Juros altos são herança maldita do Plano Real, diz ex-ministro Bresser-Pereira

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Economista que comandou a Fazenda comemora sucesso da moeda, mas critica mercado pela captura do patrimônio público

Douglas Gravas – Folha de São Paulo – 23/06/2024

SÃO PAULO

Na visão de Luiz Carlos Bresser Pereira, 89, ter domado a inflação descontrolada que castigava o Brasil antes do lançamento do real é, sem dúvida, o grande mérito do plano econômico que em 2024 chega aos 30 anos.

Mas é preciso também fazer críticas a ele. “As pessoas esquecem, porque ficam só no oba-oba: Sim, o Plano Real foi uma maravilha, mas junto com ele foi feita uma elevação de juros absolutamente alta”, diz o economista, que avalia que o país caiu em uma armadilha de juros e câmbio.

Ainda que considere o saldo das últimas três décadas positivo, o professor emérito da FGV (Fundação Getulio Vargas), que também foi ministro da Fazenda no governo de José Sarney, aponta que a equipe que fez o plano e depois ajudou a compor o governo Fernando Henrique Cardoso adotou completamente a ortodoxia liberal.

Quais são as primeiras lembranças que o sr. tem do Plano Real?

Em 1993, fui visitar [o então ministro da Fazenda] Fernando Henrique Cardoso e disse a ele: se você levar adiante esse plano de estabilização, no ano que vem vai ser eleito presidente da República.

Nem se falava nisso naquela época, mas eu sabia que nós estávamos com uma alta inflação inercial, autônoma da demanda, que aumentava automaticamente porque os agentes econômicos, as empresas, os consumidores, os trabalhadores, todos, indexavam os seus preços formal e informalmente.

Tinha desenvolvido o modelo básico dessa teoria com o economista Yoshiaki Nakano, antes do pessoal da PUC-Rio, com quem sempre me associei nos esforços para combater a inflação. Quando eles fizeram o Plano Cruzado [em 1986], ajudei no que pude. Quando eu fiz o meu Plano Bresser [em 1987], eles também me ajudaram de várias maneiras.

O que ele tinha de diferente dos planos anteriores?

A diferença do Plano Real para o Cruzado e o Bresser é a forma de neutralizar a inflação inercial, era preciso estabilizar os preços sem que ninguém saísse perdendo. Na linguagem dos economistas, que os preços relativos continuassem constantes.

É fácil entender o problema quando você faz um plano de estabilização baseado no congelamento de preços, como foram o Cruzado e o Bresser: se você congela em um determinado dia, quem aumentou os preços no dia anterior fica ótimo e quem ia aumentar no dia seguinte está ferrado.

Por isso, havia uma tabela de conversão que nós fazíamos, a tablita, e isso não existiu no plano Collor, e por isso ele não deu certo. No Plano Real, em vez de usar esse sistema de congelamento, optou-se pela URV [Unidade Real de Valor], um sistema de moeda indexada bolado pelo André Lara Rezende.

Ele escreveu um belo artigo a respeito, uma coisa muito sofisticada, em que se neutralizava, então, a inflação, criando-se uma segunda moeda. E depois, dava-se um prazo para que todas as empresas e as pessoas acertassem os seus preços. Os preços continuavam na moeda em circulação, em cruzeiros reais, mas todo mundo tinha que pôr também o preço em URV. Então, depois que todo mundo teve tempo para fazer esse ajuste, a URV virou real. E com isso neutralizou-se a inércia inflacionária perfeitamente, brilhantemente.

Esse mecanismo foi uma das chaves para o sucesso do plano?

Esse era um sistema que Nakano e eu havíamos pensado em fazer quando eu fiz o meu plano —não o Plano Bresser, que sabia que ia ser difícil e era uma coisa de urgência, feita no meio de uma crise imensa. Mas, quando planejei fazer o segundo, depois que o outro não deu certo, ia fazer uma otimização. O Plano Real foi uma coisa brilhante, uma grande vitória do Brasil, afinal, depois de 14 anos de alta inflação.

O saldo após três décadas, portanto, é positivo?

É preciso dizer uma coisa, que as pessoas esquecem, porque ficam só no oba-oba: Sim, o Plano Real foi uma maravilha, mas junto com ele foi feita uma elevação de juros absolutamente alta, chegando a 45%. Você pode dizer: bom, mas era preciso fazer isso, para desestimular quem quer que fosse e, com isso, também se fez uma espécie de âncora cambial. Então, o câmbio ficou fixado, não é? Graças a esses juros tão altos.

Os juros não precisavam ter sido tão altos?

É difícil saber se precisavam. Agora, o que eu tenho absoluta certeza é que deviam ter sido reduzidos muito mais depressa do que foram. FHC saiu [para disputar a eleição], a equipe que ficou era a mesma. Quando chegou o governo do próprio FHC, toda a equipe que tinha feito o real foi para o governo dele, viraram donos da casa, da área econômica. E mantiveram os juros de maneira escandalosa durante muito tempo.

O plano foi em 1994 e me lembro que em 2010 o Pérsio Arida argumentava que 10% [em termos reais] era a taxa natural de juros, ou seja, com estabilidade de preços.

A partir do Plano Real, o mercado financeiro e os rentistas (e os economistas que trabalham para os rentistas e os financistas) passaram a capturar o patrimônio público. Eles estão, no ano da graça de 2024, portanto 30 anos depois do real, capturando 7% do PIB [Produto Interno Bruto].

Essa é uma herança do Plano Real?

Isso é uma herança do Plano Real ou é uma herança da ortodoxia liberal.
Uma coisa que é importante entender também é que nós éramos economistas heterodoxos —André, Pérsio, Chico Lopes, [Edmar] Bacha e eu. Agora, quando assumiram o Ministério da Fazenda e o Banco Central, eles ficaram completamente ortodoxos, adotaram a ortodoxia liberal completamente.

A única diferença é que André, mais recentemente, a partir de 2015, voltou à heterodoxia. É um homem muito inteligente.

Tenho falado que nesses últimos 40 anos o Brasil é um país semiestagnado. Não posso atribuir isso ao plano. Ou, se quiser, posso atribuir ao plano o fato de que os juros ficaram altos demais, mas o resto, não.

Parte dos economistas que criticaram o plano também tinha uma preocupação com a desindustrialização do país. Esse foi um efeito que se confirmou?

Não pelo plano em si, a não ser pela questão dos juros. Digo há muitos e muitos anos que entramos em uma armadilha da taxa de juros e da taxa de câmbio, algo que eu também chamo de “armadilha da liberalização”. Essa foi uma armadilha que o Brasil caiu e não com o Plano Real.

Caiu antes, em 1990, quando o [ex-presidente Fernando] Collor fez a abertura comercial e financeira.

Outra das críticas na época era que o plano não resolveria os problemas estruturais da economia.
Bom, isso nunca resolveu mesmo, mas não era para resolver também. O Plano Real é bem-sucedido por ter sido feito para acabar com a inflação e ter terminado com ela. Não se pode querer que ele resolvesse o problema fiscal brasileiro, que exige um programa recorrente. Não era para resolver o problema cambial brasileiro, que estava absolutamente mal parado.

O que se pode cobrar dele, e essa é a única coisa que eu cobrei, foi a questão dos juros.

Tem gente que entende o Plano Real como sendo tudo o que aconteceu depois dele. Não é. O Plano Real acabou ali no fim daquele ano de 1994. Ou, se quisermos, ele estava terminado um ano depois da implementação. E tinha acabado com sucesso, ponto.

Luiz Carlos Bresser Pereira, 89
Nasceu em São Paulo. Economista, foi ministro da Fazenda e da Administração Federal e da Reforma do Estado. É diretor do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da FGV (Fundação Getulio Vargas). É autor e coautor de diversos livros, como “Construindo o Estado Republicano” (1994) e “Macroeconomia Desenvolvimentista” (com José Luis Oreiro e Nelson Marconi, 2016)

Só redes sociais explicam a crise de saúde mental dos jovens, diz Jonathan Haidt

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Autor do best-seller ‘A Geração Ansiosa’ compara o uso das mídias por adolescentes ao vício em heroína

BÁRBARA BKUM

FOLHA DE SÃO PAULO – 24/06/2024

De acordo com Jonathan Haidt, as crianças não estão bem.
Segundo dados da pesquisa mais ampla dos Estados Unidos sobre saúde e uso de drogas, o percentual de adolescentes que relataram ao menos um episódio depressivo grave saltou de menos de 15% em 2005 para quase 30% em 2020. No Brasil, os registros de ansiedade entre adolescentes superaram os de adultos pela primeira vez na história em 2023.

Para Haidt, que é psicólogo e professor da Universidade de Nova York, só há uma narrativa capaz de oferecer a explicação completa do problema, diante de hipóteses como as crises climáticas e econômicas a nível global: o livre acesso a redes sociais e smartphones.

