Atenção aos sinais, por Oded Grajew

0

Mudança climática e desigualdade estão conectadas e se retroalimentam

Oded Grajew. Presidente emérito do Instituto Ethos, conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis e idealizador do Fórum Social Mundial; fundador e ex-presidente da Fundação Abrinq

Folha de São Paulo, 30/05/2024

Meus pais eram judeus e viveram na Polônia nos anos 1930. Hitler assumiu o poder na Alemanha em 1933 e iniciou a perseguição aos judeus promulgando leis chamadas de “proteção do sangue”, que excluíam qualquer direito ao povo judaico. Em 1938, promoveu a Noite dos Cristais, que causou a destruição de lojas de judeus e a prisão de muitos deles, levados para campos de concentração.

Em todos os seus discursos, Hitler anunciava seus planos de exterminar o povo judeu. A partir da invasão da Polônia em 1938, ele começou a colocar em prática seus planos que resultaram no Holocausto.

Meus pais então levaram a sério as ameaças e os sinais e resolveram emigrar para Israel, em 1938, um pouco antes da invasão da Polônia. Tentaram convencer familiares a fazerem o mesmo.

Infelizmente, não os consideraram e foram quase todos assassinados pelos nazistas. Devo a minha vida aos meus pais terem levado a sério os sinais, o que me ensinou sobre a importância dos alertas.

Vejo agora com grande tristeza e preocupação como o mundo tem desprezado os sinais. Apesar dos alertas da quase totalidade dos cientistas sobre as consequências das mudanças climáticas promovidas por ações humanas, das evidências, de conhecer as medidas necessárias para enfrentar os riscos e de termos recursos para isso, pouquíssimas ações são efetivadas para reverter o processo. Grandes conferências do clima terminam com declarações e promessas dos governantes que quase nunca são cumpridas. Os governos se restringem a correr atrás dos prejuízos e a renovar as promessas. Enquanto isso, vidas e patrimônios são destruídos, os desastres se sucedem, o planeta continua se aquecendo e se aproximando de um caminho sem retorno que inviabilizará a vida humana.

Processo semelhante ocorre com a forma como a maioria da sociedade e dos governos encaram as desigualdades sociais. Os dados são alarmantes: os 10% mais ricos detêm 76% da riqueza e 52% da renda; metade mais pobre da população fica com apenas 2% da riqueza e 8,5% da renda. O Brasil é o oitavo país mais desigual do planeta, apesar de estar entre as dez maiores economias (vergonha!). E pior: as desigualdades no mundo estão crescendo a cada ano! As desigualdades resultam em sociedade de castas, de dominadores e subordinados, de superiores e inferiores, de lutas pela ascensão social, de conflitos e violência, dentro e entre os países. Isso quando dispomos de armas cada vez mais potentes e do aumento a cada ano dos bilionários orçamentos militares.

As desigualdades fazem as pessoas desacreditarem na democracia, causam revolta, violência e a busca por bodes expiatórios. É um terreno fértil para políticos autoritários, extremistas e populistas.

Os dois fenômenos, mudanças climáticas e desigualdades, são conectados e se retroalimentam. As mudanças climáticas aumentam as desigualdades e as desigualdades aumentam a devastação ambiental. Os dois processos representam um enorme risco para a humanidade. Sinais não faltam: desastres ambientais cada vez mais frequentes e potentes, conflitos cada vez maiores e ameaçadores, crescimento de movimentos políticos extremos e ameaças cada vez maiores às democracias. Ou levamos a sério os sinais e agimos preventivamente ou corremos o risco de chegarmos a uma situação em que seja tarde demais para remediar.

Década perdida

0

Vivemos momentos de grande apreensão na sociedade internacional. Nesse cenário, as estruturas econômicas, sociais, culturais e políticas estão passando por grandes inquietações, modelos novos e consistentes estão sendo degradados, empresas anteriormente consolidadas estão perdendo espaço no mercado, as transformações no mundo do trabalho estão reconfigurando as atividades profissionais, exigindo novas qualificações e variadas capacitações, exigindo esforços intelectuais elevados e dispêndios de recursos monetários, gerando uma nova sociedade, mais integrada, mais competitiva, mais individualista, mais imediatista e mais, cada vez mais, centrada na instabilidade, na insegurança e na financeirização das atividades cotidianas.

Nesta nova sociedade, percebemos que estamos caminhando a passos largos para mais uma década perdida, cujo crescimento produtivo é insuficiente e limitado para vislumbrarmos o tão sonhado desenvolvimento econômico. Percebemos ainda, que esse baixo crescimento da economia e somado a altas taxas de juros contribuem fortemente para engordar a renda e o poder político dos rentistas, dos financistas e donos do capital, além de degradar a renda dos trabalhadores e atuando ativamente para incrementar as desigualdades sociais que perpetuam nosso atraso institucional.

A década perdida dos anos 80 do século passado ficou conhecida como um momento marcado por baixo crescimento econômico, taxa de inflação elevada, desindustrialização da economia, crescimento do endividamento externo, incremento da concentração de renda e perspectivas sombrias para a estrutura econômica e produtiva. Neste período, definido como a década perdida, o Brasil perdeu espaço na economia internacional, perdendo mercados preciosos no comércio global, reduzindo seu dinamismo industrial e, diante disso, percebeu-se o crescimento e a consolidação de concorrentes diretos, principalmente nações asiáticas, que se projetaram no comércio mundial, adotando políticas industriais exitosas, desbancando atores importantes no cenário global e passaram a ganhar espaço nos grandes fóruns internacionais.

Nos anos 1980, a economia internacional passava por grandes transformações no modelo produtivo, a sociedade global vislumbrava uma nova revolução industrial, com o crescimento da informática e das telecomunicações, marcadas por novas tecnologias e exigindo das nações mais investimentos em capital humano, melhoras significativas na educação, além de pesquisas científicas e no fomento tecnológico. Neste momento, perdemos essa proeminência acumulada em décadas anteriores, perdemos ainda o dinamismo produtivo, perdemos cérebros imprescindíveis para alavancar o crescimento econômico e passamos a amargar um crescimento econômico medíocre, que nesse ritmo levaríamos muitos séculos para melhorarmos os nossos indicadores sociais.

Com o incremento da concorrência internacional, onde a tecnologia passou a ser o agente fundamental para o crescimento econômico, faz-se necessário que as nações em desenvolvimento cresçam de forma mais consistente, melhorando sua estrutura produtiva, investindo em capital humano, consolidando políticas públicas para melhorar os indicadores sociais, reduzindo as desigualdades das nações. Neste cenário, percebemos que o Brasil vem caminhando muito lentamente, seu crescimento econômico nos últimos quarenta anos foi muito limitado, taxas de juros elevadas, venda de patrimônios públicos entregues a preços irrisórios e um sucateamento educacional, desta forma não estamos conseguindo enfrentar frontalmente os grandes desafios da sociedade contemporânea, mesmo alterando os governantes a situação pouco avança, deixando a impressão de que estamos nos afastando dos países desenvolvidos. Será que estamos nos acostumando com as décadas perdidas? Cabe uma reflexão imediata.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Economista e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Muralha Paulista: Tarcísio mira a distopia, por Mariana Braghini

0

Governador quer impor gigantesco sistema de vigilância – e contrata corporação ligada ao bolsonarismo. Promete até prever crimes com reconhecimento facial e espionagem. É projeto-vitrine da gestão que bate recorde de letalidade policial

Mariana Braghini – OUTRAS PALAVRAS, 22/05/2024

Nas últimas semanas, uma série de reportagens tem sido publicada acerca da proposta do governo do estado de São Paulo para o programa denominado Muralha Paulista, um projeto high-tech de segurança pública que promete reduzir os índices de criminalidade nas cidades paulistas. Em parceria com uma empresa militar estrangeira, a gestão Tarcísio tem articulado uma megaestrutura de espionagem em massa da população do estado, ignorando legislações sobre proteção de dados e direitos constitucionais. Além disso, está priorizando uma proposta de alto custo, enquanto faltam embasamentos sobre a eficácia e o custo-benefício dessas tecnologias para a segurança pública.

Um marco importante da gestão Tarcísio na segurança pública tem sido as taxas de letalidade policial, que vem estabelecendo novos recordes. Em apenas um ano, mortes causadas por policiais militares cresceram 138% no estado. Uma iniciativa que também é digna de atenção, com potencial de atentar contra direitos civis e que tem tudo para perdurar durante governos futuros, é o Muralha Paulista, que conta com um esquema de vigilância integrada, captação de dados, imagens e compartilhamento das informações. O programa é operado essencialmente por meio de centros de comando e controle herdados da estratégia do Exército para o esquema de segurança de grandes eventos internacionais que ocorreram no país, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol.

Para o Muralha Paulista, o governo vem somando esforços com uma empresa árabe de defesa e segurança, a Edge Group, representada no Brasil por Marcos Degaut, ex-secretário do Ministério da Defesa no governo de Jair Bolsonaro. Desde que chegou ao Brasil, a gigante de defesa já comprou duas empresas estratégicas brasileiras, a Siatt, fabricante de mísseis, e a Condor, fabricante de armamento não letal. Em seu amplo leque de atuação, a Edge também está associada a empresas que fornecem softwares de espionagem de celulares. Com um eufemismo corporativo para evitar conotações pejorativas aos serviços que fornece, é mais comum que se encontre termos como “equipamentos de monitoramento“ ou, para inglês ver, equipamentos de surveillance.

Estas estruturas, bem como sua aquisição e operação, são de alto custo. Com foco principal em tecnologias de reconhecimento facial, elas requerem câmeras de alta resolução espalhadas pelas cidades e softwares avançados de leitura automatizada de imagens. Para garantir a empreitada, a Edge e o governo apostam no projeto batizado de Bola de Cristal. É notável um apelo místico, que seduz governantes (e até mesmo populações) com a promessa de soluções mágicas para problemas sociais complexos. A ideia de Bola de Cristal é a ideia de que é possível prever crimes antes que eles ocorram, semelhante ao roteiro do filme Minority Report e que, na realidade, se manifesta como perfilamento racial potencializado à era do algoritmo.

A proposta da gestão Tarcísio, com o apoio da Edge, se apoia em um conjunto de palavras-chave como “melhor alocação de recursos”, “estruturação de dados” ou “integração de soluções”, uma retórica apelativa que cria um véu de um posicionamento técnico e objetivo de seu escopo, algo comum nas tecnopolíticas. O que falta ser evidenciado é o seu conteúdo, e como essa proposta é uma solução embasada e de longo prazo para a segurança pública.

Perguntas importantes a serem colocadas são: quais outras respostas estão sendo negligenciadas para dar lugar a um programa de alto custo e com falta de estudos que comprovem sua eficácia como política pública? O foco no esquema de mega vigilância da população se dá em detrimento de quais outras respostas que um estado pode dar para promover segurança pública?

Com uma operacionalização que exige altos investimentos, é de se perguntar quais outras escolhas o governo está deixando de considerar. Ainda mais quando se trata de um projeto controverso que envolve a vigilância de toda a população paulistana por uma variedade de dispositivos. Um sistema C4ISR, como aquele oferecido pela Edge em parceria com o governo estadual, vai além da simples captação de imagens. Ele rapidamente amplia sua coleta para incluir uma vasta gama de fluxos informacionais deixados pelas pessoas em seus ambientes privados e públicos. Hoje em dia, hábitos e localizações são informações facilmente obtidas, representando rastros que podem ser captados sem o consentimento ou conhecimento das pessoas. A partir desse universo de dados captados e processados que se determina o padrão de normalidade ou de ameaça que são infligidos aos cidadãos.

O que a Edge Group, está vendendo para o governo do estado é uma solução criada para contextos de conflito armado internacional (os sistemas C4ISR), de guerra, de ambientes altamente militarizados. O que está sendo feito é uma transposição dessa concepção para uma política de segurança pública. Guerra e segurança pública são campos diferentes, que têm raízes diferentes e não podem contar com as mesmas soluções. Quem pensa segurança pública como guerra não pensa em soluções de longo prazo, pensa em violação de direitos civis como emergência em tempos de
exceção.

O governo do estado inicia cometendo ilegalidades já na apresentação desse sistema a grupos de interesse, ao apresentar seu aparato de espionagem em tempo real para população civil, burlando a legislação vigente sobre proteção de dados e outros direitos constitucionais.

Conforme evidenciado por notícias veiculadas, a proposta do governo do estado de SP é reunir
imagens captadas pelas câmeras de condomínios, de comércios, empresas de transporte público, hospitais e centros de saúde, espaços de lazer e mais. Em última consequência, qualquer infraestrutura da cidade é uma infraestrutura de vigilância em potencial.

Aqui, não há preocupação com a necessidade de proteger direitos civis e são criadas as bases para espionagem em massa da população, com o auxílio de empresas privadas estrangeiras.

Os limites dessa atuação e da responsabilização não podem ser deixados nas mãos das próprias empresas, que muitas vezes regulam suas próprias atividades, como é comum entre empresas de inteligência artificial e outras Big Techs. Essa fiscalização também não pode ficar apenas a cargo das entidades policiais, que não estão imunes de corrupção. É essencial que esses limites sejam estabelecidos em um ambiente democrático.

Se há potencial para melhorar a segurança pública, mas também um potencial para espionagem em massa da população, os governos devem se envolver ativamente na definição desses limites e garantir o direito da sociedade à transparência. Ao mesmo tempo, as empresas devem ser responsabilizadas por suas atividades que possam violar os direitos civis. Afinal, quando falamos de tecnologias com potencial para melhorar a segurança e, ao mesmo tempo, para infringir direitos civis, é crucial que haja controle, transparência, debate público e accountability.

Ou é isso, ou continuamos avançando em direção a distopias em que um pequeno grupo de empresas e governantes exerce um poder autoritário sobre as populações através de sistemas de vigilância e dispositivos tecnológicos.

Extrema direita e neoliberalismo matam e ampliam destruição no RS, por Eleonora de Lucena

0

Governador e prefeito devastaram proteção ambiental e instituições públicas

Eleonora de Lucena, Jornalista e editora do TUTAMÉIA; ex-editora-executiva da Folha (2000 a 2010).

Folha de São Paulo, 26/05/2024

Meus irmãos ainda recolhem o entulho do que sobrou da casa em que vivi na infância e adolescência no Menino Deus, em Porto Alegre. Submersos havia dez dias, móveis, roupas, papéis, livros, quadros, eletrodomésticos formam agora uma montanha de rejeitos na calçada. Em frangalhos e com o fedor de podridão, a história dali vai junto com os destroços reunidos pelos vizinhos, muitos deles moradores do lugar desde os anos 1960, quando o bairro começou a tomar forma, com calçadas largas, plátanos, cinamomos, escolas.

Familiares e amigos ainda não sabem o que restou de suas casas. Nos históricos assentamentos do MST, pioneiros na produção orgânica na região metropolitana, as perdas de uma construção de 30 anos foram imensas: produção, animais, estoque, maquinário. Pequenos agricultores viram a enxurrada levar seus projetos, suas perspectivas de futuro. Nos abrigos, dezenas de milhares choram.

Como é praxe no Brasil, são os mais pobres, os negros que mais sofrem com a lama, o frio, a perda, a desesperança. Mais de 160 pessoas morreram; dezenas ainda estão desaparecidas.

Não precisava ter sido assim. As políticas neoliberais do governador Eduardo Leite (PSDB) e a voraz destruição realizada pelo prefeito bolsonarista Sebastião Melo (MDB) amplificaram em muito as consequências das chuvas. Submetidos aos interesses dos plantadores de soja, das construtoras e dos capitalistas que querem sugar tudo o mais rapidamente possível, o governador que posa de modernoso e o prefeito da extrema direita cumpriram um roteiro já bem conhecido: devastaram as leis de proteção ambiental, demoliram instituições públicas com privatizações, desmantelaram órgãos de planejamento e sucatearam criminosamente sistemas que defendiam a capital gaúcha de inundações.

Pior. Seguem com sua sanha predatória no meio da catástrofe. Têm pressa em entregar nacos do poder público a interesses privados, mirando negócios mirabolantes no processo de reconstrução.

Rapidamente, fecham acertos com consultorias que integram o esquema da extrema direita mundial, cujo histórico é de jogadas que beneficiam os mais ricos e descartam os mais pobres, jogando-os para longe dos espaços gourmetizados, colonizados e deslumbrados. Ignoram o conhecimento acumulado de cientistas, engenheiros, urbanistas que, principalmente nas universidades, estudam essas questões há décadas.

Não será surpresa se empresas estadunidenses ou suas aliadas aparecerem para pegar os contratos de construção. Como se sabe, as firmas nacionais do setor foram dizimadas pela Lava Jato, com assessoria do Estado norte-americano, no processo do golpe de 2016 que culminou com a chegada de
Jair Bolsonaro ao Planalto, a perda de soberania, a passagem da boiada e a mortandade promovida na pandemia. A extrema direita, como já ficou provado também no Brasil, faz o governo dos ricos, do salve-se quem puder, do entreguismo, da violência, da morte.

Não é outro o desenho das alardeadas “cidades provisórias”. Elas desprezam as necessidades dos que não têm onde morar agora, transferindo-os para locais distantes, sem infraestrutura mínima, tirando-os da paisagem para, quem sabe, tentar incentivar o turismo em Gramado!

É sabido que boa parte da elite econômica do Rio Grande do Sul é de direita e flerta com o fascismo. O avanço da monocultura da soja reforçou o domínio dessa ideologia, que foi base da ditadura militar e do governo Bolsonaro. Seu rastro autoritário e reacionário acompanhou a expansão da fronteira agrícola para o Centro-Oeste e o Norte do país.

Agora, os mesmos que propagandeavam as maravilhas do livre mercado olham para suas perdas e correm para pedir socorro ao Estado, aquele espezinhado até anteontem e que trataram de esmigalhar para lucrar. Está cristalino que, sem a ação do Estado, resta o caos —o alvo maior da extrema direita.

Mas a população do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre já demonstraram que podem mudar. Lideraram transformações sociais e protagonizaram avanços. É possível começar a descartar o entulho da obscuridade que encharca com podridão as ruas da metrópole.

O legado de uma década perdida, por Renato Janine Ribeiro

0

Renato Janine Ribeiro – A Terra é Redonda – 22/05/2024

A esquerda é inteiramente representativa do senso comum de nossa sociedade – tudo de bom que acontece, e tudo de ruim, é só do Presidente

Não sou um fã das instituições, quero dizer: não considero que a chave para a democracia esteja nelas. Na verdade, há duas vertentes para se pensar a política moderna – uma é a da ação, outra a da instituição. Desenvolvi este tema em meu livro A sociedade contra o social, de 2000, resumo-o rapidamente aqui.

