Em segundo plano, as grandes forças descritas acima remodelarão nosso mundo. Enquanto melhoramos nossa capacidade de responder a choques, devemos prestar muita atenção a eles.

Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista, por José de Souza Martins

0

José de Souza Martins – A Terra é Redonda, 13/01/2024

A conquista do Outro

O tema da chamada “escravidão contemporânea”, no Brasil, não significa a mesma coisa em diferentes bocas e em diferentes escritos. Nem mesmo significa sempre propriamente escravidão. E nem sempre é apresentado em perspectiva propriamente científica. Mesmo em estudos acadêmicos, são muitas as incertezas conceituais e são frequentes as tentações do mero denuncismo em si, sem penetrar nas causas, fatores, consequências sociais e funções econômicas de sua ocorrência e persistência no capitalismo subdesenvolvido.

Diferentemente do que pode pressupor o senso comum, mesmo de pessoas e instituições empenhadas, por ímpeto de justiça, em combatê-la, a escravidão contemporânea não é expressão casual de uma maldade, de uma esperteza de quem a pratica, de um desconhecimento do que ela propriamente é – um crime.

Apesar de eventuais incertezas e vacilações na sua definição, desde os anos 1970, pelo menos, em diferentes lugares do mundo organizações humanitárias e os Estados têm se empenhado em combater a escravidão e punir sua prática. Também aqui no Brasil. Aqui tem sido forte a tendência com o objetivo de, com justiça, submeter cada vez mais as empresas e os autores do crime de escravização aos rigores da lei.

Isso apesar de termos ainda uma disseminada e indevida certeza de impunidade e de reiterados casos de ações baseadas no equívoco de suporem os autores que a violência privada de jagunços e pistoleiros, recrutados como aparato repressivo na situação de trabalho, vale também na resistência aos agentes da lei. Casos de assassinatos de militantes da causa antiescravista e até mesmo de funcionários das agências oficiais de repressão ao trabalho forçado não têm sido raros. Apesar de o Brasil ser signatário, desde os anos 1920, de convenções internacionais que obrigam os Estados nacionais à proibição da escravidão e a combatê-la, porque se trata de crime, muitos ainda acham que o proprietário de terra pode legitimamente ser, também, proprietário de gente.

Ainda agora, em 2023, dois fazendeiros do sul do Pará foram condenados a cinco anos de prisão pela submissão de 85 trabalhadores a trabalho análogo ao de escravidão. A ocorrência é de 2002, mas o crime de escravização é imprescritível. O processo vinha se arrastando desde que dois menores de idade conseguiram fugir da fazenda em que eram escravizados e denunciaram a irregularidade às autoridades. O processo chegou a desaparecer, mas foi reconstituído. Foi a julgamento agora em consequência de uma sentença de condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O juiz federal substituto da Comarca de Redenção, no sul do Pará, sentenciou os fazendeiros no dia 27 de junho de 2023.[1]

A importância dessa condenação é enorme. A escravidão praticada no Brasil tem peculiaridades que a diferenciam de outras variantes da escravização de seres humanos na atualidade: a de que ela é, em primeiro lugar, expressão de contradições do subcapitalismo que temos. Ela está praticamente inscrita na estrutura lógica desse capitalismo. O restante é dela decorrente e dela componente, como a maldade necessária à sujeição de um ser humano, como se fosse um animal, indício de atraso social e de falta de identificação de quem dela se vale com a condição humana. Mas, sobretudo, indício de um complexo de degradações sociais necessárias à naturalização do cativeiro para que ele cumpra a função iníqua que o motiva.

Na trama de suas relações e de suas causas não há propriamente escolha. Os fatores econômicos se comunicam, seus custos e seus ganhos impõem-se à trama inteira. A própria vítima dela participa não por conivência e impotência, mas por estratégia de sobrevivência em nome da sua diferença social, enquanto alternativa social e histórica. Em nome de um possível que da contradição resulta, que tem visibilidade para ela, mas não tem para quem a explora e oprime. E não tem necessariamente para quem presume defendê-la e em seu nome reivindicar justiça e direitos.

Nesse sentido, este livro não é apenas nem principalmente um livro sobre a atualidade da escravidão. Trata-se de um estudo sobre o modo como o capital organiza empreendimentos econômicos em áreas de condições sociais, econômicas e ambientais de quase ausência do Estado, em face das quais não tem sido incomum o recrutamento de trabalhadores, já de antemão previsto, mas não revelado, que trabalharão como escravos.

Na verdade, essa escravidão é opção inevitável da vítima pela alternativa degradante e não capitalista de trabalho. É para resistir à ameaça e aos efeitos socialmente corrosivos da expansão do capitalismo sobre territórios e comunidades camponesas, de populações originárias, indígenas, caipiras e sertanejas.

Trabalho que, mesmo quando não acarreta ganho, no endividamento do trabalhador, que acaba trabalhando de graça, diminui na família, na entressafra, o número de bocas para a comida insuficiente.[2] E, se houver algum ganho, mesmo aquém do valor criado pelo trabalho cativo em relação ao saldo recebido, será um benefício com base na ideologia camponesa do trabalho de sobrevivência contra a ideologia capitalista do trabalho lucrativo. Essa é a contradição cuja causa a sociologia pode decifrar.

O trabalho escravo é a dolorosa expressão do verdadeiro conflito histórico entre os desvalidos e o capital, um dos conflitos estruturais do capitalismo brasileiro na disputa da terra de trabalho, a terra de sobrevivência, contra a terra de negócio e rentismo, de usurpação, a de um capitalismo subdesenvolvido. É a questão agrária como questão do trabalho que dá sentido a esse conflito e a esse drama. Os autores de digressões sobre a “escravidão contemporânea” omitem-se em relação a essa contradição, sociologicamente explicativa. A do assalto indireto do capital ao mundo camponês, assalto através das mediações de ocultamentos sociais para viabilizar os resultados econômicos de sua reprodução ampliada.

As regiões e as comunidades dessas populações têm sido com frequência os lugares de aliciamento de camponeses para o trabalho sob escravidão por dívida. Não se trata, pois, de uma referência geográfica, mas de uma mediação social datada, pré-capitalista, cujo atraso histórico interessa ao capital, mas cuja resistência e sobrevivência interessa sobretudo à vítima – o camponês e as populações originárias.

Esse atraso lhes é, na verdade, um capital cultural e político, que só se desperdiça porque lhe faltam as mediações políticas e partidárias. O atraso, na verdade, é dos partidos na falta de reconhecimento e compreensão do significado e da função política dos grupos humanos deixados à margem da história por uma opção equivocada em favor de uma concepção de progresso socialmente excludente.

Variam as motivações, muitas vezes extracientíficas, dos estudiosos, que, ao revelar e denunciar ocorrências, desprezam, porque as desconhecem ou minimizam, as contradições explicativas e reveladoras da realidade social problemática. As que sociologicamente compreendem o visível e o não visível, o falso e o verdadeiro. Os fatores revelados e os fatores ocultos do processo histórico. Os fatores de reiteração e os de transformação da realidade, os que criam socialmente o novo e, ao mesmo tempo, recriam o que parece ser o já existente, como interpreta e explica Henri Lefebvre.[3] Os que estão presentes na estruturação das condições sociais do cativeiro, isto é, na disputa e dominação do capital pelos lugares e situações comunitários e tradicionais da sociabilidade e da autonomia camponesas e da economia da produção direta de meios de vida, paralelamente à de excedentes comercializáveis. Os das populações excluídas e originárias.

Ou, então, os que desvendam e expõem as invisibilidades próprias do capitalismo num país subdesenvolvido, como o nosso, e expõem as vulnerabilidades do voluntarismo dos que se dedicam a questioná-lo e a combatê-lo, prisioneiros do superficial e aparente. O que é tão característico da moda política de hoje, mas divorciado das revelações da ciência e das duras verdades e incertezas das contradições sociais. A incômoda constatação científica de Marx, de que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem…”.[4] E menos ainda como os outros querem fazê-la em nome de todos sem legitimamente representá-los.

Esse desencontro é o cerne explicativo de toda a sociologia marxiana. É um questionamento que define o perfil deste livro na linha da tradição do pensamento sociológico crítico, ou seja, dialético, o de ampliação e aprofundamento do conhecimento sobre a realidade social além do mero agora. O desvendamento e o questionamento da alienação social, que acoberta a realidade, enquanto falsa premissa de ciência que há na militância desinformada e superficial.

A questão da “escravidão contemporânea” é, na sociologia, questão de urgência e é também questão de enfrentamento do poder de minimização dos problemas sociais, cada vez mais intenso da pós-modernidade. Esta é a sociedade da ocultação das verdades profundas e causais da história e da sua própria historicidade.

Muitos querem, altruisticamente, combater a iniquidade de relações de trabalho antissociais e anti-humanas. Outros querem, de modo não tão altruístico, combater as interpretações que podem estar em desacordo com suas opiniões de senso comum, seus interesses e conveniências partidários e ideológicos, seu exibicionismo político.