Na última semana, a tese de Haidt ganhou tração quando a maior autoridade de saúde dos Estados Unidos, Vivek Murthy, pediu que plataformas de mídias sociais, como Instagram, TikTok e YouTube, incluíssem um aviso de que o uso pode ser prejudicial à saúde.
A posição de Murthy foi contestada, tanto por lobistas da big tech, quanto por cientistas que apontaram outras hipóteses para a derrocada na saúde mental infantil, e diziam que elas deveriam ser consideradas.

Uma delas é o aumento da consciência sobre saúde mental entre os jovens, que poderia ter aumentado os números de deprimidos e ansiosos. Haidt responde a isso com dados alarmantes de hospitais psiquiátricos, que mostraram aumento em casos de automutilação e tentativa de suicídio. Mas mesmo esses dados são contestados. O jornalista David Wallace-Wells escreveu, no The New York Times, que os índices de suicídio aumentaram em todas as faixas etárias.

Desde 2010, a taxa de meninas de 10 a 14 anos atendidas por casos como esses cresceu 188%, segundo o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA). Wallace-Wells sinaliza que, em 2011, por causa de uma mudança com a implementação do Obamacare (a expansão da saúde pública nos EUA), indagações sobre saúde mental passaram a fazer parte do pacote de cuidado.

Haidt reúne essas informações e rebate algumas críticas no best-seller “A Geração Ansiosa”, que sai em julho no Brasil pela Companhia das Letras, sob o mote de que houve uma derrocada na saúde mental a partir do momento em que celulares com acesso a mídias sociais se tornaram parte integrante da infância e da adolescência.

Foi por volta de 2010 que a câmera frontal se disseminou nos smartphones, com a chegada do iPhone 4. Dois anos depois, o Instagram passou para as mãos do Facebook, hoje Meta, de Mark Zuckerberg. De 2011 a 2013, a rede foi de 10 milhões de usuários para 90 milhões. Hoje, estimativas do Statista apontam para 2 bilhões de pessoas com contas no aplicativo.

“Quando o smartphone com mídias sociais entra na sua vida, ele vai ficar no centro dela para sempre”, diz Haidt em entrevista à Folha. Com isso em mente, ele sugere que essa entrada demore um pouco mais –um limite de 13 anos de idade para o primeiro celular e 16 para redes sociais.

Assim, segundo ele propõe na obra, seus cérebros passariam pelos períodos mais críticos da puberdade protegidos dos mecanismos viciantes que fragmentam a atenção em troca de pequenas doses de dopamina.

A humanidade viu o surgimento da TV e da internet e seu efeito nas crianças. O que mudou com a chegada do smartphone a ponto de o sr. nomear esse período como ‘a grande reconfiguração’? Pessoas mais velhas sempre temem as tecnologias usadas pelos mais jovens. É razoável se perguntar se tudo isso é um pânico moral. Mas há diferenças.

Observamos que no mesmo ano em que a maioria das crianças passou a usar smartphones, houve o maior aumento já registrado em distúrbios psíquicos.

Em 2012, as estatísticas de saúde mental nos Estados Unidos mudaram drasticamente. Não havia sinal de problema até 2011. Depois, meninas nos EUA e em outros países começaram a dar entrada nos prontos-socorros psiquiátricos.

Não víamos organizações de jovens baby boomers pedindo que programas de TV viciantes não fossem feitos, mas vemos isso na geração Z. É uma emergência de saúde mental.

Então, basicamente, ficamos sem alternativas além dos celulares para explicar a crise. Nos EUA, poderiam haver outras explicações. Mas a tendência se repete no Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia. Há evidências em estudos correlacionais, longitudinais, experimentais e empíricos.

O sr. menciona no livro que a crise é com os jovens, mas parece que essa mudança social da tecnologia afetou a sociedade como um todo, mudou a relação que temos uns com os outros. Com certeza. No século 20, a pesquisa feita em torno da TV não estabeleceu se ela era uma causa clara para distúrbios psíquicos. Mas as mudanças sociais foram gigantes. As pessoas deixaram de estar com seus vizinhos para ficar em casa vendo TV.

Mídias sociais, por outro lado, não nos tornam consumidores passivos, mas pessoas cheias de opiniões, prontas para reclamar de tudo.

“A Geração Ansiosa” se preocupa em distinguir as mídias sociais da internet como um todo. Por que fazer essa distinção hoje? Um mistério enorme é: por que os millennials estão bem e a geração Z está tão mal se eles também cresceram na internet, com celulares?

Até 2010, quase ninguém tinha smartphone. Eram celulares flip ou tijolões. Não havia Instagram nem câmera frontal e pouca gente tinha internet banda larga. Não se passava o dia no celular em 2010.

Mas, em 2015, ao menos nos países ricos, todo mundo já tinha um celular com câmera frontal. As meninas estavam no Instagram e a internet rápida estava amplamente disponível.

Quando o smartphone com mídias sociais entra na sua vida, ele vai ficar no centro dela para sempre. Mas, para os millennials, isso não aconteceu até o fim da puberdade. Quando você se tornou usuária assídua de Instagram?

Provavelmente lá pelos meus 19 anos. É esse meu argumento. É por isso que você está bem. Bem, eu não sei se você está bem, mas sua geração, os nascidos até 1995, de modo geral, estão bem.

Porque aos 19 anos o seu cérebro já tinha praticamente passado pela puberdade. Mas se você tiver uma irmã alguns anos mais jovem… Ela tem celular?

Tem, mas sem Instagram. O negócio dela é o YouTube. O pior é o Instagram. Mas os shorts [vídeos curtos] do YouTube são horríveis. São terrivelmente viciantes. Não têm benefícios. Esses vídeos de 10 a 15 segundos são pequenas doses de dopamina fácil e barata. Ninguém abaixo dos 18 anos deveria ver isso.

Hoje de manhã [17 de junho], a principal autoridade de saúde dos Estados Unidos [Vivek Murthy] pediu ao Congresso que colocasse avisos em mídias sociais, de que elas podem ser um risco à saúde mental.

Como se fosse um alimento com alto teor de açúcar. Sim, mas se pais decidissem criar seus filhos numa dieta de baixo açúcar, eles poderiam. Se pais quiserem seus filhos fora das mídias sociais, a única forma é vetar a internet como um todo e trancafiá-los. A vida em família, em todo o mundo, é uma briga em torno do tempo de tela.

O sr. diz no livro que há uma dicotomia entre uma parentalidade superprotetora com os filhos no mundo físico, mas permissiva no mundo digital. Qual a relação dessa infância orientada ao smartphone com essa superproteção? Nos EUA e no Reino Unido, nós perdemos a confiança uns nos outros nos anos 1990. Havia histórias de abuso sexual, algumas reais, outras não, e paramos de deixar que nossos filhos saíssem de casa.

Naquele momento, já existiam computadores pessoais. As crianças os adoravam, especialmente os meninos. Todos estavam felizes. Mas esses predadores sexuais não estão nos parquinhos. Eles estão no Instagram.

A internet era segura no começo. Claro que havia conteúdo inapropriado, mas não era opressivo. Até as redes sociais não eram tão ruins. Mas quando surge o feed, o botão de curtida, por volta de 2009 a 2011, ela não é mais uma rede consistente, é uma plataforma.

Cada criança está numa plataforma, fazendo uma performance para o mundo, torcendo para ter o holofote sobre ela.

Vi um artigo no [jornal americano] The Wall Street Journal em que mães de meninas influenciadoras admitiam saber que os seguidores de suas filhas eram homens adultos que se masturbavam para as fotos delas, mas diziam que as meninas precisavam daqueles seguidores. O Instagram está transformando famílias em cafetinas.

Por que a crise de saúde mental da geração Z afeta meninas de forma tão desproporcional? Se você olhar só para os índices de ansiedade, depressão e automutilação, as meninas estavam na frente em 2010. Existe evidência clara que isso está relacionado às mídias sociais.

No caso dos meninos, a conexão com a mídia social é menos clara. Mas depois de publicar o livro, pensei que deveríamos procurar esses meninos e meninas depois de já adultos.

As mulheres continuam deprimidas e ansiosas. Mas os homens estão desempregados e solteiros, porque a puberdade era só videogame e pornografia. Eles não fazem ideia de como flertar e tem problemas para olhar as pessoas nos olhos. Seus cérebros foram moldados por dopamina rápida, então eles são incapazes de trabalhar por uma recompensa a longo prazo.

Pais também são usuários assíduos de mídias sociais e celulares. Será que eles não deveriam se preocupar em ser exemplos melhores, além de regular os comportamentos? Sim, mas não acho que tenha grande impacto. Adolescentes estão 99% focados no que seus colegas estão fazendo e pensando. Eles não se importam com a opinião dos pais. Se eu começar a ler a revista The Economist em casa, minha filha de 14 anos vai começar a ler? Claro que não.

Devemos ser modelos melhores e devemos ter regras claras para uso de celular em família, como durante as refeições. Não leve o celular para a cozinha ou sala de jantar. Nada de celulares pouco antes de dormir.

Mas as crianças não estão nos copiando. Elas estão respondendo à maior força social que uma criança pode encontrar, que é ser incluída.