Nicolau Maquiavel rompe com a Idade Média e a ideia do “buon governo” ao liberar a ação do príncipe das amarras morais do cristianismo. Mostra que a doutrina do rei bom, porque cristão e moral, mascara a realidade de reis que foram bem-sucedidos quando souberam descumprir os preceitos religiosos, sempre que necessário para a busca de mais poder. Por isso, não é fortuito que Gramsci veja, no partido revolucionário, o príncipe: é quem age sem estar preso ao velho mundo que está morrendo, é quem ajuda a nascer o mundo novo, a ordem nova que é o nome da organização que ele lidera antes de ser preso pelo fascismo.

Bernard Mandeville, menos conhecido, duzentos anos depois do Príncipe escreve a Fábula das abelhas, sustentando que vícios privados podem gerar benefícios públicos. A ganância, vício e mesmo pecado, estimula o empreendedor a produzir melhor e mais barato – esse, o grande exemplo.

O capitalismo depende de se saber canalizar uma pulsão (para usar a linguagem freudiana) amoral ou mesmo imoral para fins positivos socialmente. É o que dá vigor às instituições, que fazem que a falta de bondade (ou mesmo, a maldade) humana se canalize em boas direções. Montesquieu até diz que Inquisição e monarquia absoluta se combinam bem na Espanha, porque cada uma delas – más – limita a outra. É o fundamento para o equilíbrio dos três poderes constitucionais.

Quem apoia revoluções ou mudanças fortes – no limite, a utopia – vai valorizar a ação. Quem deseja, não necessariamente o statu quo, mas uma evolução política mais lenta, vai de instituições. Ora, desde que as revoluções ficaram na periferia do sistema mundial, que elas deixaram de ocorrer nos países desenvolvidos, a via institucional se consagrou.

Mas o que aconteceu entre nós, no período que começa em novembro de 2014?

Foi um esvaziamento e transferência de poder entre instituições. Costuma-se dizer, parafraseando-se Aristóteles (“a natureza tem horror ao vácuo”), que na política, se houver vácuo, ele é prontamente ocupado. Assim sucedeu entre nós.

Dilma Rousseff, reeleita em 2014, imediatamente mudou sua política econômica, o que – traduzindo em bom português – teve forte impacto na política social. (Política econômica é como a direita chama o que a esquerda entende ser política social, indo ao essencial). A base de esquerda decepcionou-se e deixou de apoiá-la concretamente. Não promoveu sua destituição, mas também não se bateu em defesa de seu mandato – basta ver o silêncio com que a esquerda viveu a votação do impeachment, sem sublevação, sem indignação nas ruas.

Esvaziou-se o Poder Executivo e, neste quadro, o Legislativo cresceu, sob a chefia de Eduardo Cunha – que significativamente iniciou o golpe fazendo votar uma emenda constitucional que dava, a cada parlamentar individualmente, pleno controle de um porcentual do orçamento. Essa medida, a meu ver inconstitucional, faz que esse valor, para se tornar lei, não precise do voto das Casas Legislativas nem da sanção presidencial. É a privatização de uma parcela do orçamento – parcela esta que desde então só cresceu.

Na sequência, uma série de pautas-bomba diminuiu a possibilidade do Governo Federal controlar as finanças e a economia. (O cenário ora se repete). O Congresso, e especialmente Eduardo Cunha, se fortaleceu, até se chegar ao momento em que a oposição nele e nas ruas, diante das denúncias de crimes que acabariam por leva-lo à cadeia, saiu proclamando “somos todos Eduardos Cunhas”.

Mas esse fortalecimento deixava de lado qualquer coisa que fosse positiva para o País. Era negativo: impedia o Governo de governar. Impedia, antes mesmo do impeachment. Mas não desenhava uma alternativa. Por isso, ficava um vazio – que foi ocupado pelo terceiro poder, o único não eleito, aquele que dá estabilidade ao sistema, aquele que é (me atrevo a dizer) mais instituição do que os outros, justamente porque não provém do voto popular nem por este é renovado: o Judiciário ou, no caso, o STF. Pois foi este que decidiu a tramitação do impeachment, não foi o Congresso. (Lembrem a frase do político do MDB, “com o Supremo, com tudo” – que incluía as Forças Armadas, é bom lembrar).

Finalmente, como o próprio STF não podia governar, uma figura cresceu, no vácuo que tínhamos: um juiz proativo, que não se continha diante das limitações legais ou éticas, e que se pôs a condenar quem ele quisesse. Não à toa, tornou-se uma espécie de favorito dos políticos; ajudou a eleição de Jair Bolsonaro e dele recebeu um ministério importante. Se mais tarde desabou, foi por sua hybris, sua soberba – até porque o governo que o ex-juiz apoiou foi o mesmo que enterrou a LavaJato, que ele havia comandado.

Neste vazio, elegeu-se o mais improvável, o mais inepto dos candidatos (não sei se o cabo Daciolo seria pior, francamente…). E no governo ele se mostrou incapaz de tocar a máquina. Fazia circo com suas motociatas, com suas falas mais adequadas ao SuperPop do que ao Alvorada. O poder ficou entre o Legislativo e o Judiciário. O primeiro, ele agradou vitaminando a privatização dos recursos do orçamento. O segundo, na verdade, limitou suas aventuras.

Um dia se saberá – talvez – por que o STF, que havia tomado as decisões que levaram Lula à cadeia, não hesitando com isso em prender mais milhares de pessoas que não tinham condenação transitada em julgado, mudou de ideia. Terá sido por ser o primeiro a perceber o monstro que a desordem institucional havia parido? Bons jornalistas, bons historiadores deveriam investigar esse momento obscuro de nossa história. Mas continuemos.

Desde 2020, a par de uma oposição bastante desorganizada, quase acéfala devido ao encarceramento de Lula, foi o Supremo que conteve os piores excessos. Verdade que alguns governadores – basicamente, os de oposição (no Nordeste) e o de São Paulo, João Doria – lutaram pela vacina e pela redução da altíssima mortalidade causada pela covid, enquanto o presidente e seus aliados, inclusive o governador do Rio Grande do Sul, que hoje se apresenta como o nome mais fofo da direita, passavam pano. Ah, honra se lhe faça: Ronaldo Caiado, o governador muito direitista de Goiás, também apoiou a vacinação. O Judiciário conteve a marcha da insensatez, do morticínio, ao reconhecer às autoridades locais o direito de limitar as atividades que poderiam espraiar, ainda mais, a morte precoce.

No Judiciário, a chave de defesa da democracia foi encabeçada por Alexandre de Moraes, com apoio de alguns ministros decisivos, em especial Gilmar Mendes. Não foi uma atuação de todos os ministros, havendo aqueles que se aproximaram de Jair Bolsonaro, por pensamentos e palavras, pelo menos.

Aqui, o poder que tinha sido o último a falar, no esvaziamento dos poderes em 2014-16, foi o primeiro a se mobilizar. O Senado, é verdade, enquanto teve Renan Calheiros na direção, também agiu – depois, não. A Câmara também, mas só enquanto Rodrigo Maia a presidia. Depois, não.

Hoje, assistimos à necessária luta do presidente Lula para recuperar os poderes que cabem ao Poder Executivo. Quando lemos que 60% do orçamento da Saúde está capturado pelas emendas parlamentares, vemos de que maneira o planejamento, mais que necessário nessa área, foi sequestrado pela política de bairro. Mas essa luta é mais do que árdua. O presidente da Câmara, Arthur Lira, visivelmente faz de tudo para inviabilizar a recuperação do protagonismo político por quem é a única autoridade eleita por convicção, num pleito que quase sempre passa por um segundo turno, a fim de definir quem representa o País. Temos hoje um quase-parlamentarismo, mas sem responsabilidade parlamentar.

É esta a disputa que hoje vivemos. O Judiciário, que foi o poder de resistência, enquanto o Executivo destruía o país, e o Congresso negociava com ele algum tipo de vantagens, agora está próximo da Presidência, na tentativa de limitar o poder centrífugo que ainda reside nas casas legislativas. Mas não é e não será fácil.

Não é fácil, até porque aquela que seria a base de esquerda do Governo não entende, ou mais provavelmente não quer entender, que nosso presidencialismo hoje é uma aparência. Sim, vivemos numa sociedade que quer o regime presidencial. (Parlamentarismo, aqui, ou é uma simpatia de intelectuais, como eu, boa para conversar num papo-cabeça de bar – ou o recurso que a direita procura sacar sempre que percebe que vai perder a disputa: como aconteceu em 1961, para bloquear o presidente Jango, e várias vezes na década passada, para tirar o PT).

Mas, como “o fraco rei faz fraca a forte gente”, seis anos com dois presidentes que sobreviveram no poder devido a acordos menores viciaram nosso tecido político. Nosso presidencialismo é uma fachada – porém, a esquerda não percebe ou não quer perceber isso, e por todos os males culpa o presidente. Seria ele que teria imposto o arcabouço fiscal, seria ele que negaria aumentos salariais, seria ele que não revogaria a reforma do ensino médio. Em outras palavras – e neste ponto a esquerda é inteiramente representativa do senso comum de nossa sociedade – tudo de bom que acontece, e tudo de ruim, é só do Presidente.

*Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavel, a democracia e o Brasil (Estação Liberdade).

É possível superar a crise sistêmica atual? por Leonardo Boff

0

Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 23/05/2024

A ciência e a técnica não conseguem mais deter a mudança climática, mas podem apenas advertir sua chegada e minorar os efeitos danosos

Retomo o tema “Reflexões sobre as causas da crise sistêmica”, que estão na raiz da atual crise. Interrompemos para refletir sobre a manifestação clara da mudança climática em curso, causando devastadores enchentes no Rio Grande do Sul. É um dos sinais que Gaia, a Mãe Terra, nos está dando de que ela não suporta mais o modo capitalista de habitar o planeta. Pairam, em suspenso, na atmosfera cerca de dois trilhões de toneladas de gazes de efeito estufa que permanecem por cerca cem anos. Como a Terra pode digerir toda essa imundície?

O modo capitalista de produção se caracteriza fundamentalmente por considerar a Terra não como algo vivo e sistêmico, mas como um baú cheio de recursos a serem explorados para benefício humano, em especial, para aqueles que detém o ter, o saber e o poder sobre tais recursos e sobre o curso da história. Esse sistema se impõe sem qualquer sentido de limite, de respeito e cuidado para com os ecossistemas. Encontra sua expressão política no neoliberalismo, dominante em quase todas as sociedades, mas não entre os povos originários que se sentem natureza e cuidam dela.

Além do eclipse da ética e da asfixia da espiritualidade no mundo atual, quero acrescentar ainda mais dados. O primeiro, nas palavras do Papa Francisco na Laudato Sì: “Ninguém pode ignorar o fato de nos últimos anos termos assistido a fenômenos meteorológicos extremos, períodos frequentes de calor anormal, secas severas”. O que ocorreu em maio no Sul do país, simultaneamente ocorreram enchentes fenomenais na Alemanha, na França, na Bélgica e no Afeganistão.

Outro ponto é a Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot): precisamos de 1,7 Terra para atender ao consumo, especialmente das classes opulentas do Norte Global. Pretendem tirar da Terra aquilo que ela não pode mais dar. Em resposta, por ser um Super Organismo vivo, reage com mais aquecimento, envio de uma gama de vírus e com os referidos eventos extremos.

Por fim, um grupo de cientistas, a pedido da ONU, definiram as nove fronteiras planetárias (planetary bounderies) que devem ser mantidas para garantir a estabilidade e a resiliência do planeta (mudança climática, integridade da biosfera, mudanças no uso do solo, disponibilidade de água doce, fluxos biogeoquímicos, representados pelos ciclos de nitrogênio e fósforo, acidificação dos oceanos, carga de aerossóis na atmosfera, esgotamento da camada de ozônio e o que foi chamado de “novas entidades” — partículas que não existiam na natureza — e foram introduzidas pela ação humana — como microplásticos, transgênicos e rejeitos nucleares). Verificou-se que seis das novas fronteiras foram ultrapassadas. Por serem sistemicamente articuladas, pode dar-se o efeito dominó: todas caiam. Então a civilização colapsa.

O certo é o que tem atestado muitos cientistas: a ciência e a técnica não conseguem mais deter a mudança climática, mas podem apenas advertir sua chegada e minorar os efeitos danosos. Mesmo assim cabe a pergunta: temos chance de sair da crise sistêmica?

Depende de nós, se aceitamos mudar ou prosseguir no mesmo caminho. Como bem notou Edgar Morin: “A história várias vezes mostrou que o surgimento do inesperado e o aparecimento do improvável são plausíveis e podem mudar o rumo dos acontecimentos”. O ser humano pode se conscientizar e traçar outro rumo. Pelo fato de ser um projeto infinito e habitado pelo princípio esperança, estão dentro dele virtualidades que, desentranhadas, poderão instaurar uma saída salvadora. Mas antes devemos enfaticamente dizer: temos que inviabilizar o projeto capitalista, seja pela rebelião das vítimas ou pela natureza, pois ele é suicida: na sua lógica de acumulação infinita dentro de um planeta finito, pode continuar na sua insânia até fazer da Terra um local inabitável. Se ele começou um dia, pode também desaparecer um dia. Nada é perpétuo.

As grandes narrativas do passado não nos vão tirar da crise. Temos que auscultar a nossa própria natureza. Nela estão os princípios e valores que, ativados, mesmo sob grandes dificuldades, nos poderão salvar.

Em primeiro lugar, temos que definir o ponto de partida. É o território, o biorregionalismo. É na região, assim como a natureza a desenhou que podemos construir sociedades sustentáveis e mais igualitárias. Elenquemos os valores que estão em nós.

Como os bioantropólogos mostraram o amor pertence ao DNA humano. Amar significa estabelecer uma relação de comunhão, de reciprocidade, de entrega desinteressada e de sacrifício de si em função do outro. Amar a Terra e a natureza implica criar um laço afetivo com elas: sentir-se unidos a elas. De mais a mais sabemos que todos os seres vivos possuem o mesmo código genético de base (vinte aminoácidos e quatro bases nitrogenadas).

Somos irmãos e irmãs de fato, entre nós e com todos os demais seres. Não basta sabê-lo, mas senti-lo e vivenciar o laço de comunhão. Além disso, o estudo da evolução do ser humano (ele tem 7-8 milhões de anos e como sapiens/ demens uns 200 mil anos) revelou que foi a solidariedade na busca e no consumo dos alimentos, juntos criando a comensalidade, que permitiu o salto da animalidade à humanidade.

Somos seres naturalmente solidários, como se tem mostrado nas milhões de ajudas aos desabrigados e afetados pelas enchentes no Sul do país. Somos também seres de compaixão: podemos nos colocar no lugar do outro, chorar com ele, partilhar suas angústias e nunca deixá-lo só. Ainda somos seres de cultura, da criação do belo, nas artes, na música, na pintura, na arquitetura.

Podemos fazer aquilo que a natureza por si jamais faria, como uma música de Villalobos ou uma pintura de Portinari. Como disse Dostoievski: “será a beleza que salvará o mundo”. Não a beleza como mera estética, mas a beleza como atitude de estar junto a um moribundo, segurando-lhe a mão e dizendo-lhe palavras de consolação: “Se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que teu coração”.

Somos, desde a mais alta ancestralidade, quando emergiu o cérebro límbico há 200 milhões de anos, seres de afeto e de sensibilidade. No coração sensível reside o enternecimento, a ética e o mundo das excelências. Já o escrevi no artigo anterior: somos, no mais profundo de nossa humanidade, seres espirituais. Somos capazes de identificar aquela Energia vigorosa e amorosa que se esconde dentro de cada criatura e em nosso interior (entusiasmo) e a faz continuamente existir e co-evoluir.

Como espirituais vivemos o amor incondicional, o cuidado por tudo o que existe e vive e alimentamos a esperança de uma vida que vai além desta vida. Acompanha-nos também sombras que podem reverter o amor em indiferença e a solidariedade em insensibilidade. Mas dispomos de uma força interior, não de negá-las mas de mantê-las sob o controle e fazê-las uma energia para o bem.

Uma biocivilização, fundada sobre tais valores e princípios, pode abrir uma senda inicial, capaz de transformar-se num largo caminho, assinalar-nos marcos na caminhada e apontar-nos uma luz no fim do túnel. Tudo isso poderá ser conquistado com muito suor e luta contra aquilo que um dia fomos (inimigos da Terra), em favor de uma nova forma de habitar amigavelmente este pequeno e único planeta que temos, nossa Casa Comum, a generosa Mãe Terra.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de A opção Terra (Record)

Educação em disputa, por Bruno Resck

0

Bruno Resck – A Terra é Redonda – 24/05/2024

Sem romper com as amarras das políticas neoliberais, não será possível a construção de alternativas emancipatórias no campo da educação

Enquanto escrevo este texto, dois eventos políticos de grande relevância dominam o debate nacional no campo da educação. Em primeiro lugar, a greve dos servidores da educação federal, parados há mais de cinquenta dias. Em segundo lugar, a aprovação do PLC 9/2024 na Assembleia Legislativa de São Paulo, no dia 21 de maio, que cria o Programa de Escola cívico-militar proposto pelo governo de São Paulo. Estes dois acontecimentos emblemáticos refletem e simbolizam o atual quadro da disputa política nacional.

De um lado, temos o governo federal, eleito por uma ampla coalisão de forças em defesa da democracia, com o objetivo de derrotar o governo protofascista de Jair Bolsonaro. De outro lado, um governador do estado mais rico do país, eleito na esteira do bolsonarismo nas eleições de 2022. Destaca-se que, recentemente, a grande imprensa tenta emoldurar o governador de São Paulo como um “bolsonarista moderado”, um conceito que, por si só, suscita controvérsias sobre sua viabilidade e coerência.

No âmbito do governo federal, existe um crescente ressentimento por parte dos servidores da educação pela forma de condução das negociações junto ao movimento paredista. Cabe destacar que na plataforma de campanha do presidente Lula, existia o compromisso de “resgatar e fortalecer os princípios do projeto democrático de educação, que foi desmontado e aviltado” nos últimos governos. Essa reconstrução se daria através da “valorização e reconhecimento público de seus profissionais”. Não obstante, o governo tem apresentado propostas muito aquém das expectativas das categorias.