Um livro como este é uma proposta de desembaralhar, na perspectiva da ciência, essa diversidade opinativa, e desse modo criar as condições para uma interpretação objetiva e crítica da grave questão, no sentido marxiano de conhecimento explicativo, sociológico, de diferentes modalidades de conhecimento: “das representações, das ilusões de classe, dos instrumentos ideológicos”.[5] Único modo de situá-la no marco da possibilidade de sua superação, e iluminar o caminho desse ser solitário, invisível e difuso que intui no dramático da vida o desafio da transformação social libertadora como obra de correção e de superação das injustiças que negam a todos o direito à sua humanização. Se há um único escravo numa sociedade como esta, todos nós estamos atados à sua situação, porque a sociedade é relacional. Somos sujeitos do mesmo sistema de relacionamentos e de minimização da condição humana.

Ao se falar em escravidão atual está se falando, necessariamente, numa anomalia resultante das contradições sociais de um modelo de sociedade que tem nome: a sociedade capitalista mutilada e insuficientemente realizada, como a brasileira, atravessada pelo primado de interesses econômicos e consequentes irracionalidades que negam o capitalismo e crucificam a sociedade.

De uma análise assim, não resulta receita legítima de militância e ativismo indeterminados e desconectados da estrutura social profunda que dá sentido aos movimentos sociais. Resulta a referência para o que Hans Freyer definiu e Florestan Fernandes explicou: a sociologia como consciência científica da realidade social,[6] caso em que o ativismo não é nem pode ser teatro, para que possa ser práxis socialmente transformadora.

Os capítulos deste livro foram escritos com independência uns dos outros, por motivações tópicas, em épocas diferentes, a partir de uma mesma e demorada observação sociológica.

O volume tem, porém, uma unidade interpretativa e de revisão crítica de análises que dela carecem porque, no meu modo de ver, estão distantes de uma problematização científica de investigação do grave problema social do trabalho escravo, apesar dos esforços já feitos por vários pesquisadores, devidamente citados nos lugares adequados.

A unidade do livro está exposta no Capítulo I, e é a da opção por um método de explicação que corresponda à natureza social do problema de investigação. Que é a de uma realidade que por ser social é cambiante, que se transforma mais depressa do que a competência do senso comum para compreendê-la.

Em relação ao método e ao conjunto do texto, há compreensivelmente alguma reiteração de referências a esse núcleo explicativo do livro, nos diferentes capítulos. O que se deve ao requisito de clareza do próprio fluxo expositivo do texto, mas sobretudo à necessidade de explorar os detalhes da interpretação correspondente ao respectivo tópico e suas conexões com a linha teórica da obra.

*José de Souza Martins é professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de O cativeiro da terra (Ed. Contexto).

Referência
José de Souza Martins. Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista. São Paulo, Editora Unesp, 2023, 270 págs.

Mudanças econômicas

0

A economia internacional vem passando por grandes alterações nas últimas décadas com o crescimento e o fortalecimento do processo de globalização, que impacta fortemente sobre todos os governos, empresas e a sociedade civil. Nestas mudanças, alguns grupos econômicos e sociais ganham com estas constantes transformações, enquanto outros setores perdem espaço neste mundo de constantes alterações, gerando novos desafios e, ao mesmo tempo, novas oportunidades que exigem uma grande capacidade de reinvenção, agilidade e forte flexibilidade sob pena de perderem espaço no mundo do trabalho, centrados nas constantes incertezas e instabilidades.

Neste momento, percebemos que os governos vem adotando políticas para fortalecer suas estruturas econômicas e produtivas, consolidando vantagens comparativas e competitivas, investindo maciçamente para capacitar e qualificar a mão de obra, com fortes incentivos na formação de capital humano, investindo em pesquisa, ciência e tecnologia como forma de antecipar as grandes transformações na tecnologia global, onde o mundo analógico vem perdendo espaço e a consolidação de um mundo digital, fortemente tecnológico, com novos modelos de negócios, com novas instituições, com novos conceitos e uma competição mais acirrada e implacável, onde os ganhadores levam tudo e os perdedoras são relegados ao esquecimento.

Ao analisar os dados macroeconômicos brasileiros, percebemos uma melhora sensível nestes indicadores: inflação em queda, superávit comercial recorde, taxas de juros em redução, aumento dos níveis de emprego, redução do endividamento das famílias, aumento dos investimentos, fortalecimento da moeda nacional, dentre outros motivos que levaram as agências de classificação de risco a elevarem a nota do Brasil no mercado internacional, trazendo ganhos fiscais sensíveis, com diminuição do endividamento externo e melhorando a imagem do Brasil no cenário internacional.

Neste ambiente marcado por grandes transformações econômicas e produtivas motivadas pelo processo de globalização, a melhora da economia nacional nos traz novos horizontes e possibilidades positivas, nos posicionando em uma condição interessante, como somos dotados de grandes riquezas naturais e marcados por uma grande variedade de energias alternativas e renováveis, num mundo carente destas possibilidades, onde encontramos países ricos e desenvolvidos que passam por grandes dificuldades energéticas e custos assustadores ligados a degradação do meio ambiente, levando suas estruturas produtivas a perderem competitividade em decorrência do incremento da inflação e do aumento do custo de vida, vide o caso Alemão, que vem perdendo espaço no mercado internacional, gerando graves constrangimentos internos e fragilizando o bloco europeu, aja vista que a Alemanha é a força motriz da economia europeia.

Os indicadores macroeconômicos brasileiros estão apresentando melhoras consideráveis, mesmo assim, sabemos que precisamos melhorar mais rapidamente para reduzir as dívidas históricas acumuladas para grande parte da população nacional, pessoas que prescindem de políticas públicas para melhorar suas condições de vida, emprego digno e decente e a construção de novos espaços de ascensão econômica e social, atualmente concentradas em poucos grupos sociais, na maioria das vezes a tão sonhada ascensão econômica está relacionada a heranças e vinculados a grandes grupos financeiros, além de grande capacidade de influência política.

As mudanças econômicas estão acontecendo, embora lentamente, as pautas estão sendo modificadas, assuntos vistos como improváveis estão entrando na agenda econômica, a tão sonhada taxação de fundos exclusivos se transformou em realidade, a política industrial que sempre foi endemoniada pelos economistas liberais está sendo retomada no mundo todo e a economia verde vem ganhando espaço no cenário econômico nacional, com discussões acaloradas e políticas efetivas para garantir recursos para capacitar nossa população. Neste momento, quem sabe, possamos eliminar os parasitas econômicos que pouco produzem e sempre ganham divulgando o caos generalizado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Reconstrução da confiança no futuro, por Klaus Schwab

0

A atual onda de pessimismo não tem precedentes

Klaus Schwab, Fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial

Folha de São Paulo, 15/01/2024

O aumento da divisão, a escalada da hostilidade e o crescimento dos conflitos estão definindo o cenário global atual. A necessidade eterna de gestão de crises está esgotando a fundamental energia do ser humano, que, de outra forma, poderia ser canalizada para moldar um futuro mais otimista.

Apesar ter havido graves crises no passado, a atual onda de pessimismo não tem precedentes. E, ao contrário do que ocorreu no passado, o poder e a presença da mídia global e da tecnologia de comunicação significam atualmente que todos os desafios e contratempos estão ampliados, potencializando ainda mais a sensação de desgraça e tristeza.

Depois de uma era que tirou um bilhão de pessoas da pobreza e melhorou os padrões de vida em todos os lugares, a ansiedade gerada pelo medo de perder o controle sobre o que está por vir tem levado as pessoas a abraçar ideologias extremas e os líderes que as defendem.

É de fundamental importância que se reconstrua a confiança no nosso futuro. A questão é por onde começar, dadas as circunstâncias complexas de hoje.

De modo semelhante a um diagnóstico médico, devemos primeiro identificar e abordar as causas do nosso mal-estar. Estamos em um momento crucial da história, mas ainda nos apegamos a soluções defasadas. Um fator complicador é estarmos lidando com muitos problemas ao mesmo tempo, todos profundamente interconectados e que se reforçam de forma mútua. Não há solução rápida ou desfecho único para todos os problemas. O fato é que devemos abordar todos os sintomas de forma holística.

Em primeiro lugar, não temos mais uma narrativa de como revigorar nossas economias, que hoje estão sobrecarregadas por níveis insustentáveis de dívida e inflação, corroendo o poder de compra das pessoas. As políticas monetárias e fiscais tradicionais perderam força e as políticas relativas às demandas estão agravando ainda mais o fardo das dívidas.

O que é crucialmente necessário neste momento é uma nova abordagem, que promova a transição para uma economia verde, digital e inclusiva, como uma grande oportunidade para a criação de empregos e o aumento do poder de compra e, finalmente, com foco em crescimento econômico sustentável.

Em segundo lugar, as mudanças climáticas são uma clara ameaça para as gerações atuais e, especialmente, para as futuras. Devemos responder a esse desafio aumentando a acessibilidade, a segurança e a sustentabilidade em termos de energia, ao mesmo tempo em que reduzimos as dependências geoeconômicas e geopolíticas. Com o avanço tecnológico,
a energia renovável mais barata está prontamente disponível e pode contribuir substancialmente para um mundo mais equitativo, com impactos de longo alcance no meio ambiente, na qualidade de vida e na longevidade.

Um terceiro ponto a ser considerado é que estamos vivendo uma era de desenvolvimento tecnológico exponencial, particularmente com o advento da inteligência artificial. Essas tecnologias podem ser forças extremamente disruptivas se não forem bem geridas, mas também podem servir como catalisadoras de um renascimento da humanidade, tornando possíveis novas dimensões da criatividade humana e promovendo colaboração e compreensão sem precedentes.