O sr. propõe marcos de idade para se ter um smartphone [13 anos] e para uso de mídias sociais [16 anos]. Como equilibrar isso com essa pressão social? Há dez anos, a idade média em que se adquiria um smartphone era 13 anos, por aí. No Reino Unido, um quarto das crianças de 5 a 7 anos têm seu próprio celular. Logo nós vamos implantar telefones no útero.

Eu acredito que seja um problema de ação coletiva. Damos celulares às crianças porque todo mundo dá. Os pais estão encurralados, exaustos e desmoralizados. Isso explica o sucesso do meu livro.

Ele está dizendo, “ei, você não está maluco, isso faz mal aos seus filhos”. E podemos sair dessa juntos a um custo de zero dólares.

Por isso a posição da autoridade máxima da Saúde nos EUA é importante. Isso dá suporte aos pais que querem negar acesso ao Instagram aos seus filhos de 10 anos. Ele está sugerindo normas.

Podemos fazer essa reforma com normas e não leis, mas algumas são necessárias.

Como o sr. sugere que essas leis e normas funcionem? Podemos expressar nossa raiva e pedir ação aos políticos. Podemos processar as empresas. E podemos nos organizar coletivamente nas escolas, proibindo os celulares.

Não permitir o uso na aula e pedir que os alunos deixem o aparelho no bolso é como permitir que um viciado em heroína leve a droga para uma clínica de reabilitação, desde que a mantenha no bolso. O vício é tão grave que é necessário trancar os celulares e só devolver na saída.

Apesar de sua restrição a mídias sociais e smartphones, o sr. não parece restritivo com relação ao uso de outros tipos de tela. Existe tempo de tela de qualidade? Com certeza. Ver filmes é ótimo. Se seu filho de 6 ou 7 anos vê uma ou duas horas de TV por dia, sem problemas.

Mas a geração Z nunca tem oportunidade de prestar meia hora de atenção. São sempre interrompidos. A tela em si não é o problema. O problema é a fragmentação da atenção.

JONATHAN HAIDT, 60
Professor da Stern Business School da Universidade de Nova York, é doutor em psicologia social pela Universidade da Pensilvânia e pesquisa os fundamentos da moral em diferentes culturas. Antes de “A Geração Ansiosa”, publicou “A Mente Moralista” (Alta Cult), “A Mente Justa” (Edições 70) e “A Hipótese da Felicidade” (LVM Editora).

Negacionistas veem colapso climático como oportunidade de negócios, por Ailton Krenak

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‘A Terra Inabitável’, de David Wallace-Wells, mostra dezenas de fins de mundo possíveis sob Capitaloceno do presente

Ailton Krenak, Escritor e líder indígena. Autor de ‘Ideias para Adiar o Fim do Mundo’ e ‘Futuro Ancestral’

Folha de São Paulo, 23/06/2024

Eu falei para vocês no mês passado que iria sempre trazer aqui algum personagem para vocalizar a mensagem da vez. Convoco hoje David Wallace Wells, um jornalista que nasceu em Nova York e que não se considera um ambientalista, mas mesmo assim é o autor de “A Terra Inabitável: uma História do Futuro” (Companhia das Letras), que reúne alguns dos mais impactantes ensaios sobre o colapso climático que estamos vivendo.

Quando recebi meu exemplar do livro de David, em 2019, mesmo ano em que publiquei “Ideias para adiar o Fim do Mundo”, fiquei com uma dezena de trailers para possíveis “fins de mundo” passando na cabeça. Compreendi, então, que cada artigo de “A Terra Inabitável” nos apresenta um cenário possível —e mesmo provável— de fim de mundo.

As tantas hipóteses do livro são todas advindas de pesquisas feitas pelo autor e também resultado de suas conversas com cientistas do clima —essa novíssima casta de cientistas que ocupou nos anos 1980 e 1990 o debate “mais quente” sobre o estado de destruição dos diversos ecossistemas terrestres— buscando saídas para o pior cenário, visto que já havíamos cruzado a linha que divide a restauração de diversos ecossistemas para o estágio da mitigação de danos.

“A Terra Inabitável” nos mostra dezenas de cenários, todos apresentando riscos de desaparecimento de milhares de espécies não humanas, desordem social e crescente risco de conflitos de alcance global, com perdas irreparáveis para povos e nações.

Os cientistas que informam a pesquisa de David Wallace-Wells apontam várias tentativas de “mitigar a situação de caos ecológico previsto para a primeira metade do século 21”, todas de elevado custo material e humano pela exigência de investimentos em tecnologias inacessível aos pobres países periféricos.

Um dos ensaios mais distópicos é aquele em que cientistas desenvolvem um aparato bélico, capaz de bombardear a atmosfera do planeta para provocar a transformação do carbono que satura nosso clima terrestre, visando encerrar os eventos cíclicos e extremos de calor intenso e tempestades de água e gelo —catástrofes capazes de afundar sob as águas cidades inteiras, como Porto Alegre mostrou recentemente ao mundo.

Mesmo assim, alguns negacionistas, também no campo das ciências do clima, ainda são capazes de tomar essa tragédia planetária como oportunidade para grandes negócios. Eliminar o efeito estufa com bombardeios na atmosfera, por exemplo, se insere na lista de negócios do futuro, enquanto anúncios de viagens espaciais se confundem com filmes da década de 1960 em que os Jetsons rodopiam pelo espaço aéreo terrestre enquanto não colonizam outros planetas.

Queridas leitoras e leitores, trata-se de um vale tudo entre especulação científico-tecnológica e guerra nas estrelas nesta única economia que parece validada no planeta, o manjado e velho capitalismo sob nova direção: o Capitaloceno.

A mente adolescente e as redes sociais, por Priscilla Bacalhau

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Número de pacientes com ansiedade já é maior em crianças e adolescentes que em adultos

Priscilla Bacalhau, Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas.

Folha de São Paulo, 21/06/2024

Quando a puberdade chega, parece que acende um alerta vermelho na mente adolescente. O corpo muda, os sentimentos ficam mais complexos, a interação com a família diminui enquanto a com amigos aumenta. A ansiedade toma conta e pode levar a caminhos tortuosos.

É isso o que acontece com Riley, personagem da animação “Divertida Mente 2”, que estreia nesta quinta (20) nos cinemas. Jovens (e adultos) vão se reconhecer nas cenas em que a ansiedade controla a torre de comando mental.

Na vida real, de onde vem tanta ansiedade? Obviamente, a explosão de hormônios tem papel relevante. Mas o mundo do século 21 traz mais complicadores para o ambiente. A digitalização das relações, o aparelho celular como extensão do braço e a proliferação de redes sociais chegaram para revolucionar a revolução da puberdade adolescente.

Apesar de essa realidade ser relativamente recente, já existem diversas evidências sobre os efeitos negativos do uso excessivo da tecnologia no desenvolvimento e na saúde mental de crianças e jovens. As redes sociais, desenhadas para serem viciantes, têm potencial avassalador nos jovens, cujos cérebros e sistemas de autocontrole ainda estão em formação.

O livro “A geração Ansiosa”, do psicólogo americano Jonathan Haidt, mostra o aumento de doenças mentais em adolescentes de países desenvolvidos: há mais depressão, ansiedade e até tentativa de suicídio, especialmente de meninas.

No Brasil, os números não são melhores, e os registros de pacientes com ansiedade já é maior entre crianças e adolescentes em comparação com adultos, como mostra levantamento da Folha.

Como qualquer problema complexo, as soluções não são simples para essa epidemia de ansiedade jovem exacerbada pelas redes sociais. Banir completamente o uso do celular é uma proposta. Celulares não smart, como nossos velhos Nokia, são outro caminho que vem sendo adotado.

Mas quaisquer dessas medidas serão ineficazes, e potencialmente prejudiciais, se não forem coletivas.

Ser o único da turma sem acesso ao celular compromete, inevitavelmente, sua sociabilização. Ninguém quer se sentir de fora, principalmente nessa fase. Além disso, para boa parte dos brasileiros, o celular é o único meio de acesso ao mundo digital. Letramento digital é crucial e jovens pobres não podem ser excluídos.

Pelo menos em um ponto parece que já temos consenso: não dá mais para permitir o uso indiscriminado de celular nas escolas. Tampouco podemos fugir de aumentar a regulação das redes, que estão se provando tão (ou mais) viciantes e prejudiciais quanto álcool e cigarro.

Para efeitos de entretenimento, a experiência da personagem Riley pode parecer individual. Mas, fora do cinema, o problema é coletivo e precisa ser tratado como tal.

Retorno do protecionismo

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Nos momentos de grandes incertezas e instabilidades da sociedade internacional, como a que vivenciamos na contemporaneidade, percebemos o incremento das políticas protecionistas como forma de proteger suas estruturas econômicas e produtivas, proteger suas empresas nacionais, defender seus empregos e proteger a renda agregada da população. Neste cenário, percebemos o crescimento das políticas protecionistas que passaram a ganhar relevância na agenda das nações e discussões nos fóruns internacionais, tais medidas estão impulsionando conflitos e constrangimentos globais que podem, no extremo, gerar confrontos bélicos e desequilíbrios diplomáticos.