Para além das questões do funcionalismo, a gestão do ministro Camilo Santana (PT) tem sido marcada pela continuidade de uma série de marcos legais e regulatórios herdados das gestões de Michel Temer e Bolsonaro. O caso mais emblemático é a hesitação em revogar o nefasto “Novo Ensino Médio” – contrariando a maioria dos docentes e especialistas do país. Outra notável característica do ministério é a considerável presença das fundações empresariais como o “Todos pela Educação” e a Fundação Lemann, que exercem controle direto ou indireto sobre parte do orçamento ministerial.

No âmbito do governo paulista, a gestão do atual Secretário da Educação, Renato Feder, tem acumulado polêmicas na implantação de sua pauta para a educação que envolvem a substituição de livros didáticos por material digital, a utilização de aplicativos para controle e uma gestão escolar análoga à gestão empresarial com prazos e metas sufocantes para o corpo docente. Não obstante, o governo de São Paulo obteve uma vitória ao aprovar o projeto de implantação das escolas cívico-militares no estado. A sessão da Alesp que aprovou o projeto foi marcada por grande confusão e pela truculência da polícia militar contra os estudantes que se manifestavam.

As escolas cívico-militares emergiram na esteira da ascensão da extrema direita no país, sobretudo a partir de 2018. Trata-se de um modelo que não apresentou resultados positivos nas localidades onde foi implantado, e parte do princípio da “guerra cultural” contra uma suposta doutrinação ideológica nas escolas. Outro pilar deste modelo é a crença de que a deterioração dos indicadores educacionais estaria ligada à falta de disciplina e violência nas escolas, problemas que seriam combatidos pela contratação de agentes de segurança aposentados para trabalharem nas escolas.

Como quase toda fake news é baseada em meias verdades, a proposta das escolas cívico-militares baseia-se numa tentativa de replicar os Colégios Militares. Os Colégios Militares, de fato, apresentam bons indicadores de rendimento acadêmico, mas por motivos outros: um rigoroso processo seletivo para ingresso, investimentos substanciais em infraestrutura física e humana, além de docentes bem qualificados e remunerados. Em oposição, as escolas cívico-militares não versam sobre ampliação dos investimentos em infraestrutura e valorização dos servidores.

Quais lições podem ser extraídas destes dois fatos políticos? Em primeiro lugar, fica evidente que o modelo de governo de frente ampla baseado na conciliação de classes tem mostrado sinais de esgotamento. Na tentativa de acomodação dos interesses do capital privado (fundações educacionais e grandes corporações de ensino privado) e da classe trabalhadora, o governo vacila em apresentar um projeto de reforma do ensino público nacional. Não há sequer uma proposta de um reformismo, apenas a continuidade das políticas dos últimos governos liberais. A marca do atual governo é sua autolimitação decorrente das políticas de Austeridade Fiscal, em contraste com a ampliação das Parcerias Público-Privadas (PPPs).

Em oposição, a extrema direita possui um projeto claro. Possui um norte, mesmo que seja “acabar com tudo isso daí”. A extrema direita tem conquistado vitórias tanto objetivas quanto subjetivas entre as classes populares. Após décadas de governos do PSDB e do PT, a força de contestação do poder estabelecido e das instituições é a extrema direita. Pois bem, o campo progressista entende a ineficácia das escolas cívico-militares; no entanto, o que o governo oferece em seu lugar?

O que colocar no lugar das escolas cívico-militares, uma vez que a escola do filho do trabalhador continua a mesma ao longo das últimas décadas. Até o momento as iniciativas do governo federal são programas paliativos de transferência de renda, sem a implantação de um grande projeto nacional que possibilite a estados e municípios a construção de novas escolas, qualificação e valorização do corpo docente. É preciso romper com as amarras das políticas neoliberais para a construção de alternativas para a classe trabalhadora. Do contrário, continuaremos a assistir as vitórias da extrema direita.

*Bruno Resck, geógrafo, é professor no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) – Campus avançado Ponte Nova.

China: ameaças e oportunidades

0

Nas últimas décadas a economia internacional vem passando por grandes transformações, com a ascensão de novos atores produtivos, novas organizações, novos modelos de negócios, novas culturas e novos personagens políticos, além do crescimento da concorrência global, novas hegemonias estratégicas, novas configurações no mundo do trabalho e o fortalecimento das nações asiáticas, gerando calafrios, ameaças e oportunidades, consolidando um mundo cada vez mais multipolar.

Nesta nova configuração da sociedade internacional percebemos o crescimento e o fortalecimento da economia chinesa, uma nação pobre e miserável nos anos 1980 e, atualmente a segunda maior economia mundial, responsável pela maior estrutura exportadora, dotada de grande tecnologia, responsável por inúmeras inovações que estão impulsionando a sociedade, impactando positivamente sua população, aumentando as possiblidades de melhorias sociais e reduzindo assustadoramente a pobreza e a indigência, retirando milhões de pessoas na indignidade e garantindo novas oportunidades de ascensão social.

A China construiu uma estrutura industrial invejável, suas fábricas produzem mais de US$ 4 trilhões em produtos e mercadorias, exportando para todos os continentes, atuando nas mais variadas áreas e setores produtivos, dominando a produção de televisões, aparelhos celulares, automóveis, eletro eletrônicos, dentre outros, gerando grandes desafios para as nações, pois absorvem produtos chineses a preços módicos, contribuindo ativamente para o aumento do salário da população e um aumento sistemático da renda, mas estes produtos vendidos a preços baixos internamente podem destruir sua estrutura industrial, estimulando a desindustrialização, aumentando o desemprego interno, além de graves constrangimentos econômicos, polarizações políticas e agitações sociais.

Nas últimas décadas, o governo chinês vem buscando novos espaços de investimentos externos para desovar as altas reservas internacionais acumuladas nos anos anteriores, para isso, a China criou a Rota da Seda, uma política global para estimular os investimentos externos nas mais variadas áreas e regiões da economia internacional, crescendo sua participação nos acordos comerciais com a Ásia, a Europa e a África, além dos esforços para incrementar essa política na América Latina, gerando graves constrangimentos com os Estados Unidos, que claramente vem perdendo espaço na economia mundial, levando-o a impulsionar novos conflitos militares, novas formas de intervencionismo, novas formas de protecionismos e medidas mais agressivas para salvaguardar seus interesses nacionais, num momento de instabilidades, incertezas e novos desafios e novas oportunidades.

Neste cenário, as nações buscam defender seus interesses nacionais, alguns se aliam ao gigante asiático para se defender dos desafios contemporâneos, enquanto outros governos preferem fortalecer laços anteriores com a sociedade estadunidense, uma decisão estratégica para todas as nações, escolher caminhos e fazer escolhas podem trazer ganhos diretos ou indiretos, mas podem trazer grandes constrangimentos.

Numa sociedade como a brasileira, dotada de grande potencial nas mais variadas áreas e setores, faz-se necessário construir novos caminhos e novos horizontes para os desafios futuros e as escolhas contemporâneas, arregimentando apoio político interno, consolidando um projeto nacional de país, deixando de lado os conflitos, as brigas e as imaturidades políticas que perpetuam e solidificam nosso subdesenvolvimento e nossa pobreza, quem sabe, depois deste desastre climático em curso no Rio Grande do Sul, a nação acorde efetivamente deste sono letárgico e degradante que vivemos continuadamente desde nossa constituição enquanto nação “independente”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Brasil no pódio da taxa de juros, por Paulo Kliass

0

Mudanças cosméticas na Selic, uma das maiores do mundo, não contribuirão para o desenvolvimento nacional. Reorientar a política monetária é tarefa urgente, a qual Lula não pode mais se furtar. E fim da maioria bolsonarista no BC é estímulo a essa guinada

Paulo Kliass, Doutor em Economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão do Governo Federal

OUTRAS PALAVRAS – 21/05/2024

A necessária discussão a respeito dos riscos provocados pela política do neoaustericídio de Fernando Haddad tem colocado em primeiro plano a preocupação com os aspectos da política fiscal. Afinal de contas, desde a proposta do Novo Arcabouço Fiscal encaminhada por ele ao presidente Lula logo no início de seu terceiro mandato, o Brasil não conseguiu se livrar do fardo que representava o famigerado Teto de Gastos da época de Temer e Bolsonaro. A aprovação da Lei Complementar nº 200/23 em agosto do ano passado passou a estabelecer as orientações para a estratégia do governo na busca da sacrossanta responsabilidade na condução do equilíbrio entre receitas e despesas governamentais. A manutenção do espírito de austeridade fiscal a todo custo terminou por orientar as propostas conservadoras do Ministério da Fazenda, como a atual meta de zerar o déficit primário para o ano em curso.

No entanto, apesar de toda a capacidade destruidora proporcionada pela obsessão do professor do Insper em atender aos comandos do pessoal da Faria Lima no quesito fiscal, a verdade é que a política monetária segue também trazendo consequências muito graves para a economia e para a sociedade brasileiras. A manutenção do foco e da artilharia do financismo sobre as contas ditas “primárias” busca isentar de toda e qualquer responsabilidade o impacto provocado pelas despesas financeiras sobre o equilíbrio macroeconômico. Assim, o espírito da tesoura se limita a atuar sobre as rubricas orçamentárias como previdência social, saúde, educação, assistência social, segurança pública, salário de servidores públicos, saneamento e toda a sorte dos demais investimentos do Estado. Ninguém ouve ou lê nenhuma crítica da parte da elite da finança reclamando da suposta “farra” ou “gastança” envolvendo os valores escandalosos com o pagamento dos juros da dívida pública.

Despesas com juros: nada de teto ou limite

Mas o fato é que o Brasil continua batendo recordes sucessivos no cumprimento desse tipo de gasto. Trata-se do segundo maior grupo de despesa orçamentária, ficando apenas atrás das despesas com benefícios previdenciários. Ao longo dos últimos 12 meses, por exemplo, o Tesouro Nacional transferiu exatos R$ 748 bilhões dos cofres públicos para atender aos interesses dos detentores de títulos da dívida pública federal. Assim como ocorre com a regressividade do nosso sistema tributário, a natureza do sistema de despesas também termina por beneficiar os setores do topo de nossa pirâmide da desigualdade social e econômica. Nos momentos em que se ouve a gritaria por maior rigor e controle no gasto federal, porém, nada é percebido quanto a medidas para impor limites, tetos ou contingenciamento sobre esse tipo de dispêndio.

A principal causa de tal distorção reside justamente na política monetária. A manutenção histórica de nossa taxa oficial de juros em patamares estratosféricos impacta diretamente o montante do fluxo de juros que incide sobre o estoque total do endividamento público. Ao longo das últimas décadas, o Brasil sempre ocupou uma posição de destaque na comparação das alternativas de rendimento financeiro pelo resto do mundo. Ao definir os níveis da nossa Selic em andares bastante elevados, o Comitê de Política Monetária (Copom) termina por chancelar as expectativas dos grandes operadores do mercado financeiro nacional e internacional. O nosso país sempre foi conhecido como o paraíso do rentismo parasita, uma vez que oferece as maiores taxas de retorno para aplicações puramente financeiras e não exige nenhuma contrapartida para o capital especulativo que para cá se dirige.

A boa prática de atração de investimentos estrangeiros sugere que, ao menos, a nação interessada em conseguir a vinda do capital externo estabeleça condições, tais como um tempo mínimo de permanência (a chamada quarentena) e a exigência de aplicação de parcela dos recursos em atividades no setor real da economia e que sejam de interesse do governo brasileiro. Aqui, ao contrário, a regra sempre foi a do laissez faire, laissez passer, como se a decisão de aplicar os recursos no Brasil fosse uma generosidade praticada pelos gestores dos fundos especulativos que vicejam no pântano do financismo global.

Brasil: campeão mundial de juros

Apesar de as últimas reuniões do Copom terem decidido por uma lenta e gradual redução na Selic, o fato é que a taxa real de juros ainda segue muito elevada. A taxa referencial de juros ficou por muitos meses no patamar de 13,75% e, desde a reunião de agosto de 2023 do colegiado, houve uma diminuição paulatina até os atuais 10,50%. Ocorre que durante o mesmo período verificou-se também uma redução da inflação. Assim, em termos da rentabilidade real das aplicações financeiras, quase nada foi alterado. Isso porque o fator relevante para as tomadas de decisão dos investidores é o saldo resultante da subtração da inflação sobre o valor nominal da taxa de juros.

Existem várias instituições e consultorias que elaboram ranqueamentos das taxas reais de juros dos diferentes países pelo mundo afora. Atualmente, por exemplo, o Brasil permanece em segundo lugar, perdendo a medalha de ouro para o México. Estamos com escandalosos 5,9%, mas nossos irmãos latinos do Norte oferecem 7,5%. No ano passado, quando ainda o presidente do Banco Central (BC) insistia em manter a Selic nos píncaros, o país ocupava o primeiro lugar, com 6,7% reais ao ano. Em anos anteriores também já ocupamos a primeira posição entre 2015 a 2017. Mas nem sempre foi assim. Durante a pandemia, por exemplo, quando a Selic chegou ao mínimo de 2%, por exemplo, o Brasil ocupou a 12ª posição no ranking global de taxa de juros reais.

Isso significa que é possível reorientar a política monetária para níveis menos “contracionistas”. Esta é, aliás, precisamente a expressão utilizada na Ata das últimas reuniões do Copom, para expressar o sentimento de unanimidade dentre os membros do colegiado para enfrentar questão do patamar de juros a ser adotado:
(…) “Ao fim, concluiu-se unanimemente pela necessidade de uma política monetária mais contracionista e mais cautelosa, de modo a reforçar a dinâmica desinflacionária.” (…) [GN]
Isso significa dizer que talvez a suposta polêmica relativa à redução de 0,25% ou 0,50% ocorrida no encontro não seja nada tão significativa quanto se supõe. Afinal, os quatro diretores indicados por Lula se mantêm na mesma sintonia da maioria ainda dirigida por Roberto Campos Neto. Ao que tudo indica, trata-se de um diagnóstico consensual quanto à necessidade de se manter a Selic em patamares elevados. A partir do final do ano, o presidente da República terá o direito de indicar o novo dirigente máximo da instituição, em substituição ao nomeado por Guedes e Bolsonaro. O que se espera é que essa nova maioria no colegiado do BC sirva para uma guinada na condução da política monetária.

O Brasil necessita de uma mudança significativa nos patamares da Selic e não essas variações cosméticas que não afetam em quase nada a variável relevante para esse tema, qual seja, a taxa real de juros. Cabe ao presidente Lula orientar os responsáveis pela política econômica que a retomada de um projeto de desenvolvimento econômico e social pressupõe a manutenção da taxa oficial de juros em níveis bem mais reduzidos. Além disso, é urgente que os bancos estatais federais sejam também levados a cobrar spreads de seus clientes em níveis mais “civilizados” e deixem de estabelecer suas políticas para a clientela segundo as regras ditadas pelo oligopólio da banca privada.

As elites desistiram da igualdade cívica, por João Pereira Coutinho

0

Tocqueville não veria diferença entre a hierarquia europeia do séc. 19 e a americana do

João Pereira Coutinho, Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Folha de São Paulo, 21/05/2024

Para que servem os ricos, afinal? A pergunta é de Benjamin Wallace Wells na New Yorker. Um cínico, como eu, poderia responder: servem para bancar revistas onde você escreve por um cheque chorudo, Benjamin.

Não vou ser cínico. Caso contrário, gastaria meu latim denunciando toda a intelligentsia anticapitalista que gosta de pregar seus sermões em púlpitos —TVs, jornais, revistas, institutos, universidades etc.— financiados por capitalistas.

Até porque Benjamin Wallace-Wells tem certa razão. Os ricos podem bancar revistas. Com relutância, podem até pagar impostos. Mas desistiram de um ideal de “igualdade cívica” que era estrutural na democracia americana e não só.

Eis a ironia: Wallace-Wells, talvez sem o saber, está bem próximo de um autor conservador como Christopher Lasch (1932–1994), de quem vou lendo “A Revolta das Elites e a Traição da Democracia”. O livro, publicado pela Ediouro em 1995, acaba de ser republicado pela Almedina, com tradução e posfácio (excelentes) de Martim Vasques da Cunha.

Impressionante: a obra é de 1994. Mas Lasch, que morreu no mesmo ano, consegue acertar em alvos que só 30 anos depois nos parecem óbvios.

E o mais óbvio é a “revolta das elites” do título: em meados do século 20, as elites cortaram o contato com o resto do povão. Sempre foi assim?

Não nos Estados Unidos, defende Lasch: as diferenças econômicas não cancelavam uma igualdade cívica que impressionava qualquer visitante europeu, ainda marcado pelo “rapport” aristocrático que sobreviveu à Revolução Francesa.

É uma grande verdade. Alexis de Tocqueville (1805–1859), que viajou pelo país no século 19, deixou páginas notáveis sobre a forma como os americanos (brancos, obviamente; a escravidão é a mancha nessa paisagem) se cumprimentavam nas ruas, apertando as mãos, mesmo que um deles fosse um magnata e o outro um modesto artífice.

Tudo mudou a partir de 1960, quando começou a grande separação entre as elites (econômicas, culturais etc.) e as massas. Tocqueville, hoje, não notaria diferenças entre a hierarquia social europeia do século 19 e a americana do século 21.

Isso é especialmente visível na educação e na cultura. Ao contrário do que pensam os conservadores mais básicos, as elites progressistas não procuraram “doutrinar” o povo com suas teorias (aquela conversa sobre o “marxismo cultural”, que faz a delícia dos ingênuos).

Pelo contrário: a ideia era não ter contato com o povo, criando um mundo paralelo onde a realidade não existe. A doutrinação é um fenômeno de elites para elites –um mecanismo de reprodução. O “cesto dos deploráveis” (lembra?) não merece qualquer conversa ou atenção.

Esse mundo paralelo não é apenas uma criação intelectual. É um fato da própria existência
cotidiana das elites pós-década de 60: por que motivo elas se importam com educação pública, saúde pública e segurança pública?

Sobrecapacidade da China é problema; protecionismo, porém, não será solução, por Igor Patrick

0

Sob críticas dos EUA e da Europa, Pequim diz que sua vantagem comparativa não resulta de qualquer prática irregular

Igor Patrick, Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua

Folha de São Paulo, 18/05/2024

Ao longo dos próximos meses, quando você se deparar com notícias sobre a economia chinesa, o texto quase sempre vai mencionar um termo não muito familiar para o leitor leigo: “excesso de capacidade”.

