Protecionismo

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Nos últimos anos, principalmente depois da crise financeira de 2008, a economia internacional vem percebendo o incremento do protecionismo, as nações estão aumentando as medidas protecionistas como forma de fortalecer suas estruturas econômicas e produtivas internas, reduzindo a entrada de produtos produzidos em concorrentes diretos para fortalecer suas empresas nacionais, impedindo que empresas internacionais gerem constrangimentos para suas organizações internas.

Neste ambiente, percebemos uma alteração nítida e evidente do discurso econômico de muitas nações desenvolvidas. Anteriormente, essas nações defendiam fortemente a abertura econômica, a privatização generalizada de empresas estatais e o incremento da competição como forma de alavancar seus setores produtivos, rechaçando toda e qualquer intervenção dos governos nacionais, vistos como negativos, perdulários e geradores de privilégios elevados.

Atualmente, os discursos estão sendo alterados, nações desenvolvidas vêm perdendo espaço no comércio internacional, empresas altamente qualificadas e geradoras de grandes ganhos financeiros e dotados de alto valor de mercado, estão perdendo espaço para organizações mais eficientes, ágeis e flexíveis, com novos modelos de negócios, ganhando valores no mercado global e gerando graves perdas econômicas para organizações tradicionais, levando muitas nações a adotarem medidas de salvaguarda para impedir que essas organizações nacionais sejam engolidas por concorrentes internacionais e gerando graves constrangimentos internos.

O protecionismo sempre existiu na economia mundial, as nações que conseguiram alçar seu desenvolvimento industrial e produtivo só conseguiram se desenvolver através de medidas de proteção, de políticas industriais ativas, de compras governamentais e de subsídios generalizados de seus governos nacionais. Embora saibamos que essa fórmula, que foi fortemente adotada por todas as nações que conseguiram se desenvolver, todos os países que tentaram adotar essas mesmas medidas foram fortemente criticados, pressionados e fragilizados financeiramente como forma de inviabilizar seu crescimento industrial, garantindo a perpetuação da dependência externa.

Na contemporaneidade, percebemos a ascensão asiática, principalmente o crescimento da China, do Japão,, da Índia e da Coréia do Sul, angariando grande crescimento econômico, produtivo e tecnológico, ameaçando posições ocidentais conseguidas ao longo de todo o século anterior e gerando constrangimentos internos na Europa e nos Estados Unidos, obrigando seus governos a adotarem políticas fortemente protecionistas, rasgando seus manuais de economia política como forma de sobrevivência, num mundo marcado pela forte competição externa, pelo surgimento de novos espaços tecnológicos e novos modelos de negócios.

Neste momento, os governos ocidentais de países desenvolvidos estão injetando trilhões de dólares em seus setores produtivos, impedindo a entrada de novos competidores e criando formas de atração de empresas internacionais, organizações dotadas de grande complexidade econômica e auxiliando na redução dos hiatos produtivos de concorrentes externos.

Vivemos momentos de grandes instabilidades e incertezas em todas as regiões do mundo, os discursos dos defensores da abertura econômica perderam espaço, antes de estimularmos a concorrência generalizada, precisamos repensar as teorias que dominaram a economia internacional e contribuíram ativamente para o incremento das riquezas na comunidade global, mas infelizmente, aumentaram o fosso entre os grupos sociais, aumentando as desigualdades, incrementando a exclusão e a indignidade. Neste cenário, para piorar, estamos cada vez mais envoltos numa guerra de grandes proporções que podem culminar numa destruição nuclear.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Europa à deriva, por Flávio Aguiar

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A demolição da social-democracia, nos anos 90, talvez tenha sido o começo da crise. Submisso aos EUA, continente tornou-se marionete geopolítica na contenção da Rússia e China. Resultado: econômica instável, agitações sociais, ascensão da ultradireita e o retorno do militarismo

Flávio Aguiar – OUTRAS PALAVRAS – 19/03/2024

O continente europeu possui uma coluna dorsal: a União Europeia. Mesmo os países que não pertencem a ela, como a Ucrânia, a Noruega, a Suíça, a Turquia e a Islândia, além de outros, gravitam em torno da UE. E esta coluna dorsal está sendo desossada, e periga se liquefazer. Em parte, esta crise lhe veio das próprias entranhas. Em parte, foi importada de fora, ou lhe foi imposta. Quem lhe impôs? Os Estados Unidos, através das injunções e exigências de seu braço armado multinacional, a Otan.

O ideal e a ideia da União Europeia nasceram dos escombros da Segunda Guerra, através da Comunidade Econômica Europeia e da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, criadas em 1957.

Consolidou-se oficialmente em 1993, depois do Tratado de Maastricht, assinado em 1992. Foi reformulada com o Tratado de Lisboa, assinado em 2007 e em vigor desde 2009. 20 dos 27países membros da UE adotam o euro como moeda comum, criada como valor de transferência em 1999 e sob a forma de notas e moedas a partir de 2002. A primeira grande crise da UE. ocorreu com a saída do Reino Unido, em 2020, depois de um plebiscito votado em 2016. E hoje ela tem a vizinha Rússia como sua principal adversária.

Isto significa que o ideal da União Europeia foi desenhado enquanto a parte Ocidental do continente vivia, genericamente, sob a hegemonia ideológica da social-democracia, como alternativa e resposta ao comunismo que vigia na sua parte Oriental, sob a liderança da finada União Soviética. Entretanto ela foi criada quando o sonho social-democrata e sua generosidade social cedia o passo ou se rendia ao pesadelo neoliberal e seus planos de austeridade fiscal, monetária e social. Esta é a raiz interna da crise hoje vivida pela União e pelo continente como um todo.

Se a União Europeia nasceu também com ideal de paz num continente continuamente marcado por grandes conflitos armados, ela nasceu igualmente sob a sombra das guerras iugoslavas e do Kosovo (1991-1999), marcadas por genocídios e pelas intervenções dos Estados Unidos e da Otan, sob a forma de mediação imposta e bombardeios seletivos. A presença do belicismo se agravou com a guerra na Ucrânia, entre este país, apoiado pelos Estados Unidos, a Otan e a União Europeia, e a Rússia, a partir de fevereiro de 2020, quando esta invadiu aquela alegando sentir-se ameaçada por uma possível adesão de Kiev à Otan. Os governos da UE, uns a gosto e outros a contragosto, se viram empurrados para dentro do conflito, liderado do lado Ocidental pelos EUA e pelo Reino Unido. Os EUA viram na conjuntura uma oportunidade para pressionar pela diminuição da dependência energética da Europa em relação à Rússia, caso, sobretudo, do carro-chefe da economia europeia, a Alemanha. Em consequência da guerra e da adesão europeia ao auxílio militar prestado à Ucrânia e das sanções adotadas contra Moscou, a situação das economias europeias foram profundamente afetadas. Os cortes no fornecimento do gás russo, dos fertilizantes e dos grãos ucranianos provocaram uma espiral inflacionária em todos os países, sobretudo na Alemanha, nos preços da energia, dos transportes, dos insumos agrícolas e de fármacos. Paradoxalmente, as sanções econômicas adotadas contra Moscou parecem prejudicar mais a Europa do que a Rússia.

Deste modo a Europa se aproxima mais e mais de tornar-se – ou voltar a ser – um protetorado militar da Otan atravessado pelas necessidades políticas dos Estados Unidos em sua campanha contra a Rússia e a China.

O continente vê-se marcado por agitações sociais ainda de médio porte, mas cada vez mais amplas e difundidas. Os protestos dos agricultores contra o que vêm como um falta de apoio dos governos e da União no que se refere a insumos, particularmente no preço do diesel, se espalharam da Polônia à Península Ibérica. Protestam também pelo que consideram uma política restritiva de agrotóxicos e de proteção do meio ambiente. Greves em aeroportos, portos, ferrovias e transportes urbanos pipocam em toda parte. No Reino Unido o setor da saúde é dos mais afetados, tanto em falta de investimentos como de pessoal, devido em parte à insegurança provocada pelo Brexit, a saída da União. A Alemanha vive um processo crescente de desindustrialização, com o fechamento de grandes unidades produtoras.

Tal clima de insegurança vem favorecendo em toda parte a ascensão da extrema direita. Partidos como o Vox, que na Espanha reivindica a herança falangista, o Rassemblement National na França, o Alternative für Deutschland na Alemanha, o Frateli d’Italia na Italia vem crescendo continuamente. Quando não ganham eleições, como foi o caso do Frateli na Itália, ditam a pauta política, o que envolve um traço de ceticismo em relação à União Europeia, pelo menos do modo como está constituída. Ultimamente estes partidos têm amenizado sua retórica anti-União Europeia, falando mais em reformular seus princípios em nome da preservação das soberanias nacionais. E puxam todo o espectro político mais para a direita, em torno de políticas reacionárias quanto a costumes e valores culturais, da xenofobia, da islamofobia, esta última agravada pelo desejo de aproximação com Israel e sua política de apartheid em relação ao povo palestino e massacre da população civil na Faixa de Gaza.

Tal crescimento se alimenta da falência dos planos de austeridade em produzir bem-estar social, o que não surpreende ninguém de bom senso. E também se alimenta da retração divisionista das esquerdas ou da rendição de vários setores aos ditames da real politik europeia impulsionada pelas consequências geopolíticas da guerra na Ucrânia.

E em toda parte renasce o velho militarismo como alternativa geopolítica alimentada pela russofobia, e econômica, diante das agruras e amarguras de uma possível recessão de longo alcance. E desta vez o Velho Mundo não está assente apenas sobre a novidade dos drones, os blindados e outros armamentos convencionais, mas diante do risco sem retorno de um confronto nuclear.

Flávio Aguiar, é membro da Frente Brasileiras e Brasileiros pela Democracia e contra o golpe (FIBRA), na Alemnha.

A ordem do capital, por Clara Mattei

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Clara E. Mattei – A Terra É Redonda – 19/03/2024

Nota à edição brasileira, recém-lançada

É uma verdadeira conquista ver A ordem do capital publicado em português. Afinal, ainda que narre algo que teve lugar na Europa de um século atrás, seguindo uma linha que revisita e revê os fundamentos da economia a fim de relacionar os efeitos das políticas econômicas de austeridade do início do século XX à ascensão do fascismo, neste livro há elementos analíticos que podem contribuir para compreender a natureza e a lógica da austeridade no Brasil atual.

Não obstante se concentre nas relações de classe em contextos europeus nos quais a austeridade foi usada como instrumento político para esmagar as reivindicações de democracia econômica,
transporta essa dinâmica à compreensão de como as relações de classe foram forjadas em países cujo histórico é de escravidão e colonialismo. Entender as relações de classe da Europa do século XIX serve para calibrar como o discurso da austeridade vem acompanhado de uma pauta argumentativa que cancela o aspecto de classe das políticas adotadas, como se estas atingissem a todos de maneira equânime.

Os eventos ocorridos entre Europa ocidental e Norte global no início do século passado reverberaram no eixo centro-periferia e orientaram como os subalternos pautariam a própria política. Economistas do Sul global buscaram validação nas vertentes econômicas que disseminaram a austeridade e assumiriam os contornos neoliberais que testemunhamos hoje.

Outra chave que a história nos ensina consiste na inseparabilidade da austeridade fiscal e monetária, por meio do comprometimento orçamentário com o constante aumento das taxas de juros, afetando diretamente o mundo do trabalho. A escassez de crédito em razão da política rentista de juros altos faz que o trabalhador seja impactado em duas frentes: de um lado, pela redução do emprego e, por conseguinte, pela sujeição ao trabalho precarizado; de outro, por uma política salarial baixa que comprime o poder de compra entre as inúmeras necessidades a ser satisfeitas no vácuo deixado pela ausência do serviço público.

Não por outra razão, uma das primeiras medidas recentes na implementação da austeridade no Brasil consistiu em eliminar leis trabalhistas.

Também as privatizações para atrair investidor nas famigeradas parcerias público-privadas, acompanhadas da desregulamentação do mercado, desempenham um papel fundamental na dinâmica da austeridade. Boa parte do discurso gira em torno de justificar a redução dos gastos públicos ao comprometer o orçamento com o pagamento dos juros e amortização da dívida. Tal ideia, ainda que equivocada, permitiu, como veremos, que a autoridade máxima no Banco Central se tornasse imune à política de juros sugerida pelo chefe do Executivo.

Após a promulgação da Lei complementar n. 179, de 2019, as necessidades orçamentárias do presidente da República são completamente irrelevantes para o presidente do Banco Central, uma vez que seu mandato é dotado de garantias a exigir um dificultoso processo de exoneração, dependente da maioria absoluta do Senado. O aprofundamento da austeridade alcançada por diversos estratagemas durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob o disfarce de conferir plena autonomia ao Banco Central, retirou do poder político as alianças, tão caras à construção de um programa orçamentário harmônico e consentâneo, com as indispensáveis políticas sociais de um país de modernidade tardia.

Dado o presente cenário, vale ressaltar que o Brasil já conta com a maior taxa de juro real do mundo, superando países que agonizam com a inflação, como a Argentina. Ao mesmo tempo, o comprometimento do PIB brasileiro com a dívida pública é inferior ao de países desenvolvidos, de maneira a inviabilizar o argumento de que o país deve reduzir gastos, de que o país gasta descontroladamente.

Enquanto a Itália, objeto central de estudo desta obra, apresenta uma relação entre o PIB e a dívida pública que supera os 150%, a proporção do Brasil é inferior a 80%. Países como o Japão e a Grécia superam os 200%, e os Estados Unidos atingem 120%. Portanto, o argumento de que o Brasil não possui alternativas senão implementar políticas de austeridade não se sustenta. O ponto nodal do orçamento nacional reside no importe destinado ao pagamento dos juros da dívida pública, injustificável e propagador das mazelas sociais das quais o país padece.