No campo econômico internacional, percebemos o crescimento da volatilidade das finanças, levando as nações a adotarem políticas de proteção e defender seus interesses nacionais, com o incremento dos subsídios internos e os mais variados tipos de barreiras comerciais, além de taxações e tributações visando a proteção das estruturas econômicas e produtivas.

Nações desenvolvidas que conseguiram ao longo da história se desenvolver econômica e industrialmente passaram a exigir abertura econômica e concorrência crescente como forma de alavancar economicamente as nações em desenvolvimento, pressionando-as como forma de encontrar o crescimento econômico e, posteriormente, o desenvolvimento social e a melhora das condições de vida de suas populações.

As políticas protecionistas sempre foram utilizadas pelas nações ao longo da história, os países ricos se utilizaram fortemente destes instrumentos para ganhar escala e produtividade como forma de alavancar suas estruturas produtivas, crescendo economicamente e fortalecendo suas empresas, desta forma, expandiram para todos os cantos da sociedade mundial e passaram a impor seus modelos produtivos, suas formas de enxergar o mundo e a dominar os atores econômicos e políticos internos, com isso, angariando forte poder político para impor seus interesses imediatos.

Desde os anos 1980 as nações desenvolvidas disseminaram para todas as regiões do mundo o chamado Consenso de Washington, um conjunto de políticas de liberalização econômica criada pelas nações desenvolvidas para que países mais atrasados ou em desenvolvimentos adotassem como forma de alavancar o crescimento de suas economias. Dentre as medidas estimuladas eram a abertura econômica, a desnacionalização dos setores produtivos, a privatização, a redução do protecionismo e a diminuição do papel do Estado na economia.

Depois de mais de trinta anos, os resultados foram interessantes, as nações que se entregaram a esse ideário neoliberal conseguiram diminuir a inflação, aumentaram a dependência externa, fortaleceram uma economia agroexportadora de produtos primários, aumentando sua desindustrialização e incrementando suas dívidas interna e externa, perdendo espaços na exportação mundial e se entregando facilmente a um predomínio da dependência financeira internacional. As nações que se distanciaram do pensamento neoliberal tiveram dados macroeconômicos mais sólidos e consistentes, fortaleceram seus papeis políticos no cenário mundial e angariaram espaços econômicos pouco vistos na história da economia internacional, vide por exemplo os países asiáticos, como a China e a Coréia do Sul, países camponeses, pobres e miseráveis e, atualmente, gigantes da tecnologia, da inovação e da complexidade econômica.

Diante disso, todos sabemos quais os caminhos escolhidos pela sociedade brasileira, abraçamos abertamente um ideário neoliberal, abrimos nossa economia, desnacionalizamos nossa estrutura produtiva, estimulamos nossa desindustrialização e perpetuamos nossa situação periférica, marcado pela dependência tecnológica e ideológica, importamos e estimulamos pensamentos que nos levam ao atraso e a submissão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Um Estado forte para uma democracia forte, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 17/06/2024

Há de se resistir às pressões do neoliberalismo e de seu bebê maligno: o nacional-populismo de direita

Para as sociedades capitalistas, o paradigma desejável e possível é o de um Estado forte, capaz, para uma democracia igualmente forte. A ideia de um Estado forte parece estar em contradição com uma democracia forte, mas não é isso o que mostra a realidade.

A Suiça e a Finlândia são exemplos de países nos quais esse ideal está próximo de ser alcançado, mas esta afirmação requer definir o que é uma democracia forte e um Estado capaz.

O Estado é o sistema constitucional-legal e a organização que o garante, enquanto o Estado-nação é a sociedade político-territorial soberana formada por uma nação, um Estado e um território. Um Estado é capaz quando a Constituição e demais leis do país são cumpridas. Algo que não depende apenas do poder de polícia do Estado, mas também e principalmente da coesão da sociedade em torno do Estado.

Em outras palavras, depende de toda a sociedade entender que a lei é necessária para a vida da sociedade, e de que cada cidadão considere seu dever denunciar aqueles que agem contra ela. Ao agir assim, ele não será um “dedo-duro”, mas um cidadão que cumpre o seu dever. No plano econômico, é capaz o Estado que tem o poder efetivo de tributar – de aumentar impostos quando isto é necessário para assegurar o equilíbrio fiscal.

A nação é a forma de sociedade de cada Estado; ela compartilha uma origem, uma história e objetivos comuns, estes explícitos ou implícitos no sistema jurídico. Uma “boa” sociedade é aquela que é relativamente coesa. Nunca é plenamente coesa, porque há a luta de classes e um número infinito de conflitos entre os cidadãos, mas esta luta ou estes conflitos não são radicais, não implicam uma relação de vida ou morte – e, portanto, podem coexistir com uma nação ou uma sociedade civil (outro nome da sociedade de cada Estado) relativamente coesa.

A democracia forte, por sua vez, é a democracia consolidada. É a democracia existente em um país ou Estado-nação que completou sua revolução capitalista – já formou seu Estado-nação e realizou a sua revolução industrial. E, por isso, a nova classe dominante burguesa já não precisa do controle direto do Estado para se apropriar do excedente econômico (ela pode realizá-lo no mercado através do lucro).

É o regime político no qual as novas e amplas classe média e classe trabalhadora que nasceram da revolução capitalista preferem a democracia. Na prática, uma democracia forte é aquela que soube resistir às pressões antidemocráticas do neoliberalismo e, depois, do seu bebê maligno – o nacional-populismo de direita.

Embora a democracia seja o melhor regime político para um país que completou sua revolução capitalista, essa mesma democracia enfraquecerá o Estado dos países que ainda não a realizaram. E poderá igualmente enfraquecer os Estados de países de renda média, que já realizaram sua revolução capitalista, como é o caso do Brasil, ao ser essa democracia caracterizada por uma polarização que a torna incapaz de fazer compromissos necessários para realizar as reformas institucionais. O império sabe disso, e usa a democracia para garantir a sua dominação sobre os países da periferia do capitalismo.

A prioridade dos países de renda média é, portanto, fortalecer o seu Estado, porque assim estarão fortalecendo sua democracia; é tornar sua nação mais coesa; é livrá-la do conflito entre os liberais que se submetem ao império e os que buscam soluções nacionais para os problemas.

Não existe um caminho claro para alcançar maior coesão nacional. Porém, o simples fato de as elites sociais – não apenas as econômicas, mas também as políticas, intelectuais e organizacionais – saberem da necessidade dessa maior coesão já é um passo nessa direção.

O Brasil é um “Estado-nação-quase-estagnado” há 44 anos, cresce mais lentamente que os países ricos e mesmo que as demais nações em desenvolvimento – não realiza, portanto, o esperado alcançamento (“catching up“). Precisa, portanto, dramaticamente fortalecer a sua nação e o seu Estado para deixar de ficar para trás – como tem ficado neste quase meio século.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).

Turbulências globais

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As grandes transformações em curso na sociedade internacional vêm impulsionando inúmeras modificações no espaço e no tempo, transformando comportamentos, convivendo com novas tecnologias, criando novos modelos econômicos e produtivos, agitando o mundo da gestão, modificando as relações entre capital e trabalho, tudo isso, nos auxilia na compreensão dos grandes desafios da humanidade.

Depois de anos de pandemia que assolou a comunidade global, cujos impactos foram avassaladores em todas as regiões do mundo, levando mais de seis milhões de mortes, devastando setores inteiros, destacando novos modelos de trabalho, novas formas de qualificação, com novas tecnologias digitais e intangíveis, novas formas de comportamentos, gostos, vontades e necessidades, estamos vivenciando conflitos militares, agitações geopolíticas, agressões físicas e verbais, incremento do negacionismo, destruições ambientais, devastando a civilidade e vislumbrando um modelo de sociedade em crise.

No cenário internacional percebemos o crescimento dos conflitos militares, neste momento, as autoridades internacionais mapearam mais de 170 conflitos militares em curso na sociedade global, com milhares de mortes, degradações, agressões, impulsionando ódios, rancores e ressentimentos. Nesta toada, depois dessas devastações, a sociedade internacional vai precisar reconstruir os laços entre as nações, estimulando o comércio global, conversações diplomáticas internacionais e novos espaços de integração.

No campo econômico percebemos o crescimento do protecionismo entre as nações, o crescimento das incertezas e instabilidades financeiras, com o aumento dos subsídios dentro das nações, o retorno das políticas industriais para fortalecer os setores nacionais em detrimento dos grupos externos, desta forma, o comércio global tende a se reduzir e as integrações econômicas tendem a perder espaço, muitos especialistas estão destacando a possibilidade da chamada desglobalização, uma verdadeira revolução econômica e produtiva.