O problema é, por exemplo, uma das justificativas apontadas pela Casa Branca para o significativo aumento de tarifas sobre carros elétricos chineses e tem rondado as discussões entre Pequim e a União Europeia.

Explico: autoridades governamentais em todo o mundo tem batido o pé e reclamado que, por meio de uma produção acima da demanda interna, a China tem inundado o mercado global com produtos de preço muito abaixo do normal, causando quebradeira em alguns setores industriais incapazes de competir nessas condições. Alguns legisladores vão além, acusando os chineses de turbinar suas exportações com subsídios irregulares, artificialmente tornando suas exportações mais competitivas.

O problema dos subsídios governamentais a indústrias selecionadas não é exatamente novo. De fato, foi essa a razão pela qual vários países se recusam a conceder à China o selo de “economia de mercado”, um atestado de que as exportações são balizadas pelo seu valor nominal e não por interferência estatal. Mas sua combinação com o rescaldo da pandemia criou um cenário complexo.

Ao contrário do que esperavam economistas, o mercado doméstico chinês não reaqueceu após o fim da Covid zero, a dura política do regime de combate à crise sanitária. Receosos e/ou endividados após três anos de restrições pandêmicas, os chineses estão gastando menos, levando o país em 2023 à sua pior deflação desde a crise asiática de 1997. O índice de preços ao consumidor fechou o ano passado em -0,3%, e para 2024 economistas esperam inflação muito modesta (algo entre 0,4 e 0,5%) —um sinal de que o consumo interno não está crescendo como o esperado.

Só isso já seria motivo de preocupação; afinal, os produtos chineses já são usualmente bem mais baratos que no resto do planeta, e, diante de um mercado interno mais fraco, fabricantes são obrigados a diminuir ainda mais os preços para fazer aumentar a demanda.

Nesta equação, é necessário avaliar também as taxas de utilização fabril: se o preço é baixo, há capacidade excedente. As empresas com muita capacidade excedente tendem a baixar os preços para gerar procura, prejudicando a rentabilidade de todo o setor. No primeiro trimestre deste ano, a China usou 73,6% de sua capacidade industrial, o menor índice desde 2020, segundo o Escritório Nacional de Estatística.

Somam-se a isso incentivos fiscais dos governos centrais e provinciais para estimular a economia e temos a tempestade perfeita: produtos que saem do chão de fábrica bem mais baratos do que o normal e chegam a outros países a um preço tão baixo que seus competidores perdem mercado e quebram. No curto prazo pode até beneficiar a você, que quer comprar um carro elétrico ou um painel solar e vai pagar menos. No longo prazo, a falta de concorrência dará a estes players chineses o poder de controlar preços nestes setores, além de frear a inovação e corroer postos de trabalho.

A China diz que sua vantagem comparativa não resulta de qualquer prática irregular. O regime afirma, com razão, que está colhendo os dividendos de décadas de investimento em pesquisa e desenvolvimento, além de uma cadeia produtiva muito eficiente.

Mas esses fatores não contam toda a história: Pequim teme um efeito cascata se deixar quebrar quem não conseguir competir naturalmente e mantém estas empresas funcionando por meio de incentivos fiscais.

Equilibrar a produção será um processo delicado porque invariavelmente levará a aumento no desemprego e potencial agitação social. Ademais, pode desencadear queda na demanda por commodities, o que impactaria diretamente grandes mercados de matéria-prima para o gigante asiático, como Brasil e Austrália.

Como reguladores e políticos reagem a estes desafios em todo o mundo ainda é uma incógnita. A resposta apresentada até agora é apenas mais protecionismo, o que não é bom para ninguém.

A financeirização da velhice assola o Brasil, entrevista com Jorge Félix

0

Estado transfere às famílias os cuidados com idosos, abrindo espaço para o setor financeiro abocanhar essa população crescente. Pesquisador avalia: planos de saúde se vendem como garantia do bem-estar – mas são armadilha para criar dívida eterna

Jorge Félix em entrevista a Guilherme Arruda – OUTRA SAÚDE – 16/05/2024

O fenômeno social da transição demográfica avança no Brasil. De 2010 a 2022, o segmento dos maiores de 80 anos foi a faixa que mais cresceu na pirâmide etária brasileira em termos proporcionais, passando de 1,5% a 2,2% da população total. Consequentemente, também cresceu a necessidade de garantir a essas 4,5 milhões de pessoas, segundo o IBGE, os cuidados de saúde adequados à sua idade – que tendem a ser maiores e mais específicos.

A oportunidade de vender esses cuidados como uma mercadoria não seria desperdiçada pelo empresariado em um país como o nosso, onde a saúde privada já se tornou um dos três maiores oligopólios da economia nacional. Por isso, multiplica-se a oferta de produtos como planos de saúde voltados especificamente para a terceira idade, serviços de home care e unidades residenciais para idosos com profissionais de saúde integrados.

Contudo, os pesquisadores Jorge Félix e Guita Debert, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), identificaram que há uma situação mais grave que a simples mercantilização da saúde nesse ramo. Em estudo recentemente publicado, a dupla revela um quadro de endividamento generalizado dos brasileiros mais velhos – principalmente a partir da compra de serviços de cuidado e saúde que respondem a uma dinâmica mais ampla de financeirização da velhice, eles argumentam.

Em entrevista a Outra Saúde, Félix esmiúça as três principais frentes pelas quais, segundo suas pesquisas, o capital financeiro se lança sobre o bolso dos idosos no país: a criação de Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) controladas por empresas de capital aberto na bolsa de valores; o aumento vertiginoso das mensalidades dos planos de saúde, respaldado pelo “viés pró-mercado” da ANS; e, principalmente, o avanço descontrolado do crédito consignado sobre as aposentadorias – na maioria das vezes, buscado precisamente para arcar com os “gastos catastróficos” com cuidado e saúde.

O enfrentamento à ofensiva da financeirização (sustentada na concepção neoliberal de que o Estado deve ser mero “fiador” da compra de serviços de saúde no mercado), ele aponta, passa pelo fortalecimento do papel do Estado em oferecer o cuidado, revertendo a tendência de jogá-lo para as famílias e o setor privado. Propostas em construção, como a Política Nacional de Cuidados, precisarão ser verdadeiramente amplas e detalhadas – e recente flerte de ministérios da área econômica com a desvinculação das aposentadorias do salário mínimo, o que restringiria ainda mais a renda dos idosos, seria inconsequente com essa estratégia.

Fique agora com os principais momentos da conversa de Outra Saúde com Jorge Félix, pós-doutorando da Unicamp e pesquisador com bolsa FAPESP. Seu artigo com Guita Debert, The financialization of care and the indebtedness of older people in Brazil, está hospedado na versão em português da plataforma WhoCares?, representada no país pelo Cebrap.

Outra Saúde: No que consiste a categoria de financeirização da velhice que você e a profa. Guita
Debert desenvolveram? O que há de novo e específico nesse fenômeno?

Jorge Félix: Há alguns anos, pesquisadores estrangeiros estão trabalhando com o que eles chamaram de financeirização do cuidado – é uma parte do que o Ladislau Dowbor chama de “financeirização da vida”. A financeirização é o fenômeno que marca a economia do século XXI. A possibilidade da reprodução do capital sem sair da esfera financeira é o que caracteriza a financeirização. É o que Marx já colocava em termos teóricos n’O Capital, no Livro III, que com a evolução do capital o objetivo econômico seria gerar “dinheiro que faz dinheiro sem passar pelas agruras da produção”.

Hoje, você tem uma grande parte da economia – quase toda – no processo de financeirização, em detrimento do processo produtivo. Consequentemente, essa financeirização foi se estendendo para todas as esferas da vida. Esses pesquisadores estrangeiros identificaram a financeirização do envelhecimento principalmente pela ação dos fundos de private equity, que foram se interessando pela questão do cuidado e pelo que nós chamamos tecnicamente de instituições de longa permanência para idosos.

Nos países mais envelhecidos, isso evidentemente teve um avanço grande, e hoje as grandes redes mundiais com sede na Europa e nos Estados Unidos funcionam nesse modelo que a gente chama de financeirizado. Nele, os lucros que vem desses empreendimentos não são reinvestidos, eles se “empoçam” na esfera financeira por meio de inúmeros produtos financeiros. Isso tem uma consequência: os fundos querem um retorno de curto prazo, como é típico desse modelo financeirizado. Obviamente, para isso, sacrificando o trabalho do cuidado, o trabalhador do cuidado e as pessoas que são cuidadas.

Em 2022, como nós contamos no artigo, isso levou a um grande escândalo na França, denunciado por um jornalista chamado Victor Castanet, em torno da ação do Grupo Orpea, um grupo financeiro que atua explorando o ramo das instituições de longa permanência para idosos.

Com o tempo, esses modelos começaram a ser exportados, e esses operadores e atores da financeirização entraram no Brasil e no resto da América Latina. Isso nos levou a essa categoria de financeirização do cuidado que, ao estendermos para outras esferas da vida, eu e a professora Guita Grin Debert, da Unicamp, passamos a chamar de financeirização da velhice.

Há cinco anos eu trabalho com a professora Guita, que é uma grande referência no tema da velhice já desde muito tempo. Ela hoje é professora emérita, está aposentada, e é minha supervisora no pós-doutorado. Eu sou pesquisador FAPESP, num pós-doutorado na Unicamp pelo PAGU – Núcleo de Estudos de Gênero, em que eu estudo envelhecimento, dívida e cuidado. Eu e Guita estamos trabalhando com esses temas e delineamos a questão da financeirização da velhice já há algum tempo, principalmente o que você pergunta – as particularidades do Brasil, que são principalmente o crédito consignado e o modelo da saúde privada.

A gente analisa que isso tudo resulta de uma mutação do papel do Estado. Saindo do modelo de Estado de bem-estar social — que, embora esteja sendo destruído, ainda é bastante forte na Europa —, que provém saúde, educação, e tudo aquilo que a gente sabe historicamente, para um modelo de Estado-fiador, que é como eu e Guita estamos chamando aqui no Brasil.

O Estado diz: “Eu não consigo te dar saúde, te prover cuidados, te dar os medicamentos que eu deveria te dar, etc., mas posso ser seu fiador para você ir ao mercado financeiro e tomar empréstimos para isso”. O Brasil é um excelente exemplo disso, tanto que o crédito consignado é estendido depois aos trabalhadores CLT, e não só aos aposentados. Todo mundo pode pegar empréstimo consignado hoje, contanto que prove renda – aí ele já sai descontado do holerite.

Enfim, esse é o Estado fiador, que vai te jogar para a financeirização. Esse modelo do Estado fiador é percebido pela população idosa como um garantidor das condições financeiras para que elas possam custear as suas despesas de cuidado. Contudo, na verdade, o que acontece é que ele insere de uma forma desqualificante a pessoa idosa no mercado financeiro.

No que se refere à saúde, tem dois aspectos. Por um lado, a financeirização está concentrada nos planos de saúde privados, que nós caracterizamos como uma dívida eterna daquela pessoa que tem que pagar por eles. Nos outros 75% da população que não tem plano de saúde, a financeirização se caracteriza com o alto índice de endividamento que há muitas décadas caracteriza o gasto da população brasileira com medicamentos. Ela tem um altíssimo gasto do próprio bolso, off-pocket, com remédios. Isso também caracteriza uma financeirização porque a pessoa precisa se endividar para bancar esses fármacos todos, e a dívida tem uma centralidade teórica no conceito de financeirização.

Apesar disso, vocês identificaram que os idosos brasileiros não vêem esse seu endividamento com maus olhos, eles até entendem como algo que pode ser bom para sua situação de saúde, para sua situação social junto à família, ou para conseguir arcar com seus gastos. Por que isso acontece?

Isso é motivado pelo idosismo – que é como eu chamo o que muitas pessoas chamam de etarismo, algo muito falado hoje em dia. Como a gente vive numa sociedade idosista, o momento em que a pessoa idosa se percebe ainda relevante é quando ela consegue pegar um empréstimo consignado, seja para custear as suas próprias despesas e não depender da família ou para ajudar a família.

Ela ganha outro papel na sociedade, seja na família, seja entre as amigas e os amigos, seja dentro do banco. Ali, ela passa a ser tratada como um cliente de fato, e não como “aquele idoso que só vem aqui receber aposentadoria, não compra nada, não é interessante para a gente porque só dá trabalho”.

Toda aquela visão idosista com que o cliente bancário idoso sofria deixa de aparecer. Hoje, principalmente por conta do crédito consignado, ele é super bem tratado na agência. Toda hora ele recebe telefonemas porque a gente sabe que, embora seja proibido por lei, se usa o crédito consignado para fazer vendas casadas de outros produtos para essas pessoas idosas. Chega até ao ponto do escândalo de se vender previdência privada para quem tem 70 anos de idade. Isso tudo leva a pessoa idosa a não ter essa percepção de que ela está sendo explorada por meio dos juros.

Quando vocês argumentam que os planos de saúde cumprem um papel de proa no endividamento dos idosos e de suas famílias, vocês também apontam que a agência reguladora da saúde privada, a ANS, tem um “viés pró-mercado”. O que caracteriza esse viés pró-mercado da ANS?

Primeiro, há a questão da agência não regular os planos coletivos. Isso tem um efeito colateral perverso para os planos individuais e familiares. Uma vez que não se regula os outros planos, você vai encontrar por aí os produtos não-regulamentados. Isto é, os planos individuais e familiares sumiram do mercado. Por quê? Porque eles são regulamentados, então todo mundo vai para o plano coletivo.

Isso prejudica? Claro que prejudica, porque muitos dos supostos planos empresariais ou coletivos são planos familiares disfarçados. Muitas vezes, as pessoas abrem uma empresa só para ter acesso a um plano de saúde. Mesmo que ela queira comprar um plano de saúde de pessoa física, não encontra no mercado.

Um segundo efeito colateral é que passa a ser um grande negócio criar planos para idosos. Isso acaba sendo estimulado, porque a saúde privada quer os mais velhos no mercado, como clientes de plano de saúde. Contudo, só pelo caso da Prevent Senior, você já vê o que aconteceu quando mais se precisou desses planos. Eles atendem com limitações muito grandes, porque para serem viáveis financeiramente, esses planos precisam reduzir os tratamentos complexos, que custam mais. Com isso, não vai haver um atendimento satisfatório de grande parte desses clientes e, a todo momento, vamos ver reclamações, que só aumentam.

Outra consequência da não-regulamentação dos planos coletivos e empresariais pela ANS é a onda de cancelamentos unilaterais dos planos individuais que vimos recentemente. No meu entendimento, tudo isso é consequência da atuação da ANS, que precisa ser menos “pró-mercado” e mais equilibrada com o interesse dos cidadãos que pagam por planos de saúde. Esse viés pró-mercado atinge em cheio a população idosa, as pessoas com deficiência, as mães de crianças autistas e os pacientes de doenças crônicas. Esses são os grupos mais prejudicados nisso tudo.

É possível uma comparação desse escândalo que vocês comentam no artigo do grupo Orpea na França, com o caso da Prevent Senior?

Do ponto de vista econômico, é possível uma comparação, porque em ambos os casos você tem o impacto do modelo financeirizado. No caso da França, o modelo financeirizado de cuidado se somou à corrupção e ao tráfico de influência. Isso foi tudo provado, noticiado e tem sido punido pelas autoridades francesas.

Aqui, no caso da Prevent Senior, o peso do modelo financeirizado se fez claro à medida que a empresa priorizou proteger o seu lucro, pensou apenas em sua lucratividade e, para isso, adotou procedimentos que vão contra a ciência. Ela também se aproveitou de algo que é bastante discutido entre os pesquisadores da economia da saúde: o modelo verticalizado, onde a operadora tem seus próprios hospitais. Ele é um modelo que é adotado com o intuito da financeirização, para que se implemente uma fórmula que aumenta a distribuição de dividendos das empresas.

Em resumo, o que nós estamos vendo no cenário de hoje é que a financeirização ampliou o potencial de existirem empresas de plano de saúde com dificuldades, mas empresários de planos de saúde bilionários. Isso porque a distribuição de dividendos altos fez grandes fortunas que não são reinvestidas nem quando a empresa tem uma maior demanda. Por isso, várias delas estão apresentando problemas. Você tem inúmeros estudos mostrando isso na área da economia da saúde.

Um fenômeno recente que discutimos no Outra Saúde com o pesquisador José Sestelo é que, nos últimos anos, a saúde privada no Brasil só registrou lucro por conta de suas operações no mercado financeiro, já que ela teve prejuízo operacional. Como isso – que, no fundo, é a expressão da etapa monopolista e financeirizada do capitalismo na Saúde – se reflete no cuidado com a velhice?

O Sestelo, para nós, é um mestre. O fato das empresas hoje se sustentarem pelo lucro financeiro, com prejuízo operacional, é também uma característica da economia financeirizada do final do século XX e começo do século XXI. Já são inúmeros os exemplos – além disso, em boa parte de empresas que estão vivendo dessa forma, isso já passou a ser uma prática da administração.

Muitos dos CFOs, os diretores financeiros dessas empresas, já são mais valorizados no mercado do que os CEOs. Ou os CEOs são ex-CFOs promovidos porque deram resultados financeiros. Os profissionais de finanças hoje são, sem dúvida nenhuma, os mais valorizados dentro das grandes empresas e é evidente que o setor da Saúde não ficaria fora dessa lógica, que já não é mais uma tendência, é a realidade do mercado.

Como isso atinge o serviço que chega lá na ponta para as pessoas idosas? Para produzir esses resultados vultosos para os acionistas, não pode haver reinvestimento na empresa. Hoje em dia, quase nada do montante auferido em um ano é reinvestido. Ele precisa, aquilo que eu falei, ele precisa estar empossado na esfera financeira para que ele gere ainda mais lucro, mais rendimento que cubra um eventual prejuízo operacional.

Se esse dinheiro não é reinvestido, é muito difícil manter na área da saúde um serviço atualizado e compatível com o avanço da ciência, considerando que [o cuidado com os idosos] é um segmento altamente tecnológico. Muitos procedimentos são inovadores e, por isso, são muito caros. Para piorar, nós vemos essa redução do investimento não só nos serviços mais sofisticados, mas também nos mais básicos. Assim, a qualidade do serviço para os idosos fica impactada.