Essas narrativas holísticas exigem cooperação global, nacional e local, especialmente em um mundo que está se tornando mais competitivo e multipolar, marcado por crescentes divisões sociais e incertezas generalizadas.

Conversas abertas e transparentes podem restaurar a confiança mútua entre indivíduos e nações que, por medo do futuro, priorizam seus próprios interesses, diminuindo a esperança de um futuro mais próspero.

Para nos afastarmos das dinâmicas impulsionadas pela crise e promover a cooperação, a confiança e uma visão compartilhada para um futuro melhor, devemos criar uma narrativa positiva que possibilite as oportunidades apresentadas por este ponto de virada histórico.

Hipocrisia global, por Hélio Schwartsman

0

Seletividade de governos em relação a direitos humanos reduz confiança em instituições responsáveis por protegê-los

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.
Folha de São Paulo, 13/01/2024

Relatório da ONG Human Rights Watch (HRW) afirma que a seletividade com que governos tratam direitos humanos mina a confiança nas instituições responsáveis por proteger esses direitos. Não vejo como discordar.

Líderes globais são rápidos em denunciar violações cometidas por países com os quais têm diferenças, mas mostram tolerância inesgotável para com abusos perpetrados por nações amigas. “Quando governos condenam veementemente os crimes de guerra do governo de Israel contra civis em Gaza, mas silenciam frente aos crimes contra a humanidade do governo chinês em Xinjiang, ou exigem punições internacionais em relação aos crimes de guerra russos na Ucrânia ao mesmo tempo que minimizam a responsabilização dos EUA pelos abusos no Afeganistão, enfraquecem a crença na universalidade dos direitos humanos e na legitimidade das leis destinadas a protegê-los”, diz a HRW.

Na mosca. O nome disso é hipocrisia e, como já ensinava La Rochefoucauld, hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude. Cabe a ONGs, à mídia independente e a quem mais quiser apontar as contradições dos governantes e cobrar-lhes coerência. Mas não devemos ser ingênuos a ponto de achar que isso muda o jogo. Lidamos aqui com alguns dos mais profundos vieses humanos, que não serão revertidos com lições de moral.

O interessante é que, apesar dessa falha catastrófica, o sistema funciona. A analogia aqui é com a ciência. O ideal seria que cientistas, em nome da autocorreção, procurassem obsessivamente falhas em suas teorias e experimentos. No mundo real, porém, cientistas tendem a defender e não atacar suas próprias ideias. Erros e imprecisões costumam ser descobertos por grupos rivais. E é o que basta. O importante é que os desacertos sejam apontados, não importa tanto por quem.

Continuando com La Rochefoucauld, “a opinião que nosso inimigo tem de nós está mais perto da verdade do que a nossa própria”.

O 8/1 e a lembrança de que o futuro do planeta depende das urnas, por Ilona Szabó de Carvalho

0

Defesa do Estado de direito exige sociedades mais justas, inclusivas e sustentáveis

Ilona Szabó de Carvalho, Presidente do Instituto Igarapé, membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral. da ONU, e mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia)

Folha de São Paulo, 10/01/2024

As lembranças e algumas revelações trazidas à tona no aniversário de um ano dos lamentáveis atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 reforçaram a compreensão, assustadora, do quão perto estivemos de um golpe de Estado, algo que nos últimos 40 anos julgávamos haver sido extirpado do vocabulário político brasileiro.

Nem as ameaças, nada veladas, feitas ao longo do governo anterior, nos prepararam para a fúria golpista de uma militância de extrema-direita mobilizada por uma avalanche de desinformação e teorias da conspiração compartilhadas – e amplificadas – nas redes sociais.

O terreno foi pavimentado por líderes com pretensões autoritárias e narrativas online cada vez mais sofisticadas e abundantes, que minaram a confiança no sistema eleitoral e atacaram instituições democráticas, em especial, o Judiciário.

O problema não é uma jabuticaba brasileira. Mundo afora a cartilha se repete: populistas se elegem sob um verniz de institucionalidade para, uma vez no poder, adotarem práticas de enfraquecimento do sistema de freios e contrapesos, de silenciamento da oposição e de extermínio de instrumentos de controle à expansão de poder. O próprio ataque ao Capitólio americano em 2021 corrobora o fato de que o fechamento do espaço cívico e as ameaças à democracia são um fenômeno global.

Nesse quesito, 2024 será um ano decisivo. Pela primeira vez na história, mais da metade da população mundial será impactada por eleições nacionais: quase 2 bilhões de pessoas em mais de 70 países irão às urnas.

Se podemos esperar este ano avanços significativos em tecnologias digitais e verdes, financiamento climático e em outras agendas relevantes, o aprofundamento da polarização política e dos conflitos que se espalham da Europa ao Oriente Médio, chegando às Américas, nos leva a cenários de alto risco para a democracia.

Não é exagero dizer que o progresso global da sociedade depende do que acontece nas urnas, e de se os resultados dos pleitos irão na direção da busca por oportunidades de convergência e cooperação para enfrentar os desafios comuns à humanidade.

O exemplo mais contundente dessas ameaças potenciais são as eleições presidenciais nos EUA. O ex-presidente Donal Trump, enquanto trava uma batalha na Justiça para definir a sua responsabilidade pelos ataques ao Capitólio, já conseguiu mobilizar seu partido e eleitores, e lidera as pesquisas.

O legado dos ataques golpistas não parece claro nos EUA, mas, no Brasil, a história parece estar sendo escrita com outros contornos. Para além da destruição de patrimônio físico e institucional dos poderes que fundamentam o funcionamento democrático da sociedade brasileira, o 8 de janeiro deixou no rastro duas importantes constatações. A primeira: o Brasil é capaz de defender sua democracia. A segunda é que não basta a eterna vigilância – a defesa do Estado de direito exige alcançarmos sociedades mais justas, inclusivas e sustentáveis.

A sociedade civil tem um papel fundamental para que os governos se mantenham responsáveis, monitorando o cumprimento de suas promessas e cobrando a formulação e implementação de políticas públicas que posicionem o interesse público no centro das prioridades. E as eleições municipais que teremos aqui são um bom começo para trazer no nível local aquilo que gostaríamos de alcançar a nível global.

Em um ano de tantos desafios, o Brasil pode liderar pelo exemplo, construindo e adotando de fato políticas de redução das desigualdades e de combate à tripla crise planetária, traçando estratégias responsáveis para fazer frente aos impactos da transformação digital e erguendo pontes em um mundo multipolar por meio da cooperação, do diálogo e do compromisso com a democracia.

Viciada em combustíveis fósseis, humanidade se acomoda a recordes de temperatura, por Marcelo Leite

0

Calor extremo faz de 2023 o Ano do Sapo, quando a Terra chegou à ebulição climática, após décadas a caminho da fervura

Marcelo Leite, Folha de São Paulo, 10/01/2024

Entre os 12 animais que marcam os anos do calendário chinês não há lugar para batráquios, mas 2023 bem poderia ser identificado como o Ano do Sapo: aquele em que a Terra chegou ao ponto de ebulição climática, após décadas a caminho da fervura, por ação e omissão de governos e populações.

Era para ter saltado fora, há muito tempo, do caldeirão aquecido pela queima de combustíveis fósseis. Mas pouco se fez desde 1992, quando se adotou na Rio-92 a Convenção da ONU sobre Mudança Climática. A humanidade segue lançando CO2 na atmosfera como se não houvesse amanhã.

Não cabe alegar surpresa, assim, com a confirmação de que 2023 foi o ano mais quente já registrado desde a era pré-industrial. A temperatura do ar na superfície do planeta esteve 1,48°C acima da média no período 1850-1900, anuncia o relatório Destaques do Clima Global, compilado pelo Serviço Copernicus de Mudança do Clima, da União Europeia.

Tangenciou-se, com esse recorde, o limiar de segurança (1,5°C de aquecimento) traçado pelo Acordo de Paris (2015). Isso não implica, decerto, que essa fronteira prudencial tenha sido cruzada de modo permanente.

O clima terrestre está sujeito a grandes variações interanuais. Nada garante que 2024 venha a ser mais quente que 2023, ou que 2025 se revele mais escaldante que 2024, e assim por diante. Fica cada vez mais claro, porém, que a inação internacional alimenta uma curva ascendente.

O pico anual anterior cabia a 2016. Portanto, nesse intervalo de seis anos entre os recordistas a temperatura desviou-se menos das médias históricas.

Por outro lado, salta aos olhos que se iniciou uma era de alta sustentada nos termômetros e nas observações por satélite. Basta mencionar que todos os dez anos mais ardentes pertencem ao decênio em curso, ainda que numa aparente desordem: 2023, 2016, 2020, 2019, 2015, 2017, 2022, 2021, 2018 e 2014.

Todos os dias do ano passado estiveram, pela primeira vez, pelo menos 1°C acima da média 1850-1900. Metade deles superou 1,5°C; dois dias em novembro ultrapassaram 2°C, uma ocorrência inaudita.

A chaleira atmosférica de 2023 estava sobre duas bocas do fogão climático, o aquecimento global causado pela humanidade com a emissão de CO2 e um El Niño que se patenteou em meados do ano.