Ainda no campo econômico, destacamos o possível surgimento de um novo padrão monetário internacional em detrimento ao dólar norte-americano. O possível nascimento de um novo modelo monetário global pode gerar novos constrangimentos financeiros internacionais, trazendo novos desafios e novas oportunidades, demandando lideranças internacionais capacitadas para compreender os possíveis caminhos que tendem a aparecer no cenário internacional, desafiando países ricos e desenvolvidos para continuar controlando estas transformações que podem diminuir seus poderes. Do outro lado, percebemos que todas estas alterações globais demandarão das nações em desenvolvimento a adoção de políticas públicas equilibradas e, ao mesmo tempo mais ousadas, independentes, conscientes e soberanas.

Neste ambiente, destacamos ainda as grandes turbulências globais no meio ambiente, as alterações climáticas estão cada vez mais aceleradas, vide o exemplo do sul do Brasil, cuja destruição deve ser vista como um aperitivo para as possíveis devastações do meio ambiente, rechaçando os crescentes negacionismos que crescem em escala global, impulsionando políticas de austeridade que fragilizam os governos nacionais, vislumbrando apenas interesses imediatos, lobbies financeiros fortíssimos e grupos que patrocinam o caos e a degradação.

Os desafios da comunidade internacional na contemporaneidade são imensos e inadiáveis. As riquezas geradas nas últimas décadas são suficientes para incluir todas as pessoas da sociedade global desde que o modelo econômico e produtivo seja alterado e modificado. Sem uma alteração efetiva no modelo econômico e produtivo, temos que se acostumar com uma sociedade cada vez mais individualista, imediatista, narcisista e centrada no lucro e nos prazeres materiais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Cortar benefícios sociais para pobre tem que ser último item da lista, diz Marcelo Medeiros

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Para o especialista em desigualdades, o Brasil tem que estar preparado para arrecadar mais

Adriana Fernandes – Folha de São Paulo, 12/06/2024

Pesquisador da Universidade Columbia de Nova York, o brasileiro Marcelo Medeiros diz à Folha que cortar os benefícios sociais para a população mais pobre deve ser o último item da lista do governo para reduzir as despesas.

Em meio ao crescimento do debate sobre a desvinculação do salário mínimo dos benefícios da Previdência social, Medeiros ressalta que a política do salário mínimo foi responsável pela redução da pobreza no Brasil.

“Vai parar de tentar reduzir pobreza e desigualdade? É isso que o pessoal está propondo? Tem que ser explícito e dizer: olha, nós concluímos que já reduzimos a pobreza demais, a desigualdade demais, e agora é hora de controlar o fiscal”, alerta.

Medeiros diz que há um conflito distributivo gigantesco por trás desse debate. “Não vamos fingir que não existe. “É mais fácil derrubar, tirar dinheiro de pobre, do que tirar dinheiro de rico”, afirma. Na sua avaliação, o Brasil tem que se preparar para arrecadar mais para enfrentar o problema das contas públicas no curto prazo.

O que acha do debate atual no Brasil de revisar gastos dos benefícios sociais?
Economizar dinheiro com pobre é a última coisa que o Estado brasileiro deve fazer. O pobre é quem mais precisa de assistência. O Brasil tem muito lugar para economizar dinheiro antes de economizar com pobre. É óbvio que é preciso aumentar a arrecadação.

É impossível regular o lado fiscal só pelo lado do gasto. É irrealista quem estiver propondo isso. É preciso discutir seriamente como aumentar a arrecadação para não ter que avançar sobre a assistência.

O Brasil precisa de várias coisas. Precisa de uma nova reforma da previdência, porque é o principal gasto público. Então, precisa regular isso. Tem uma série de outros gastos [para revisar]. Precisa revisar, por exemplo, planos de subsídios.

A proposta de desvinculação dos benefícios da previdência do salário mínimo foi colocada para reduzir despesas obrigatórias.

Existe uma confusão sobre o peso que os aumentos dos salários mínimos têm nas contas públicas. Essa confusão ignora que o aumento do salário mínimo eleva a arrecadação previdenciária automaticamente porque um quinto do salário mínimo vira imposto imediatamente. Vira arrecadação previdenciária automaticamente. Como também aumenta a arrecadação dos estados e municípios.

Aumenta, por exemplo, todo o direcionamento de ICMS que existe, os gastos com segurança, educação e saúde.

O seu diagnóstico é que o debate está mal colocado pelo governo?

As contas estão muito enviesadas para quem quer achar problema e não solução. Eu não estou dizendo que políticas não precisam ser ajustadas. Não existe política sem efeito negativo. O que importa é que os efeitos positivos superem os efeitos negativos. No caso da assistência, é muito difícil demonstrar uma conta dizendo que ela tem efeito negativo maior do que positivo. Não pode ter um raciocínio puramente fiscal porque a responsabilidade fiscal tem que andar de mão dada com a responsabilidade social. Separar as duas coisas é um erro grave.

Onde o governo deveria começar a cortar as despesas primeiro?

Essa é uma discussão de como faz a alocação do orçamento público inteiro. É fácil querer cortar em pobre, mas o Brasil gasta muito dinheiro com outras coisas. Tem que aumentar a arrecadação rapidamente. Não se consegue fazer corte fiscal rápido responsável. Se consegue fazer de forma irresponsável. Portanto, o Brasil tem que se preparar para arrecadar mais.

O governo optou em não fazer a reforma da renda primeiro…

Não é que o governo optou. O Congresso está tendo resistência. É uma questão política. Não é uma questão que o governo não quer. Só que o Congresso tem resistência. O Congresso é parte importante do problema. O Congresso não quer enfrentar a responsabilidade gigante que ele tem no controle fiscal brasileiro. E parte do controle fiscal não é só no corte, é também na arrecadação.

Mas esse não é um debate trivial?

Esse simplismo excessivo que é conduzido a discussão fiscal pode ser nocivo para as políticas como um todo. O aumento do salário mínimo foi a principal política de redução de pobreza e desigualdade no Brasil durante mais de uma década. Se parar de ter aumento do salário mínimo, a pergunta é: vai colocar o que no lugar? Ou vai parar de ter responsabilidade social? Vai parar de tentar reduzir pobreza e desigualdade?Tem que ser explícito e dizer: ‘olha, nós concluímos que já reduzimos a pobreza demais, a desigualdade demais, e agora é hora de controlar o fiscal’.

Pode ser, mas tem que assumir a responsabilidade política disso. Eu quero ver quem vai assumir. Porque quem fizer isso vai perder a eleição. E o que vem depois? O ultrapopulismo de violência, segurança etc.

O debate da desvinculação do salário mínimo dos benefícios da Previdência foi puxado agora pela ministra Simone Tebet (Planejamento), mas o próprio ministro Fernando Haddad tem defendido a discussão das vinculações…

[interrupção da pergunta] A pergunta não é se vai desvincular. A pergunta é o que vai botar no lugar, porque foi e ainda é a principal política de redução de pobreza e desigualdade no país.

Não foi Bolsa Família, não. Quem tem que pagar pelo ajuste?

O mercado diz que a questão fiscal é um risco e por isso cobra mais. É uma roda viva?

Aumenta a arrecadação, a pressão fiscal cai. A única maneira de controlar a pressão fiscal no curto prazo é aumentar a arrecadação. Eu entendo que a desvinculação faz parte do processo. E pode ser, pode desvincular. Não existe nada que esteja fora da mesa. O que temos que definir é prioridades. Se for necessário, pode cortar, inclusive, de pobre. Por trás disso tudo existe um conflito distributivo gigantesco. Não vamos fingir que não existe. Tem grupos brigando para ver quem se apropria disso tudo. E o grupo mais fraco são os pobres. É mais fácil derrubar, tirar dinheiro de pobre, do que tirar dinheiro de rico.

Não existem algumas políticas que poderiam ser discutidas e modificadas, como é o caso do abono salarial?

Tudo pode ser discutido. Agora, essas políticas não existem sem razão. As políticas não apareceram do nada. O que tem que resolver de fato é: o Brasil subsidia pesadamente o sistema previdenciário, de alguns grupos e não de todos.

Quais?

Os militares, por exemplo. São pesadamente subsidiados. Não é pouco, não. E eles são a principal categoria do funcionalismo ao lado dos professores.

A mudança no piso constitucional de saúde e educação também está em discussão na área econômica para retirar algumas receitas extraordinárias do cálculo da receita. Qual sua avaliação?

Isso é tipicamente uma escolha política. Eu sei que tem gente que diz que toda arrecadação que fizer está vinculada e aumenta automaticamente o gasto, aí o governo não tem margem. Esse é um problema que o Congresso precisa resolver. No dia que não tiver margem, vai ter que fazer ajuste em saúde. O que vai acontecer: o prefeito vai ter que fechar o hospital. O Congresso vai ter que resolver se vai peitar isso ou não.

O que pode ser cortado?

O Plano Safra, por exemplo, é um imenso subsídio para a soja, para a agricultura brasileira. O tributo sobre investimento de capital é 15%, é muito menor do que o tributo sobre salários. É claro que é complicado. Arrumar dinheiro não é fácil. Tem que fazer uma revisão geral de gasto.