No artigo, vocês argumentam que, considerando o caráter sistêmico da financeirização do capitalismo, é praticamente inviável reverter essa integração dos idosos ao sistema financeiro. Por outro lado, sustentam que esse mercado não pode seguir sendo tão desregulado e predatório.

Por onde enfrentar o problema, então?

Reverter não é viável, realmente. Quanto ao crédito consignado, o que a gente discute – isso não está escrito nos nossos artigos ainda, porque não elaboramos tanto – é limitar o comprometimento da renda, principalmente. Limitar, no espaço de tempo, os créditos consignados que as pessoas podem pegar, para que não peguem um crédito atrás do outro. Tentar, minimamente, impedir que a pessoa planeje ter sempre aquele crédito supostamente “sem limite”, mas que leva ao superendividamento.

A solução que é sempre apontada, da educação financeira, tem imensos limites. Nós não consideramos que o povo brasileiro está endividado – com mais de 70 milhões de pessoas inadimplentes, segundo a Serasa – por falta de educação financeira. Nós enxergamos isso como uma deficiência de renda para fazer frente a novas despesas do cuidado. Todas as famílias estão pressionadas pelas despesas do cuidado.

É o que a Guita chamou lá atrás, em 1999, de privatização da velhice. Como a velhice foi privatizada lá atrás, as famílias é que estão arcando com este cuidado – dos idosos, mas também das crianças, vale adicionar. Nessa nova configuração da família, você tem despesas que estão pesando bastante, principalmente os medicamentos, a contratação de cuidadores ou o sustento de pessoas da família que têm que deixar de trabalhar para cuidar de uma pessoa idosa. Isso tudo faz com que as pessoas tenham mais despesas e se endividem mais.

Por um lado, não acho que a melhor ação do Estado hoje seria cortar o crédito consignado ou acabar com ele, as próprias pessoas não querem isso. Aliás, pelo contrário, o que mostram as pesquisas que eu e a Guita estamos fazendo, é que elas querem comprometer um percentual ainda maior da renda, em especial os trabalhadores da ativa, que ainda não estão aposentados.

Claro, aí é preciso bom senso por parte dos legisladores, do Banco Central e das agências reguladoras, para impedir um risco tão alto de superendividamento. Só a Lei de Superendividamento não foi o suficiente, porque como toda lei, ela precisa ser acionada. O que é preciso são regras na hora da concessão do crédito.

Além disso, sem dúvida nenhuma, a gente só vai resolver, ou mesmo mitigar, esse problema da financeirização da velhice de uma forma razoável se houver mais investimentos no SUS. Esse cenário todo está mostrando que existe um limite para a saúde suplementar e que com o envelhecimento da população, se não fizermos muitos novos investimento no SUS, mesmo a classe média não vai dar conta das despesas de cuidado e saúde.

Por onde deve passar uma reestruturação do cuidado que enfrente a financeirização da velhice?

O Brasil está nesse momento discutindo a criação de uma Política Nacional de Cuidados. Pela primeira vez, o presidente Lula criou um grupo de trabalho para isso, que está sendo conduzido pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). O país está em plena elaboração dessa política, que é inclusive uma promessa de campanha do Lula, feita quando ele teve uma reunião conosco da área do envelhecimento durante a campanha.

Isso é sempre bom lembrar: ele nos prometeu criar um sistema, uma rede de cuidados domiciliares em um modelo bem parecido – ou ampliado – com o dos agentes comunitários de saúde do SUS. Isso deve ser uma prioridade do Estado brasileiro no atual estágio da transição demográfica do país.

Esse é o primeiro aspecto.

Ao lado disso, tem que vir um maior investimento no SUS. Por ainda não termos no Brasil essa Política Nacional de Cuidados – outros países da América Latina até já estão mais avançados nisso –, o grande risco para o qual eu e Guita temos alertado é o do familismo. Isto é, mesmo com uma Política Nacional de Cuidados, ainda delegarmos à família uma grande ou a maior parte dessa tarefa do cuidado com o idoso. As famílias não vão dar conta disso.

Em termos de Saúde Coletiva, começaríamos a ver com mais frequência algo que já acontece: idosos que morrem dentro de casa e só depois de muitos dias são encontrados e uma acentuada saída dos familiares de idosos do mercado de trabalho. Já existem pesquisas que mostram que uma parte da suposta “geração nem-nem”, na verdade, está dentro de casa cuidando de crianças ou de idosos.

Tudo isso porque o Estado transfere para a família suas atribuições, assumindo apenas o papel de Estado-fiador, como nós chamamos.

Ele diz às famílias: vou ser seu fiador para você comprar esses serviços de cuidado no mercado. Contudo, no próprio mercado já há uma restrição na mão de obra de cuidado. No projeto de pesquisa do CEBRAP de que nós participamos, o Who Cares?, foi detectado principalmente pelos estudos da professora Nádya Araújo Guimarães, da FFLCH/USP, que o percentual da população brasileira que compra cuidados no mercado é mínimo. Seja contratando um cuidador que vai na casa da pessoa, seja o residencial para idosos. É ainda um grupo muito pequeno. O restante da população está se virando dentro da família e sem apoio do Estado. É disso que a Política Nacional de Cuidados tem que dar conta.

Na semana passada, o Governo Federal convocou a próxima Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa para 2025. Como esse espaço vai poder contribuir para essa discussão?

Essa convocação é muito importante. A última conferência exclusiva dos temas da pessoa idosa realmente qualitativa que tivemos aconteceu em 2011, no primeiro governo Dilma. De lá pra cá, em 14 anos, o que tivemos foi uma conferência no governo Temer [a 4ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2016] que juntou todo mundo – juventude, pessoa com deficiência, idosos, e por aí vai –, e esse tipo de encontro é muito improdutivo para debater essas questões, que são tão complexas.

Se você pensar que a Conferência trabalhará com o que vai vir das conferências e conselhos municipais e estaduais de idosos, percebe que é um movimento muito grande, democrático e que, como as Conferências da Saúde, é de uma democracia viva e de baixo para cima. Ali sim nós poderemos dar conta da complexidade do tema e de todas as reivindicações que serão apresentadas pelos municípios e estados.

Vai ser de grande importância que haja a participação não só do Ministério dos Direitos Humanos e da Secretaria dos Direitos da Pessoa Idosa, que é quem vai coordenar essa conferência, mas também de outros ministérios. Eu sonho com o dia em que o Ministério da Fazenda vai fazer parte dessas discussões. No Grupo de Trabalho da Política Nacional do Idoso, o Ministério da Fazenda não se prontificou a participar dessas discussões sobre o cuidado, como se não estivéssemos falando exatamente de economia do cuidado.

No caso da França, os ministérios da área econômica se sentaram ao lado da Secretaria da Pessoa Idosa para discutir soluções que deram muitos resultados. Aqui no Brasil, essa discussão está bastante atrasada. Se você não tiver participação do Ministério da Fazenda, já vamos chegar com um problema muito grande. Também é essencial – e agora com certeza vai ter – a participação do Ministério do Desenvolvimento Social e Família e Combate à Fome.

Se não, vamos ficar no âmbito da reivindicação. O que é preciso é ir para a ação – e uma ação conjunta e interministerial.

Hoje, embora você tenha política para idosos em quase todos os ministérios da Esplanada, a atuação não é ordenada, não é pactuada. Isso é histórico. Desde que eu estudo isso, cada ministério cuida apenas de seu pedaço dessa área, visando muito mais resultados eleitorais do que políticas públicas demandadas e efetivas. Esse tem sido um aspecto muito equivocado na política da pessoa idosa no Brasil e atravessa vários governos, infelizmente.

Nas últimas semanas, os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet lançaram, nas redes sociais e na mídia, a ideia de desvincular as aposentadorias do salário mínimo. Como os idosos seriam afetados?

Uma ação como essa aumentaria imensamente o risco de superendividamento para a população idosa, sem dúvida nenhuma. Se mesmo com o aumento real do salário mínimo os idosos não estão conseguindo fazer frente às despesas de cuidado e saúde, imagina se durante anos e anos esse segmento da população mais pobre não tiver aumento real na sua aposentadoria. Aí é que nós vamos para uma situação muito grave de endividamento.

Se o governo quiser fazer uma política de fato efetiva, você tem no Brasil um material imenso hoje. Na pandemia, se falou muito que a ciência não era ouvida, e eu penso que as ciências sociais seguem bastante renegadas. Elas têm oferecido pesquisas muito relevantes que poderiam subsidiar melhores políticas públicas. Não é por falta de dados científicos que não temos uma política para o envelhecimento no Brasil.

Não é por falta de oferecimento de dados científicos que nós não temos uma política estruturada para o envelhecimento no Brasil. A vontade política é que tem que ser maior.

A universidade operacional, por Marilena Chauí

0

Marilena Chauí – A Terra é Redonda – 13/05/2024

A primeira universidade que eu conheci é o que eu chamo de “universidade clássica”, que foi a universidade dos anos 1930 até o começo dos anos 1960. É a universidade de formação, sobretudo, e de reprodução dos seus próprios quadros. No caso da filosofia, isso era nítido, de reproduzir os quadros para o seu próprio trabalho.

A universidade que eu conheci, que eu frequentei, era isso que eu estou chamando de uma universidade clássica e, sob certos aspectos, uma universidade aristocrática, pensada para poucos, mesmo porque não havia um interesse, digamos, profissional, econômico, político, que fosse trazido pela universidade. Então, ela era mesmo um espaço de saber, um espaço de conhecimento e uma coisa aristocrática mesmo. Não é qualquer um que se interessa por isso.

A universidade seguinte que se tentou criar e não foi possível por causa das circunstâncias históricas seria a “universidade crítica”, que é aquela do ano de 1968. É aquela universidade que vai pôr em questão essa universidade clássica e aristocrática, mas vai pôr em questão também a própria sociedade, vai pôr em questão o saber constituído etc. E essa universidade foi a universidade bloqueada pela ditadura.

Então, aí vem a universidade da ditadura, que eu chamo de “universidade funcional”. É a universidade destinada a formar mão de obra para o mercado. E é o instante no qual as empresas começam a investir na universidade, na busca de mão de obra qualificada.

Essa universidade é substituída, na altura dos anos 1980, pelo que eu chamo de “universidade de resultados”. Então, o que é que se quer? Se quer uma universidade que prove para a sociedade que ela é útil. Então, quais são os produtos que essa universidade tem, que são úteis para a sociedade? Então, não é só a questão de formar mão de obra para um mercado dito qualificado, mas é a de mostrar a produção de bens e serviços para a sociedade, não em geral, mas para as camadas mais altas.

Médias e mais altas da sociedade. É essa universidade que termina no correr, a partir dos meados dos anos 1990, e é a que está em vigência até agora, e que é o que eu chamo de “universidade operacional”.

A universidade operacional tem duas características principais. Primeiro, ela não se pensa, como as duas formas anteriores se pensaram a si próprias, como instituições sociais. Portanto, dotadas de regras e de valores internos a ela, formas internas de avaliação e de auto-avaliação e autonomia interna para a sua regulamentação. Essa universidade agora se pensa como uma organização. Theodor Adorno já chamava a atenção para isso.

O que caracteriza uma organização é que ela não é uma instituição social, ela é uma forma de ordenação de trabalhos e tarefas para uma finalidade pré-determinada, cuja finalidade é o sucesso no emprego daquilo que foi obtido. A organização, portanto, está voltada para si própria e para a solução, em curto prazo, de problemas determinados. Ao contrário da instituição, a organização nunca se volta para as questões de universalidade, de amplitude, históricas.

Ela trabalha com aqui e agora com um produto que está sendo preciso fazer. Então, o que essa universidade faz? Essa universidade operacional, organizacional age em função do que se denominou “produtividade”. Mas, o que é que mede a produtividade? É o quanto uma organização realiza, em tempo curto, um objetivo delimitado.

Então, a ideia da ampliação do campo do conhecimento, a ideia da ampliação do campo tecnológico, a ideia da ampliação do acesso, a ideia da ampliação do campo dos conhecimentos desaparece.

Existe um problema aqui que precisa ser resolvido aqui e agora, e é função da organização resolver. Ou seja, uma organização trabalha com estratégias para um bom resultado estipulado de fora dela.

Há um agente externo que determina o que é que ele precisa, e a função da organização é realizar isso. E, terminado esse serviço, terminou o trabalho dela. Ao mesmo tempo, ela precisa de recursos, muitos recursos para fazer isso, que são obtidos de duas maneiras, por meio da noção de produtividade.

As agências de fomento à pesquisa estabelecem, a partir dos critérios organizacionais e empresariais, os critérios pelos quais ela financiará as pesquisas e os cursos. E ela estipula, então, o preço que você vai pagar, quantos artigos você vai publicar, em que lugar você vai publicar, quantas teses, é uma coisa quantitativa e vinculada a uma produtividade ininterrupta, da qual, vamos dizer, a prova mais alucinante é o currículo Lattes. Eu tinha uma amiga que dizia, você cospe na esquina e põe no Lattes, cospe na esquina para você ser produtivo.

Bom, ela faz isso e, de outro lado, ela elimina a noção de formação. O trabalho docente é visto como uma correia de transmissão de conhecimentos já estabelecidos. Ela não é um lugar de interrogação, ela não é um lugar de invenção e ela não é, muito menos, um lugar de inovação.

Ela é, pura e simplesmente, a reprodução, a repetição interminável como uma correia de transmissão do que já é sabido e conhecido. Não tem, portanto, formação. E o que é a pesquisa? A pesquisa é aquilo que responde às exigências particulares das organizações.

Então, a universidade operacional, eu digo, ela opera porque ela não age, não tem ação, tem operação. Uma operação atrás da outra. E ela é completamente inconsciente de si própria.

Ela realiza isto como se isto fosse a lei universal e necessária do mundo do conhecimento. O conhecimento desapareceu. Ora, tudo isso está impregnado dos elementos neoliberais.

A universidade operacional, em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo.

No caso da USP, e em várias universidades, a presença desse mundo organizacional e desse mundo empresarial foram aparecendo de um modo muito diluído. Eu costumo dar um exemplo de uma coisa que ninguém tinha prestado muita atenção e que é, digamos, um dos primeiros sinais na superfície do que vinha acontecendo.

Houve, no começo do século XX, em 2001, uma defesa de doutorado na Escola Politécnica, um dos bastões mais altos da engenharia brasileira. Houve a defesa de uma tese sobre quais os caminhos mais adequados e lucrativos para a distribuição feita pelos caminhões de Coca-Cola. Isso é típico do que uma empresa precisa.

Então, a tese de doutorado estava a serviço de uma necessidade das fábricas da Coca-Cola de terem trajetos racionais para os seus caminhões. Isso foi uma tese de doutorado. Então, isso dá um pouco a medida do que estou colocando. Mas tem uma coisa muito pior, muito mais grave que está acontecendo agora. É o seguinte:

O início da cidade universitária como locus da universidade se dá com a construção e a instalação, lá no bairro Butantã, do IPT, o Instituto de Pesquisa Tecnológica, o que é de uma importância total. As grandes pesquisas que foram feitas para o país e para o estado de São Paulo e para diferentes ramos da vida social foram feitas pelo IPT, com uma capacidade imensa, semelhante ao que acontecia com o Instituto Butantã.

Então, nós temos dois gigantes que transformam o saber científico em resultados importantes para a sociedade. Nós vimos o que se tentou fazer com o Butantã, que descobriu, fez a primeira vacina do Covid. Quem fez foi o Butantã e que não foi levado a sério e que, sobretudo, foi esmagado pelo mundo empresarial.

Mas foi o Butantã que fez.

O IPT foi privatizado. Fez-se uma parceria na qual, na verdade, ele foi cedido para a Google. Ele é propriedade da Google.

E o que é mais deprimente é que se trata de um prédio fulgurante, um prédio histórico. Ele marca um momento da arquitetura e um momento fundacional da USP. Agora a Google colocou na frente do prédio, tudo de plástico, arvorezinhas, florzinhas, criancinhas, gatinhos, cachorrinhos, todo mundo contente, todo mundo sorridente, um mundo feliz, que é o mundo da Google, que destruiu o IPT com a privatização.

Então, nós temos uma universidade que demole a noção de formação, porque faz da docência transmissão de conhecimentos já dados, que destrói a noção de pesquisa, porque a pesquisa não é a busca daquilo que não foi pensado ainda e daquilo que precisa e pode ser pensado, mas ela se torna resolução de problemas empresariais.

O processo de privatização que está ocorrendo, que é característico da universidade operacional, invadiu a Universidade de São Paulo. Eu não sei como é que estão as outras universidades públicas no Brasil, mas isto está ocorrendo na USP. Houve, no início deste ano, um congresso para o qual fui convidada, e evidentemente não compareci, sobre as melhores formas de relação entre a universidade e as empresas.

Então, eu diria, temos a universidade funcional, a universidade de resultados e a universidade operacional. A situação na Universidade só irá se modificar se nós, usando a liberdade em sentido espinosano da palavra, tomarmos pé e fizermos alguma coisa.

No momento ela é um desastre.

*Marilena Chaui é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Em defesa da educação pública, gratuita e democrática (Autêntica).

Texto estabelecido a partir da entrevista concedida a Daniel Pavan, no site A Terra é Redonda.

Devastação climática

0

As mudanças em curso na sociedade internacional impactam sobre todos os indivíduos e comunidades, as transformações econômicas e produtivas estão gerando novas oportunidades e grandes desafios, as mudanças de comportamento estão agitando os mercados de consumo e os gestores de marketing vem queimando a cabeça para compreender as revoluções em curso nos hábitos e nos costumes dos consumidores, com alterações nas formas de pagamentos que estão agitando o mercado financeiro, com o surgimento de moedas digitais, novos meios de pagamentos, novas estruturas bancárias, fintechs, startups e novas formas de investimentos, gerando uma verdadeira revolução nos valores, novos produtos e novas perspectivas.

Neste cenário de constantes transformações, percebemos que mudanças crescentes no Meio Ambiente estão em curso na sociedade internacional, modificando regiões, alterando a vegetação, transformando as formas de sobrevivência, novos produtos e novas formas de cultivo, alterando tradições seculares e exigindo uma revolução para adaptar suas plantações, suas famílias e suas comunidades como forma de sobreviver em decorrência das agitações climáticas.