O ano 2022 encerrou-se com a aprovação de uma emenda de transição do então futuro governo Lula, a Emenda constitucional no. 126, que ampliou o orçamento público para permitir que despesas correntes na ordem de 145 bilhões não fossem limitadas ao teto de gastos. A emenda também balizou outro teto de gastos, que viria a se chamar “novo arcabouço fiscal”. As balizas estabelecidas pelas novas regras mostraram-se tímidas, senão covardes, sobretudo em abolir o nefasto teto de gastos estabelecido pela Emenda constitucional no. 95/2016, impedindo o país de austeridade que ignora a facção política que ocupa o poder. O regime de austeridade, apesar de não alcançar os resultados de estabilização econômica almejados, não falha em atingir seu verdadeiro intuito: assegurar que a tríade de políticas fiscais, políticas monetárias e erosão da capacidade da classe trabalhadora de reagir a elas silenciem a dissidência.

Ademais, por compor o Sul global, o Brasil é mais suscetível às pressões das elites internas e globais. Portanto, a imposição de medidas de austeridade pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para a concessão de empréstimos internacionais não foi acaso. A ingerência do FMI a afetar diretamente assuntos ínsitos à soberania do país culminou na aprovação da lei de responsabilidade fiscal, em 2000, como parte de uma pauta de “recomendações” que asseguraria o pagamento da dívida. Contudo, para além de estabelecer garantias desse pagamento, o verdadeiro intuito era ditar como a política deveria orientar-se, a prescindir do governante no poder.

Antes de assumir seu primeiro mandato, em 2003, Lula entregou uma carta de compromissos para “tranquilizar o mercado”, prometendo manter a “estabilidade” de seu predecessor Fernando Henrique Cardoso. Em 2023, retornando à Presidência após o período de convulsão que o país atravessou, Lula comprometeu-se a “colocar o pobre no orçamento”; no entanto, até o momento, impera o continuísmo em relação a Michel Temer e Jair Bolsonaro. Uma maior incursão na história política do país revela que o período da ditadura militar e as mudanças de poder pouco alteraram a forma como o capital é extraído da classe trabalhadora. Em alusão ao ex-ministro da Fazenda do “milagre econômico”, Delfim Neto, seria necessário “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo” – só que o momento da divisão jamais alcança os desfavorecidos do sistema.

A austeridade não consiste em remédio amargo administrado para brecar a “gastança desenfreada” e “retomar o crescimento”, jargões já tão conhecidos quanto desgastados. A austeridade tampouco é um erro de percurso na política para desfazer o “agigantamento do Estado” e proporcionar “menos Estado, mais mercado”. A lente através da qual o economista enxerga as variáveis de mercado distorce o modo como a realidade opera, vislumbrando o agregado (a unidade nacional) a despeito do bem-estar social e apresentando uma acentuada miopia as distinções de classe.

Como bem evidenciado, a definição comum de austeridade enquanto corte nos gastos e aumento de impostos mascara a escolha da alocação de recursos, que são abundantes para financiar guerras, arcar com juros da dívida pública, mas ínfimos na expansão do gasto social. No Brasil, os cortes foram significativos em setores que não comportavam ulterior achatamento. O salário mínimo carece de aumento real comparado à inflação, as reformas da previdência passaram a estabelecer critérios mais rígidos para concessão de benefícios, e as privatizações encareceram o preço dos serviços públicos ao longo dos anos.

A austeridade que se delineia nos países desenvolvidos continua admitindo um elevado comprometimento do PIB com a dívida pública, porém segue o preceito de eliminar prestações sociais, condicionando-as ao recrutamento de trabalho mal remunerado, ao corte de gastos em saúde, educação e moradia e à eliminação da tributação dos mais ricos, transferindo o ônus aos mais pobres por meio da taxação regressiva do consumo e dos serviços. O capital sai ainda mais privilegiado das equações de austeridade, mercantilizando as prestações sociais como barganha em detrimento da sociedade.

No caso brasileiro, os juros elevados agradam o especulador internacional, ávido por retornos substanciais em um país que não investe e, portanto, jamais se liberta da situação de dependência. Ao mesmo tempo, optando pela constituição em pessoa jurídica, o capital conta com a benesse sem precedentes – afora na Estônia e na Letônia – de não incidência de imposto de renda em lucros e dividendos.

A austeridade fiscal, inseparável da monetária, atua junto à imposição de um incremento artificial dos juros sob o argumento de conter a inflação, comprometendo, assim, o orçamento público com o pagamento de juros injustificáveis. O valor do salário – outro fator relevante –, a despeito do que se possa pensar, possui correlação direta com a política de austeridade.

Existe uma relação inversamente proporcional entre a privatização dos serviços públicos e a estabilidade da remuneração proveniente desse setor. Esse fenômeno ocorre em paralelo à revogação das proteções trabalhistas, previdenciárias e assistenciais e à supressão das prestações públicas, enfraquecendo o poder de negociação de sindicatos e trabalhadores. Quanto mais escassos são os recursos disponíveis para satisfazer as próprias necessidades de subsistência, mais suscetível estará o trabalhador a sujeitar-se a relações de trabalho opressivas. Não por coincidência, as políticas de austeridade no Brasil vêm acompanhadas de precarização das relações de trabalho e de uma disseminada incapacidade de mobilização sindical e reinvindicação política dos direitos trabalhistas e, mais amplamente, dos direitos sociais.

O presente contexto político é bastante desfavorável à realização de direitos sociais e econômicos dos contingentes mais vulneráveis da sociedade brasileira. Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff – sob a falsa acusação de violação das leis orçamentárias, as chamadas “pedaladas fiscais”, indispensáveis para conciliar o gasto com o não atingimento das receitas diante da crise econômica que assolou o país, providências que nada mais eram que instrumentos para a execução de despesas públicas inadiáveis –, o cenário de desfazimento do Estado social ganhou fôlego com o rompimento do pacto social por meio da forjada Emenda constitucional n. 95/2016, resultado da aprovação da “PEC da morte”. Tal reforma elevou ao status constitucional um estado de coisas que subverte os primados estabelecidos na própria Constituição.

Não bastasse, a “austeridade expansionista” do então ministro Paulo Guedes aprofundou o processo de empobrecimento social, acompanhada das reformas trabalhistas previdenciárias e de uma desenfreada busca pela privatização de setores pertencentes ao poder público. Tal programa mostrou-se, desde o princípio, um fracasso, pois, assim que a pandemia de covid-19 interrompeu o funcionamento da economia, tornou-se impossível manter a força de trabalho, refém do ambiente doméstico, sem qualquer alternativa para mitigar a crise. A pandemia expôs a fragilidade do sistema em lidar com o excepcional, e algumas das medidas de contenção de gastos essenciais precisaram ser abrandadas para fazer frente à aprovação de auxílios emergenciais, que teria vigência provisória e, portanto, transformaram um então direito em faculdade de quem exerce o poder.

*Clara E. Mattei é professora no Departamento de Economia da The New School for Social Research.

Senado na contramão civilizatória, por Thiago Amparo

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Democracias que se prezem adotam política oposta com relação às drogas

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 14/03/2024

Se a intenção da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado era atestar, na letra da Constituição, o quão atrasado em matéria de política de drogas é o país, conseguiu. Nesta quarta (13), a comissão aprovou uma PEC que cristaliza o oposto do que todas as democracias que se prezem estão fazendo mundo afora: incute ma Carta o crime de possuir ou carregar qualquer tipo de droga, mesmo que seja para consumo próprio.

Ao usar o cartucho de uma PEC para piorar a já ruim lei de drogas —principal responsável pelo inchaço de 257% das prisões brasileiras nas duas últimas décadas—, o Senado usa uma arma nuclear para explodir um ladrão de galinha. Para justificar a emenda que piora o soneto, o relator da proposta, Efraim Filho (União Brasil-PB), inventou um oximoro: “Tráfico em pequenas quantidades”. A realidade, senador, é outra: a maioria dos presos por tráfico nem sequer tem relação com facções, conforme estudo do Ipea de 2023.

Na ausência de um critério objetivo que ajude a diferenciar traficante de usuário —principal gargalo da lei de drogas ora sob análise do STF —, ser negro e pobre parecem ser fatores determinantes para enquadrar o réu como traficante, mesmo quando não o é. O que o Senado faz é agravar essa situação ao criar uma punição genérica que torne ainda mais nebulosa a diferença entre traficante e usuário; e sabemos que, mesmo com categorias turvas, o Judiciário não falha em ver negros como o primeiro e não o segundo.

A CCJ do Senado Federal, ainda, exagera os efeitos da decisão do STF. Mesmo que decida uma quantidade objetiva de maconha para consumo pessoal, o parecer da corte deve ter pouco ou nenhum efeito sobre um sistema judicial que privilegia a palavra do policial e sobre um sistema policial que se alimenta da impunidade referendada pelo Judiciário para praticar abordagens e operações violentas. A deliberação do Supremo em nada muda isso, e é justamente com essas mazelas, e não com populismo penal retrógrado, que o Senado deveria se preocupar.

A felicidade no ambiente de trabalho, por Natália Beauty.

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Colaboradores felizes não são apenas mais produtivos, mas também mais criativos e motivados

Natalia Beauty, Multiempreendedora e fundadora do Natalia Beauty Group

Folha de São Paulo, 18/03/2024

Num mundo empresarial onde a produtividade e a criatividade são moedas de valores incalculáveis, a felicidade dos colaboradores tem se tornado um diferencial competitivo significativo.

Recentemente, um artigo chamou minha atenção, sobre o conceito inovador de um diretor de
felicidade (chief happiness officer, ou CHO), cuja missão é cultivar um ambiente de trabalho mais feliz e, consequentemente, mais produtivo. Inspirada por essa abordagem e refletindo sobre a minha trajetória e os valores da minha empresa, percebi o quanto transformador pode ser um CHO para qualquer empresa, inclusive a nossa.

A pesquisa discutida no artigo revelou que, embora a felicidade no trabalho seja um objetivo almejado, muitas vezes se encontra em níveis perigosamente baixos. Empresas como Ikea, Lidl e Adidas estão levando a sério a ideia de investir na felicidade dos colaboradores, compreendendo que colaboradores felizes não são apenas mais produtivos, mas também mais criativos e motivados.

Eu sempre acreditei que o bem-estar da equipe é fundamental. Não se trata apenas de oferecer um bom salário ou benefícios tangíveis, mas, sim, de criar uma cultura que valorize cada indivíduo, suas ideias, sonhos e, claro, sua felicidade.

O cargo de CHO, inicialmente visto com ceticismo, tem se mostrado essencial para redefinir as prioridades organizacionais, se afastando das tradicionais métricas de sucesso para abraçar um ambiente de trabalho onde o bem-estar mental e físico dos colaboradores é prioritário. A ideia não é apenas proporcionar momentos de alegria efêmeros, como happy hours ou mesas de pingue-pongue, mas garantir que os colaboradores encontrem propósito, reconhecimento, realização e senso de pertencimento. Esses são os verdadeiros pilares da felicidade no trabalho.

Essa percepção, para mim, não é novidade. Sempre procurei criar um ambiente onde minha equipe se sentisse valorizada e ouvida, onde a criatividade florescesse não apenas como um meio de atingir objetivos empresariais, mas como uma expressão do ser. Contudo, a ideia de formalizar essa abordagem por meio da figura de um CHO é algo que vejo como um divisor de águas. Seria uma forma de garantir que a felicidade e o bem-estar da equipe sejam não apenas priorizados, mas continuamente avaliados e melhorados.

A implementação de “microintervenções” mencionada no artigo, como cursos introdutórios para novos colaboradores ou o envolvimento das equipes na definição de perfis para novas contratações, são estratégias que ressoam profundamente com a minha filosofia. É uma maneira de empoderar cada membro da equipe, garantindo que todos tenham voz ativa na construção da cultura empresarial.

É bom ressaltar que adotar a figura do CHO não substitui ou duplica as funções de um departamento de RH, mas agrega um foco especializado e estratégico no bem-estar dos colaboradores como um todo. Isso envolve desde a criação de programas de desenvolvimento pessoal e profissional até a garantia de um ambiente de trabalho inclusivo e acolhedor.

Eu acredito firmemente que a implementação de um Diretor da Felicidade nas empresas poderia ser um marco na jornada para, não apenas termos empresas de sucesso, mas comunidades onde cada membro se sinta verdadeiramente feliz, valorizado e parte de algo maior. A felicidade no trabalho não é apenas um ideal: é um pilar essencial para a inovação, criatividade e sucesso sustentável.

É hora de abraçarmos essa transformação.

Crises conectas

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Vivemos numa sociedade que se transforma rapidamente. Nesta sociedade, percebemos a convivência de grandes crises e, para piorar os cenários cotidianos, todas essas crises estão acontecendo ao mesmo tempo, impulsionando as instabilidades, incrementando as incertezas e estimulando as desesperanças.

Destas crises conectas, destacamos a econômica, a demográfica, a social, a ecológica, a psíquica e a política. Todas essas estão acontecendo ao mesmo tempo, levando a sociedade a grandes encruzilhadas, decisões demoradas, levando grupos de pressão a se organizar para defender seus interesses imediatos, impedindo medidas sensatas e garantindo seus ganhos econômicos e financeiros. Neste cenário assustador que vivemos na contemporaneidade, percebemos que as discussões políticas estão sendo postergadas e a situação de urgência se tornam mais prementes.