O Brasil tem uma quantidade muito grande de subsídios, que precisa ser passado pente fino nesses subsídios.

Será preciso ter uma nova reforma da previdência para retirar os privilégios antes de retirar a vinculação?

Claro. Controlar o aumento dos benefícios de assistência é o último tópico da lista, quando todo o resto já tiver sido feito. Suponhamos que, hipoteticamente, reduzir o benefício de assistência seria suficiente para fazer o equilíbrio fiscal no Brasil. Haveria reforma da Previdência posterior? Não. Haveria controle das disparidades tributárias gigantescas que o Brasil tem? Não.

É óbvio que tem que começar pelos mais ricos para ter respaldo moral para fazer qualquer outro tipo de reforma.

O Congresso diz que há um esgotamento do aumento da carga tributária?

A insistência do Congresso em recusar isso é parte do problema.

Mas a resistência vem da sociedade, das empresas, do mundo empresarial, dos contribuintes?

Sim, claro. O Congresso é a expressão do mundo empresarial. O Congresso é a expressão disso.

Agora, é ingênuo achar que vai ser possível, por exemplo, com uma nova reforma da Previdência, ter efeito no curto prazo. E o Brasil precisa resolver o problema no curto prazo. Por exemplo, o Armínio Fraga está dizendo isso. O Armínio está certo.

RAIO X
MARCELO MEDEIROS, 54
Sociológo e economista, é professor da Universidade Columbia de Nova York. Um dos mais conceituados pesquisadores da área social, é autor de uma série de estudos que buscam compreender as complexidades dos conflitos distributivos gerados pelas desigualdades e seus mecanismos de reprodução. No livro, o “Ricos e os Pobres” (Companhia das Letras), expõe as razões da gigantesca concentração de renda do Brasil.

Tarcísio, a nova cara da ultradireita brasileira? Bruno Paes Manso

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Governador de SP sintetiza um dos possíveis futuros da ultradireita: implosão do Estado social e truculência policial, legitimados pela religião. Com o avanço das desigualdades, estes fatores serão cada vez mais necessários para proteger as “ilhas de riqueza”

Bruno Paes Manso – Outras Mídias – 12/06/2024

Cena 1: alunos apanham da Polícia Militar durante sessão em que os deputados paulistas aprovaram o projeto de lei que permite a criação da escola cívico-militar em São Paulo. Em tempos normais, seriam imagens escandalosas, mas apenas os integrantes das bolhas progressistas parecem chocados. Muitos apoiam um projeto pedagógico militarizado, como se o aprendizado dependesse de disciplina e de obediência.

Cena 2: o governo de São Paulo sabota o bem-sucedido programa de câmeras em uniformes das PMs, que vinham reduzindo a letalidade da corporação. A decisão ocorre depois de duas operações policiais matarem 74 pessoas na Baixada Santista. A iniciativa do governo parece passar um recado claro: a violência fardada não deve ser contestada nem controlada por ser capaz de eliminar ou amedrontar os bandidos e assim produzir ordem e sujeição.

Não adianta acusar a imoralidade ou a disfuncionalidade do método, que na história recente vem contribuindo para fortalecer as facções e as milícias. Trinta e dois anos atrás, o massacre do Carandiru, o mais letal da história paulista, deixou 111 mortos. Em vez de intimidar o crime, a chacina estimulou reação e revolta. Foi a semente do Primeiro Comando da Capital (PCC), a facção criminal mais poderosa de São Paulo, criada no ano seguinte, com um discurso de união dos presos como resposta à covardia do Estado. No Rio, a letalidade da polícia, que sempre andou junto com a corrupção, originou as milícias.

Cena 3: lideranças da política, da economia e da sociedade civil passam a apontar o nome de Tarcísio de Freitas como representante da direita para disputar a eleição presidencial de 2026. Editorais de jornais tradicionais elogiam seus planos vazios de ajustes de gastos, como se uma alegada racionalidade econômica pudesse se sobrepor à barbárie das crenças políticas do governador forjadas no bolsonarismo. Nesse período, o governador publicou um decreto liberando as entidades religiosas da cobrança de ICMS sobre bens importados, desde que destinados à “finalidade essencial” das igrejas.

Armas, dinheiro, religião e poder. O projeto de futuro da extrema direita para o Brasil segue popular, mesmo sem a presença histriônica de Jair Bolsonaro. Com Tarcísio de Freitas, a lógica por trás desses planos fica mais clara, em resposta a um novo ciclo político autoritário que atinge não apenas o Brasil, mas diversos países do mundo.

Nesse cenário, o otimismo em torno do papel do Estado como condutor do desenvolvimento saiu do imaginário político. Alcançou seu auge no Pós-guerra, perdeu força nos anos 1980 e se fragilizou com a derrocada dos regimes socialistas. No Brasil, o papel do Estado na garantia dos direitos sociais e civis, em uma sociedade de mercado, seguiu como referência importante nas décadas de 1990 e 2000, tendo como inspiração as sociais-democracias europeias.

Essa crença forjou as diretrizes ideológicas dos partidos progressistas da Nova República. PT e PSDB se formaram depois da ditadura, a partir de nomes vindos dos movimentos sociais, sindicatos e universidades. Seus líderes apostavam que a retomada da democracia poderia criar mecanismos para que os pobres votassem em políticos que representassem seus interesses de classe, criando, quem sabe, uma sociedade menos desigual e mais justa. O liberalismo e a direita ficaram sem discurso, diante do tamanho do passivo social. Restava aos seus representantes se aliar ao governo da vez.

A defesa da violência policial, contudo, se fazia presente na desfaçatez e omissão dos governantes diante dos abusos das polícias. Era defendida de forma explícita apenas por políticos nanicos, como Bolsonaro, que tinham votos, mas não eram levados a sério e não disputavam cargos majoritários.

Esse otimismo com o papel do Estado e da política se esvaiu ao longo dos anos. O Estado não conseguiu produzir a justiça social almejada. Nas cidades, o valor da vida se revelou proporcional a quanto se ganha. Sem dinheiro, não era difícil perceber, não havia segurança, moradia, saúde, educação, higiene, e muito menos respeito. O mercado e a capacidade de ganhar dinheiro se consolidaram como a única solução viável para enfrentar a miséria. A luta se tornou mais individual do que coletiva.

Esse ceticismo abriu espaço para o fortalecimento da extrema direita, que cresceu depois da crise política e econômica acirrada pela Lava Jato. As redes sociais criaram as condições para a formação da tempestade perfeita. Suas bolhas algorítmicas popularizaram os discursos de ódio em defesa da guerra contra os inimigos da nação, fundamentais para a eleição de Bolsonaro. O desastre do bolsonarismo na pandemia e o desmonte das políticas públicas no Governo Federal não foram suficientes para reduzir os ânimos de seus apoiadores. Bolsonaro, contudo, é carta fora do baralho nas eleições de 2026.

Com Tarcísio de Freitas incensado, os contornos do projeto de futuro deste grupo ficaram mais evidentes. Riqueza e progresso devem ser garantidos pelo mercado. O Estado tem dois papéis principais. Primeiro, não atrapalhar a sanha empreendedora dos que estão focados na busca pelo lucro. De preferência, dar um empurrãozinho aos empresários aliados. Podem ser garimpeiros, grileiros, armamentistas, incorporadores da orla nas praias, os donos dos planos de saúde, líderes das igrejas, jogadores das bets, investidores do mercado financeiro, organizadores de pirâmides, entregadores de aplicativo. Em segundo lugar, cabe ao Estado armar suas polícias ou incentivar a formação de milícias para travar uma guerra em defesa da propriedade privada.

A religião tem um peso estratégico na legitimação dessa ideologia ultraliberal entre as massas, porque sacraliza a prosperidade e demoniza a luta social e o controle do mercado. O simbolismo sagrado ajuda a transformar a guerra dos neoliberais numa luta do bem contra o mal, uma suposta defesa da tradição da cultura judaico-cristã ocidental contra os comunistas e esquerdistas ateus.

Além disso, a religião ajuda a criar entre as massas a confiança na própria capacidade de ganhar dinheiro. Pobres e ricos dispostos a empreender, crentes na força do mercado, acabam se juntando do mesmo lado da guerra, que passa a transcender as diferenças entre as classes.

O problema é que esse sistema não se sustenta. Com o avanço das novas tecnologias e a crise da sociedade do emprego, o mercado vem se tornando mais restritivo. A riqueza se concentra nas mãos de poucos, criando uma pressão cada vez maior sobre as massas que ficam de fora. O protagonismo crescente dos militares é um dos sintomas desse quadro. Eles serão cada vez mais necessários para proteger os ricos em suas ilhas de prosperidade.

A popularidade dos homens fardados nas escolas também dialoga com esse fatalismo ultraliberal. Resta aos educadores formarem cidadãos disciplinados, obedientes, que aceitem fazer parte do jogo e ganhar o suficiente para respirar. Melhor esquecer o pensamento crítico, que repense a forma de viver no mundo, que domestique o mercado, que busque maneiras de distribuir a riqueza altamente concentrada entre poucos.