Especialistas renomados nas mais variadas regiões do mundo destacam que desde a Revolução Industrial o clima vem passando por grandes transformações, a adoção de combustíveis fósseis como o principal motor da economia internacional vem gerando um rastro de desequilíbrios e devastações, elevando a temperatura global, alterando a consistência do solo, exigindo novos investimentos para adaptar as plantações e dispêndios crescentes, muitas vezes inviabilizando seus investimentos e gerando uma verdadeira devastação econômica.

Ao mesmo tempo, percebemos o crescimento do negacionismo em todas as regiões do mundo, grupos políticos e setores econômicos reacionários se utilizam da disseminação de mentiras e inverdades como forma de defender os interesses de setores econômicos que degradam o meio ambiente, criando leis para fragilizar a regulamentação institucional e afrouxando a fiscalização, além de precarizar as estruturas de Estado.

Estamos observando as grandes catástrofes do meio ambiente em todas as regiões do globo, com devastações crescentes, aumento assustador das chuvas, destruição de infraestrutura, queda de pontes e desalojando comunidades inteiras, aumentando a degradação da infraestrutura, como aconteceu com muitas regiões do mundo e, neste momento, estamos vivenciando uma das maiores tragédias ambientais no nosso país, com fortes destruições da infraestrutura e rastros de devastações variadas, gerando comoção na comunidade nacional e internacional, aumentando a solidariedade entre os povos e uma busca frenética para salvar regiões inteiras e recuperando comunidades.

As destruições ambientais devem ser vistas como um dos maiores desafios para a comunidade internacional no século XXI. O respeito e a preservação do meio ambiente deveria ser uma bandeira de todas as nações, evitando agendas que degradam o ambiente e estimulam a mineração ilegal, cujos impactos sobre a sociedade são cada vez mais nítidas e evidentes, gerando desequilíbrios que podem inviabilizar a vida no Planeta Terra num futuro próximo.

Numa sociedade que cultua o individualismo, o narcisismo, o imediatismo e a busca frenética pelo lucro financeiro, uma comunidade que estimula a devastação ambiental e preconiza o “passar a boiada” estamos caminhando a passos largos para a uma devastação generalizada, uma morte anunciada e um namoro crescente da destruição civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, MBA Executivo em Economia e Gestão do Agronegócio, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Os negacionistas estão matando, por Conrado Hubner Mendes

0

No Rio Grande do Sul, o extremismo político encontrou o evento climático extremo

Conrado Hubner Mendes, Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC

Folha de São Paulo, 16/05/2024

Negacionistas não somente rejeitam a verdade. Sequer participam de disputa sincera pela verdade. Não estão interessados. Todo negacionismo é, antes, negação da responsabilidade que a verdade imputa. Estratégia diversionista, esconde causalidades entre ações e consequências. E rejeita a norma jurídica ou moral que sanciona o comportamento danoso.

Não se equiparam aos sofistas ou aos céticos, nem aos ateus ou agnósticos. Estão mais próximos ao que Harry Frankfurt chamou de “bullshiters”. Diferente do mentiroso e do hipócrita, que conhecem a verdade e sabem que mentem, o “bullshiter” tem indiferença à verdade e joga outro jogo. Sua empreitada não é intelectual, mas política e sectária.

Muitos negacionismos contaminam a conjuntura brasileira: negacionismo do golpe, da ditadura, do racismo, da homofobia, dos conflitos de interesses da magistocracia, da corrupção e do autoritarismo; dos efeitos da desigualdade e da boçalidade pública; da correlação entre liberação de armas e aumento de homicídios, parecido com o da causalidade entre cigarro e câncer; do dever constitucional de manter o meio ambiente equilibrado e do direito de gerações presentes e futuras.

Não interessa ao negacionista cultivar o hábito intelectual da dúvida nem a atitude política da desconfiança. Quer apenas destruir inimigos com a melhor arma em mãos. É uma técnica sintonizada ao extremismo político, hoje armado de canhões desregulados de desinformação com alta precisão algorítmica. Financiar a fabricação de negacionismo com cara de ciência é comum a indústrias que impactam a saúde e o meio ambiente.

O Rio Grande do Sul sedia nesse momento o encontro do extremismo político com a desigualdade extrema e o evento climático extremo. Ainda não conhecemos todos os danos que uma reunião explosiva desse calibre produz, mas já somos capazes de perceber a multiplicação desnecessária e discriminatória de mortes, sofrimento e empobrecimento material.

Negacionistas têm tentado corroer o esforço da sociedade e do Estado brasileiro em enfrentar as consequências da tragédia. Sua produção torrencial de notícia falsa se dirige a bloquear e deslegitimar iniciativas estatais de ajuda aos atingidos.

Em paralelo, a solidariedade social, traduzida na dedicação voluntária de indivíduos e organizações, em colaboração com esforços públicos, é tumultuada por oportunistas que, mais do que participar, tentam individualizar os méritos do heroísmo coletivo em redes sociais.

Nesse momento, o negacionista luta dois combates: um contra o Estado, cujas instituições precisam continuar a ser evisceradas de capacidade de compreender a estrutura do desastre, de preveni-lo e de responder a ele; outra contra o conhecimento que demonstra, justamente, a relação de causalidade entre o que o negacionista faz e a consequência para a coletividade.

A tragédia precisa ser desvinculada da ação negacionista. O negacionista precisa ser exonerado de sua responsabilidade.

Exemplos recentes da responsabilidade negacionista: o governo do RS ignorou plano de prevenção a desastres desde 2017; flexibilizou regras sobre barragens em áreas de preservação permanente; enfraqueceu o código florestal; o Congresso Nacional vem desmontando a proteção ambiental nos últimos anos e tenta aprovar o “pacote da destruição” com mais de 20 projetos contra o meio ambiente. O governo federal não dá sinais de ter a causa da proteção ambiental como prioridade.

Ainda não conseguimos construir ferramentas de responsabilização de organizações, empresas e atores políticos que, desinteressados nas consequências humanas e econômicas do que fazem, e ansiosos por ganhos de curto prazo, contribuem para o desastre. Nem conseguimos construir instituições que traduzam o compromisso constitucional da precaução em prática real.

Enquanto isso, os negacionistas estão matando e vão continuar a matar.

A quem interessa que a Saúde seja luxo? por Ladislau Dowbor

0

Há vastos exemplos de que sistemas públicos são mais eficientes. Mas modelo hiperfinanceirizado dos EUA se espalha pelo mundo, com remédios caríssimos, marketing trapaceiro e seguros abusivos. Resultado: mortes, sofrimento e dívidas

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 13/05/2024

A indústria de Saúde tornou-se uma área-chave da atividade econômica. Está sendo rapidamente privatizada, com resultados profundamente negativos, exceto para os poucos felizardos no topo da pirâmide de riqueza. O mercado livre e irrestrito pode funcionar melhor para a escolha de sapatos. Mas para a Saúde, é um desastre. Não é uma questão de ideologia, mas de observar exemplos daquilo que funciona melhor.
(Ladislau Dowbor)

Longe de fornecer Saúde Universal, o legado dos aportes das instituições de financiamento ao desenvolvimento em saúde privada com fins lucrativos tem mais chance de resultar em uma crescente concentração de riqueza e poder nas mãos de um pequeno número de homens escandalosamente ricos.¹

As simplificações ideológicas na economia são uma maldição, e são baseadas não apenas na ignorância, mas sobretudo no interesse financeiro. O Paxlovid, um tratamento recente da Pfizer para covid, com 30 pílulas, está sendo vendido por US$ 1.390 – no entanto, pesquisadores de Harvard descobriram que o custo de produção para o tratamento completo é de cerca de US$ 13. Até onde pode ir esse despropósito? A questão-chave aqui é que as decisões são tomadas não com base em quanto se pode melhorar a Saúde, mas quanto dinheiro é possível extrair, ainda que reduza drasticamente o acesso. Para os algoritmos que calculam a otimização de marketing, é óbvio que, nas comunidades abastadas, os clientes não verão muita diferença entre pagar cem ou mil dólares, ao sentirem que sua saúde está ameaçada – eles são muito sensíveis – e pagarão qualquer preço. Os algoritmos refletirão a lógica que incorporaram: maximizar lucros. A ideologia confere o sentimento de justiça: acumular dinheiro é correto e moral neste esporte.

Poderiam justificar com a alegação de que tiveram que gastar muito em pesquisa. Isso é parcialmente verdadeiro, claro, e válido para várias das grandes corporações farmacêuticas. Mas a verdade é que o enorme progresso feito pela humanidade em pesquisa em Saúde é principalmente herdado dos avanços científicos amplos que nos deram o entendimento do DNA, a microscopia eletrônica, bioinformática, IA, nanotecnologia e tantas transformações estruturais nas bases tecnológicas da pesquisa. Quando uma corporação oferece um produto final, pelo qual a população terá que pagar, mas que a maior parte dos insumos de capacidade de pesquisa usados para produzi-lo foi herdada e paga por nossos impostos, isso representa, como Gar Alperovitz e Lew Daly chamaram, “merecimentos injustos”.

O esquema OxyContin nos revela outra dimensão, na qual causar mortes em grande escala é irrelevante, desde que o produto se pague. A crise dos opioides “evoluiu, começando com pílulas sob prescrição médica e terminando com o fentanil sendo produzido ilicitamente, além de outras drogas que juntas já foram responsáveis por 800 mil vidas americanas nos últimos 25 anos, com previsões de mais um milhão de mortes até o final da década”. As famílias Sackler, Purdue e Johnson & Johnson foram levadas à justiça, mas foram penalizadas com apenas algumas multas: “Os reguladores federais e promotores não foram capazes de aproveitar o momento. Mais uma vez, as grandes farmacêuticas escaparam. Os promotores negociaram um acordo no qual a Purdue pagou uma grande multa, mas foi autorizada a continuar vendendo OxyContin praticamente sem restrições. Foi feito apenas um acordo para que seus executivos se declarassem culpados de contravenções e evitassem a prisão… Os EUA ainda não conseguem aprender as lições de uma catástrofe unicamente norte-americana, são incapazes de romper a influência do dinheiro de grandes corporações sobre a medicina, a regulamentação de drogas e a responsabilidade política”.²

Podemos encontrar milhares de exemplos de fraudes, marketing mentiroso e outras ilegalidades. É possível encontrá-los em uma rápida pesquisa na internet, colocando o nome de qualquer grande corporação farmacêutica junto com “acordos”. A lógica é simples: trata-se de uma área diferente de responsabilidade legal, na qual os culpados pagam somas enormes, mas que são como troco de bala em comparação com seus lucros. Assim, seus donos se livram não apenas da prisão, mas também de admitir culpa. A Wikipedia também fornece uma “lista dos maiores acordos farmacêuticos”, cada um na casa dos bilhões de dólares, por violações da Lei de Reivindicações Falsas [False Claims Act é uma lei estadunidense que pune entidades ou indivíduos que defraudam programas governamentais] e similares. Tudo é feito com exércitos de advogados e especialistas de primeira linha em negócios, finanças e até mesmo em drogas. Não é uma questão de não saberem o que estão fazendo. E eles interrompem seu programa de TV com uma garota simpática dizendo que esse medicamento será maravilhoso para você. O consumidor paga por esse comercial, cujo custo está incluído no preço dos produtos. Cerca de 27% do preço de um produto da Johnson & Johnson são para custos de marketing, não para pesquisa.

Esses poucos exemplos se referem à Big Pharma, mas uma lógica similar se aplica a tantos outros serviços de saúde privatizados. A questão que levantamos aqui é: a privatização é compatível com a garantia de vidas saudáveis, ou apenas com os lucros provenientes de serviços de saúde? O problema básico é que um sistema de saúde privatizado, com suporte de regulação pública, que é o modelo dos EUA, é um fracasso sistêmico. É incompetente e ineficiente. No Brasil, como nos EUA e outros países, os oligipólios de saúde assumiram as instituições de regulação. Alega-se frequentemente que a “autorregulação” é suficiente. Mas é um desastre.

Os gastos com Saúde nos EUA, em 2019, foram de US$ 10.921 per capita, e a expectativa de vida de 77,3 anos. Trata-se do sistema basicamente privatizado e não regulamentado que vimos. No Canadá, onde a Saúde é basicamente pública, gratuita e com acesso universal, o custo per capita foi de US$ 5.048, menos da metade, e a expectativa de vida de 81,7 anos. A lógica não é complexa: nos países onde os sistemas são pensados para garantir a saúde da população de fato, as políticas se concentram, entre outros, na saúde preventiva, na água limpa, no controle de emissões, em vacinas, em cidades mais saudáveis. A preocupação central não está em vender o máximo possível de medicamentos e serviços de cura. Trata-se de saúde, não de negócios.

Este estudo do Banco Mundial é esclarecedor. No Reino Unido, os números correspondentes são US$ 4.313 de gasto per capita e 80,9 anos de expectativa de vida, apesar de tantos ataques ao NHS [Sistema Nacional de Saúde]. A Dinamarca é outro caso interessante onde há serviço de saúde basicamente público: US$ 6.003 e 82 anos. Na França, US$ 4.492 e 82 anos. Em outro nível, Cuba é um exemplo interessante, com gastos de US$ 1.032 e 79 anos, superior aos 77 anos dos EUA. Para o Brasil, os números são US$ 853, e uma expectativa de vida de 76 anos, graças, em grande medida, ao Sistema Único de Saúde. Os grupos de seguro de saúde brasileiros, alguns deles propriedade de corporações de saúde privadas dos EUA como United Health, ou da indústria de gestão de ativos como BlackRock, são um exemplo impressionante de ineficiência sistêmica. Eles drenam recursos financeiros de cerca de 50 milhões de pessoas. Mas quando você se aposentar, não poderá mais pagar por eles, na idade em que mais precisaria.

Os serviços de saúde privados tornaram-se uma enorme arena financeira. No geral, os serviços de saúde representam quase 20% do PIB nos EUA – é sua maior indústria, com resultados dramaticamente pobres, a menos que você esteja no clube dos ricos com acesso a ilhas de serviços de saúde privados de luxo. “Enquanto isso, um terço dos americanos sem seguro não pode pagar seus medicamentos, e quase metade dos que não têm cobertura solicitou aos médicos opções mais baratas. A presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi (Democrata da Califórnia), apresentou na semana passada o plano de seu partido para permitir que o governo participe da definição dos preços dos medicamentos prescritos. O projeto foi nomeado de ‘Ato para Reduzir Agora os Custos dos Medicamentos’.”³ Eles ainda estão lutando.

O que é impressionante é que os EUA oferecem o modelo mais ineficiente e caro, mas é ele que está sendo gradualmente expandido em muitos países. Porque é lucrativo, mesmo que deixe a maior parte da população em situações dramáticas. A razão é que faz parte de um sistema financeiro integrado global. Eu pago a uma faxineira, um dia por semana, para limpar minha casa em São Paulo. Ela tem problemas de saúde, então entrou em um grupo de seguro saúde privado, o Notre Dame. Verifiquei dados sobre essa corporação e encontrei, entre seus investidores, a BlackRock. Assim, parte do que pago a uma pessoa modesta no Brasil é transferida para acionistas internacionais, em frações de segundo, como dinheiro virtual. Esta capilaridade de drenos financeiros com dinheiro virtual funciona em escala mundial. Precisamos de saúde, e em situações desesperadoras pagamos qualquer coisa, e nos endividamos – ou adiamos a busca por cuidados até que as coisas piorem, e fiquem mais caras. É um sistema de gestão globalmente falho.
Há uma óbvia dimensão ética. Tornar o acesso à saúde mais difícil, para ganhar mais dinheiro, é simplesmente imoral. E as empresas ganham mais dinheiro quando atende aos mais ricos. Que haja tanta desgraça em um país abastado como os EUA é algo simplesmente absurdo. O que os gigantes da gestão de ativos sabem sobre serviços de saúde, exceto em relação a quanto dinheiro podem extrair? Mas a dimensão econômica é igualmente absurda. E trata-se de economia básica: com muitos produtores e uma riqueza de escolhas, a concorrência pode estimular melhores produtos e preços. Não é o que acontece no caso do sistema de saúde.

Um amigo médico resumiu de forma clara para mim: ele trabalha em um hospital privado e precisa cumprir cotas de procedimentos, que o hospital cobrará do seguro saúde, que por sua vez dificulta a aprovação de procedimentos, exigindo que se avalie caso a caso. O grupo de seguro de saúde cobrará tanto quanto possível dos clientes. Ele geralmente está ligado a uma grande gestora de ativos, e o retorno para os investidores é central. No triângulo entre o médico, o hospital e os seguros de saúde, os interesses do paciente vêm por último. É caro e ineficiente – e aumenta o PIB. Mas o que precisamos é de mais saúde, serviços melhores e mais baratos. Quando você aumenta custos e preços, você aumenta o PIB, mas da maneira errada.

A ideia básica que estou tentando transmitir aqui é que algumas atividades funcionam claramente melhor em um ambiente de mercado livre, como produzir bicicletas, tomates ou abrir um bar. Mas colocar nossa saúde nas mãos de corporações financeiras em um ambiente de maximização de lucros é um tributo à incompetência. E as mortes e sofrimento resultantes são dramáticos, sem falar no sentimento permanente de insegurança, para nós e para nossas famílias. É apenas uma questão de seguir os exemplos comprovados do que funciona melhor: acesso público universal gratuito. Quanto tempo mais os norte-americanos continuarão cruzando a fronteira para o Canadá?

Ladislau Dowbor, Economista e professor titular de pós graduação.

Ricardo Antunes analisa o inferno da precarização

0

Dicionário Marielle Franco mostra: hoje, o “andar de baixo” divide-se entre o temor do desemprego e o fardo da precarização. É hora de retomar uma pauta do século XIX: a redução da jornada de trabalho, como forma de gerar empregos e mitigar a exploração…

Ricardo Antunes – OUTRAS PALAVRAS – 03/05/2024

Nos últimos anos, diante de uma crise internacional do trabalho e do capital, a classe trabalhadora brasileira sofreu graves retaliações, como parte do processo de desindustrialização e da diminuição das garantias de direitos sociais sob a racionalidade neoliberal. Este impacto vem trazendo graves consequências, como o aumento da precarização das relações de trabalho, razão pela qual a população brasileira vem sofrendo com a informalidade, a uberização e a retirada de direitos trabalhistas. Para piorar este quadro, passamos pelos duros anos da pandemia da covid-19, o que fez com que as relações de trabalho ficassem ainda mais precarizadas. Além do aumento da fome, tivemos ainda o aumento do desemprego, o que levou muitos trabalhadores à informalidade chegando a marca de quase 39 milhões de brasileiros no mercado informal apenas em 2023, com dados revelados pelo IBGE.