A crise econômica recente começou no período posterior a crise imobiliária dos EUA, ocorrido em 2008, que fragilizou o pensamento liberal e impulsionou crises generalizadas na economia internacional, levando conglomerados sólidos e consistentes a perderam espaço no cenário global, levando seus governos nacionais a injetaram trilhões de dólares para evitarem a bancarrota, evitando o desemprego crescente e reduzindo os riscos econômicos e financeiros, contribuindo para que o sistema produtivo se recuperasse.

A crise ecológica está agitando a comunidade internacional, embora encontramos variados grupos negacionistas, os efeitos no meio ambiente estão cada vez mais nítidos e evidentes, impactando regiões inteiras, modificando plantios e culturas, degradando comunidades inteiras, aumentando as chuvas, devastando cidades e conglomerados urbanos, mostrando-nos que não estamos preparados para as grandes transformações climáticas em curso na sociedade.

A crise demográfica está gerando calafrios, regiões prósperas e desenvolvidas perderam populações e, desta forma, precisam urgentemente de mão de obra para movimentar a economia e os setores produtivos, buscando indivíduos para incrementar suas atividades. Ao atrair mão de obra para garantir a pujança econômica, as nações percebem a chegada de culturas diferentes, com novos valores que podem gerar constrangimentos internos, conflitos religiosos, étnicos e violências cotidianas,

Neste ambiente de fortes instabilidades e incertezas crescentes, os seres humanos sentem na pele a degradação psíquica, a carga de trabalho excessiva, as violências cotidianas, a competição degradante e a escassez monetária que contribuem para os desequilíbrios emocionais e espirituais, tudo isso contribuem ativamente para o incremento das crises psíquicas que se espalham para a comunidade internacional, desde nações em desenvolvimento até as nações desenvolvidas.

As crises sociais crescem rapidamente, gerando constrangimentos assustadores, de um lado percebemos o crescimento da riqueza concentrada nas mãos de poucos afortunados e, ao mesmo tempo, a indignidade se espalha para a sociedade internacional, exigindo atuações da sociedade para reverter este quadro desastroso. A política, tão degradada na contemporaneidade, é a única forma de revertermos este quadro.

Na crise política, percebemos uma fragilização da democracia, que perdem espaço para movimentos autoritários e reacionários. Os canais de discussão política perdem espaço, a governança global se reduz em decorrência de pressões de grupos abastados e detentores dos recursos monetários e financeiros, desta forma, percebemos uma limitação da política de espaço democrático para a organização da comunidade.

Neste momento de crises conectas, precisamos construir maturidade para encontrarmos caminhos para sair deste caos generalizado… afinal o fim pode estar próximo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

China gira para os emergentes, por Nelson de Sá

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Lula gostaria de não depender tanto de Xi Jinping; Tarcísio também

Nelson de Sá, Correspondente da Folha na Ásia

Folha de São Paulo, 15/03/2024

Os alarmes protecionistas dispararam novamente, a partir dos EUA, diante do salto nas exportações chinesas em janeiro e fevereiro em relação ao mesmo período do ano anterior. A diferença é que, desta vez, o que se quer é que os emergentes se voltem contra a China.

O crescimento das vendas chinesas foi para eles, emergentes, como alternativa às barreiras que estão sendo levantadas por EUA e Europa. Em renminbi, a moeda chinesa, segundo a alfândega do país, citada pelo Asia Times, de Hong Kong, o avanço das exportações se concentrou nos países do Brics, inclusive Índia, e Sudeste Asiático, sobretudo Vietnã e Indonésia. Para o Brasil, o salto nas exportações chinesas teria sido de 37,7%, próximo daquele na direção contrária, das importações chinesas de produtos brasileiros, de 37,1% —que levou o Brasil a novo recorde em superávit comercial no bimestre.

Alguns mercados chamam até mais a atenção, como a Arábia Saudita, com o uso das moedas locais para a exportação chinesa de plásticos, têxteis e maquinário em troca de petróleo. Também Singapura, onde a montadora chinesa BYD deixou a japonesa Toyota para trás, num marco para o Sudeste Asiático.

O movimento acompanha o avanço nos investimentos chineses, cada vez mais direcionados aos emergentes. Na região Ásia-Pacífico, o crescimento no ano passado foi de 37%. No Brasil, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o gigante asiático passou a ser o maior investidor externo em termos de fluxo.

Lula gostaria de não depender tanto de Xi Jimping. Evita a Iniciativa Cirturão e Rota, quer levar centenas de empresários à Índia, insiste no acordo do Mercosul com a União Europeia — só para ver o bloco abraçar mais legislação protecionista, agora contra produtos do cerrado.

O governador paulista Tarcísio de Freitas ambém gostaria. Correu à Europa para que a francesa Alstom participasse do recente leilão ferroviário, mas a chinesa CRRC levou sem concorrentes.

Déficits públicos, por Luiz Carlos Bresser Pereira.

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Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 13/03/2024

A visão de curto prazo, tanto dos governantes à esquerda quanto à direita, gera déficits na conta corrente, criando uma perfeita sintonia entre o populismo dos políticos e a ortodoxia econômica

Era uma vez um país que poupava e investia 18% do seu PIB, quando os países que crescem rapidamente e fazem o “catching up” poupam cerca de 30%. Por outro lado, o déficit na conta corrente do país era de 2% do PIB, ou seja, o país gastava mais do arrecadava e sua dívida externa aumentava. “O que fazer?”, pergunta o governo. A solução chega rápido a ouvidos ansiosos: é tomar emprestado e crescer com poupança externa. Dez anos depois, porém, o que aconteceu? A taxa de investimento continuou a mesma e o país continuou a crescer pouco, muito pouco.

O excelente correspondente do jornal Valor econômico em Genebra Assis Moreira apresentou em 29 de fevereiro algumas das informações que o Human Development Report 2023/2024 do Pnud/ONU apresentará nos próximos dias. A história triste é que os países, muito parecidos com a nossa historieta do parágrafo anterior, estão muito endividados e semiestagnados. “De 59 economias em desenvolvimento examinadas, 32 têm notas de crédito classificadas abaixo do grau de ‘não investimento’. Pelo menos 36 estão classificadas como em risco ou em alto risco de endividamento”. Pior: “Entre 22 dos países mais pobres, o pagamento do serviço da dívida representa mais de 20% de sua receita”. E, segundo o FMI, representa 59,1% do PIB desses países.

Para não haver dúvida sobre o absurdo da situação, “o Pnud estima que países de baixa renda gastam 2,3 vezes mais em média com o pagamento de juros do que com assistência social para sua população, 1,4 vez mais que com gastos domésticos com saúde ou 60% do que destinam para educação”.

Desculpem a citação, mas aí estão os dados de uma tragédia que está sempre acontecendo – uma tragédia contínua que de tempos em tempos se agrava. E que confirma uma tese mais geral que defendo: quanto mais um país se endivida, menos cresce.

Sei que estou indo contra a corrente – contra o saber estabelecido. Estou dizendo que os países devem evitar o mais possível déficits em conta corrente e, portanto, não devem se endividar em moeda estrangeira.

Um comportamento frequente de ministros de finanças dos países em desenvolvimento é buscarem reduzir o déficit público para conseguir crédito no exterior e, assim, poder contar com a poupança externa. Serem responsáveis no plano fiscal é ótimo, mas não por esta razão. Excetuados alguns casos especiais, o principal deles é o país já estar crescendo em ritmo de milagre.

Então, a propensão marginal a consumir cai, a propensão marginal a investir aumenta, e a taxa de substituição da poupança interna cai, e a poupança externa se soma à interna. Fora dessa situação, os países não devem buscar poupança externa para crescer, porque a poupança externa simplesmente substitui a interna, enquanto o país se endivida.

Não devem tentar crescer com poupança externa por dois motivos que ocorrem sucessivamente. O primeiro deles é uma das ideias básicas do “Novo Desenvolvimentismo”. Quando um país tenta crescer com poupança externa, ou seja, com déficits na conta corrente financiados por empréstimos ou investimentos diretos, a taxa de câmbio do país se aprecia no longo prazo (enquanto estiverem entrando mais dólares do que saindo devido aos déficits), as empresas industriais perdem competitividade, e o país, ao invés de se industrializar, se desindustrializa. Este fato já conta com um número elevado de comprovações empíricas.

O segundo motivo se subdivide em dois. Primeiro, é o elevado peso do serviço da dívida externa pública sobre o PIB, cujos dados recentes vimos acima. Como pode o Estado investir se 20% de sua receita é destinada a pagar juros ao exterior? Sem falar no custo da dívida interna. Segundo, é o risco de o país quebrar, entrando em uma crise de balanço de pagamentos.

Uma crise dessas é provável nos países de renda baixa, mas acontece também em países de renda média, como é o caso da Argentina desde o governo de Mauricio Macri. E pode acontecer até em países ricos, como foi o caso do Reino Unido em 1976. Ela prejudica o crescimento de um país por muitos anos.

Os países ricos ignoram o primeiro motivo, mas não podem ignorar o segundo. Diante da ameaça de crise financeira nos países mais frágeis, eles poderiam limitar seus empréstimos a esses países exportar seus capitais – não os investimentos diretos das multinacionais que não são causa de crise de balanço de pagamentos porque não têm data de vencimento.

Ao invés disto, porém, encontraram uma “solução”. John Williamson, nos anos 1980 (a década da grande crise da dívida externa), formulou o conceito de taxa de câmbio de “equilíbrio fundamental”, que eu prefiro chamar de taxa de câmbio de “equilíbrio de dívida externa”. É um conceito simples: o país pode se endividar em moeda estrangeira desde que seus déficits em conta corrente em relação ao PIB não sejam maiores que o crescimento do PIB. Em outras palavras, desde que a relação dívida externa/PIB não aumente, não ocorrendo, portanto, o problema do peso excessivo de juros, nem a ameaça de crise de balanço de pagamentos.

Há uma fórmula que permite aos economistas ortodoxos calcularem essa taxa de câmbio “de equilíbrio” e a propô-la como o caminho do desenvolvimento para a periferia do capitalismo. Essa política, porém, implica sobreapreciação cambial (o que já é péssimo) e mais, se o país descuidar quanto ao limite do equilíbrio de dívida externa (o que é muito comum), verá o custo do serviço da dívida aumentar senão entrar em crise de balanço de pagamentos.

Estas considerações me levam afirmar que déficits na conta corrente são sempre maus, mesmo se forem financiados por investimentos diretos, porque sempre apreciam o câmbio. E também empréstimos em moeda estrangeira são sempre maus não apenas pelo primeiro, mas pelos dois motivos já discutidos.

Por que, então, os países periféricos insistem em se endividar? Porque no curto prazo, enquanto não operam os motivos negativos, as entradas de capitais de empréstimo podem aumentar a taxa de crescimento. E porque os governantes, sejam de direita ou de esquerda, além de pensarem só no curto prazo, preferem déficits na conta corrente e uma taxa de câmbio porque isto aumenta o poder aquisitivo dos salários e eles são reeleitos. Como se vê, há aqui uma perfeita sintonia entre o populismo dos políticos e a ortodoxia econômica.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).

Ações afirmativas sob ataque, por Cida Bento.

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Negras, quilombolas e indígenas nas universidades incomodam porque abalam a hegemonia

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 14/03/2024

O receio e o sentimento de ameaça sentidos por parcelas da população como reação à crescente presença negra em lugares antes considerados apenas para brancos pode ser o impulso que dá origem à recente retomada dos ataques às políticas de ação afirmativa —no caso, as cotas raciais nas universidades, iniciativas essas que se colocam na contramão da luta pela democracia multicultural.

Até bem pouco tempo atrás tínhamos nas universidades uma cota não explicitada de quase 100% para a juventude branca. Nos últimos anos, no entanto, provocada pelo movimento negro e de mulheres negras, a sociedade brasileira vem sendo obrigada a reconhecer e debater essa relação de dominação na busca de outro tipo de sociedade e novos pactos civilizatórios.

Porém, se cresce a pressão dos movimentos sociais, também cresce a resistência e são retomadas narrativas, antigas, que pensávamos já mortas, focalizando classe versus raça, ou seja: a luta racial vai “dividir a classe trabalhadora”. Ou ainda sobre “grupos étnicos” ou “movimentos identitários” que viriam para sequestrar o debate político verdadeiro, sem falar na ideia surpreendente de que as cotas iriam “racializar” nossa sociedade “não racista”.

A verdade é que as ações afirmativas e as cotas provocam uma redefinição do modo de funcionamento que torna homogêneas e uniformes as universidades brasileiras, induzindo não só a alterações nos processos, nas ferramentas, nos sistemas de valores mas também nos perfis de docentes, discentes e pesquisadores que ajudam o país a se pensar. Ou seja: ações afirmativas e, dentro delas, as cotas pretendem alterar um processo de estruturação institucional excludente que permaneceu intocado durante quase toda a história do país.

A entrada de outros grupos nas universidades, como mulheres negras, quilombolas e indígenas, incomoda porque abala a hegemonia e traz novas perspectivas e paradigmas, oferecendo a negras e negros um papel de protagonistas da ação política contra a expropriação de riquezas e a brutalidade que sustentam a sociedade e o regime político no qual vivemos. E aí vamos ter que enfrentar o desafio de refletir sobre o que a mudança desses sistemas monolíticos fará com a vida das pessoas que dele vêm se beneficiando.

Como informa o economista Mario Theodoro em seu livro “A Sociedade Desigual: Racismo e Branquitude na Formação do Brasil”, o país teve —e perdeu— três oportunidades históricas de alterar a dinâmica da enorme desigualdade que o caracteriza.