Esse aquecimento anormal das águas do Pacífico põe em polvorosa o clima no globo todo, com eventos extremos como as chuvas no Sul e as secas no Norte e no Nordeste do Brasil.

Há mais, como assinala o relatório do Copernicus. Outros oceanos também tiveram suas superfícies incomumente aquecidas, em especial o Atlântico Norte. Durante oito meses de 2023 o gelo marinho em volta da Antártida esteve abaixo das mínimas mensais correspondentes; o recorde geral de encolhimento ocorreu em fevereiro passado.

Não por acaso, a concentração de CO2, principal gás do efeito estufa, seguiu em alta, esta sim linear (a não ser pela variação sazonal observada a cada ano). Alcançou-se a marca de 419 ppm (partes por milhão), a mais alta em 100 mil anos. Em 2005, era da ordem de 375 ppm; na era pré-industrial, 280 ppm.

Uma vez emitido, o dióxido de carbono permanece por séculos na atmosfera, com metade dele absorvido em cerca de 120 anos. Cada tonelada emitida hoje —e são cerca de 37 bilhões delas lançadas a cada ano— continuará perturbando o clima com que terão de se virar nossos netos, bisnetos, tetranetos…

Para cumprir Paris, as emissões de carbono, principalmente devido à queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral e gás natural), precisam ser reduzidas em 43% até 2030 —em seis anos, portanto. E, depois, eliminadas por completo até 2050, ou pelo menos neutralizadas, se até lá decolarem as prometidas tecnologias de retirada de carbono da atmosfera.

Para esquivar-se da redução imperativa, a indústria dos fósseis se apega às quimeras da captura e estocagem de carbono, do gás natural como combustível de transição (emite menos CO2 por unidade de energia produzida do que o petróleo e o carvão) e da renda do petróleo para financiar a revolução energética. Vão fazer de tudo para extrair o máximo do subsolo, antes que as restrições inevitáveis se materializem.

Se o fizerem, como planeja a Petrobrás na margem equatorial brasileira, será o equivalente de empresários que vendem todas as ações da firma quando sua insolvência se torna irrecorrível. No setor dos fósseis, as jazidas que não têm cabimento explorar são chamadas de ativos encalhados (“stranded assets”).

Nações não são empresas, assim como governos não são suas diretorias. Líderes que se pretendem estadistas deveriam enxergar além do horizonte de 4 ou 8 anos dos ciclos eleitorais, resistindo à pressão de investidores, burocratas, corporativistas e chantagistas.

Nesse sentido, é mau sinal que a próxima cúpula do clima, a COP29, em Baku (Azerbaijão), vá ser presidida por Mukhtar Babayev, ministro da Ecologia e Recursos Naturais que fez carreira na estatal petrolífera daquele país. A COP28, em Dubai (Emirados Árabes), foi chefiada por um executivo do petróleo, Sultan Ahmed al-Jaber, e deu no que deu —nada que faça diferença.

A reunião seguinte, COP30, será em Belém (PA). Ali, do lado da foz do rio Amazonas, do outro lado da ilha de Marajó, não tão distante assim, em termos amazônicos, das jazidas de óleo e gás que a Petrobras quer porque quer explorar. Não faltarão sapos nos arredores.

STF e desinformação especializada, por Georges Abboud

0

Mídia chama de ativismo toda decisão do STF que lhe desagrade

Georges Abboud, Advogado, livre-docente e professor da PUC-SP.

Folha de São Paulo, 09/01/2024

Há mais de uma década pesquiso o tema ativismo judicial, o que se materializou em um livro, e uma das principais conclusões é a transformação do STF em inimigo ficcional por um projeto político de parcela extremada da sociedade e da política brasileiras.

Infelizmente, criticar e atacar o STF tem se apresentado como técnica eficiente e popular para a obtenção de votos, leitores e cliques. E nisso reside o risco de parte da mídia se pautar por trending topics sob pretexto de realizar uma análise isenta a respeito do Supremo.

Duas são as formas pelas quais a mídia profissional, ainda que involuntariamente, dissemina desinformação com relação ao STF. A primeira é relacionada à Operação Lava Jato.

Parcela da mídia não aceita que a constatação dos abusos gere consequências concretas que lhe são naturais, como a revisão dos julgamentos ou das penas e multas abusivas que foram impostas.

Houvesse verdadeira criteriologia, a mídia teria cobrado maior celeridade e assertividade na contenção e extinção da Lava Jato e se escandalizaria com as fundações privadas bilionárias que a Lava Jato tentou criar com auxílio de organismos internacionais em vez de vivenciar essa síndrome do sofrimento sem fim.

A segunda forma de desinformação decorre de uma avaliação pseudotécnica das decisões do STF que, basicamente, sem qualquer rigor técnico, chama de ativismo toda decisão do STF que desagrade a mídia ou parcela extrema da população brasileira.

Recentemente, o STF, na pessoa do ministro Dias Toffoli, sofreu duras críticas que demonstram as formas de desinformação explicadas acima.

A primeira se deu em razão da suspensão do acordo de leniência de uma companhia brasileira que foi notoriamente vítima da Lava Jato. A decisão apenas aplicou entendimento pacificado do STF em tantos outros casos na mesma situação e não anulou multa alguma, mas tão somente suspendeu seus aspectos patrimoniais para assegurar a uma investigada o direito de acessar as provas da Operação Spoofing para que pudesse verificar a extensão dos abusos sofridos. Ou seja, para a companhia não foi feito nada que já não estivesse consolidado no STF e, por diversas vezes, sido concedido a dezenas de outros réus.

Ocorre que parcela da mídia especializada afirmou que o STF, por meio do ministro atacado da vez, teria “perdoado” a dívida. Inclusive foi o que escreveu um colunista desta Folha, cuja expertise parece ter deixado o direito para se voltar à livre e baixa agressão ao STF, em uma verborragia travestida de crítica.

Ora, houvesse algum cuidado institucional, qualquer pessoa, inclusive o ombudsman, poderia verificar que não houve anulação da multa. Anular e suspender são ações distintas, tanto no direito quanto na língua portuguesa.

A outra decisão que gerou histeria midiática se refere à suspensão da decisão do TCU que havia interrompido a reintegração do pagamento adicional por tempo de serviço à magistratura, igualmente alvo de enfurecidas colunas e editoriais, que esqueceram, contudo, de explicar o real busílis: a decisão apenas reafirma que o TCU não tem competência para controlar decisão do CNJ, apenas o STF. Ou seja, está correta.

O livro de Bernhard Fulda demonstrou como a fragmentação da mídia profissional em comunicações hostis foi um fator chave para a derrocada da República de Weimar e para a ascensão do nacional-socialismo na medida em que constantemente propagava o risco da “violência comunista”. Assim, em sua conclusão, a mídia foi crucial para tornar o nazismo uma alternativa atraente.

A responsabilidade institucional da mídia impõe a ela própria que a divulgação da atuação do STF não pode ser feita de forma irresponsável numa era de extremos, sob pena de se tornar impopular aquilo que a mídia não explica, quando ela própria não explica aquilo que lhe parece impopular.

Para que não haja espaço para um novo 8 de Janeiro, cabe à mídia finalmente compreender que o direito e as decisões judiciais são mais complexos que os trending topics, do contrário, contribuirá, de forma até pueril, para tornar atraente algum projeto fascistoide.

O liberalismo está abalado, mas ainda não quebrado, por Martin Wolf

0

Liberais compartilham a confiança de que seres humanos podem decidir as coisas por si mesmos

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 09/01/2024

A ideia central da democracia —de que os governos são responsáveis perante os governados— ainda é valorizada em grande parte do mundo. De que outra forma explicar o fato de que mais da metade da população mundial vai votar este ano?

No entanto, o mundo também tem passado por uma “recessão democrática”, como Larry Diamond, da Universidade Stanford, chama, há quase décadas.

O poder da autocrática China tem aumentado. Vladimir Putin sufocou a democracia na Rússia. O autoritarismo está triunfando em muitos países. A reeleição de Donald Trump, após sua tentativa de derrubar o resultado da última eleição presidencial dos Estados Unidos, também seria uma mudança decisiva na democracia mais influente do mundo.

No entanto, o que está acontecendo não é principalmente uma perda de confiança nas eleições em si. Afinal, os autoritários frequentemente usam as eleições para consagrar seu poder.

Como Francis Fukuyama argumenta em seu livro recente, “”Liberalismo e seus Descontentamentos”, “as instituições liberais que estão sob ataque imediato”.

Ele está se referindo aqui às instituições centrais —tribunais, burocracias não partidárias e mídia independente. Estamos vendo uma perda de confiança no liberalismo, o conjunto de crenças que pareciam tão triunfantes após a queda da União Soviética.

Afinal, o que é o liberalismo? Escrevi sobre isso em uma coluna publicada em 2019, em resposta a uma afirmação de Putin de que “a chamada ideia liberal já cumpriu seu propósito”.

O liberalismo, argumentei, não é o que os americanos geralmente pensam que é, porque a história de seu país é única. O que os liberais compartilham é a confiança nos seres humanos para decidir as coisas por si mesmos. Isso implica o direito de fazer seus próprios planos, expressar suas próprias opiniões e participar da vida pública.

Essa capacidade de exercer agência depende da posse de direitos econômicos e políticos. São necessárias instituições para proteger esses direitos.