Sabemos que tal crise, relacionada aos direitos trabalhistas aqui no Brasil, não se inicia hoje. A classe trabalhadora brasileira, em toda a sua diversidade e interseccionalidade, tem lutado há décadas por reconhecimento e redistribuição, tanto em seu trabalho produtivo quanto reprodutivo. A conquista dos direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil, por exemplo, aconteceu de forma parcelada. Por um longo período direitos conquistados por outras categorias foram negados às trabalhadoras domésticas e até hoje a maior parte da categoria trabalha na informalidade e de forma precarizada. Inclusive, atualmente, as relações entre produção e reprodução têm sido cada vez mais conflituosas. Em 2017, por exemplo, protagonizamos grandes mobilizações nacionais contra a Reforma Trabalhista, apesar da criação da lei nº 13.467, responsável pelas mudanças bruscas nas leis que protegiam os(as) trabalhadores(as) formais brasileiros(as). Desde então, além do aumento da quantidade de trabalhadores(as) sem carteira assinada, as condições de trabalho passaram a ser mais instáveis, fortalecendo, assim, um novo modelo de contrato de trabalho intermitente, sem o pagamento de horas in itinere e de horas extras (em detrimento do banco de horas) e sem a consideração em relação ao tempo de mobilidade para o trabalho e ao tempo de almoço durante a jornada, por exemplo.

Além disso, passados alguns anos desde as reformas, em 2024 o debate sobre a uberização do trabalho volta à tona, e ganha cada vez mais o noticiário (e as ruas). Trabalhadores(as) de aplicativo vêm protestando quase que semanalmente nas avenidas das capitais em crítica às propostas governamentais e empresariais postas à mesa, que não garantem qualquer direito ao trabalhador(a) e fortalecem o papel da Indústria 4.0 – uma nova fase de impulsão capitalista marcada por uma enorme reestruturação produtiva permanente do capital. De acordo com matéria publicada no Brasil de Fato, em julho de 2023, “atrás do aplicativo (app) de transporte da norte-americana Uber, vieram os de comida, de entregas e de compras. Hoje existem cerca de 1,27 milhão de pessoas trabalhando como motoristas e outras 385 mil como entregadores para aplicativos no Brasil”.

Os dados compartilhados por esta mesma matéria revelam ainda o perfil destes(as) trabalhadores(as), levando em conta questões como raça, renda e tempo de jornada, com base em informações cedidas pelos próprios apps – 99, Uber, iFood, Zé Delivery e Amazon: “Entre os motoristas, 95% são homens, dos quais 62% declaram-se negros ou pardos, e têm em média 39 anos. Já entre os entregadores, 97% são homens, dos quais 68% se declaram negros ou pardos, com idade média de 33 anos”. O dado é de uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia.

A informalidade se soma, neste caso, ao racismo estruturado nas relações sociais e de trabalho no Brasil. Muitos(as) destes(as) trabalhadores(as) acabam sendo também criminalizados, marginalizados e perseguidos, seja dentro dos elevadores dos prédios em bairros nobres ou nas ruas, quando em busca da garantia do seu ganho de vida. A realidade das condições de trabalho informal e, em especial, dos(as) trabalhadores(as) da rua, como os ambulantes e camelôs, é também, há muito, degradante – ainda mais considerando, por exemplo, a cidade turística e super populosa do Rio de Janeiro. Diante das violações de direitos agravadas nos últimos anos, o Movimento Unidos do Camelôs (Muca), do Rio de Janeiro, trava há décadas uma luta contra a Guarda Municipal do Rio de Janeiro. Ou seja, não basta sofrer com retrocessos nas leis, ainda sofrem com a criminalização do próprio meio de trabalho pelas ruas da cidade.

O mundo do trabalho tem passado por constantes transformações tecnológicas, mas há cada vez mais retrocessos nas relações e nas garantias de direitos, sendo um deles os direitos trabalhistas. A população brasileira, mais uma vez, tem suas camadas sociais empobrecidas no meio desse jogo entre governos e empresas que visam cada vez mais o lucro – e que negociam direitos sem mesmo ter um sindicato ou organização com representação trabalhistas nas mesas de negociações, o que é o caso dos motoristas de Uber. Dentro disso, infelizmente, sabemos quem são as pessoas mais atingidas no nosso país, são elas: negras, pardas, não brancas, pobres, faveladas e periféricas.

Para refletirmos sobre esses desafios, considerando o papel político da classe trabalhadora, destacamos a entrevista com o sociólogo Ricardo Antunes, realizada pela EPSJV/Fiocruz, em abril de 2024, e publicada como verbete no Dicionário de Favelas Marielle Franco. (Introdução: Gizele Martins e Clara Polycarpo)

A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer

Ricardo Antunes em entrevista a equipe da EPSJV/Fiocruz

Ricardo Antunes, sociólogo marxista e um dos mais influentes pensadores do país no tema mundo do trabalho, atualmente é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e leciona disciplinas como Sociologia do Trabalho e Sociologia de Karl Marx. Antunes é também um dos mais importantes teóricos da obra marxiana da América Latina. Nesta entrevista, realizada e originalmente publicada na Revista Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em abril de 2024, Antunes avalia a realidade atual do mundo do trabalho no Brasil e no mundo nesta entrevista alusiva ao Dia Internacional dos Trabalhadores.

Já se passaram cerca de 140 anos desde a greve em Chicago que originou a celebração do 1º de maio demandava a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias. Isto continua a ser uma demanda?

A jornada de trabalho atualmente é um tema de gravidade relevante para aqueles setores que mais se expandem no mundo do trabalho: o do trabalho intermitente, o trabalho em plataforma, o trabalho uberizado ou o trabalho no setor de serviços. Nestes setores, que reforço, são os que mais se expandem, a jornada é ilimitada.

Veja que o Projeto de Lei Complementar do governo Lula – o PLP 12/2024 –, pasmem, sugere uma jornada limite por aplicativo de 12 horas. Imagine um trabalhador ou trabalhadora que opte por trabalhar em dois aplicativos. Em tese, num cálculo abstrato, eles podem chegar a 24 horas de jornada por dia! Se trabalhassem seis, sete horas, por aplicativo, chegariam facilmente a uma jornada de 13, 14 horas, como as nossas pesquisas têm mostrado. Então, a questão da jornada de trabalho hoje tem uma importância, de certo modo, semelhante a do século 18 e 19. Por quê?

Porque se a moda pega, ou se a porteira for aberta, nós não mais teremos jornadas de trabalho.

O que singulariza o trabalho intermitente em plataformas ou assemelhados é que se trabalha quando há trabalho disponível, e não se trabalha quando não há trabalho, e o tempo de espera não é contabilizado em termo de jornada. Trabalhamos este tema em nossos livros Icebergs à Deriva e Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. Jornadas de 12, 13, 14 horas, no Brasil e em vários países do mundo, não são mais a exceção, vêm se tornando a regra, especialmente se se contabilizar o tempo de espera. Para que todo mundo entenda bem: num shopping center, por exemplo, se um trabalhador que está numa loja comercial não atende clientes, ele está recebendo.

Um motorista ou entregador, em sua jornada diária, se não tem clientes mas está disponível para o trabalho, esse tempo não é contabilizado. Isto é uma questão crucial.

Também não se considera o tempo médio que se gasta em deslocamento, correto? Muitos trabalhadores saem de casa cinco, seis horas da manhã para voltar às oito da noite…

Pesquisas de Brasília mostram, por exemplo, que um trabalhador de moto que trabalha naquele cinturão ao lado de Brasília já leva 40 minutos – de moto! – para chegar ao trabalho no centro de Brasília. Imagine quando esse deslocamento não é de moto, mas de carro ou de transporte público.

A redução da jornada de trabalho para abertura de novas vagas deveria se manter como pauta, então?

Este é um desdobramento crucial desse tema, da jornada de trabalho. Atualmente há no mundo centenas de milhões de pessoas que trabalham 12, 14, 16, 18 horas por dia. E, ao mesmo tempo, temos centenas de milhões de pessoas que não trabalham nenhuma hora por semana, porque não têm nenhum trabalho. Seria muito elementar dizer: ‘vamos fazer uma média, trabalhemos seis horas por dia, todos e todas, de modo que ninguém fique sem trabalho’.

Ou seja, a redução da jornada de trabalho é um tema crucial hoje. E por que ele não entra na pauta? Porque as grandes corporações não aceitam essa conversa.

Elas querem extrair ao máximo tudo que a força de trabalho pode oferecer, num processo de exploração, expropriação e espoliação.

Como a demanda pela redução da jornada de trabalho, prévia ao próprio estabelecimento do Dia Internacional dos Trabalhadores, perdeu seu alcance mesmo a realidade atual sendo esta que você descreve?

São muitos os elementos que explicam isto. Primeiro, há hoje no mundo inteiro, com raras exceções, um desemprego estrutural, que não é exclusivo do Sul global, mas é grande e forte nos países capitalistas do centro, como se constata em tantos setores que desapareceram, indústrias que foram fechadas e no trabalho imigrante, que é recorrentemente buscado porque é aquele trabalho em que vale tudo e passa ao largo da legislação protetora do trabalho.

O segundo elemento: o maior temor da humanidade, hoje, é o desemprego. Não é que houve uma perda de consciência, por descuido dos movimentos organizados de trabalhadores. Se eu não tenho trabalho nenhum e o que me oferecem é uma jornada ilimitada, eu aceito, porque não tenho trabalho nenhum.

Neste novo tipo de emprego que não é emprego, de trabalho que não é considerado trabalho, nessa nova modalidade de prestação de serviço – que também é equivocada porque não é serviço –, as empresas querem esconder a condição de assalariamento, para, a partir da ideia de que são empreendedores ou colaboradores, obliterar as condições de assalariamento. Desse modo, você pode burlar a legislação social protetora do trabalho.

Então, em síntese, nós estamos vivendo uma crise estrutural, não estamos vivendo uma crise conjuntural. A crise é da humanidade, da civilização.

A lógica destrutiva capitalista levou a natureza a esse nível de destruição e o trabalho a esse nível de devastação, trouxe xenofobia, racismo, o neofascismo. Tudo isso se expande.

Este cenário faz com que eu só possa defender e lutar por um trabalho, ainda que ele não seja portador de direito nenhum. Porque se eu não tiver este, eu não tenho nada.

Um cenário de Estado de Bem-Estar Social parece cada dia mais distante. Os sindicatos têm responsabilidade nisto?

Os sindicatos se acomodaram. Isto vale também para o cenário europeu. Quando a gente fala em bem-estar social hoje é preciso tomar muito cuidado. Porque estes direitos de bem-estar não chegam aos imigrantes.

Trabalhadores imigrantes não têm direito algum. São tratados quase como párias sociais. Esta dificuldade faz com que a jornada não ganhe o estatuto da questão crucial para a classe trabalhadora, em sentido amplo. Porque a questão crucial é ter emprego para sobreviver. Eu só vou lutar por uma jornada melhor depois que eu tiver emprego.

Os operários ingleses dos séculos 18 e 19 passaram a lutar fortemente pela redução da jornada de trabalho, uma luta de muitas décadas, quando o emprego lhes estava garantido porque o mundo industrial estava em expansão. Hoje nós vivemos um mundo industrial, de agroindústria e de serviços em crise. Financeirizado. Nele, a prioridade é lutar pelo emprego, pela sobrevivência.

Feito isso, vêm a segunda luta, a terceira luta, e as lutas retornam.

A migração de plantas produtivas e a entrada de novos contingentes de mão de obra colaboram de que forma para este cenário? Qual o impacto de você ter um bilhão de trabalhadores chineses, por exemplo, sendo incorporados ao mercado de trabalho de uma economia globalizada?

O capitalismo do nosso tempo é muito diferente daquele que tínhamos nos anos 1980 e mesmo 1990.

Por quê? Além de toda a explosão tecnológica e do aguçamento da crise estrutural do capital, que só cresce destruindo a natureza, o trabalho e o gênero humano, a grande maquinofatura do mundo hoje está na China. Isso trouxe desindustrialização dos países europeus e de vários países do Sul global. As grandes empresas capitalistas estão na China. A Volkswagen está na China, a Fiat está na China, a Mercedes-Benz está na China. Todas elas migraram.

A China se transformou, de uma revolução socialista autárquica e fechada em si mesma, que possui tudo aquilo que ela precisa para sobreviver, como era o projeto de Mao Tsé-Tung, em uma China pós-maoista em que há criação do socialismo de mercado, que para mim é um eufemismo para defender o capitalismo. O nível de exploração do trabalho na China dez anos atrás era brutal, e foi preciso ocorrerem muitas greves do operariado chinês para que fosse reduzida esta brutalidade. Há o sistema chinês que chamam de 996, no qual você trabalha das 9h da manhã às 9h da noite, seis dias por semana. É brutal, é uma superexploração do trabalho. Mas isso mudou a máquina.

Além disso, o capitalismo hoje se sustenta numa economia financeirizada, que impulsiona as taxas de lucro no setor de serviços.

Houve, portanto, a transformação capitalista dos serviços. De públicos, eles se tornaram privados. Ou seja, nós temos hoje um ramo em expansão da indústria no mundo inteiro: a indústria de serviços. Porque a indústria de transformação, está na China abocanhou. Isto é uma mudança profunda no cenário mundial.

O setor de serviços engloba diferentes categorias, dos trabalhadores de aplicativos até médicos, por exemplo. Todos se enxergam como trabalhadores?

Não. Se você falar, em uma greve de professores universitários, que eles são classe trabalhadora, vai ter professor que vai ficar nervoso, vai se incomodar. Isso vale para médico, advogado, o segmento assalariado das classes médias. Mesmo que as classes médias estejam descendo um elevador em direção à proletarização na vida real, elas sonham com o elevador que as
vai levar ao céu. Elas sonham com o paraíso, ainda que estejam derrapando para o inferno.

O setor que mais se expande é o proletariado de serviços: call center, indústria hoteleira, fast food, trabalhadores em plataformas… Estes são proletários, o que não quer dizer que tenham esta consciência. A classe trabalhadora da Inglaterra de 1730 também não tinha consciência de sua condição operária. Muitos estavam saindo do mundo servil, feudal, rural.

A consciência de classe é um fenômeno muito complexo e difícil. Sabe por quê? É nele que o ideário capitalista e que o neoliberalismo vêm operando há mais ou menos 50 anos, desde a década de 1970.

Isto explica por que trabalhadores que hoje trabalham como entregadores, de motos e até mesmo bicicletas alugadas, se jogam na ideologia do empreendedorismo.

As plataformas são tão impressionantes que quem entra com o carro? O trabalhador. Quem entra com a moto? O trabalhador. Quem entra com a bicicleta? O trabalhador. Quem entra com o celular? O trabalhador. Ou seja, a responsabilidade de prover o instrumental de trabalho foi transferida para o trabalhador.

O impacto da ideologia neoliberal continua muito forte, apesar da crescente dificuldade para subsistir?

Quando eu trabalhei na universidade inglesa, em Sunderland, entre 1997 e 1998, convidado pelo meu amigo István Mészáros, preparava meu livro para o concurso de professor titular, que foi Os
Sentidos do Trabalho. Nele eu lembrava que a Margaret Thatcher, em seus primeiros discursos após ganhar as eleições, dizia querer que cada indivíduo do Reino Unido sonhasse em ser um indivíduo possessivo, um indivíduo que fosse proprietário de si mesmo. Esse discurso se perpetuou no governo John Major e, no período em que lá estive, continuava presente durante a gestão de Tony Blair.

O representante da chamada “Terceira Via”…

Sim, a Margaret Tatcher dizia o seguinte sobre ele: “Esse menino é um menino de futuro”. Os ingleses críticos chamavam o Tony Blair de ‘Tory’ Blair, porque ‘tory’ é o nome do partido conservador inglês. Eu estava lendo os discursos que ela tinha feito uma década antes (anos 1980), e naquela época (1997-998) eu dizia: ‘Não é possível!’. E a verdade é que isto foi possível e entrou no mundo todo. Nós estamos vivendo uma era de desencanto do mundo. Estamos vivendo uma era de derrotas muito duras. O projeto socialista russo e soviético terminou tragicamente.

Em 2008, 2009, nós estávamos animados aqui com a revolta da Tunísia, Occupy Wall Street, vitória das esquerdas na Grécia, depois revolta em Portugal… Nada disso avançou.

A possibilidade de uma ‘Internacional’ hoje é mais factível para a extrema direita do que para a esquerda?

A direita está se organizando globalmente. O [Jair] Bolsonaro é uma peça de um cenário que tem o [Donald] Trump, o [Viktor] Orbán na Hungria, o [Matteo] Salvini e a [Giorgia] Meloni na Itália, que tem crescimento em Portugal, na Inglaterra, o ressurgimento da extrema direita na Alemanha, na Suíça… Nós temos um movimento, digamos, favorável ao ressurgimento do neofascismo, do neonazismo. Muito forte, aliás. Tudo isso dificulta a ação da classe trabalhadora. Quando tudo vai mal na Terra, a única esperança é que exista um reino fora da Terra, em que as coisas funcionam. Daí a crença na teologia da prosperidade.

Esta teologia parece crescer junto ao ideal neoliberal. É como se ela fosse a tradução litúrgica de um novo ideário individualista?

Exatamente. Está certo dizer ‘eu vou resolver o meu problema’. Eu tenho que abraçar uma religião na qual a solidariedade é o que menos conta. Eu tenho é que fazer a coisa certa e fazer a coisa certa significa começar a enriquecer na Terra. Nem todos os evangélicos são de extrema direita, mas há uma forte extrema direita majoritária entre eles, que está nos Estados Unidos, em países da Europa e aqui no Brasil também. E está entrando na Argentina.

Já se fala em uma quinta revolução industrial, na qual os seres humanos e a inteligência artificial precisariam aumentar sua colaboração em prol dos objetivos da empresa. Como você avalia este tipo de discurso?

Eu entrei há uns meses atrás no SAC [Serviço de Atendimento ao Cliente] do site da OpenAI, que é a criadora do ChatGPT 4. Eu ainda não sei se continua lá em seu site, mas ela dizia que era inimaginável o número de trabalhos que iriam desaparecer com a Inteligência Artificial. Eu quase caí de costas. Inteligência artificial, robotização, automatização, internet das coisas, tudo isso significa o trabalho vivo desaparecer e o trabalho morto não ser mais uma máquina, algo dotado de materialidade, mas algo informacional, digital e algorítmico. Esta nova ‘máquina’ comanda você.