Na primeira metade do século 19, o estabelecimento de um imposto exorbitante tolheu a ascensão social do grande número de africanos libertos que exerciam as profissões de pedreiros, alfaiates, sapateiros, entre outras, o que impediu a criação, em escala ampla, de uma classe média negra no país.

O segundo momento destacado é o longo período de industrialização do país, entre 1930 e 1980, quando o crescimento per capita médio do produto interno brasileiro foi de “impressionantes 3,86% anuais”, por 50 anos! No entanto —como explica Theodoro—, o preceito que orientou a política econômica desse período, o de maior prosperidade vivenciado pelo país, foi crescer gerando pobreza, miséria e desigualdade.

Mais recentemente, entre 2004 e 2014, quando políticas do governo federal retiraram mais de 30 milhões de pessoas da pobreza, o percentual de negros entre os 10% mais pobres subiu de 73,2% em 2004 para 76% em 2014.

Para ser enfrentada com eficácia, essa persistência da desigualdade em prejuízo da população negra justifica a implementação de políticas públicas ou privadas de ação afirmativa —das quais as cotas são uma modalidade— para um efetivo combate às diferenças e uma real promoção da equidade entre brancos e negros no trabalho, saúde, educação e moradia.

Entregadores: Saúde mental e a noia sem fim, por Gringo.

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Num momento em que discute-se a regulamentação do trabalho por app, fala uma liderança dos entregadores. Gamificação do trabalho. Esgotamento. Medo de acidentes. Corpo e mente são triturados, diz. Plataformas não podem ser senhores do tempo…

Edgar Francisco da Silva (Gringo)

OUTRAS PALAVRAS -08/03/2024

Nos últimos anos assistimos a expansão de empresas que operam por meio de plataformas digitais no mundo capitalista. Situadas no processo de uberização aprofundam a mercantilização e a precarização do trabalho, em especial quando analisamos os trabalhadores que atuam por meio de aplicativos de serviços, tais como os entregadores. A conivência de Estados neoliberais acabou institucionalizando a precarização e o aumento da informalidade de milhões de trabalhadores, fazendo recair sobre os de maior vulnerabilidade social processos de adoecimento físico e mental profundos. A ausência de normativas governamentais permitiu que empresas, tais como Uber, iFood e Rappi ludibriassem direitos trabalhistas, usurpando horas e horas trabalhadas e não pagas dos trabalhadores.

Historicamente processos de exploração do trabalho são acompanhados de enfrentamento e estratégias diárias de resistência e revolta. Submetidos ao trabalho das empresas-plataforma, entregadores – organizados coletivamente ou não – enfrentam os abusos da relação pautada pelas demandas que chegam pela tela do celular.

O termo empreendedor, usado pelas empresas para definir o trabalhador nessa relação de trabalho sem vínculo jurídico trabalhista, onde este aparece como “dono do seu tempo”, poderia ser traduzido como parte do novo vocabulário encobridor de antigas formas de exploração. As refinadas tecnologias digitais foram definitivas para a manutenção e aperfeiçoamento das formas de organização e gestão que visam o extremo controle do trabalhador. Algoritmos podem controlar os movimentos dos trabalhadores e pressionar por longas jornadas de trabalho com períodos ociosos e sem remuneração, podem direcioná-los para territórios à revelia, são também capazes de estabelecer avaliações, punições e valores de entrega de forma unilateral mantendo regras desconhecidas. O sentimento de desvalorização pelo não reconhecimento do trabalho, a impossibilidade de projeção de planos futuros, a angústia por não ter condições de manter seu veículo de trabalho em dia, o sentimento de injustiça, a ausência de tempo de lazer, a certeza de estar em uma profissão de risco – onde a gamificação os empurra para acidentes muitas vezes fatais -, produzem medo, insegurança, sofrimento.

Tudo isso é apenas parte do processo que leva ao adoecimento, levando o corpo e a mente à exaustão.

Quase 600 mil entregadores estavam nas ruas do país em 2022 executando o trabalho intermitente, com jornadas mais longas e rendimentos inferiores aos trabalhadores não plataformizados (IBGE, 20231), dados que corroboram desigualdades estruturais da nossa sociedade. Estes trabalhadores, em sua maioria homens negros, encontram-se em trabalhos desvalorizados socialmente.

Recentemente, vemos uma profusão de manchetes noticiou diversas formas de violência sofridas por entregadores: racial, de classe, de gênero, urbana e policial, rompendo com a narrativa, construída a partir da pandemia de covid-19, da indispensabilidade dos entregadores para a manutenção do nosso modo de vida e consumo.

No início de 2023, o governo Lula, através do Ministério do Trabalho e Emprego, reuniu trabalhadores, centrais sindicais, sindicatos e representantes das empresas por aplicativos para a construção de uma regulação do trabalho de entregadores e motoristas. O grupo de trabalho (GT) constituído se prolongou por meses sem, contudo, produzir resultados que se mostrassem favoráveis aos trabalhadores.

Diante de um quadro nada promissor, trabalhadores de diferentes associações e coletivos enfrentaram os embates no GT. Sentaram-se à mesa novos e velhos sindicalistas compartilhando experiências e propostas para a categoria. Boa parte desses trabalhadores atravessou transformações profundas com a chegada das empresas-plataforma. Daí, ao compartilharem experiências comuns, expuseram a relação entre trabalho, saúde, adoecimento e acidentes vivenciados no cotidiano. Essa percepção tornou a questão da saúde fundamental para a luta, pautando reivindicações.

Algumas lideranças se destacaram no processo. Gringo é um deles. Edgar Francisco da Silva, 40 anos, motofretista de São Paulo, fundador e presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), criada no 1º de maio de 2018, e membro da ANEA (Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos), surgida no cerne da luta dos trabalhadores diante da necessidade de integrar o grupo de trabalho organizado pelo governo federal. Possui mais de duas décadas de experiência no trabalho como motoboy.

Na entrevista que se segue, Gringo nos ajuda a compreender, a partir da sua trajetória e com conhecimento de causa, como vem se dando o processo de precarização e seus efeitos nocivos para a saúde e segurança dos trabalhadores, no contexto da plataformização do trabalho.

Sabemos que a plataformização do trabalho é um fenômeno mundial no atual contexto da aceleração de processos de precarização, embora apresentando especificidades nos diversos países e regiões do planeta. O trabalho de entregadores e motoristas por plataformas se apresenta como a ponta de um iceberg da exploração do trabalho no capitalismo. Como você vê o trabalho de entregadores e entregadoras hoje no Brasil?

Sem os entregadores e entregadoras na economia, acaba aquela agilidade toda para resolver problemas urgentes. Acaba a questão de pessoas que precisam se alimentar com rapidez. Que precisam pedir um lanche pra já. Mas eu enxergo a precarização de quem faz esse tipo de serviço e leva as empresas nas costas. Enquanto a gente vê, por um lado, empresas que acabaram de ser criadas virando bilionárias, do outro lado há entregadores que colocam seus bens [como suas motos] na rua cada vez mais precarizados, ao ponto de não terem descanso semanal. E, durante os anos que o entregador trabalha, não tem férias – não as férias do benefício da CLT, mas as férias de descanso para o corpo. É diferente de um outro serviço onde você só vem com a mão de obra, como um segurança, um porteiro… Eles só entram com a mão de obra. Aqui a gente não tem só a mão de obra, tem o custo operacional para exercer a profissão, o custo da máquina; então a gente tem que ganhar pela hora-homem e pela hora-máquina. O aplicativo se aproveita e coloca como se a gente estivesse ganhando o suficiente. Uma comparação: se eu trabalhava no açougue ganhando R$ 1.500, agora vou ganhar R$ 3.000 na moto! E se o entregador catou o fundo de garantia dele e comprou a moto, tirou habilitação, comprou capa de chuva, capacete, celular, bota de chuva, baú… Ele comprou tudo para exercer sua profissão! E aí ele se precariza; a sensação é de uma cenoura no ralador. Daqui a dois anos, quando ele sair da profissão, perceberá que os bens que investiu para poder trabalhar se desgastaram e ele não atingiu nenhum de seus sonhos ou objetivos. O que ganhou foi multa de trânsito ou sofreu algum acidente. Quando não se tem o poder de negociação do preço do serviço e das condições de trabalho, não se é autônomo nem empreendedor.

O que é ser um entregador hoje no Brasil? Há impactos deste processo de plataformização na forma como a categoria profissional se identifica? Com a entrada destas empresas, muda o modo como o motoboy se vê?

A profissão sempre foi vista como um escape para quem está desempregado, para quem saiu da cadeia, para quem teve algum problema. O que equilibrava muito a profissão é que tinha muita gente procurando entregadores, motoboys, motofretistas. E o que era o controle natural da profissão? A profissão matava muitas pessoas por causa dos acidentes e também era [realizada] no guia [mapa de ruas impresso]. O guia era um filtro, hoje tem GPS, mas antes era no mapa de papel, aquilo era difícil de olhar para quem entrava na profissão, você tinha que saber as abreviações e como procurar as ruas. E o guia era o seguinte: está chovendo, como é que você vai [manusear] com a mão molhada, mexer naquele negócio de papel?… Era tipo ensinar a fazer malabarismo, essas coisas que você vê que não é todo mundo que faz… Trabalhar na profissão era dessa forma.

O GPS facilitou para qualquer um começar a andar pela cidade sem conhecimento da cidade. Quando veio os aplicativos pagando muito bem, era coisa da gente ganhar quatro, cinco vezes melhor do que a CLT. A gente viu um sonho.

Uma coisa que não pode deixar de falar é que a CLT estava há tanto tempo estabilizada que o patrão aprendeu a usar ela contra a gente. O patrão fazia a gente fazer serviço de dois em um. E o aplicativo veio com aquela mágica de te pagar muito bem para fazer as entregas, de ganhar mais do que na CLT e livre, sem pressão. Isso fez com que a gente começasse a ter acesso a férias dignas, não férias de tempo afastado do serviço, mas férias merecidas, aquelas aonde eu saio com a minha família, eu consumo, eu me divirto. Os aplicativos surgiram em 2013, eu estou falando entre 2014 e 2018, que era a época boa ainda. Depois de 2018, foi só ladeira abaixo. O aplicativo veio trazendo todas essas facilidades para a vinda de muita mão de obra.

O impacto das plataformas começou quando eles começaram com o oligopólio. Faziam o seguinte: “traz um entregador igual a você para trabalhar aqui e eu te pago”. Aí você trazia o entregador. Você está tirando das empresas de motoboy, entende? “Agora me forneça um cliente que eu te pago R$200 por cada cliente”. O aplicativo está dando dinheiro para aquele cliente usar o aplicativo pela primeira vez para ver se gosta. Tudo isso fez um dumping social: o aplicativo atacou e derrubou todas as empresas existentes, tirando os entregadores e os clientes delas; e isso fez com que o aplicativo se tornasse um oligopólio. E, com isso, muitas pessoas se endividaram para entrar nessa terra dourada. Agora que o aplicativo está saturado, ele baixa o preço. E, quando ele baixa o preço, quem estava acostumado com aquele tipo de vida, pula fora. As pessoas endividadas viram refém. Elas são obrigadas a ficar naquele sistema e eles [as empresas] baixam mais [a remuneração pelo serviço]. Um retrato claro disso foi a pandemia, quando muitos perderam o seu trabalho por causa do lockdown – não os entregadores: pessoas que trabalhavam em outras profissões. Eles perderam seu trabalho, então quem tinha moto foi para o aplicativo. É isso: as plataformas tinha muita gente desempregada com moto, viraram a saída. O que eu quero dizer com tudo isso? Que aumentou a receita dos aplicativos, novos clientes apareceram de tudo quanto é lado, mas o entregador passou a ganhar menos e se expor mais. Porque antes ele fazia 15 entregas a R$10 e aí ele passou a fazer 12, 13 entregas a R$6. Entende? Este é o impacto dos aplicativos.

Antes a gente tinha opção. Por mais precarizado que fossemos, a gente achava trabalho em outras empresas. Hoje não acha, não tem outra opção, virou oligopólio mesmo.

Características dessa forma de organização e controle do trabalho, como o rebaixamento da remuneração dos trabalhadores – levando à necessidade de extensão da jornada de trabalho -, o gerenciamento algorítmico e a falta de acesso às regras de funcionamento das empresas se relacionam com o desgaste e adoecimento físico e mental dos trabalhadores. Estudos apontam o crescimento de índices de acidentes de trânsito associado ao aumento do número de entregadores por aplicativos, acidentes esses que deveriam ser encarados como acidentes de trabalho. Como você observa a relação entre o trabalho e a saúde e segurança dos entregadores e entregadoras?

Na forma que está com essa desvalorização e precarização que os aplicativos vêm fazendo, o entregador passou a absorver o prejuízo. Ele deixou de se alimentar adequadamente, de fazer a manutenção no seu veículo, o que é crucial para sua segurança, passou a fazer gambiarras nos veículos, ficam com excesso de horas em trabalho, o que também é prejudicial. Quem trabalha o dia inteiro como se fosse um atirador de elite ali, precisa ser preciso ao passar no meio do trânsito. Para quem está cansado, isso faz uma diferença gigante: de passar no farol vermelho sem perceber, de acertar um carro ali no meio do corredor sem perceber, por falta de atenção… O cansaço com tomadas de decisões que a gente tem é que coloca nossa vida em risco… Você precisa estar descansado para fazer esse trabalho que a gente faz.