Mas essa agência também depende de mercados para coordenar os agentes econômicos, mídia livre para debater a verdade e partidos políticos para organizar a política.

Por trás dessas instituições estão valores e normas de comportamento —um senso de cidadania; crença na necessidade de tolerar aqueles que diferem de si mesmo; e a distinção entre ganho privado e propósito público, necessária para conter a corrupção.

O liberalismo é uma atitude, não uma filosofia completa do mundo. Ele reconhece conflitos e escolhas inevitáveis. É ao mesmo tempo universal e particular, idealista e pragmático. Ele reconhece que não pode haver respostas finais para a pergunta de como os seres humanos devem viver juntos. No entanto, ainda existem princípios centrais.

Sociedades baseadas em princípios liberais são as mais bem-sucedidas na história mundial. Mas tanto elas quanto suas ideias estão em disputa.

Como observou o Centre for the Future of Democracy [Centro para o Futuro da Democracia] em um relatório publicado no final de 2022, a invasão da Rússia galvanizou o apoio à Ucrânia entre as democracias liberais ocidentais. Mas o oposto aconteceu em grande parte do resto do mundo.

“Como resultado, China e Rússia estão agora ligeiramente à frente dos EUA em sua popularidade entre os países em desenvolvimento.” Isso certamente é preocupante. Além disso, acrescenta, com base em pesquisas que abrangem 97% da população mundial, isso “não pode ser reduzido a interesses econômicos simples ou conveniência geopolítica”.

“Pelo contrário, segue uma clara divisão política e ideológica. Em todo o mundo, os melhores preditores de como as sociedades se alinham são seus valores e instituições fundamentais —incluindo crenças na liberdade de expressão, escolha pessoal e o grau em que as instituições democráticas são praticadas e percebidas como legítimas”, afirma o relatório.

Uma maneira interessante de analisar isso é fornecida pelo “Mapa Cultural Inglehart-Welzel”, da World Values Survey. Ele mapeia valores em dois eixos: um mostra o foco na “autoexpressão” em relação à “sobrevivência”, o outro mostra o foco em valores “seculares” em relação a valores “tradicionais”.

Notavelmente, diferentes regiões do mundo estão em lugares muito diferentes. O destaque na autoexpressão (um valor liberal central) é relativamente alto na Europa Ocidental e nos países de língua inglesa, com os países africanos-islâmicos no extremo oposto.

Curiosamente, as sociedades “confucianas” têm maior ênfase em valores seculares, em oposição a valores tradicionais, do que os EUA. O ponto principal, no entanto, é que as diferenças de valores são profundas.

Alguns aspectos do Liberalismo —como mercados livres, por exemplo— viajam com bastante facilidade, mas outros —como a mudança de normas de gênero, por exemplo–, não.

No entanto, a resistência ao liberalismo é evidente não apenas no exterior. Também é doméstica. Fukuyama destaca, por exemplo, como a esquerda progressista e a direita reacionária concordam com a centralidade das identidades de grupo na política dos EUA.

Eles concordam também que suas diferenças são sobre quais grupos detêm o poder, em vez de como criar as melhores oportunidades iguais para os indivíduos. Mas os conflitos de poder são um jogo de soma zero.

Além disso, a esquerda “progressista” parece ter esquecido que, em uma guerra de identidades, as minorias quase certamente perderão. Por que esses ativistas não conseguem entender esse ponto óbvio?

Com o liberalismo em xeque não apenas em todo o mundo, mas até mesmo em seus redutos, é fácil acreditar que o futuro está nas políticas autoritárias e nos valores sociais tradicionais. Se assim for, este século pode ecoar o anterior, embora sem o fervor revolucionário daquela época.

O apelo do “grande líder” que assumirá tudo para si mesmo parece eterno. Também são eternos os confortos do tribalismo, das hierarquias tradicionais e das verdades antigas. Também é eterno o carisma do profeta revolucionário que promete transformar a sociedade para melhor. Conflitos sobre poder e modos de vida são inevitáveis.

Além disso, a liberdade sempre significará escolhas difíceis. Ela é necessariamente limitada. Significa responsabilidade, ansiedade e insegurança. No entanto, a liberdade é preciosa. Ela deve ser defendida, por mais difícil que seja essa tarefa.

O que aprendi com Clara Mattei, por Francisco Rohan de Lima

0

Pensadora italiana desvenda os perigos da austeridade que, ao despolitizar a economia, isenta tecnocratas do escrutínio democrático – e abre caminhos para o fascismo. Uma pista para entender o “casamento” entre Bolsonaro e Guedes

Francisco Rohan de Lima – Outras Palavras, 23/02/2023

A liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente.” Rosa Luxemburgo (1871-1919), filósofa polaco-germânica.

Como eu havia prometido no texto que escrevi para Outras Palavras e para o blog de Lúcio Flávio Pinto,1 volto ao tema da austeridade na economia para comentar o livro da professora Clara Mattei, cujo título, em tradução livre, é A ordem do capital – como economistas inventaram a austeridade e prepararam o caminho para o fascismo2. Fiquei curioso porque, como escrevi antes, sempre ouvi e li que austeridade, um princípio de ordem moral indicativo de prudência e moderação, deveria ser aplicado à gestão econômica das nações, evitando endividamento excessivo, descontrole e ineficiência de gastos do governo. Uma frase clichê encapsula esse tipo de abordagem: as contas públicas devem ser administradas com a mesma prudência de uma dona de casa na economia doméstica.

Mas nós sabemos que, com assuntos complexos, nada pode ser assim tão simples. Tive um mestre na minha juventude que, quando eu tentava transformar ideias muito complexas em formulações simplistas, que não podiam ser desenvolvidas e eram incapazes de solucionar um problema difícil, costumava dizer: “Simplificou, morreu”. De fato, na simplificação, o raciocínio paralisa por inanição e morre, incapaz de prosperar. O mestre tinha razão. Mattei sabe disso também. Seu livro foi feito para nos mostrar que seu conceito de austeridade faz sentido.

A simplificação artificial explica por que a gestão da economia doméstica, por exemplo, não pode ser comparada à gestão da economia pública. Assim, o governo pode criar dívida muito facilmente; o governo pode imprimir moeda; o governo pode criar receita. Ora, a dona de casa não pode nada disso. Por que, então, apesar dessas diferenças claras, continuamos a ouvir esse discurso?

O dilema liberal que produz a ideia de austeridade

Uma resposta possível é que a ideia de austeridade está arraigada no pensamento do homem moderno, desde os primórdios das formulações sobre economia, a partir do século XVII. O arquiteto original da austeridade é John Locke (1632-1704), o pai do liberalismo e, na sua concepção fundadora, a instituição do Estado só é admitida para proteger a propriedade. Mas, mesmo apenas com esse objetivo, custa dinheiro. Se custa dinheiro, é preciso que o governo seja moderado e prudente, afirmam os fundadores da Economia.

Eis aí a origem ancestral do dilema liberal que produz a ideia de austeridade. Keynes, com sua ironia habitual, escreveu certa vez que “as ideias de economistas e de filósofos, tanto quando têm razão quanto não a tem, são mais poderosas do que normalmente se pensa.” “Na verdade”, disse ele, “o mundo é governado por homens práticos, que se creem bastante isentos de quaisquer influências intelectuais, e que são normalmente escravos de algum economista defunto.”3

Outro motivo porque continuamos a ouvir esse discurso sobre austeridade e ele tem tanta importância, refere-se ao fato de que, desde o século XVII, o Estado se agigantou formidavelmente, demandando gastos e endividamentos colossais. Um terceiro motivo diz respeito ao sucesso das grandes economias dos países desenvolvidos, que seguiram o princípio de austeridade aplicado às políticas econômicas, ao contrário do fracasso daqueles que não adotaram tais medidas.4 Mas, quanto a essa última razão, de novo, nada pode ser tão simples, pois mesmo em cada economia desenvolvida, há os que estão à margem dos benefícios daquele desenvolvimento.

Estamos falando de quantidades maiores ou menores, cada vez maiores, de marginalizados do trabalho formal, por avanços na tecnologia, e sua face oposta, o obsoletismo tecnológico, por monumentais consolidações empresariais na produção e na circulação de bens e serviços, pela globalização e suas cadeias de produção segmentadas e complementares, pela inteligência artificial e automação, pela busca de menores custos e mais eficiência nos resultados, através de inovações e realimentação das máquinas de conhecimento, consumo e constante mutação, que produzem, além de riquezas numa ponta, excluídos em série na outra.

Estaríamos caminhando para a sociedade beneficente geral, na qual um terço das populações seria simplesmente mantido por uma mesada governamental, embutida na economia dos países mantenedores?

Estaríamos caminhando para a precificação da exclusão? E no sentido de varrer essa preocupação para debaixo do tapete? E para desistir dos desfavorecidos, com bolsas disso e daquilo? Desistir da educação de qualidade para todos, com políticas de cotas? Abandonar os abandonados? Sim, estou criticando as soluções precárias. O que quero dizer é que não podemos ficar apenas na emergência. É preciso trabalhar em soluções sustentáveis e permanentes.