Diante desse Estado policial fragilizado, sem projeto de futuro, em que poder passa a ser sinônimo de dinheiro e fuzis, os grupos armados ganham cada vez mais protagonismo político. Nas principais cidades brasileiras, tiranias que controlam o cotidiano e impõem suas regras em benefício de seus negócios já fazem parte da realidade. Alguns grupos são financiados pelo bilionário mercado de drogas, altamente lucrativo por ser ilegal, com imensa capacidade de corromper agentes públicos. Já as milícias estão dentro do sistema, dada sua estreita ligação com a política.

Pode parecer novidade, mas é algo antigo e presente na história brasileira. Durante 350 anos de colonialismo, a manutenção e a reprodução da sociedade escravista misturavam dinheiro, violência armada e fé para defender os interesses de uma minoria contra a maioria da população. Os séculos passam, mas a lógica continua a mesma. Um poder que tenta se impor pela força, sem legitimidade para criar um mundo viável para a maioria dos brasileiros. O projeto de futuro da extrema direita se inspira nos piores traços de nosso passado.

Crises e hegemonias — história em processo, por Juliane Furno

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Juliane Furno – A Terra é Redonda – 12/06/2024

Comentário sobre o livro recém-lançado de Leonardo Severo

Os últimos 20 anos têm sido particularmente intensos para aqueles pesquisadores, analistas, militantes e curiosos sobre a geopolítica internacional. A forma de exercício de uma hegemonia imperialista quase sem competidores, que caracterizou cenário internacional da década de 1980 até o início dos anos 2000 – vocalizada pelo poderio bélico, cultural, monetário e político dos EUA – foi cedendo espaço para disputas, cada vez mais acirradas, no sistema interestatal.

A análise das questões prementes – a quente, diria – que ocupam os noticiários, os pesquisadores e as organizações sociais, padecem de parcialidade ou de um senso curtoprazista quando não são acompanhadas de reflexões que coadunam os elementos conjunturais aos estruturais.

Os conflitos geopolíticos atuais, sejam aqueles que se expressam de forma belicistas aberta ou aqueles que se utilizam de técnicas de guerra comercial, são expressões fenomênicas de dinâmicas sócio políticas assentadas em processos mais profundos, relacionados a forma com que, muito brevemente, o capitalismo concorrencial transmutou-se em capitalismo imperialista, tão logo o capitalismo atingiu a sua “maturidade”, determinada pelo atingimento de uma das suas leis tendenciais, que é a da concentração e centralização de capital, tendo como consequência a tendência ao oligopólio/monopólio, explicitando uma forma econômica em que a “livre concorrência” é substituída por uma nova forma de “concorrência”, restringida a poucos grandes grupos econômicos vinculados aos seus Estados nacionais de origem.

Nesse sentido, o livro de Leonardo Severo nos situa nesse ponto. Ao mesmo tempo em que trata das questões contemporâneas, que dizem respeito não somente as formas de Estado; aos ciclos de hegemonia; as disputadas geopolíticas atuais e até mesmo projeta desafios para a superação do capitalismo, também nos convoca a refletir as condições sócio-históricas em que esse modo de produção – que vamos, oxalá, juntos superar – se formou, atentando para o caráter histórico e, portanto, transitório do capitalismo, bem como as estruturas que seu desenrolar criou: as desenvolvidas, localizadas no centro e as subdesenvolvidas e dependentes, localizadas na periferia.

Para tanto, Leonardo Severo organiza um livro em que nos dois primeiros capítulos o debate teórico pede passagem. São apresentados, sob uma perspectiva marxista, contraposta a um conjunto de outras leituras, os elementos históricos sob os quais o capitalismo não pode prescindir para se consolidar como tal, com destaque especial para o papel que a América Latina e outras regiões periféricas cumpriram na “assim chamada acumulação primitiva de capitais”, na bela e eternizada expressão de Karl Marx.

Afinal, o capitalismo não é um modo de produção que nasce de geração espontânea, nem tampouco se consolida porque dispõe das características que melhor se relacionam a aquilo que é “natural” dos seres humanos que é a “propensão a troca”, tal como apregoado pelos teóricos da economia política clássica e do liberalismo político, na tarefa de legitimar a superioridade da sociedade do capital sob as formas pregressas de organização social.

Leonardo Severo aponta com presteza que o que singulariza e nos permite falar, propriamente dito, em capitalismo, é o fim da servidão voluntária e demais formas de coerção extraeconômicas e a constituição de um mercado novo, a saber: o mercado onde se comercializa, de forma livre, a compra e a venda de força de trabalho. Portanto, só há capitalismo quando há expropriação dos trabalhadores dos seus meios de produção e a obrigação de que exista um espaço – de preferência minimamente regulado – em que a mercadoria força de trabalho possa ser livremente negociada, em uma aparência troca de equivalentes, onde se troca tempo de trabalho por um salário monetário, possibilitado pela existência privada dos meios de produção.

Mais adiante, Leonardo Severo debate as transformações pelas quais esse modo de produção passou ao longo do tempo, conferindo ênfase – sobretudo – as crises; as trocas de hegemonia; as fases mais ou menos concorrenciais ou mais ou menos intervencionistas com relação ao papel do Estado e, por fim, mas não menos importante, a transformação mais substancial pela qual passou o imperialismo (a qual também comporta suas fases) que foi a transformação do capitalismo atomizado e livre concorrencial em capitalismo monopolista e imperialista.

A visualização das particularidades desse fenômeno, antecipadas por Marx, foi o que permitiu a Lênin apontar, com exatidão, que o imperialismo não era tão somente uma política de governo, tal como apregoado por John A. Hobson ou mesmo por marxistas como Rudolf Hilferding, senão que uma fase, a fase própria do capitalismo monopolista, com todas as suas particularidades tão bem apontadas pelo militante russo, como a partilha do mundo; a mudança para uma política comercial de exportações de capitais; a criação de um novo agente político, o capital financeiro, que reuniria o capital bancário com o capital industrial com hegemonia do primeiro entre outros aspectos.

Na segunda parte, embora ainda recorrendo a temas de natureza demasiadamente teórica, Leonardo Severo trata de “atualizações”, trazendo à baila autores que buscaram interpretar e reinterpretar a outra face dialética do imperialismo que é a dependência. Para tanto, Leonardo recorre à original e latino americana Teoria marxista da dependência (TMD).

Diferentemente da percepção simplista de que desenvolvimento e subdesenvolvimento partem de uma substância em comum, a Teoria marxista da dependência analisa ambos são constitutivos de uma mesma unidade dialética. Assim, eles são antagônicos, por se tratarem de situações distintas, mas são complementares porque ensejam uma mesma lógica de acumulação. Ou seja, o processo de desenrolar do modo de produção capitalista em escala global dá origem a dois tipos de economias que desenvolvem-se em ritmos e intensidades distintas umas das outras.

De uma perspectiva da totalidade, e a partir de uma apreensão do movimento da realidade pautada na dialética, o subdesenvolvimento não só se origina, mas é parte necessária e constitutiva da expansão do capitalismo mundial, não podendo – dessa forma – ser superada nos marcos desse modo de produção. O capitalismo “sui genersis” a que se referia Ruy Mauro Marini não responde a um capitalismo “menos” capitalista ou não plenamente desenvolvido como tal. O capitalismo dependente não representa uma “falta” de capitalismo. A dependência é uma forma propriamente capitalista de subordinação internacional, diferentemente da dominação colonial. Ou seja, é um tipo particular, uma estrutura própria do modo de capitalista de produção e reprodução.

Das diversas contribuições da Teoria marxista da dependência para caracterizar a dependência, gostaria – nesse prefácio – de me ater a “Transferência de valor”, como uma tendência estrutural
e que se reflete em diferentes níveis da vida social. Para ficar em apenas um exemplo contemporâneo: um dos principais constrangimentos das economias dependentes e que, atualmente, atinge duramente a Argentina, são os déficits no balanço de pagamento, ocasionado pela tendência de transferir mais recursos ao exterior do que absorver internamente.

Esse fenômeno é intensificado, paradoxalmente, por soluções que buscam seu contorno, como Investimento Direto Externo produtivo. No entanto, o pagamento de royalties e as remessas de lucro, no médio e longo prazo, vão deteriorando o lado financeiro das contas nacionais, gerando necessidade de outras formas de atração de capitais especulativos e de curto prazo, especialmente via taxa de juros apreciadas para o equilibrio do balanço de pagamento e impondo a chantagem da “fuga de capitais” a qualquer tentativa de política econômica de caráter antimercado.