O Ministério do Trabalho reconhece a nossa profissão como uma profissão de risco na lei 12.997 de 2014. Para isso, existe uma regulamentação federal que é a lei 12.009/09. Essa regulamentação serve para diminuir os acidentes, pois exige que o motofretista seja maior de 21 anos e tenha dois de CNH [carteira nacional de habilitação]. Porque se você olhar o ranking de acidentes, a imensa maioria tem idade abaixo dos 21, entre 18, 24, mas abaixo de 21 é tipo o dobro. E dois anos de CNH quer dizer que pelo menos você praticou depois de tirar a habilitação. Enfim, a gente vem com um processo de regulamentação precário, onde os aplicativos não respeitam nenhuma dessas exigências e acabam colocando pessoas sem capacitação para exercer uma profissão de risco, sem os acessórios de segurança, sem o curso. O curso é de 30 horas e 25 delas são teóricas, mostrando os riscos da nossa profissão, como evitar situações desse tipo… Cinco horas são práticas para aprender técnicas de pilotagem que não se aprendeu na autoescola e que vão salvar sua vida no dia a dia. Mas os aplicativos não cumprem essa legislação e ainda estão tirando todas as formas daquela pessoa de exercer a profissão de forma saudável, com disposição de saúde tanto de trabalhar no dia a dia, quanto de estar bem psicologicamente. Porque se barateia o serviço se você não consegue nem fazer a manutenção do veículo, está sem capacitação, mal alimentado, com veículo precarizado e ainda trabalhando numa carga horária excessiva? Qual resultado a gente espera a não ser o aumento de acidentes de trabalho — E eles ainda são escondido como acidente de trânsito.? A soma de tudo não tem como dar em outra, mais cedo ou mais tarde. Quem escapa é como acertar na loteria. É um profissão de risco, com trabalhadores mal alimentados, veículos precarizados, excesso de carga horária, sempre correndo… Porque a gente é forçado a correr pela gamificação, te dão bônus ou te bloqueiam parcialmente se você não fez aquela entrega no tempo certo, então você precisa correr para entregar [os pedidos] no tempo certo, para que o aplicativo não fique sem tocar… E alguém te induzindo a correr… O resultado não tem como ser outro a não ser acidente. E esse acidente termina de três formas: o óbito; ou essa pessoa sequelada; ou, se o acidente não foi tão grave, ela volta [para o trabalho] propícia para um novo acidente. Agora você coloca aí uma pessoa que não está ganhando o suficiente para se manter, na hora que ela recebe o bruto ainda tem que tirar o custo para exercer a profissão, então sobra pouco, ela só está se mantendo. Então, quando ela toma uma multa, quando chega alguma coisa, acontece algum imprevisto financeiro, essa pessoa começa a se desesperar, isso faz com que ela perca o centro dela mesma, ela começa a trabalhar com a cabeça também. Imagina o aplicativo te jogando bônus para você correr, ou “eu vou te bloquear”, essa pressão… O psicológico não aguenta — e muitos nem sabem que estão ficando ruins porque não percebem que estão estressados, tratando a família mal, sem mais paciência com o filho e acham que o filho é o chato. E você fica ali sendo pressionado pelo aplicativo, pelas contas, por toda essa situação, naquela perspectiva de que “vai tocar, vai tocar, vai tocar” e não toca; aquela gamificação do aplicativo. É como o Instagram: quando você entra e aceita algum amigo, fica aparecendo aquele amigo para você o tempo todo; é igual quando você entra no aplicativo: fica saindo corrida o tempo todo para você. Só que daqui a pouco [no Instagram] aquele amigo vai desaparecendo e ele não é mais importante; e eles dão visibilidade para outro. O aplicativo faz a mesma coisa, ele te substitui. Ele já te viciou: “agora que você está viciado, agora vou mandar o vício para outro”. E aí a gente vai colocando todo mundo no esquema e no automático, e todo mundo é um refém com sua força de trabalho, seu tempo, sua saúde, sem segurança e sem o seu psicológico.

Pra você, lutar e se organizar coletivamente é saúde?

Se é saudável para mim, não é. Na minha opinião, o que estão fazendo comigo, como liderança, não é saudável. Eu estou lutando para as pessoas serem valorizadas, para que elas tenham saúde, para que elas tenham segurança, para que elas tenham previdência e para que não sejam refém de um jogo de manipulação, que no caso é o algoritmo dos aplicativos. Mas eu estou passando por tudo isso, sem ser valorizado, sem ganhar o que eu precisava de acordo com o que eu faço, sem saúde, sem previdência e vítima dessa manipulação do sistema. Então para mim não é saudável. E eu sou um insistente, não sei se eu posso dizer teimoso ou persistente –persistente é a teimosia inteligente, não é? Mas, às vezes, me pego como teimoso. Sou persistente quando eu vejo que há uma demora para dar um passo, mas quando esse passo acontece, aí eu vejo que era persistência, não teimosia. Mas eu cansado, estou exausto. E isso começou a comprometer minha saúde, segurança, remuneração… Em 2021, eu estava aqui em casa, aí eu fui para um evento do Detran, que eles pediram minha ajuda, e eu consegui colocar 12 mil motocas lá. Durante aquele negócio doido, aquele monte de pessoa ao meu redor — “e aí Gringo, não sei o que lá etc” — você parece uma celebridade… E aí minha mãe me liga e fala: “olha, cortaram a luz de casa”. Eu estava tendo visibilidade, mas o financeiro não acompanhava aquela minha visibilidade: eu fiquei três dias sem luz aqui em casa numa época de frio. Todo mundo aqui em casa sofreu por minha causa e eu me estressei muito tentando religar [a energia elétrica]. Olha, então, o que acontece nessa luta.

Se a pergunta é para mim como liderança, digo que ela está me fazendo muito mal, mas eu sou persistente.

E como se amplia todo este debate que a gente teve aqui para a sociedade, para além de quem pesquisa esse assunto ou para quem trabalha no dia a dia?

Eu acho que aproveitando essas oportunidades, entendendo o que esses meios de comunicação querem e usar eles a nosso favor. A gente precisa aprender a usar todas as ferramentas disponíveis, ir passando a informação: união, organização, informação e ação.

A vingança do lixo, por Fernanda Mena

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Vai ser difícil escondê-lo como se fazia na Paris de Eugéne Poubelle

Fernanda Mena, Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha.

Folha de São Paulo, 09/03/2024

A lixeira é uma invenção mágica do final do século 19: faz desaparecer tudo o que é depositado nela. Longe dos olhos, não é preciso se responsabilizar pelo que acontece dali por diante com os itens descartados.

Essa mágica da modernidade, atribuída ao francês Eugéne Poubelle (1831-1907), cujo sobrenome batizou as latas de lixo na França, se tornou cada vez mais conveniente. A escalada da urbanização e da industrialização, o crescimento da população e o surgimento do consumo de massa fizeram a produção de resíduos explodir.

Em 1900, as cidades concentravam 13% da população global, ou 220 milhões de pessoas, que produziam 300 mil toneladas de lixo por dia, entre embalagens, restos de alimentos, itens domésticos quebrados e peças de vestuário inutilizadas.

De lá pra cá, a população urbana aumentou 20 vezes e bateu 4,4 bilhões de pessoas (ou 56% da população global), e a produção de resíduos cresceu na mesma proporção, chegando a 6,3 milhões de toneladas diárias.

O peso é equivalente a 121 Titanics de lixo todos os dias. E boa parte dele é descartado de maneira inadequada, já que 2,7 bilhões de pessoas no mundo não têm acesso à coleta regular de lixo, segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

O lixo está mais relacionado às mudanças climáticas e à perda da biodiversidade do que se supõe. Ele polui o solo, os lençóis freáticos, os rios e os mares. Estima-se que em 2050 os oceanos deverão ter mais plástico do que peixes.

Sua decomposição em aterros sanitários também é responsável por cerca de 20% das emissões humanas de metano, o pior dos gases de efeito estufa.

Além disso, o ritmo e a escala com que as pessoas compram e descartam embalagens, roupas, alimentos e tudo mais estão diretamente ligados à quantidade de recursos naturais gastos, de energia consumida e de poluição gerada. Não é pouca coisa.

Se nada mudar, em 2050 a produção anual de lixo terá atingido a marca de 3,8 bilhões de toneladas.

Será difícil esconder dos olhos essa quantidade brutal de lixo como se fazia na Paris de Poubelle.

O gerenciamento de resíduos já é o maior gasto de orçamentos municipais pelo planeta, competindo com outras áreas vitais como saúde e educação. Seu custo direto global foi estimado em US$ 252 bilhões (mais de R$ 1,2 trilhão) e pode chegar a US$ 640,3 bilhões (quase R$ 3,2 trilhões) em 2050.

Por outro lado, também segundo a ONU, o lucro líquido potencial de uma economia verdadeiramente circular é de mais de US$ 100 bilhões ao ano, ou quase R$ 500 bilhões.

A vingança do lixo, desprezado desde sempre, é se fazer notar de duas maneiras opostas: como fonte de destruição e doença, num tsunami malcheiroso de tudo o que se queria fazer desaparecer, ou como a chave para novas oportunidades econômicas.
A escolha é urgente.

Negação do Antropoceno tira urgência do clima, por Marcelo Leite

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Decisão contrária de geólogos reforça agenda de viciados em petróleo, como Lula
Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo, 10/03/2024

Especialistas da União Internacional de Ciências Geológicas decidiram que não é o caso, ainda, de designar uma nova etapa na história da Terra, o Antropoceno. A decisão tecnocrática contrasta com a percepção geral de que algo portentoso está afetando o globo.

O pessoal de ciências da Terra pesquisa e pensa sob a égide da imensidão do tempo geológico. O planeta conta 4,5 bilhões de anos; o Universo, 13,7 bilhões. Dessa perspectiva, encerrar o Holoceno (era atual) após meros 11 mil anos pode parecer precipitado.

Deixando de lado razões técnicas para a recusa, por falta de competência para julgá-las, cabe dizer que a decisão veio em má hora. O Antropoceno, categoria indicativa do impacto profundo da atividade humana sobre a Terra, oferece um símbolo poderoso para impulsionar o enfrentamento da crise climática.

Para quem duvida de estarmos deixando marca profunda na história do planeta: nos últimos 250 anos, a concentração atmosférica do dióxido de carbono (CO2), principal gás do efeito estufa, aumentou 50%, de 280 partes por milhão (ppm) para mais de 420 ppm.

A queima de combustíveis fósseis e de florestas lançou cerca de 1,5 trilhão de toneladas de CO2 no ar, engrossando o cobertor que faz subir a temperatura na superfície e nos oceanos. Com os recordes de 2023, em 17 de novembro ultrapassamos pela primeira vez a marca de 2ºC acima da era pré-industrial.

Considerando a média de várias décadas e não o registro diário, como recomendam climatologistas, a atmosfera está 1,17ºC acima do que era até então o normal. Perigosamente perto dos 1,5-2ºC preconizados como limite de segurança no Acordo de Paris (2015).

Pouco se fez de lá para cá para mitigar o aquecimento global. Seguem em alta as emissões de CO2, as marcas dos termômetros e a ocorrência de eventos extremos –como as atuais cheias devastadoras no Acre e secas idem em Roraima, origem de incêndios florestais disseminados no segundo caso.
O governo brasileiro, após a eleição de Lula e a volta de Marina |Silva ao Ministério do Meio Ambiente, até conseguiu reverter a tendência de desmatamento na Amazônia. Mas se mostra impotente diante de desastre pior causado pelo agronegócio no cerrado.

Pior ainda, pisa fundo no acelerador da Petrobras. A desculpa é usar a renda do petróleo para fazer a transição energética, para a qual, no entanto, não tem plano detalhado e exequível.

Considere o contraste com a União Européia (UE), que cogita cobrar das empresas petroleiras a conta da mudança climática desastrosa. Ou com a decisão do governo de Joe Biden, em janeiro, de congelar nos EUA a ampliação de licenças para exportar gás natural liquefeito, outro impulsionador do efeito estufa.

Ambas as iniciativas podem, é verdade, retroceder diante de reviravoltas políticas com a vitória de partidos de direita. A UE se acha sob pressão de agricultores sublevados contra altas nos preços de combustíveis e exigências ambientais. Nos EUA, torna-se cada vez mais provável a eleição do negacionista Donald Trump.

Lula almeja liderança global na onda verde pelo clima, mas seu desenvolvimentismo petroleiro anos 1950 pode erodir-lhe o protagonismo na COP30 de Belém do Pará, no final de 2025. Pesará também sua camaradagem com autocratas violentos montados em jazidas fósseis como Maduro, Putin e Mohammed bin Salman.

Ambos os cenários, nacional e internacional, não auguram nada de bom para a crise do clima. O termostato controlador da transição energética parece estar avariado, e um dos sintomas é a rejeição do Antropoceno –mas ele ainda vai voltar para nos assombrar.

Invasão chinesa

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Vivemos momentos de grandes rupturas e transformações estruturais na sociedade brasileira, os comportamentos estão em franca modificação, o mundo do trabalho está de cabeça para baixo, os relacionamentos se alteram rapidamente, as hegemonias estão em movimento, os modelos de negócios estão sendo reconfigurados e as incertezas crescem de forma acelerada, gerando preocupações, instabilidades e o incremento de novos medos.

Neste ambiente, percebemos as modificações geopolíticas e geoeconômicas na sociedade internacional, países dominantes vêm perdendo espaço e reduzindo seus poderes e outros contendores ganham espaços, surgindo novos modelos de negócios, novas estruturas culturais, novas lideranças e novos desafios surgem cotidianamente. O século XXI nos mostra a ascensão asiática, principalmente o grande crescimento da economia chinesa, com suas especificidades, novas organizações corporativas e novas formas de estruturação socioeconômica.