O atrito corrosivo que está no ar

A marcha capitalista é uma guerra em andamento contínuo e constante. A sociedade moderna se caracteriza pela mudança permanente, uma contradição em termos. “Portanto, só os ciclos são eternos”, escreveu Pepetela, o grande escritor angolano5. Como disse outro alguém, referindo-se à sociedade capitalista: um tubarão que deve nadar para não morrer por asfixia. Assim, empresas gigantes se formam, são vendidas, se fundem, e se dissolvem num piscar de olhos. Novas tecnologias surgem para serem superadas no momento seguinte.

Por ironia da história, é o capitalismo que confirma e atualiza a pregação da extinção por atrito na frase genial de Marx & Engels, escrita para o combate: “Tudo que é sólido desmancha no ar”6. Sobre os excluídos, Yuval Noah Harari7, o célebre estudioso israelense, fala do famoso gap (disparidade). De um lado os incluídos, que detêm conhecimento, habilidades tecnológicas, dinheiro e sintonia com as mudanças culturais e científicas; de outro lado os excluídos, que estão expelidos, na bolha da segregação social, marginalizados do sistema, sem meios de sair dessa situação. Harari classifica esse problema como um dos grandes desafios da Humanidade no século XXI.

Há, porém, outro tipo de segregado, atualizado com as ferramentas tecnológicas, mas estagnado no negacionismo, incapaz de superar as rupturas da modernidade e isolado, à mercê de delírios autoritários, sem capacidade e interesse em sair dessa situação. É desse último lugar que surgem as falanges do fascismo atual.

A reação intelectual ao neoliberalismo

A partir de algum momento, pelo que li, durante e após o governo Thatcher no Reino Unido e o governo Reagan, nos EUA, e depois do fracasso do experimento comunista – estamos falando da década de noventa – começaram a ressurgir os pensadores sociais, marxistas ou neomarxistas, forjados no combate ao Consenso de Washington (final dos anos 80), marco da origem do que passou a se chamar de neoliberalismo.

Encontramos, assim, o trabalho monumental de Thomas Piketty8, com seus diversos livros sobre a teoria econômica e social. Devemos mencionar, dentre muitos outros, a combatividade intelectual de Mark Blyth9, e o pensamento original da professora Wendy Brown10. São todos persuasivos e brilhantes em sua formulação de crítica ao establishment controlado pelos economistas do mainstream, sociais-democratas, liberais, ultraliberais ligados a Universidade de Chicago, leia-se Milton Friedman (1912-2006), ou ordoliberais, estes próximos da combinação estatal com o mercado, de origem alemã.

A esse combate de ideias e na trincheira da esquerda, vem juntar-se a jovem professora Clara Mattei e seu livro, cujo título tanto me intrigou por vincular de forma tão expressiva a ideia de austeridade ao fascismo. Não nos enganemos, Clara Mattei é uma pensadora com raízes no diagnóstico marxista do capital, que traz suas ideias ancoradas na luta de classes para denunciar o uso da austeridade nos últimos cem anos e o neoliberalismo mais recente para o esmagamento da força de trabalho, não com a meta de extingui-la, mas para estiolar o seu vigor representativo. Ela resume bem nestas linhas: “As três formas de políticas de austeridade – fiscal, monetária, e industrial – trabalharam em uníssono para desarmar as classes trabalhadoras e exercer a pressão sobre os salários.” Como isso foi feito? Por que esse tema continua atual?

A ordem do capital, austeridade: fascismo

Clara Mattei começa atualizando o conceito de austeridade. Diz ela que austeridade, tal como a conhecemos agora, surgiu após a Primeira Guerra Mundial como um método para evitar o colapso do capitalismo. Ou seja, economistas em posições de poder utilizaram ferramentas políticas para tornar todas as classes da sociedade mais investidas na produção capitalista privada, mesmo quando essas mudanças atingiram profundos (e involuntários) sacrifícios pessoais.

Seu livro, A ordem do capital, é dedicado da seguinte forma: “Para Gianfranco Mattei e revolucionários em todos os lugares – passado, presente e futuro”11 (Não falei para vocês no meu artigo anterior, sobre o seu livro, que ela tinha algo de Rosa Luxemburgo no olhar?). O trabalho busca sustentar que o principal objetivo da adoção da austeridade, como princípio, seria a despolitização da economia ou a reinstalação de um divisor entre política e economia, que o cenário pós-Segunda Guerra teria borrado ou dissolvido.

Essa despolitização incluiria a retirada do Estado da consecução de objetivos econômicos, revertendo o comando para forças impessoais do mercado, permitindo, segundo ela, o sufocamento de qualquer contestação da relação proprietário vs salários ou da propriedade privada. Fique claro, aqui, que a professora se refere à Itália dos anos 1920. Visto que no pós-Segunda Guerra o mundo explodiu na rebeldia: o movimento feminista, o sindicalismo revolucionário, Cuba, o rock, a geração beat, as denúncias de Nikita Khrushcove, o Gulag, a revolta nas Universidades, Maio de 1968, o movimento negro, a revolução sexual, a conquista do coração dos jovens pela revolução cultural marxista, a marcha contra a guerra do Vietnã.

Mattei engata, em seguida, escrevendo que outra medida da despolitização da economia teria sido isentar as decisões econômicas do escrutínio democrático, estabelecendo e protegendo instituições econômicas “independentes”. Finalmente, a professora dispara que a despolitização se completaria com a promoção da teoria econômica como “objetiva” e “neutra”, portanto transcendendo as relações de classe, culminando com a austeridade encontrando seus aliados na tecnocracia e na crença no poder dos economistas como guardiões de uma ciência indisputável (todas as aspas são da autora).

Aqui soa como algo que conhecemos bem e me parece de difícil contestação. A independência de nosso Banco Central, por exemplo, está na ordem do dia. Não vou entrar no erro de seu presidente em se manifestar e tomar partido nas eleições recentes. Sabe-se lá o quanto foi “cobrado” para fazê-lo e o quanto cedeu. Mas, se cedeu, abriu mão do escudo que a independência oferece. Se o fez espontaneamente enfraqueceu a ideia de independência da instituição. De qualquer modo o Banco Central tem metas preestabelecidas em lei. Gostemos ou não, a suspeita dos contribuintes é que pretender interferir na agência só poderia ser para silenciá-la ou dobrá-la à vontade do príncipe, controlando a taxa de juros politiqueiramente para obter aprovação popular imediata e efêmera. Ademais fique claro que, para eliminar a “independência” do Banco Central, não precisa mudar a legislação. Basta fritar o seu presidente todos os dias na mídia.

A pílula goela abaixo

Depois da pausa para respirar, resta saber como, segundo Mattei, a austeridade levaria ao fascismo. Em suma, observando a história pelo ângulo adotado pela professora, o olhar austero sobre o mundo social seria reflexo do suporte dado pelo pensamento econômico liberal ao regime fascista que se originou na Itália de Benito Mussolini, um egresso do partido socialista, é bom não esquecer. Ainda segundo Mattei, o sistema (establishment) liberal internacional estaria convencido, ali no pós-guerra, inicio dos anos 20, de que a ditadura de Mussolini, que assumiu o poder em 1922, seria a única solução para empurrar a pílula da austeridade goela abaixo do “turbulento” povo italiano. Portanto, o método fascista seria tolerado graças (i) à ideia de que política e economia seriam duas coisas separadas e (ii) ao trabalho nada desprezível de economistas liberais na consolidação do governo Mussolini.

Clara Mattei afirma que pode apresentar evidências empíricas dos motivos e objetivos daqueles que conceberam a austeridade como política. Ainda que a ideia de austeridade seja anterior ao advento do fascismo em mais de 200 anos, portanto não tenha sido concebida com essa finalidade.

Segundo a professora, o que teria sido mostrado na época, isto é, nos anos 1920, como agora, seria a reabilitação da acumulação do capital como um meio de alimentar as massas – mas o seu verdadeiro motivo tem sido repetidamente revelado: facilitar a permanente e estrutural extração de recursos de muitos para poucos.

Mattei finaliza a síntese escrevendo que os cem anos cobertos por sua narrativa, rastreariam como os advogados da austeridade continuariam a moldar nossa sociedade e tem, constantemente, protegido o capitalismo de ameaças democráticas em potencial. Sim, a professora extrapola a situação ocorrida na Itália no entre guerras para os dias atuais. Mas quanto ao fascismo, sua presença não está nítida nas situações das crises na Itália, Espanha, Grécia e Portugal, ocorridas nesse início de século.

Mas, afinal, o que é o Fascismo hoje?

Antes de entrarmos na demonstração da teoria da professora Clara Mattei sobre a ligação entre
austeridade e fascismo, e para evitarmos imprecisões e ambiguidades, vale a pena fazer uma rápida digressão para abordar brevemente a definição de fascismo, esta palavra tão mencionada nos anos recentes, não apenas no Brasil, mas igualmente na Europa e nos Estados Unidos, devido – em minha muito modesta opinião – à justamente aquela massiva alienação dos ressentidos, especialmente localizados dentro do que a sociologia e a ciência política chamam de pequena-burguesia, comprimida entre a massa proletária e a alta burguesia. Os excluídos por falta de interesse devem ser mais bem entendidos como autoalienados da modernidade, por insegurança e ressentimento diante das ideias progressistas, que os empurram para fora do círculo de participação. Diante da velocidade das mudanças, não conseguem mais entender o mundo.