Não resta mais a opção ‘ludista’, de se voltar contra o avanço da tecnologia, correto? Não há nenhuma máquina para se quebrar…

É, se você quiser quebrar o algoritmo, você não o vê. Eu estudo esse tema há dez anos e nunca vi o algoritmo. Entendeu o tamanho da complexidade? Essas mudanças exploram o trabalho no mundo inteiro.

É o trabalho que subsidia as informações para a Inteligência Artificial. Eu chamei isso de privilégio da servidão de escravidão digital.

Nós estamos adentrando um mundo onde somos escravos digitais, em várias dimensões e em várias amplitudes. O resultado disso é que o cronômetro do Taylor [Frederick Taylor andava por sua fábrica com um cronômetro com o qual media a relação entre o trabalho realizado e o volume de recursos utilizados através do tempo] não faz mais sentido, porque ele foi substituído pelas metas que são interiorizadas em nossa subjetividade. Todos os entregadores e motoristas que eu entrevistei dizem: ‘eu só paro de trabalhar quando cumpro minha meta’.

O que leva a lista de doenças relacionadas ao trabalho passar a considerar o esgotamento pela síndrome de burnout, ansiedade, depressão…

Qual é o ideário empresarial? Termos resiliência e sinergia. Bom, isto é uma empulhação, é a adulteração completa do léxico. Eu já tratei disso em vários estudos: você querer ser resiliente e trabalhar 48 horas num dia, mesmo ele só tendo 24 horas… Você ter que dar mais do que pode, a resiliência, gera o burnout, o estresse, a depressão e até mesmo o suicídio.

Este é o cenário, e a síntese é: a resiliência é a porta de entrada do burnout. Chega uma hora em que eu apago, e daí eu tenho que ir para um psiquiatra, um médico.

Por quê? Porque eu não dou conta mais deste inferno.

Como enfrentar isto e não ficar paralisado diante dessa realidade?

A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer. Ela adquire o sentido coletivo na experiência. O chamado Breque dos Apps, em plena pandemia, entrou para a história da luta dos trabalhadores uberizados do Brasil, como várias outras que ocorreram na Inglaterra, na França, na Itália, nos Estados Unidos, na Índia, na China, na África do Sul.

Nós estamos lançando agora, daqui a alguns dias, um livro que vai se chamar Trabalho em plataformas digitais – Regulamentação ou desregulamentação?. Enquanto termino a obra, eu olho para o exemplo do que ocorre na Europa. O Parlamento Europeu aprovou na semana passada a diretiva da União Europeia de que nós precisamos ter a presunção de que todos os trabalhadores das plataformas são empregados e não autônomos. Esta é a presunção. Tem que valer para todo trabalho. ‘Ah, professor, mas isso a gente não consegue’. Aí entra o ponto dois: conseguir isto através de organização e luta. Eu estou citando a diretiva da União Europeia, não uma reivindicação socialista.

É preciso tirar a aparência de neutralidade das plataformas, dos algoritmos. Precisamos desnudar o algoritmo. As empresas não abrem isso, mas têm que abrir. Então, as lutas são as mesmas do operariado do século 18, com a diferença que nós não estamos no século 18 mas no 21. Olhe que tragédia! Nós estamos numa era de monumental avanço tecnológico controlado pelos Elon Musk e Jeff Bezos [segundo e terceiro homens mais ricos do mundo] et caterva.

E qual é o momento da instabilidade, da ruptura? Ninguém sabe, isto é o que é genial da História, é imprevisível. Então, nós temos que lutar. Sem luta, não chegamos a ele, sem organização, consciência e força social também não chegamos a ele, mas há um momento em que, lembrando [Karl] Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”.

Ricardo Antunes,
É um sociólogo marxista brasileiro. Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas.

A Universidade funcionalista, por Jean Pierre Chauvin

0

Jean Pierre Chauvin – A Terra é Redonda – 11/05/2024

O contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios

Desde os anos 1980 Marilena Chauí [1] oferece-nos diagnósticos precisos sobre o contágio da universidade pelos pressupostos neoliberais, dentre eles o deslocamento da pesquisa e da docência extracurricular, que passaram de atividades-fim para meios de se obter financiamento – quase sempre segundo as regras do capital privado, pautado pela ideologia da “competência” e “performance”.

Em sua tese de livre-docência, defendida em 2002 na área de Literatura Brasileira, João Adolfo Hansen sugeria que, desde o início da década de 1980, a universidade passara a se estruturar e funcionar como uma grande empresa, com o advento dos pressupostos que orbitam os modelos de gestão e estimulam a concorrência entre colegas, segundo a (anti)ética do lucro.

Como sabemos, a discussão é antiga também em outros países. Entre as décadas de 1950 e 1960, Edgar Morin [2] foi um dos primeiros a observar que o intelectual ocupava lugar ambivalente na sociedade dita “pós-moderna”, pois corria o risco de irradiar juízos críticos sobre a instituição que o sustentava.

Decorridas seis décadas, o que dizer da relação entre pesquisadores e docentes, quando seus projetos são submetidos aos desígnios das grandes empresas, bancos e corporações?

Em que estágio está a universidade, hoje? Ela está a “superar” a si mesma, na campanha de estrita obediência aos ditames do neoliberalismo. Quero dizer, a instituição de ensino superior aprimorou o perfil “operacional” (como mostrava Chauí), refinando a concepção “gerencial” (como aventara Hansen), reforçando os questionáveis critérios da avaliação quantitativa.

Obviamente, as métricas que orientam as agências de fomento se combinaram aos rigores crescentes da instituição de ensino.

Uma das razões do mal-estar docente reside no fato de nos sentirmos julgados sem cessar por um tribunal onipresente (instalado desde os departamentos até a reitoria), correndo o sério risco de lidarmos com sentenças recriminatórias sobre a pequena “produção” ou nossa inapetência em “captar recursos”.

Ora, e como se captam recursos? Apresentando-se projetos de pesquisa rentáveis (aos olhos do “mercado”), de preferência pragmáticos e exequíveis, que carreiem o nome da universidade para além do território nacional, com a logomarca da empresa em primeiro plano.

Mas deixemos a estratosfera do grande capital. Em escala mais modesta, digamos, entre os corredores e as salas de aula, crescem episódios protagonizados por alunos que, antes mesmo de amadurecer seus projetos de pesquisa (sejam de Iniciação científica, sejam de Pós-graduação), correm atrás dos docentes em busca de recompensas pecuniárias por trabalhos que sequer iniciaram.

Repare-se. Não se está a negar a importância das bolsas e auxílios: o pesquisador tem direito a eles, considerando a sua ocupação na universidade e fora dela. Por sinal, uma das nossas lutas se dá justamente pela ampliação dos recursos que promovam e estimulem as pesquisas. O que se está a questionar é a aparente inversão das prioridades (e das etapas) relacionadas ao trabalho acadêmico: a pesquisa é um fim; não um pretexto para recompensa antecipada.

Salvo engano, a universidade funcionalista está a naturalizar a relação de barganha entre alunos e docentes, segundo uma racionalidade utilitária, mediada pela relação interpessoal pragmática e o espírito da livre-concorrência. Ainda a esse respeito, supomos que, para além dos conteúdos didáticos, possa-se rediscutir os pressupostos, réguas e pretensões do mercado.

Contudo, quando as aulas e as atividades de pesquisa cedem o lugar (da curiosidade, do conhecimento, da reflexão) à transação financeira, cumpre recordar que o contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.

Notas

[1] Refiro-me a Escritos sobre a universidade. São Paulo: Unesp, 2001.
[2] Cultura de Massas no Século XX – O Espírito do Tempo – Neurose e Necrose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.

Brasil é pior inimigo do Brasil na busca por liderança internacional, por Daniel Buarque

0

Problemas domésticos prejudicam ascensão na hierarquia global, aponta pesquisa

Daniel Buarque – Folha de São Paulo – 12/05/2024

[RESUMO] Autor apresenta conclusões de sua pesquisa de doutorado, em que realizou 94 entrevistas com membros da comunidade de política externa para mapear a imagem internacional do Brasil. Embora aspire a ser um líder global, o país é percebido como um peão no xadrez geopolítico, um ator periférico prestigiado pelas grandes potências só quando convém a elas. Falta de reconhecimento é reflexo de problemas internos do país, aponta estudo.

Desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, o Brasil se ofereceu para ser um mediador entre os dois países, tanto com Jair Bolsonaro (PL) quanto sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Quando começou o atual governo, a “doutrina Lula” tentou construir a ideia de que “o Brasil voltou” e quis melhorar a sua imagem internacional.

O Brasil começou a buscar protagonismo em questões ambientais, quis retomar uma liderança em temas regionais, procurou grandes acordos comerciais e até buscou conduzir uma votação pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza. Além disso, retomou a aposta no multilateralismo e na busca pela reforma da governança global, reiterando o interesse em um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Lula até encontrou boa vontade internacional, a imagem do país melhorou e ele conseguiu liderar o Conselho de Segurança por um mês e presidir o G 20, além de ganhar o direito de sediar a conferência do clima.

No entanto, a maioria das tentativas de ter um papel realmente significativo em questões internacionais importantes, motivadas em ampla medida pela ambição de ser um ator de peso na política global, continua esbarrando na falta de reconhecimento internacional de um alto status do país.

Mesmo com todo o esforço para aumentar o prestígio brasileiro, a percepção das nações mais poderosas do planeta é que o país não é suficientemente relevante para influenciar as grandes questões internacionais. Isso vale especialmente para quando elas envolvem discussões sobre segurança, guerra e paz. Para as grandes potências globais, o Brasil não passa de um peão no xadrez da geopolítica global.

Apesar do trabalho sério desenvolvido pelo Itamaraty ao longo de décadas, o problema não está necessariamente no que o Brasil faz em sua atuação internacional. A falta de reconhecimento para o prestígio é um reflexo, em ampla medida, de problemas internos do país, que precisam ser o foco antes de qualquer tentativa de projeção internacional.

Esses são alguns dos pontos centrais do livro “Brazil’s International Status and Recognition as na Emerging Power: Inconsistencies and complexities”, recém-publicado pela editora Palgrave Macmillan. A obra reúne os principais achados de uma pesquisa desenvolvida durante meu doutorado pelo King’s College, de Londres. O estudo analisou a longa aspiração brasileira por alto status internacional em contraste com a percepção externa sobre o papel que o país pode desempenhar no mundo.

Para entender o lugar ocupado pelo Brasil na complexa geopolítica desde o fim da Guerra Fria, a pesquisa se baseou em 94 entrevistas com a comunidade de política externa dos países que já são reconhecidos como potências globais: EUA, China, Rússia, Reino Unido e França —os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

UM ‘PEÃO COBIÇADO’

As grandes potências veem o Brasil como um país sem peso na política internacional. A percepção é que o Brasil não passa de um país médio que não tem legitimidade para atuar em questões importantes de segurança global.

Uma razão para essa avaliação é geográfica. O Brasil é percebido como periférico e pacífico, localizado em uma região longe das principais ameaças e disputas do mundo, e por isso não precisaria nem deveria se envolver nesses casos.

Outro ponto importante é que o país enfrenta limites em suas capacidades militares e econômicas, portanto não teria poder suficiente para ser preponderante em escala global.

Paradoxalmente, o Brasil é desejado como um aliado por essas mesmas potências, que buscam utilizá-lo como uma peça estratégica em suas rivalidades e seus interesses globais. Apesar de ser visto como um peão, seu apoio é cobiçado dentro do grande jogo da geopolítica.

Isso explica a frustração do Ocidente com a “equidistância” do país em relação à Guerra da Ucrânia e sobre as críticas de Lula a Israel. Ajuda a entender também a mobilização da China para manter o país envolvido nas ações do Brics e na tentativa de fortalecer outras moedas como alternativa ao dólar em negociações internacionais.

Na realpolitik, cada potência está interessada apenas em avançar seus próprios interesses geopolíticos. O Brasil recebe apoio e alguma forma de reconhecimento somente quando isso indica algum benefício para elas.

BRASIL CONTRA BRAZIL

Ser visto como um peão vai contra a histórica ambição de grandeza do país nas relações internacionais. Isso, contudo, ultrapassa as limitações geográficas e de poder econômico e militar. O Brasil é o maior inimigo do Brasil em sua busca por maior status internacional, avaliaram muitos dos entrevistados na pesquisa.

A percepção externa é que, embora o Brasil realmente tenha muito potencial e sua imagem internacional seja geralmente positiva, o país não alcançou um alto status por causa de seus próprios problemas domésticos, que prejudicam seu desenvolvimento e sua ascensão na hierarquia global. Uma situação doméstica —social, econômica e política— de desordem e incerteza mina a influência internacional mais que qualquer atuação no exterior.

Para essas nações poderosas, países com ambição de emergir entre os mais importantes do mundo devem “fazer sua lição de casa” e “arrumar as coisas internamente” antes de serem aceitos no clube de “alto status internacional”.

Trata-se de uma visão meritocrática da ordem internacional —e uma interpretação do prestígio global que pode ser criticada—, mas que reflete a forma como a comunidade de política externa das nações mais poderosas pensa sobre a ordem global.

Ao observar o Brasil nas últimas décadas, há fortes evidências da importância da situação doméstica para seu prestígio. A estabilização e o crescimento da economia, a expansão da classe média, o fato de o país ter se tornado autossuficiente na produção de energia, a expansão das commodities e a consolidação da democracia no final dos anos 1990 levaram a uma narrativa sobre o aumento do status internac ional do Brasil. Em 2009, a revista britânica The Economist estampava em sua capa a imagem do Cristo Redentor decolando.

Em 2013, contudo, uma série de crises sociais, políticas e econômicas mudou essa situação. Os anos seguintes foram de recessão, escândalos de corrupção, violência e violações de direitos humanos, autoritarismo, negacionismo científico e ameaça à democracia, tornando mais difícil para o Brasil alcançar reconhecimento externo.

Entender a importância do contexto doméstico pode servir como referência para repensar as estratégias do país na construção de um lugar para o Brasil no mundo.

O estudo apresentado aqui indica que focar questões internas (especialmente na economia) e corrigir problemas domésticos são percebidos como os meios mais eficientes para aumentar o status internacional de um país.

Ao buscar destaque em sua atuação internacional, o Brasil deveria dar mais atenção ao que acontece dentro do país, melhorando sua realidade antes de querer se projetar ao mundo.

EUA perderam a América Latina para a China, por Igor Patrick

0

Políticos latinos dizem que em Pequim encontram promessas de investimentos; de Washington, voltam com palestras

Igor Patrick, Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua

Folha de São Paulo, 11/05/2024

Na semana que vem, o Congresso americano vai precisar votar a renovação da concessão de fundos à Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (DFC, na sigla em inglês), o resultado de uma fusão de várias agências de promoção ao desenvolvimento criado durante o governo de Donald Trump para fazer frente à Iniciativa Cinturão e Rota.
Acompanhei in loco o debate na Câmara e adianto: os argumentos levantados durante a audiência pública sobre o tema deixam claro que os EUA vão perder o trem na competição com a China por influência na América Latina.

Há várias razões para esta conclusão. Para começar, não acho que ninguém minimamente informado acreditou algum dia que a DFC conseguiria fazer frente aos chineses. O fundo que financia as operações da corporação chega a US$ 60 bilhões, contra quase US$ 1 trilhão prometido pelos chineses no lançamento da Cinturão e Rota.

A distribuição do dinheiro também está sujeita a uma série de requisitos, sendo o pior o fato de que ao criar o órgão, congressistas americanos limitaram a maior parte dos recursos a países classificados de pobres pelo Banco Mundial. Essa regra não faz nenhum sentido, e mesmo os coordenadores da DFC admitem isso. Ao ranquear as economias de países ao redor do mundo, o Banco Mundial não leva em consideração questões como variação cambial, poder de paridade de compra e desigualdade. A própria instituição nem sequer usa apenas essa variável na hora de conceder empréstimos.

Consequentemente, países como o Brasil são classificados de “renda média superior”, o que automaticamente nos exclui de receber investimentos substanciais por parte dos americanos. Alguém aí diria que nossa infraestrutura é semelhante à chinesa, outro país posto pelo Banco Mundial sob o mesmo guarda-chuva?

Além disso, o dinheiro que vem de Washington geralmente vem atrelado a uma série de compromissos, como a promoção de reformas políticas e melhora do ambiente de negócios. Não são regras necessariamente ruins, claro, mas atrasam significativamente a aprovação e o recebimento das verbas.

Para um país de tamanho e economia médios, faz pouco sentido esperar anos por um dinheiro que, os chineses, muito mais pragmáticos e desinteressados em interferir na governança doméstica de nações terceiras, conseguem entregar em meses. Políticos latinos também têm por tradição abraçar projetos de infraestrutura que possam mostrar em suas campanhas eleitorais —e o calendário das eleições nem sempre é compatível com o tempo necessário para garantir a sustentabilidade de tais obras.

Por fim, só agora começa a cair a ficha em Washington que a presunção ao tratar a América Latina como seu quintal de influência estava baseada em premissas frágeis. Não me entendam mal, é inegável que os EUA ainda são parceiros essenciais de vários dos nossos vizinhos, mas agora há uma nova opção: a China.

Mesmo assim, não vemos nenhuma movimentação para mudar o panorama. Os EUA estão ocupados demais resolvendo a miríade de disputas políticas internas e agora se veem às voltas com a possibilidade de eleger um candidato abertamente isolacionista.

Não há clima no Congresso para ampliar um auxílio financeiro para atenuar o enorme déficit de infraestrutura na América Latina. O dinheiro disponível está fluindo para o Indo-Pacífico, única região no mundo cuja importância é consenso bipartidário, dada a necessidade de fazer frente aos chineses.

Quando encontro fontes do governo Joe Biden, essas pessoas quase sempre gostam de defender o que vêm fazendo pelos latino-americanos e enunciam de cabeça uma série de projetos na região. É só perguntar sobre o valor empreendido em cada um deles para fazê-los corar e invariavelmente admitir que deveriam estar gastando mais se quiserem competir de verdade com Pequim.

Ao longo dos últimos meses ouvi de dezenas de políticos latinos que, quando viajam à China, voltam para casa com acordos e promessas de investimentos. Dos EUA, voltam com uma palestra sobre o que deveriam estar ou não fazendo. Os cães ladram e o dragão passa.