Nestas novas reconfigurações econômicas e produtivas, percebemos que a economia chinesa vem se transformando na indústria do mundo, com grande capacidade de produção e faturamento superior a mais de US$ 4 trilhões, despertando ressentimentos, preocupações e o crescimento das políticas protecionistas, tudo isso, vem gerando aumento dos conflitos comerciais e confrontos financeiros, com instabilidades na economia global, gerando preocupações geopolíticas e receios de conflitos militares.

A ascensão chinesa está criando espaços de negociação na economia internacional, novas oportunidades de negócios e abrindo novas oportunidades de investimentos e, infelizmente, podem gerar novas formas de dependência financeira e tecnológica. Diante deste quadro, precisamos compreender as movimentações globais das nações, estudar estas novas configurações e criar instrumentos de atuação para evitar a eterna perpetuação de uma histórica dependência estrangeira, inicialmente europeia, passando pela norte-americana e agora, na contemporaneidade, na dependência chinesa.

Com o crescimento das negociações internacionais, faz-se necessário compreendermos os interesses nacionais, o que queremos nos próximos anos e quais os setores que devemos alavancar na economia brasileira nos próximos anos e, a partir daí, criar instrumentos para extrairmos nas conversações globais novas tecnologias que podem impulsionar o crescimento econômico e produtivo, nestas negociações precisamos exigir a transferência de tecnologia para consolidarmos os setores produtivos.

A transferência de tecnologias pode ser vista como forma de encurtarmos os caminhos do desenvolvimento econômico, mas só será exitosa se conseguirmos melhorar os indicadores educacionais, com sólidos e garantidos investimentos em pesquisa científica, somente assim compreenderemos e dominaremos essas tecnologias que crescem, se espalham e dominam a economia internacional.

A ascensão chinesa deve ser vista como uma oportunidade de crescimento dos investimentos e a geração de empregos, mas precisamos compreender que essa entrada de produtos asiáticos pode gerar graves constrangimentos para a economia nacional e fragilizar setores importantes, desta forma, precisamos utilizar o nosso grande mercado interno para angariar vantagens expressivas, ganhando escalas produtivas e garantindo condições de competir numa economia altamente integrada e interdependente. Vivemos um momento de apreensão, de oportunidades e grandes conflitos pela hegemonia mundial, as escolhas nacionais podem mostrar os caminhos que queremos trilhar no século XXI.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Da janela do quartel, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra é Redonda – 29/02/2024

Por que o militar não gosta de Lula?

O militar não gosta de Lula e o chama de ladrão. Em suas especulações sobre a crise brasileira, salienta a falta de padrão moral consentâneo com a presidência da República. O militar enxerga o mundo da janela do quartel: a sociedade seria demasiado anárquica, indisciplinada, desprovida de formação moral e incapaz de escolher boas lideranças.

Por “militar”, estou designando o tipo preponderante nas Forças Armadas brasileiras. Nas corporações, há diferenças entre seus integrantes, mas predomina a unidade de valores e convicções indispensável à adoção de doutrinas norteadoras da organização e do emprego das fileiras.

O militar não gosta de Lula porque esse líder, mesmo não sendo um reformista radical, acena com mudanças sociais. Instila, de algum modo, esperança em um tempo novo, enquanto o militar cultua o legado colonial.

O militar preza a estabilidade. Mudanças sociais roubam-lhe o azimute. Pretendendo-se criador da nação, constrangeu o constituinte a designar-lhe o papel de mantenedor da lei e da ordem. Admite, no máximo, uma modernização contemporizadora, que preserve o domínio oligárquico característico da sociedade brasileira.

Lula não bate de frente com os poderosos, mas condena iniquidades e promete “incluir o pobre no orçamento”. Em que pese seu gosto pela conciliação de classes, sua carreira política não deixa de desafiar a hierarquia social em que se ampara a organização militar. Seu jeito de ser e de falar incomoda porque anima parcelas socialmente rebaixadas.

Apegado à estabilidade e sem argumentos válidos para se contrapor à mudança social, o militar vê em Lula um demagogo, um espertalhão em busca de proveito próprio. Um político prejudicial à boa ordem. Lula é perigoso: na condição de chefe de Estado, pede desculpas aos africanos pela escravidão. Prega a tolerância e fere a cultura homofóbica do quartel.

Quando o militar condena Lula moralmente, evita o desgaste de rebater seu discurso antiescravagista e de repúdio ao patriarcalismo.

O militar não gosta de Lula por conta de amizades perigosas: abraça João Pedro Stédile, percebido no quartel como encarnação do inimigo interno, negador da lei e da ordem.

Lula sempre atendeu às demandas do quartel. Na cadeia, em Curitiba, disse não entender a animosidade do militar consigo, posto não o contrariara. Retornando à presidência, persiste satisfazendo a caserna. Garante recursos para uma gigantesca escola de sargentos concebida para reforçar a ordem interna no Nordeste, região supostamente propensa à insurreição.

Abona projetos que reforçam a capacidade de combater brasileiros em detrimento da capacidade aeronaval, mais adequada à guerra contra o estrangeiro. Usa, inclusive a expressão “Exército de Caxias”, que significa Exército repressor de insubordinações populares. Rejeita discussão sobre Defesa Nacional para não ferir cânones estabelecidos desde sempre.

A razão principal para o militar se contrapor a Lula está na insegurança quanto ao futuro das corporações. O militar brasileiro integra o esquema de forças liderado por Washington. Raciocina como defensor da “civilização ocidental”. Depende estruturalmente do Pentágono e absorve a pregação ideológica imperial.

Nestes tempos em que se redefine uma nova ordem internacional, o contraditório entre a veleidade de soberania nacional e os laços de dependência das corporações armadas em relação a Washington será crescentemente exposto. O ambiente guerreiro que toma conta do planeta não permite neutralidade. O militar não gosta da aproximação de Lula com nações que considera dominadas por “ditaduras comunistas”.

A indisposição militar com Lula se agravará, não obstante seu empenho em livrar as corporações de responsabilidades quanto à tentativa de quebra da ordem institucional.

Nas democracias modernas, militar não teria que gostar ou desgostar do político, mas obedecê-lo.

A vida real, entretanto, mostra que as predileções políticas do militar contam decisivamente.

O militar considera a polarização política o principal problema brasileiro, mas gostou da demonstração de força da extrema direita na avenida paulista no último final de semana. A docilidade do militar para com Lula é uma quimera que cobrará seu preço.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

A ofensiva da extrema direita, por Igor Felippe Santos

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Igor Felippe Santos – A Terra é Redonda – 28/02/2024

As milhares de pessoas que participaram do ato na Avenida Paulista no último domingo não se
moveram apenas para apoiar seu líder diante da “perseguição”

Ninguém imaginava uma década atrás que o então deputado federal de baixo clero Jair Bolsonaro poderia chegar à presidência da República e levar milhares de pessoas às ruas. Naqueles tempos, a direita tinha o PSDB como referência política, disputando as urnas e respeitando a “alternância de poder”. Seu projeto neoliberal defendia bandeiras como a “modernização do Estado”, responsabilidade fiscal e políticas sociais focalizadas.

Dez anos depois, com o recrudescimento das contradições da crise mundial do capitalismo, a coalizão tucana naufragou. Emergiu uma força política que rejeita os princípios da Constituição de 1988 e o arranjo institucional da Nova República. As bases de convivência democrática das forças neoliberais e da esquerda moderada foram corroídas, sobretudo, com a manipulação política e midiática de casos de corrupção.

Ganhou força o discurso hipócrita do “tem que mudar tudo que está aí”, com o ódio de parcela da elite e da classe média conservadora tragando a democracia formal. O motivo: os avanços dos direitos dos trabalhadores, especialmente dos mais pobres.

O manejo da pauta conservadora contra as conquistas das agendas das mulheres, da negritude e dos LGBTs aproximou os interesses da extrema direita com a ideologia das igrejas fundamentalistas, colocando uma base popular a serviço dessa força política.

Não se pode subestimar o processo político que está em curso, que tem conexões internacionais e conquista governos pelo mundo. As milhares de pessoas que participaram do ato na Avenida Paulista no último domingo, atendendo o chamado de Jair Bolsonaro, não se moveram apenas para apoiar seu líder diante da “perseguição” que sofre dos seus supostos algozes. Foram, sobretudo, para defender sua visão de mundo, sua ideia de Brasil, seu entendimento de democracia e seu projeto de sociedade – mesmo que ele seja para poucos.

Quem procura analisar os efeitos dessa manifestação na conjuntura nacional, especialmente nos processos contra Jair Bolsonaro, pode concluir que os impactos são pequenos. Em determinada medida, o ato pode até prejudicá-lo, com a inclusão no processo de trecho do discurso no qual o ex-presidente admite que sabia da minuta que previa a decretação de estado de sítio.

O cerco judicial está se fechando e Jair Bolsonaro passa por uma defensiva tática com o avanço das investigações, a prisão de aliados próximos e o aumento da possibilidade de ir para a cadeia. Contraditoriamente, a capacidade de direção política e a coesão ideológica do seu campo, que se expressaram neste domingo em força de mobilização, demonstram que a extrema direita faz uma ofensiva estratégica.

Suplantou a direita tradicional e conquistou a fidelidade de uma base social conservadora. Incidiu sobre setores populares com a aliança com as igrejas fundamentalistas e com a ideologia do medo, que assola das capitais ao interior do país. Ganhou postos na disputa institucional, com uma bancada puro sangue de parlamentares, governadores e prefeitos. Construiu uma máquina de disputa ideológica com a defesa de seus valores.

O presidente Lula venceu a eleição de 2022, na disputa mais acirrada da história recente. O Brasil está profundamente dividido: quase metade do eleitorado votou em Jair Bolsonaro, mesmo depois das contradições de quatro anos de governo. Essa força da extrema direita mantém um nível de coesão; e milhares foram às ruas com a sua engenharia de mobilização de massas.

De um lado, o ódio da elite brasileira e da classe média conservadora contra a esquerda, mobilizada a partir das redes sociais, em defesa de seus interesses de classe. Por outro lado, a articulação das igrejas fundamentalistas, com pesado investimento de recursos, viabilizou caravanas de recorte mais popular, das cidades do interior e de Estados mais próximos.

A manifestação em defesa de Jair Bolsonaro, líder de uma articulação golpista, foi convocada em defesa do Estado de Direito. No entanto, tinha como pano de fundo a defesa de um projeto de sociedade, representado por Jair Bolsonaro, que faz parte de uma rede internacional ultraconservadora.

A tentativa de naturalizar o 8 de janeiro de 2023, relativizando o significado de democracia, os ataques ao presidente Lula e ao MST, a exaltação de discursos religiosos fundamentalistas e o desfile das bandeiras de Israel colocaram nas ruas a ideologia da extrema direita.

Quando a democracia se torna um valor social relativo, com significados diferentes a depender do lado da polarização, defendê-la é insuficiente para enfrentar aqueles que querem destruí-la.

Mais do que nunca, é necessário fazer a disputa de ideias, valores e projetos de sociedade.

*Igor Felippe Santos é jornalista e ativista de movimentos sociais.

Perpetuando Desigualdades

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A sociedade brasileira vem passando por grandes desafios que estão moldando as estruturas econômicas e produtivas, com impactos sociais, políticos e culturais. Neste ambiente centrado por grande concorrência e forte incremento tecnológico, as nações prescindem de lideranças conscientes e qualificadas para superar os grandes desafios contemporâneos, sob pena de perderem o bonde da história, perpetuando desequilíbrios estruturais, aumentando as desigualdades e aprofundando os graves constrangimentos existentes na sociedade.

Dentre os grandes desafios na sociedade brasileira, gostaria de salientar dois desafios que nos parecem urgentes e prescindem de políticas públicas imediatas para reverter essa situação de caos e graves constrangimentos. Destacamos as questões climáticas, cujas alterações tendem a gerar graves desequilíbrios por todo o meio ambiente, com aumento da temperatura e seus impactos sobre toda a estrutura produtiva, com fortes modificações e preocupações que podem gerar graves prejuízos para a agricultura, fragilizando as exportações e impactando a solidez das contas externas.

Estas transformações climáticas em curso na sociedade estão deixando claro que essas mudanças tendem a gerar graves prejuízos materiais e imateriais sobre as cidades, incrementando um caos, com destruições urbanas, com o crescimento de enchentes e mortes na comunidade. Diante destas modificações climáticas, a sociedade precisa tomar a liderança para modificar esse cenário desastroso, estimulando transformações estruturais, aumentando investimentos em energias alternativas, fortalecendo a bioeconomia e consolidando a economia circular, vislumbrando uma melhora no meio ambiente e reduzindo a dependência do combustível fóssil.

Outra questão que a sociedade brasileira precisa se atentar é com relação as desigualdades da renda. Sabemos que existem variadas formas de desigualdade na sociedade, mas quando nos referimos as desigualdades sociais, entramos num ambiente muito pantanoso. Vivemos numa sociedade em que milhões de pessoas vivem ou sobrevivem em condições sociais degradantes e num ambiente marcado por grandes paradoxos e contradições, de um lado percebemos a existência de setores altamente qualificados, dotados de grande desenvolvimento tecnológico, máquinas de primeira geração, inteligência artificial, dentre outros. Do outro lado, percebemos uma parte substancial da população nacional vivendo em condições indignas, sem educação, sem atendimento médico, sem saneamento básico, sem eletricidade, sem esgoto e grande dificuldade de sobrevivência. Esse é o retrato da sociedade brasileira, onde uma parte vive no século XXI e uma outra parte, substancial, sobrevive nos meados do século XIX.