Essa pequena-burguesia tem duas opções: (i) foge da alienação e se engaja no trabalho intelectual realimentando os grupos progressistas; ou (ii) tem suas frustrações e ressentimentos canalizados para se tornar massa de manobra e buscar objetivos fictícios (salvar o mundo do comunismo, restaurar a inquisição religiosa ou defender a família, por exemplo) a troco de satisfações simbólicas (não à toa em 8/1, no Brasil, atacaram os símbolos das instituições).

Cito: “Na base de seu [da pequeno-burguesia] comportamento político, em quase todos os países evoluídos do Ocidente, encontram-se hoje atitudes irracionais e extremistas. Essas atitudes evidenciam sua reação diante da sociedade de massas que nada mais concede ao individuo pequeno-burguês, que consequentemente encontra sua segurança e sua maneira de se impor na subversão de direita.” 12

O Dicionário de política, de Bobbio, Matteucci e Pasquino, um trabalho clássico e de indiscutível aceitação, depois de esclarecer que há várias e complexas definições de fascismo, nos diz que este é um sistema autoritário de dominação caracterizado pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa; por uma ideologia fundada no culto ao chefe, na exaltação da coletividade nacional; no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal da colaboração de classes; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação; pela tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido ou do Estado a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e culturais.

Umberto Eco (1932-2016), o genial pensador da cultura, escreveu um ensaio com uma lista de 14 características atuais do fascismo13. Diz ele que o fascismo se baseia no apelo à frustração social, na rejeição ao modernismo, no culto a tradição, na alta expectativa quanto à força do adversário, na comparação forçada entre dissidência e traição, no culto à ação pela ação, no medo da diferença, na obsessão pelo golpismo, na consideração do pacifismo como envolvimento com o inimigo, no desprezo pelo fraco, na educação para o heroísmo, no patriarcalismo bélico, um populismo seletivo e no uso de novilíngua.14

Essas indicações do que seria o fascismo atualizado, junto às referências do referido Dicionário de Política, sustentam a opinião sobre as ocorrências eventuais do fascismo no Brasil, nos anos recentes. No mais, basta conferir os vídeos das bizarras figuras manobradas que invadiram e depredaram as sedes dos três poderes da República no dia 8 de janeiro de 2022, num triste espetáculo humano.

De volta à teoria Mattei

Devo confessar que, ao entrar nos capítulos das demonstrações da teoria Mattei, titubeei levemente diante da citação em epígrafe de um trecho do discurso de Francesco Saverio Nitti (1868-1953), que teria sido pronunciado na Conferência de Bruxelas (1920) e/ou de Gênova (1922).

Nesse discurso, Nitti recomenda à sociedade italiana “consumir menos e produzir mais”, expressões que Mattei grifou como se fossem um lema da austeridade imposto às massas trabalhadoras italianas. Eu posso estar errado, mas os adeptos do anticapitalismo em geral apreciariam esse slogan. Afinal, o consumismo é um dos esteios do capitalismo, conforme se lê no texto da própria Mattei: “O capitalismo está em crise quando o seu relacionamento crucial (a venda da produção para lucrar)… é contestada pelo público.”

A própria professora ressalta, no entanto, que a Itália encontrava-se destruída naquele pós-Primeira Guerra, sujeita às pressões da economia internacional e do capital estrangeiro. Assim, segundo ela, a adoção das políticas de austeridade, de certo modo, foi uma escolha soberana e que tais medidas funcionaram bem na acumulação de capital para os poucos virtuosos poupadores e empreendedores (o itálico é meu, mas a ironia é da jovem mestra). Até este ponto não vejo a austeridade pavimentando o caminho do fascismo, mas o contrário, ou seja, o fascismo abrindo passagem na marra para a austeridade na economia.

Afinal, depois da tragédia da Grande Guerra (1917), sabe-se hoje, com certeza, que havia poucas alternativas efetivas à austeridade fiscal. Isso se for excluída a geração de dívida, o aumento da tributação e a impressão de moeda, haja vista a colossal inflação na Europa, que sucedeu à Primeira Guerra e antecedeu a Segunda Guerra. Note-se que o advento de Mussolini no poder na Itália é de 1922. E o de Adolf Hitler, na liderança do Partido Nacional-Socialista alemão, é de 1921. O ovo da serpente está bem situado nos anos 20, portanto. Ambos ascenderam ao poder no bojo da crise inflacionária, que suponho não tenha sido causada por políticas de austeridade.

Francesco Nitti (que chegou a fazer parte do partido Esquerda Independente) e Luigi Einaudi (1864-1971), que presidiu a Itália entre 1948 e 1955 – ambos citados por Mattei – foram notórios antifascistas, que ostensivamente desprezavam tanto Mussolini quanto os bolcheviques. Posso estar enganado, mas achei um tanto equivocado misturar Nitti e Einaudi, com as figuras de Maffeo Pantaleoni (1857-1924), um adepto do fascismo, e Vilfredo Pareto (1848-1923), o famoso polímata, cujas motivações e ligações com o fascismo são bastante controversas, e, ainda Umberto Ricci (1879-1946), cujo mentor era adepto do fascismo. Ricci, todavia, exilou-se na Universidade do Egito durante os anos Mussolini, ainda que tenha produzido escritos defendendo as medidas liberais na área econômica.

Há, sim, um traço em comum entre esses intelectuais na área econômica. Eram, em maior ou menor grau, liberais e sintonizados com o pensamento tradicional do liberalismo inglês, que cultivou – e cultiva – a austeridade como princípio moral aplicável à economia, sem que isso represente necessariamente qualquer inclinação manifesta pelo fascismo, cujas características afrontam o liberalismo. Todavia, Mattei flagrou a diplomacia e a imprensa britânicas dando vivas a Mussolini por ele ter liberado o fluxo de pagamentos aos credores, aplicado a força para impor medidas de austeridade e equilíbrio fiscal, e protegido os investimentos estrangeiros, assegurando novos aportes no país. Mas, vejam, foi preciso primeiro o fascismo chegar e abrir as portas para dona austeridade passar.

Porém, essa inversão não altera os gravames sobre a austeridade segundo a ótica adotada no A ordem do capital. E quem sou eu para duvidar das conclusões da extensa pesquisa que a professora Clara Mattei realizou, entre 2015 e 2017, no Instituto de Economia da Escola Superior Sant’Anna, em Pisa, Itália, cujo título diz tudo, ou quase tudo: “Austerity and Repressive Politics: Italian Economists in the Early Years of the Fascist Government”?15

Um desses economistas liberais que certamente colaborou com Mussolini foi Alberto de Stefani (1879-1969), um neoliberal avant-la-lettre, sucedido por Giuseppe Volpi (1877-1947), um empresário, Antonio Mosconi (1866-1955), advogado, e Guido Jung, financista, de família judia; todos certamente liberais na economia, e fascistas na política, portanto. A bem da verdade, Jung fazia uma distinção marcante entre o Nazismo e o Fascismo. Presumo que com o propósito de colocar-se separado na questão judaica. Parece que estou vendo a triste figura do ministro Paulo Guedes, um suposto liberal, na mimese do seu chefe, falando palavrões e dizendo barbaridades na célebre reunião do ministério do ex-presidente Bolsonaro, em abril de 2021, que mais parecia uma célula subversiva. A minha esperança é que ele tenha vergonha e, em frente ao espelho, se arrependa daquelas cenas. Pelo menos.

A referida pesquisa de Mattei é que oferece sustentação para o ataque aos economistas liberais italianos. Mas o liberalismo está sob ataque, tanto da esquerda quanto da direita, há quase 200 anos. A tolerância política, um esteio do liberalismo – especialmente a liberdade de pensamento e opinião – é usada na era digital pelos extremistas para ferir de morte, pelo abuso, justamente o direito individual. A sociedade atual se vê forçada, como autodefesa, a restringir a capacidade de influência das fake news e seu potencial de manobra e de recrutamento dos subversivos de direita, para usar a expressão do dicionário de Norberto Bobbio. A questão que se impõe, no momento, é estabelecer limites e o controle de quem controla o pensamento e a expressão alheia. Esse dilema mostra, por si só, a regressão do direito individual, quase sempre desconsiderado pelos coletivistas.

No caso da economia, parece mesmo sempre haver uma cisão dos técnicos contra os políticos; dos neutros contra os demagogos; dos sábios contra os ignorantes; dos puros contra os fisiológicos.

A virtude estaria no campo da economia, o vício no campo de política, que resiste a ser moldada, sempre vulnerável ao clientelismo, ao fisiologismo, ao patrimonialismo, e disposta a se vender no orçamento secreto, no mensalão ou nas intermináveis rachadinhas. O desprezo pela política abre as portas para o militarismo, tido como honesto, incorruptível, dedicado a servir desinteressadamente ao país etc. No círculo vicioso, se eu entendi bem a professora, depois dos militares, viriam os economistas de plantão para fazer valer as políticas de austeridade. Notem, por favor, a força sempre precede o remédio e não o contrário.

Clara Mattei, todavia, parece ter razão quando afirma que esta clivagem entre economia e política favorece o autoritarismo. Sabemos que defender a política nesses tempos de perfis tão toscos e corruptos no Congresso é tarefa difícil. Mas a democracia demanda que essa luta se imponha. Haverá de ter uma maioria – ou mesmo uma minoria mais atuante – interessada em expressar o desejo legítimo dos eleitores em receber os serviços do Estado na saúde e educação de qualidade, infraestrutura sólida, cidadania digna, trabalho, remuneração e aposentadoria justa; em fazer valer uma reforma tributária a altura desse nome, com taxação progressiva, fique claro. A economia enfraquecida destrói os empregos e a renda, e desmobiliza os sindicatos. O emprego vira mercadoria rara. Ao contrário, a economia forte aumenta a procura da mão de obra, incrementa o poder dos sindicatos para a negociação coletiva e para a participação dos trabalhadores no lucro das empresas.

Como a austeridade conduz ao fascismo?

Talvez seja óbvio, mas não encontrei a resposta a essa questão, pelo menos de modo expresso, no trabalho da professora Mattei. Seria por dedução? Seria pela mera associação entre as medidas econômicas liberais, dentre elas o princípio de austeridade aplicado à economia, e o regime de força do fascismo? A professora debruçou-se no exame do caso específico da Itália, onde o fascismo surgiu como ideologia e prática do regime Mussolini, e estenderia suas conclusões como uma regra?

Se for assim, devemos ponderar em primeiro lugar que, como já assinalei, o regime fascista é que, historicamente, abriu caminho para a introdução das práticas de austeridade na economia italiana. Segundo, o fenômeno não se repetiu, pelo menos da mesma forma, em outros países e em outras épocas. Ou seja, o regime fascista à Mussolini não foi usado para impor medidas austeras na economia em outros países no pós-Segunda Guerra, salvo registros nas ditaduras sul-americanas, ibéricas e na ditadura grega dos anos 1970.

Mas, sim, foi adotado, inclusive com a aprovação de parlamentares, por pressão de credores ou por ajustes internos e soberanos ou por consenso como solução para o endividamento das nações e recuperação de seu equilíbrio fiscal, em tempos de crise. Sim, para proteção do capital investido no país, como notaram todos os professores críticos do neoliberalismo. Faltaria, talvez, nesse aspecto, uma abordagem sobre a questão da dívida. Esse tema foi dissecado à exaustão no monumental Dívida16, de David Graeber, antropólogo norte-americano, professor na London School of Economics. No livro, Graeber examina a história da dívida e do crédito, além da história do dinheiro. E, mais uma vez, temos a dívida como uma questão – exatamente como no caso da austeridade – transitando da esfera Moral para a esfera do Direito e tornando-se jurídico-obrigacional, inicialmente apenas via contrato.

A professora também tem razão ao afirmar que Mussolini, e seus economistas – especialmente Alberto de Stefani – implantaram com êxito as regras de austeridade que o parlamento italiano recusava-se anteriormente a adotar. Esse ponto está muito bem documentado no seu livro, que inclui o jornalismo e a correspondência diplomática britânica. Podemos deduzir que, a despeito dos meios, o “sucesso” na aplicação da austeridade trouxe a recuperação econômica da Itália e, com ela, o enorme apoio das massas proletárias e da pequeno-burguesia ao regime? Essa popularidade deu impulso ao populismo fascista que, entre muitos fatores, inclusive geopolíticos, conduziu o mundo à Segunda Guerra.

Além dos atos documentados, a arte corrobora a afirmação de Mattei sobre o empenho das classes conservadoras em separar a economia da política e com isso afastar os eleitores das questões econômicas, reservando-as aos “esclarecidos”. Refiro-me àquele filme maravilhoso sobre o período entre guerras, Vestígios do Dia (1993), de James Ivory, baseado no livro do Nobel nipo-britânico Kazuo Ishiguro. Há uma cena que se passa nos meados dos anos 1930, com a elite inglesa simpática ao nazifascismo. Durante o jantar os elegantes convivas germanófilos, para demonstrar que o povo não entende nada – logo não deve ser consultado – convidam o mordomo (Antony Hopkins) que está no serviço de atendê-los, a responder a algumas perguntas sobre política externa, finanças e economia.

O serviçal prontifica-se, mas pede desculpas humildemente e não consegue sequer balbuciar respostas a nenhuma das questões. Um dos aristocratas finaliza: “Vejam cavalheiros, o homem não consegue responder a essas questões. Mas, ainda assim, o Império Britânico insiste com a noção de que as decisões da nação fiquem nas mãos do nosso bom homem e de milhões como ele.” Cai o pano.

Ademais Mattei mostrou, de forma eloquente, que economia é um tema político muito grave. E é um perigo separá-la da política para deixá-la nas mãos exclusivas dos economistas. Há advogados que redigem, na calada da noite, decretos para um golpe contra o estado de direito. Há médicos que receitam cloroquina e ivermectina e que pregam a imunidade de rebanho contra um vírus letal. E há liberais que não têm pudor em admitir e em se adaptar ao fascismo. Os últimos anos têm sido pródigos nesses exemplos.

Como leitor, faço poucas ressalvas ao trabalho de Clara Mattei, pontuais e relativas a algumas premissas que aparecem aqui e ali e que me parecem dogmáticas e, como tal, ultrapassadas. Por exemplo, referir-se à força do trabalho como motor do capitalismo17 como se estivesse no século XIV. A relação entre o capital e o trabalho adquiriu tantas modalidades complexas e variáveis sofisticadas, inclusive com a inserção de tecnologia e mercado de capitais, que a frase fica reduzida a um slogan nostálgico.

No mais, o livro de Clara Mattei tem o encanto radical das melhores produções intelectuais e é impregnado da paixão pelo estudo candente que realizou. As notas e referências tomam mais de um quarto da obra muito bem fundamentada. Isso explica, por si só, o brilho nos seus olhos quando fala do seu livro fascinante. Eu tinha razão quando me enchi de entusiasmo para devorá-lo.

Economia e Educação

0

Vivemos momentos de grandes alterações em todos os setores da sociedade, o mundo contemporânea se transforma rapidamente, as tradições estão sendo destruídas, os modelos econômicos estão em movimento, as famílias passam por novas configurações, os relacionamentos estão em alterações constantes, os trabalhadores estão agitados e assustados, as doenças contemporâneas trazem patologias centradas nos desajustes emocionais existenciais, levando os seres humanos a reflexões sobre as condições da vida na sociedade contemporânea, gerando dores na alma, incertezas e instabilidades, incrementando as preocupações com a saúde mental dos indivíduos.

Nesta sociedade, a economia deixou de ser um espaço legítimo de satisfação das necessidades dos seres humanos, onde a ciência econômica foi construída como instrumento para garantir que as demandas e as necessidades dos seres humanos sejam satisfeitas, sabendo ainda, que os recursos existentes na natureza são limitadas, cabendo a economia a construção de um cenário onde todos os indivíduos tenham acesso aos bens, mercadorias e serviços necessários para sua reprodução social, uma vida digna e decente, mesmo sabendo que as incertezas e as instabilidades crescem em todas as sociedades.

Nos últimos anos, a economia se transformou em um espaço de acumulação extraordinária, onde os setores financeiros passaram a comandar a estrutura econômica e produtiva, impondo seus interesses imediatos, garantindo lucros escorchantes, contribuindo para a manutenção e, principalmente, para a perpetuação de uma estrutura social degradada, abduzindo todos os agentes da sociedade, comprando consciências, dominando as redes sociais e impondo uma agenda que consolide seu interesse, cultuando a meritocracia, estimulando o empreendedorismo, o individualismo e o imediatismo.

Nestas andanças profissionais, percebemos que os indivíduos acreditam que a educação é a chave do desenvolvimento econômico da sociedade, acreditamos piamente nesta equação que associa a educação com as grandes transformações da estrutura produtiva, garantindo uma melhora substancial no capital humano, com fortes investimentos em ciência, pesquisa e inovação, afinal estamos na chamada era do conhecimento.

Todas as nações que conseguiram alçar fortes melhorias econômicas, sociais e produtivas e saíram de condições intermediárias para se transformarem em nações desenvolvidas, só conseguiram essa proeza com um projeto de nação, com fortes investimentos educacionais, com forte valorização da educação nacional, elevados investimentos nos professores e profissionais da educação, com melhoras constantes na infraestrutura das escolas, garantindo as condições necessárias para alçar voos elevados e necessários, projetos pedagógicos inovadores, cobranças de resultados e sólidos contatos com setores econômicos e produtivos.

Neste cenário, precisamos recolocar a educação no centro das discussões econômicas, deixando de lado discussões secundárias de indicadores macroeconômicos que servem apenas para perpetuar os ganhos dos rentistas e dos financistas, que adoram discutir seus ganhos imediatos, seus lucros estratosféricos, resultados vistos como a sua capacidade de investir, farejar lucros e compreender os códigos do mundo das finanças, se esquecendo que seus grandes retornos se dão através de taxas de juros elevadas, fraudes empresariais e sua capacidade de controlar seus prepostos na gestão pública e perpetuando suas riquezas em detrimento de uma massa de empobrecidos e marginalizados.

A educação é imprescindível para o desenvolvimento econômico de uma nação, garantindo uma maior complexidade na estrutura econômica e produtiva, incentivando empregos de qualidade, reduzindo as desigualdades sociais e garantindo novos recursos para impulsionar os setores produtivos, com políticas públicas que ataquem as causas das desigualdades que degradam e limitam o crescimento econômico brasileiro, que reduzem as potencialidades da nação e garantindo ganhos vultuosos para poucos. Mas o que me assusta, parafraseando Darcy Ribeiro “a crise da educação no Brasil não é uma crise, mas um projeto”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.