As desigualdades crescem em todas as regiões do mundo, criando grandes conflitos, muitas guerras e violências generalizadas. Anteriormente, essas desigualdades sociais existiam em países pobres e subdesenvolvidos, gerando variadas dificuldades, pobrezas e violências crescentes. Atualmente, essas desigualdades crescem em países ricos e desenvolvidos, gerando novas formas de confrontos sociais e instabilidades políticas, ascendendo setores intolerantes, radicalismos, fascismos e violências crescentes.

O combate desses desequilíbrios que crescem na sociedade brasileira são fundamentais para melhorarmos o ambiente social, criando oportunidades para todos os grupos sociais, evitando que os radicalismos e os extremismos cresçam na sociedade que, com certeza, vai contribuir para a perpetuação das desigualdades que existem deste os primórdios da história da sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativo, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário

O grande capital impulsiona o colapso climático e social, por David Castells-Quintana

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David Castells-Quintana

Professor de economia aplicada na Universidade Autônoma de Barcelona

Folha de São Paulo, 27/02/2024

Vivemos em um mundo cada vez mais desigual. Um mundo cada vez mais dominado por grandes multinacionais que geram lucros exorbitantes enquanto pagam salários cada vez mais precários. Em 2023, Saudi Aramco, a grande petroleira saudita, registrou lucros de mais de US$ 247 bilhões. Apple e Microsoft reportaram, respectivamente, US$ 114 bilhões e US$ 95 bilhões.

Enquanto isso, as rendas reais de muitos trabalhadores dessas e de outras empresas se mantêm congeladas há anos. Esse grande poder empresarial está aprofundando as desigualdades. Mas não é só isso, o faz enquanto causa uma degradação constante de nosso planeta, com as emissões de gases de efeito estufa que não param de aumentar, elevando as temperaturas médias globais em quase 2º Celsius em relação aos níveis pré-industriais.

A ganância e as desigualdades

A ganância do capital aumenta a pobreza e a desigualdade; os lucros são a prioridade total. Jan Eeckhout, da Universidade Pompeu Fabra, explica em seu último livro, “The Profit paradox”, como o êxito crescente das grandes empresas aumentou as desigualdades salariais. Além do poder empresarial, as grandes empresas obtiveram a maioria dos lucros derivados dos avanços tecnológicos. Assim, a desigualdade aumentou dada à combinação entre poder de mercado e progresso tecnológico, que favorece a produtividade de alguns em detrimento dos demais.

Por um lado, trabalhadores que veem seus empregos cada vez mais mal remunerados, mecanizados ou deslocados para locais com salários mais baixos. Por outro lado, consumidores pagam preços desnecessariamente altos. Nas palavras de Eeckhout, “em vez de levar os benefícios das melhores tecnologias aos consumidores, essas empresas ‘superestrelas’ aproveitam as novas tecnologias para ganhar margens ainda maiores”.

O resultado é um mundo cada vez mais desigual. Uma desigualdade que se reflete cada vez mais não tanto entre os países, mas dentro deles e, em particular, dentro das cidades. As maiores cidades do planeta, tanto em países ricos quanto nos pobres, concentram hoje tanto os mais ricos quanto os mais pobres. Em cidades como Londres, Paris, Xangai, Lagos, Cidade do México ou Rio de Janeiro, aqueles que acumulam grandes fortunas vivem ao lado de milhares que passam fome todos os dias. Trata-se de dinâmicas que geram importantes fraturas urbanas que atualmente minam a coesão social e estão por trás do recente auge do populismo.

Como ressalta o último relatório sobre desigualdade da Oxfam International, Desigualdade S.A, na história da humanidade, nunca existiu uma desigualdade de renda e riqueza tão alta. Embora a riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo tenha duplicado desde 2020, a riqueza dos 5 bilhões mais pobres diminuiu. Este relatório também foca no grande poder empresarial das multinacionais com crescente poder de mercado, que minimizam os custos laborais e evitam o pagamento de impostos.

A ganância empresarial não só aumenta as desigualdades; também intensifica a grande crise ecológica que vivemos. As grandes multinacionais são as maiores responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa e pela destruição de ecossistemas. As multinacionais são as maiores beneficiárias da deterioração do nosso planeta e do sofrimento dos mais pobres.
Mudança climática e desigualdade

Mas além da desigualdade nas emissões, a mudança climática gerada por elas já se tornou outro fator de crescente importância por trás dos recentes aumentos na desigualdade. Com o aumento de temperaturas, as secas, enchentes e outras perturbações climáticas se tornam mais frequentes e intensas. E tudo isso, infelizmente, afeta de forma desproporcional os mais pobres.

Isso não é só anedótico; a análise detalhada dos dados mostra como, nas últimas décadas, os aumentos das temperaturas ajudam a explicar a crescente desigualdade. Nas regiões onde as temperaturas aumentaram mais, a concentração de renda e riqueza também aumentou (ver “The far-reaching distributional effects of global warming”). Os pobres são os mais afetados por secas e desastres climáticos. Por dependerem, em muitos casos, de recursos naturais e da agricultura, são os mais vulneráveis por sua alta exposição e baixa capacidade de adaptação.

Além disso, os pobres geralmente vivem em áreas com maior estresse climático e propensas a desastres como enchentes, deslizamentos de terra ou incêndios. Pior ainda, a mudança climática está associada à maior incidência e intensidade de conflitos por recursos escassos, como a água.

E também à menor produtividade agrícola em áreas tropicais (onde vive a maioria dos pobres globais), maior desnutrição e mortalidade infantil. E, por sua vez, a maior incidência de doenças como a malária e a tuberculose. Tudo isso não só aumenta as desigualdades econômicas, mas também aumenta as diferenças na expectativa de vida em regiões onde ela ainda é baixa.

Um exemplo disso é a realidade de muitas regiões da África Subsaariana, onde as chuvas quase desapareceram nas últimas décadas. A falta de chuvas devastou os meios de subsistência de milhões de pessoas, mergulhando-as na pobreza e em conflito e tornando vários países da região, como Sudão, Sudão do Sul, Somália e Eritreia, em verdadeiros estados falidos.

Colapso ecológico e social

Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), já é quase inevitável que as temperaturas globais ultrapassem o limite de 2°C, podendo chegar aos 4°C se não reduzirmos drasticamente nossas emissões de gases de efeito estufa. Esses aumentos já estão desencadeando catástrofes ecológicas de longo alcance. Os ecologistas estimam uma taxa atual de extinção de espécies ao menos 1.000 vezes superior à normal, com até 150 espécies desaparecidas a cada ano. Um colapso ecológico sem precedentes.

E o ser humano não está à margem disso. A mudança climática e a degradação de ecossistemas ao redor do mundo estão a caminho de se tornarem o principal motor por trás das crescentes desigualdades globais, a maior barreira na luta contra a pobreza e, provavelmente, o principal motivo de conflitos em todo o mundo.

Como evitar o quase inevitável?

O crescente poder empresarial, as desigualdades no aumento e as mudanças climáticas são problemáticas bastante conectadas e características de um sistema global que só funciona bem para alguns, à custa do sofrimento de muitos outros e de um planeta em preocupante deterioração.

Para evitar o colapso ecológico e social que enfrentamos, faltam reformas profundas nesse sistema econômico global, começando pela descarbonização da nossa sociedade. Isso requer vontade e valentia política, bem como renúncias a níveis de consumo totalmente insustentáveis. Ou agimos

já ou o colapso é inevitável.

David Castells-Quintana é professor associado Serra Húnter na Universitat Autònoma de Barcelona. Doutor em Economia pela Universidade de Barcelona. Mestre em Desenvolvimento pelo Centro de Assuntos Internacionais de Barcelona (CIDOB). Especializado em economia internacional e economia urbana.

Lula está certo sobre Gaza, por Glenn Gleenwald

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Glenn Gleenwald – A Terra é Redonda, 25/02/2024.

A quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? As sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações

Desde que Lula evocou o Holocausto para denunciar a destruição de Gaza por Israel, a grande mídia brasileira se uniu, com raras exceções, para condená-lo. Na segunda-feira (19) à noite, o jornalista William Waack afirmou na CNN Brasil que a declaração de Lula “ofende judeus no mundo inteiro”.

Deixando de lado a incongruência que é ver William Waack se colocar como vigilante da intolerância e fiscal do que se pode dizer no discurso público, a pergunta que faço é: com base no que ele se coloca como porta-voz dos “judeus no mundo inteiro”?

É verdade que a declaração de Lula enfureceu o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que declarou Lula “persona non grata” em Israel. Mas equiparar o governo de Israel a “judeus no mundo inteiro” não é só falso, é também antissemitismo.

Como todos os grupos, os judeus não são um monolito. Qualquer pessoa que, como eu, tenha crescido numa família judaica e imersa nessas tradições sabe que o grupo passa longe de ser homogêneo. Há dentre os judeus discussões e divergências sobre os mais diversos assuntos, inclusive o Estado de Israel, o tratamento desumano dispensado aos palestinos e a abjeta imoralidade da destruição de Gaza.

Um mês antes do ataque do Hamas de 7 de outubro, o ex-chefe do Mossad, agência de inteligência israelense, Tamir Pardo – indicado por Benjamin Netanyahu – afirmou que Israel impõe “uma forma de apartheid aos palestinos”. Muitos líderes Israelenses, incluindo o ex-primeiro ministro Ehud Barak, já disseram o mesmo.

O jornalista judeu brasileiro Breno Altman vem repetidamente comparando as ações de Israel em Gaza ao nazismo, ao ponto de estar sendo investigado pela Polícia Federal por expressar sua visão. Um grupo de judeus brasileiros, conforme relatado pelo jornal Folha de S. Paulo, emitiu uma nota para defender as declarações de Lula.

Nesta semana, a escritora judia russa Masha Gessen recebeu o Award, o segundo prêmio mais importante no jornalismo dos EUA, por seu brilhante ensaio na revista New Yorker intitulado “Na Sombra do Holocausto”. No texto, Masha Gessen aponta como o Holocausto é frequentemente evocado para silenciar as críticas aos crimes de guerra de Israel.

Masha Gessen cita a filósofa Hannah Arendt, judia que em 1948 comparou grupos sionistas extremistas ao Partido Nazista, tanto em sua mentalidade quando em suas táticas – isso tudo menos de três anos depois do fim da Segunda Guerra.

No mesmo ano, o físico judeu Albert Einstein e outros importantes intelectuais judeus publicaram uma carta comparando os métodos de atuação de Menachem Begin, o terrorista sionista que se tornaria depois primeiro-ministro de Israel, aos dos nazistas.

Em seu artigo, Masha Gessen documenta como os intelectuais judeus mais importantes do pós-guerra insistiam que as lições do Holocausto deveriam ser aplicadas universalmente, e que nenhum país ou grupo, sionistas inclusive, deveria se furtar de absorver esse aprendizado.

Masha Gessen então descreve como, visitando os museus do Holocausto pelo mundo, se lembrava do sofrimento da população de Gaza nas mãos de Israel.

Sabendo então dessa enorme pluralidade no seio da comunidade judaica, como explicar a pretensão de uma pessoa como William Waack, que, como a grande maioria da mídia brasileira, se sente no direito falar em nome dos judeus e de impor limites às discussões sobre o Holocausto? E os judeus que rejeitam os ditames dos Netanyahu do mundo, quem falará por nós?

Equiparar as ações do governo de Israel à totalidade dos judeus do mundo é ofensivo. Todas as pesquisas mostram que o público israelense se voltou fortemente contra Benjamin Netanyahu e espera ansiosamente para depô-lo. Há protestos contra ele, liderados por judeus israelenses, toda semana. São judeus muitos dos líderes mais vocais em suas denúncias de que a guerra em Gaza é um genocídio.

Mas há ainda um tema muito mais importante trazido à tona pela controvérsia: a quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? Existe alguém com legitimidade para ditar como o Holocausto pode ser discutido, por quem, e com que agenda política? Existem países específicos cujas ações estão imunes, por algum motivo, às comparações com os piores abusos da Segunda Guerra? Se sim, essa imunidade se baseia em quê?

Quando a Segunda Guerra terminou e a real dimensão do Holocausto foi revelada, os países aliados, uma vez vencedores, decidiram não executar imediatamente os líderes nazistas. Em vez disso, foi realizado um processo jurídico transparente, conhecido como o julgamento de Nuremberg.

O objetivo era publicizar e legitimar o veredito –, mais que isso, mostrar ao mundo as evidências das atrocidades cometidas pelos nazistas para, acima de tudo, estabelecer os princípios pelos quais os países deveriam se guiar no futuro.

O procurador-chefe dos EUA no julgamento, Robert Jackson, enfatizou em suas colocações iniciais que a maldade nazista se repetiria no futuro. “Esses prisioneiros nazistas representam uma influência sinistra que continuará no mundo mesmo depois que seus corpos retornarem ao pó.”

Referindo-se às sentenças contra criminosos nazistas específicos, Robert Jackson disse: “Se esse julgamento for ter alguma utilidade no futuro, deverá servir para condenar também a agressão de outras nações, inclusive as que aqui estão na posição de julgadoras”.

Os horrores do Holocausto não foram uma lição sobre a maldade dos alemães ou a vulnerabilidade dos judeus. Foram uma lição sobre a natureza humana e a nossa capacidade para o mal, e como sociedades sofisticadas e educadas podem sucumbir a impulsos genocidas. Por isso, as sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações. Pelo contrário: os crimes do Holocausto não podem ser repetidos por nenhum país, nunca mais.

Os horrores da destruição de Gaza por Israel já estão visíveis para todos que quiserem ver. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, prometeu no início da guerra: “Estamos impondo um cerco total a Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível. Tudo bloqueado”. O motivo: “Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”.

Hoje podemos ver que essa promessa, bem como a ideia de que os palestinos são sub-humanos, não era blefe. Segundo relatório da ONU, de todas as pessoas do mundo que enfrentam a fome extrema, 80% estão em Gaza. Trata-de se uma crise humanitária sem paralelo, diz o texto. Há inúmeros casos, incontroversos e amplamente documentados, de crianças à beira da morte por fome.

Ao menos 29 mil pessoas foram mortas em Gaza desde que Israel começou a retaliação aos ataques do Hamas de 7 de outubro: 70% são mulheres e crianças. A destruição da vida civil em Gaza é pior do que qualquer guerra que o mundo tenha visto no século XXI.

Mais bombas foram lançadas por Israel em Gaza, um território pequeno e densamente povoado, na primeira semana do conflito armado (cerca de 6.000) do que foram jogadas anualmente pelos EUA no Afeganistão, de 2013 a 2018 (nesse período, nenhum ano registrou mais de 4.400 bombas), segundo dados da Força Aérea israelense e da Central das Forças Aéreas dos EUA.

Ninguém, nem mesmo Lula, está sugerindo que a escala das mortes em Gaza seja comparável ao Holocausto. O que muitas pessoas estão dizendo – inclusive alguns dos intelectuais judeus mais proeminentes do mundo, como Masha Gessen – é que os mesmos princípios de desprezo pela vida e desumanização coletiva que culminaram no Holocausto estão também por trás da destruição de Gaza.

*Glenn Greenwald é jornalista, escritor, advogado especialista em direito constitucional dos Estados Unidos, Autor, entre outros livros, de Sem lugar para se esconder (Primeira Pessoa).

Publicado originalmente no suplemento Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo.

Para onde estamos indo? Leonardo Boff

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Leonardo Boff, A Terra é Redonda – 24/02/2024

Não precisamos mais que Deus intervenha para pôr fim à sua criação; coube a nossa geração assistir à possibilidade de sua própria destruição

Há a convergência de inúmeras crises que estão afligindo a humanidade inteira. Sem precisar citá-las me limito a duas, extremamente perigosas e até letais: uma guerra nuclear entre as potências militaristas, disputando a hegemonia na condução do mundo.

Como a segurança nunca é total, aí funcionaria a fórmula 1+1=0. Quer dizer, uma destruiria a outra e levaria junto todo o sistema-vida humana. A Terra continuaria empobrecida, cheia de chagas, mas giraria ainda ao redor do sol por não sabermos quantos milhões de anos, mas ser esse Satã da vida que é o ser humano demente que perdeu sua dimensão de sapiente.

A outra é a mudança climática crescente que não sabemos em que grau Celsius vai se estabilizar. Um fato é inegável, afirmado pelos próprios cientistas céticos: a ciência e a técnica chegaram atrasadas. Passamos o ponto crítico em que elas poderiam ainda nos ajudar. Agora apenas podem nos advertir dos eventos extremos que virão e minorar os efeitos danosos. Climatólogos sugerem que, nos muito próximos anos, possivelmente o clima se estabeleceria, em termos globais, em torno de 38-40 graus Celsius. Em outras regiões pode chegar por volta de 50oC. Haverá milhões de vítimas, especialmente entre crianças e idosos que não conseguirão se adaptar à situação mudada da Terra.

Estes mesmos cientistas têm advertido os Estados para o fato de milhões de migrantes que deixarão suas terras queridas pelo excesso de calor e pela frustração das safras de alimentos. Possivelmente, e é o desejável, que haja, obrigatoriamente, uma governança planetária global e plural, constituída por representantes dos povos e das classes sociais para pensar a situação da Terra mudada, não respeitando os obsoletos limites entre as nações. Trata-se de salvar não este ou aquele país, mas a humanidade inteira. Realisticamente disse várias vezes o Papa Francisco: desta vez não há uma arca de Noé que salva alguns e deixa perecer os demais: “ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.

Como se depreende, estamos diante de uma situação limite. A consciência desta urgência é muito fraca na maioria da população, entorpecida pela progapaganda capitalista de um consumo sem freios e dos próprios Estados, em grande parte controlados pelas classes dominantes. Estas só olham para um horizonte à frente, crédulas de um progresso ilimitado em direção ao futuro, sem tomar a sério que o planeta é limitado e não aguenta e que precisamos de 1,7 planetas Terra para satisfazer seu consumo suntuoso.

Há uma saída para este acúmulo de crises, das quais nos restringimos a duas? Creio que nem o Papa nem o Dalai Lama, nenhum sábio privilegiado pode predizer qual seja o nosso futuro. Se olharmos as maldades do mundo temos que dar razão a José Saramago que dizia: “Não sou pessimista; a situação é que é péssima”. Lembro o encantador São Francisco de Assis que, encantado, via o lado luminoso da criação. Pedia, no entanto, a seus confrades: não considerem demasiadamente os males do mundo para não terem razões de reclamar de Deus.

De certa maneira todos somos um pouco Jó que reclamava, pacientemente, de todos os males que o afligiam. Nós também reclamamos porque não entendemos o porquê de tanta maldade e especialmente porque Deus se cala e permite que, muitas vezes, o mal triunfe como agora face ao genocídio de crianças inocentes na Faixa de Gaza. Por que não intervém para salvar seus filhos e filhas? Não é Ele “o apaixonante amante da vida” (Sabedoria 11,26)? Atribui-se a Freud, que não se considerava um homem de fé, a seguinte frase: se aparecer diante de Deus, tenho mais perguntas a fazer a ele do que ele a mim, pois há tantas coisas que nunca entendi quando estava na Terra.

Nem a filosofia nem a teologia conseguiram até hoje oferecer uma resposta convincente ao problema do mal. No máximo é afirmar que Deus ao aproximar-se de nós pela encarnação – não para divinizar o ser humano – mas para humanizar Deus – foi dizer que esse Deus vai conosco para o exílio, assume a nossa dor e até o desespero na cruz. Isso é grandioso, mas não responde o porquê do mal. Por que o Deus humanado teve que sofrer também ele,”embora fosse Filho de Deus, aprendeu a obediência por meio dos sofrimentos que teve” (Hebreus,5,8). Essa proposta não faz desaparecer o mal. Ele continua como um espinho na carne.

Talvez tenhamos que nos contentar com a afirmação de São Tomás de Aquino que escreveu, reconhecidamente, um dos mais brilhantes tratados “Sobre o Mal” (De Malo).No fim ele se rende à impossibilidade da razão de dar conta do mal e conclui:”Deus é tão poderoso que pode tirar um bem do mal”. Isso é fé confiante, não razão raciocinante.

O que podemos dizer com certa certeza: se a humanidade, especialmente, o sistema do capital com suas grandes corporações globalizadas continuar com sua lógica de explorar até a exaustão os bens e serviços naturais em função de sua acumulação ilimitada, aí sim podemos dizer, na expressão de Zigmunt Bauman: “vamos engrossar o cortejo daqueles que estão rumando na direção de sua própria sepultura”.

Depois termos cometido o pior crime já perpetrado na história: o assassinato judicial do Filho de Deus, pregando-o na cruz, nada mais é impossível. Como disse Jean-Paul Sartre após as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki: o ser humano se apropriou da própria morte. E Arnold Toynbee, o grande historiador, comentou: não precisamos mais que Deus intervenha para pôr fim à sua criação; coube a nossa geração assistir à possibilidade de sua própria destruição.

Pessimismo? Não. Realismo. Mas, pertence também à nossa possibilidade de dar o salto da fé que se inscreve como uma possível emergência do processo cosmogênico: cremos que o verdadeiro senhor da história e de seu destino não é o ser humano, mas o Criador que das ruínas e das cinzas pode criar um homem novo e uma mulher nova, um novo céu e uma nova Terra. Lá a vida é eterna e reinará o amor, a festa, a alegria e a comunhão de todos com todos e com a Suprema Realidade. Et tunc erit finis.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal (Vozes)

“Ideia sobre ensinar a pescar não faz sentido”. Entrevista com Marcelo Medeiros.

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Entrevista com Marcelo Medeiros, Instituto Humanitas Unisinos – 20/10/2023

Para Marcelo Medeiros, há muito preconceito contra a assistência social no Brasil. Em entrevista, economista e sociólogo fala sobre seu novo livro que aborda a desigualdade do país.

Logo na introdução de seu novo livro Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, o sociólogo e economista Marcelo Medeiros enfatiza que “há limites claros para algumas medidas de combate à desigualdade que, com grande frequência, são alçadas quase à condição de panaceia, como é a educação”.

Lançada pela Companhia das Letras, a obra, que chegou às livrarias nesta quarta-feira (18/10), não só escancara a, conforme o próprio autor, “absurda” desigualdade social brasileira, como explica que não existe uma solução mágica para o problema. “Resolver isso vai exigir um esforço gigantesco, custar muito caro e consumir um capital político imenso, porque isso, no fundo, implica em enfrentar diretamente os conflitos distributivos e grupos inteiros vão resistir pesadamente a isso, no campo da política e da economia, em tudo aquilo que puderem, porque os grupos sempre defendem seus interesses”, diz Medeiros, professor visitante na Universidade de Columbia, em Nova York, em entrevista a Edison Veiga, publicada por Deutsche Welle, 19-10-2023.

Eis a entrevista.

E ser rico, o que significa?

Existe muita discussão sobre se ser rico é estar nos 10% mais ricos da população, ou 1%, ou 0,5%. Argumento que definir isso é um pouco perda de tempo. O Brasil é um país extremamente desigual, mas há uma característica: a desigualdade brasileira está altamente concentrada no topo. Se o Brasil fosse composto só pelos 90% mais pobres, seria um país extremamente igualitário.

Existe uma desigualdade gigantesca entre o 1% mais rico e os 10% mais ricos. Para desenhar políticas, não é necessário ter uma divisão exata dos ricos, mas sim entender que essa desigualdade está concentrada no topo. Portanto, nossas políticas, em particular a tributária, têm de ser muito progressivas. É preciso tributar mais quem tem mais capacidade de pagar.

Nos últimos anos, o Brasil voltou ao famigerado mapa da fome. De que forma combater a desigualdade pode ajudar a resolver o problema?

Combater a pobreza vai reduzir a desigualdade? Não. Pobreza tem a ver com pobres, desigualdade tem a ver com ricos. É extremamente importante acabar com a pobreza no Brasil, mas isso não teria efeitos sobre a desigualdade. Se você dobrasse a renda da metade mais pobre do Brasil, a desigualdade não iria cair mais do que 10%.

Não é que reduzir a desigualdade vai acabar com a pobreza, é que as medidas que vão acabar com a pobreza vão se beneficiar do fato de a renda ser menos concentrada. Uma pequena redução da desigualdade seria suficiente para provocar uma grande redução da fome no país. Se a gente conseguisse tributar mais as pessoas mais ricas, a gente conseguiria levantar mais recursos para gastar com mais assistência social, por exemplo, o que é algo importante para a fome.

Seu livro defende que tudo o que se faz em termos de políticas públicas, das taxas de juros aos subsídios para as empresas, passando por programas sociais, deve ser pensando no sentido do combate à desigualdade. Como isso pode ser feito?

Respondo com uma outra pergunta, uma brincadeira: você está me perguntando como eu faço para transformar o Brasil em uma Dinamarca em termos de desigualdade.

Eu pergunto como é que eu faço para transformar o Brasil em uma Dinamarca em termos de PIB per capita. E a resposta para as duas questões eu não sei, não conheço ninguém que tenha qualquer noção de fato sobre como isso pode ser feito na prática.

Não é um problema simples combater a desigualdade ou fazer o Brasil crescer. Vai exigir um esforço gigantesco, custar muito caro e consumir um capital político imenso, porque isso, no fundo, implica em enfrentar diretamente os conflitos distributivos e grupos inteiros vão resistir pesadamente a isso, no campo da política e da economia, em tudo aquilo que puderem, porque os grupos sempre defendem seus interesses.

Uma sociedade mais igualitária é necessariamente melhor?

O que justifica a desigualdade? Vem de uma situação justa, porque há pessoas se esforçando mais do que as outras? Essa seria a resposta para a desigualdade racial no Brasil? Ou isso vem de uma série de estruturas muito maiores que são injustas? Toda sociedade tem alguma desigualdade e alguma desigualdade é tolerável e pode ser até funcional.

Para você ter uma enfermeira trabalhando de madrugada no hospital, você tem de pagar a ela mais do que a que trabalha durante o dia. É uma desigualdade funcional, totalmente aceitável. O que não é aceitável é o nível de desigualdade do Brasil, que é difícil demais de justificar.

Uma sociedade mais igualitária é, muito provavelmente, mais justa.

Alguma microdesigualdade sempre vai existir e vai ser tolerável e aceitável. O que estamos discutindo não é isso: é o nível extremamente elevado da desigualdade na sociedade brasileira.

Uma das ideias centrais do livro é que não existe solução mágica para combater a desigualdade. Há esperança, então?

Há esperança, sim. Eu poderia argumentar que vai ser muito difícil o mundo manter o crescimento sob as restrições imensas que vão ser impostas pelas crises ambientais. A gente deve ter esperança? Sim. A gente vai enfrentar crises e dificuldades. Vai dar muito trabalho, vai levar muito tempo e haverá um preço político gigantesco. Digo isso para acabar com a ilusão das soluções fáceis, de que basta fazer uma reforma educacional ou tributar os ricos e a desigualdade vai diminuir. Não é só isso. A desigualdade está em tudo. E, portanto, dá muito trabalho mexer, tem de mexer muito.