Do ponto de vista mais teórico e em um grau mais elevado de abstração dentro da teoria marxista, a “transferência de valor” é uma categoria imbricada nos desdobramentos da Teoria do valor de Marx e aí vou me dedicar a primeira forma que Ruy Mauro Marini aponta de transferência de valor, que é a que ocorre na dinâmica das trocas no mercado internacional entre estrutura econômicas distintas (desenvolvidas e subdesenvolvidas) e caracteriza-se pelo fato de uma parte do mais valor produzido pelas economias dependentes não ser apropriado por elas, mas ser transferido às economias centrais, passando a integrar a dinâmica da acumulação de capital no centro, em detrimento da periferia.

Em um rigoroso esforço metodológico com base na análise da concorrência empreendida por Marx no livro III de O capital, Ruy Mauro Marini identifica que a transferência de valor obedece aos diferenciais de produtividade do trabalho empregado por distintas estruturas de composição orgânica do capital entre os países centrais e os dependentes. Assim, considerando o processo social de produção de mercadorias e com base na teoria do valor, cada um dos capitais possui valores individuais distintos e são tanto menores quanto maior for a produtividade e composição orgânica do capital.

Como as mercadorias obedecem a lei do valor, mas são vendidas pelo valor no mercado – os capitais com produtividade acima da média vendem suas mercadorias pelo valor de mercado, desviando-se dos valores para cima do preço de produção, e assim apropriam-se de um quantum de mais valia para além daquela que eles mesmo produziram. Em função do tipo de colonização e da obstacularização do desenvolvimento pregresso dos países latino americanos, as economias dependentes possuem capitais que operam com produtividade abaixo da média, o que as leva a produzir mais valor do que aquele de que conseguem se apropriar. Esse desnível de produtividade é um primeiro mecanismo de transferência de mais-valia produzida nos países dependentes e apropriadas pelo centro.

Por fim, o autor opta por um capítulo em que debate hegemonia, Estado e formas de transição, além de apontar – ainda que maneira mais dispersa – elementos “a quente” da conjuntura internacional. Sobre esse tema gostaria de tecer um comentário final, em concordância com o que já apontou o autor, apenas para reafirmar esse ponto.

Pode-se asseverar, com base na análise da sociedade brasileira, que o período de interregno entre os anos de 1914 e 1980 – com todas as suas especificidades – logrou aos brasileiros um maior raio de manobra para o exercício mais autônomo das suas decisões de nível político e econômico. O que explica esse período particular foi a coexistência de uma crise e posterior disputa de hegemonia no sistema interestatal, selada em eventos como a ocorrência de duas grandes guerras mundiais; uma dramática crise financeira seguida de forte depressão do capitalismo e um acordo internacional que disciplinou o sistema monetário internacional bem como os fluxos internacionais de capitais.

Mas não somente isso. A rivalidade entre dois modelos de sociedade, representados pelas duas maiores potências – URSS e EUA – impôs certos freios à face mais verdadeira do capitalismo, assim como mobilizou um conjunto de revoltas e revoluções pelo farol que representava a retaguarda das experiências de socialismo real, com todos os seus limites históricos.

Dos anos 1980 em diante, aquela “janela histórica” se fechou, bem como as margens de exercício da soberania dos povos periféricos, com a o fim da URSS; o golpe dos juros pelo banco central norte americano; a proporção que adquiriu o capital financeiro e a financeirização das economias e o exercício do imperialismo norte americano, agora sem rivais.

Para a periferia, tais eventos, coadunados com a transformação do capitalismo em capitalismo neoliberal, limitaram o raio de manobra da nossa autonomia internacional, e mergulhamos em acordos, tácitos ou não, em que foi dirimida a presença do Estado como agente do desenvolvimento nacional, restringindo os instrumentos de atuação no campo econômico, com a criminalização de um conjunto de políticas das quais fizeram uso, justamente, as nações hoje desenvolvidas no seu percurso de desenvolvimento.

A questão que o trabalho do Leonardo Severo nos sugere, no alvorecer dos nossos tempos, abalados por um conjunto sucessivo de crises e lutas pela conquista/contestação da hegemonia é: com a existência de um novo campo no sistema internacional, dirigido por China e Rússia, em conflito aberto com os EUA, passando pela sua contestação no campo político, econômico, tecnológico, monetário e, até mesmo militar com a tentativa de freios à expansão da OTAN, nos relega melhores condições de avanço na luta política rumo a abertura de margens de manobra perdida no último período?

É possível que instrumentos como os BRICS; as tentativas de construção de moedas comuns; as alianças comerciais; transferências tecnológicas e estreitamento das relações políticas abram caminho para a contestação e posterior enfraquecimento do imperialismo norte americano e, com isso, a tão sonhada possibilidade de fazer valer a autonomia dos povos?

Essas e outras questões podem e devem ser especuladas e teorizadas pelos pesquisadores, pelos intelectuais e pelas organizações políticas, muito embora a história seja um palco aberto e, seus desdobramentos reais, não caibam em previsões apriorísticas. Fiquemos com o que nos é possível! As armas teóricas e a luta política.

*Juliane Furno é professora de economia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Autora, entre outros livros, de Imperialismo: Uma introdução econômica (Editora DaVinci).
Referência
Leonardo Severo. Crises e hegemonias: história em processo. São Paulo, Editora Dialética, 2024.

Propostas para educação requerem sólidas evidências, por Maria Hermínia Tavares

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Não é o que se vê com a lei aprovada em SP sobre escolas cívico-militares

Maria HermíniaTavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 12/06/2024

Para cada problema complexo a extrema direita tem a proverbial resposta: simples e errada.

É o caso do Programa Escola Cívico-Militar, que o bolsonarismo, com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, à frente, conseguiu transformar em lei em fins de maio último.

Destinado às escolas públicas do estado que a ele queiram aderir, o tal programa prevê atividades que caibam no figurino, complementares ao currículo escolar.

A gestão da coisa caberá à Secretaria de Segurança; a execução a PMs da reserva, promovidos a monitores. Os colégios que aderirem ao esforço patriótico receberão apoio financeiro para executá-lo. Professores civis e monitores militares embolsarão adicionais à sua paga: afinal, ninguém é de ferro.

Não está claro no que consistirão as tais atividades cívico-militares. Vídeos promocionais mostram crianças em posição de sentido ou com os braços cruzados para trás, cantando o Hino Nacional ou enfileiradas para entrar nas classes.

O Brasil, como é notório, não se distingue pela qualidade da educação pública, responsável por quase 70% das matrículas no ensino básico. São Paulo tampouco. Assim, seria de esperar que quaisquer iniciativas visando a melhoria da educação se arrimassem em sólidas evidências do que dá certo ou não nesse combalido setor.

As escolas cívico-militares foram criadas no governo Bolsonaro em escala nacional. Ficaram faltando avaliações abrangentes de seus resultados.

Ainda bem que não faltam excelentes trabalhos sobre o que vem dando certo para melhorar o ensino público, em várias partes do país. É o caso da ONG Todos pela Educação, dedicada ao tema, com seu cuidadoso estudo das políticas bem-sucedidas em estados ou cidades onde é de aplaudir o desempenho de alunos dos ciclos fundamental e médio.

O levantamento indica que não há uma receita milagrosa para o que se busca, mas um conjunto variado de medidas. Um ambiente escolar organizado, vai sem dizer, é parte do caminho percorrido. E nenhum dos casos conferidos pode ser creditado às presumíveis habilidades específicas de policiais militares aposentados. Muito menos à única forma de disciplina que conhecem: a da obediência à rígida hierarquia de comando.

Como em todas as soluções da lavra da extrema direita, a lei aprovada pelo Legislativo paulista mistura arrogante ignorância sobre o problema; exploração do anseio da população por ordem; agrado ao primitivismo da militância bolsonara; e, de quebra, benefícios a sua clientela fardada.

Rigorosamente nem sombra de parecença com a educação de qualidade que deveria preparar para o “exercício consciente da cidadania”.

Avanços extremistas, por Hélio Schwartsman

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Centro político é o vitorioso nas eleições para o Parlamento Europeu, mas direita radical obteve sucessos

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.
Folha de São Paulo, 10/06/2024

O centro foi o grande vitorioso nas eleições para o Parlamento Europeu, mas a extrema direita
obteve avanços importantes em vários países notadamente a França. É difícil avaliar o alcance exato dessa votação. Eleições para o Parlamento Europeu costumavam ser uma ocasião privilegiada para o voto de protesto. Nelas, o eleitor podia mostrar sua insatisfação para com os governantes nacionais sem arriscar bagunçar muito a política local.

É um pouco com isso que conta o presidente francês, Emmanuel Macron, ao dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições legislativas antecipadas. Seu cálculo é que, diante da perspectiva real de a extrema direita obter maioria na Assembleia, os eleitores de esquerda, centro e da direita republicana se mobilizarão para evitar tal desfecho. Foram “cordons sanitaires” como esse que asseguraram as duas vitórias de Macron contra Marine Le Pen nas presidenciais.

Se vai funcionar de novo é outra questão. Apesar de a extrema direita ter sido derrotada anteriormente, ela não deixou de crescer na preferência do eleitorado e não há lei de ferro que a impeça de triunfar no pleito de junho/julho. A jogada de Macron tem lógica, mas é arriscada.

O avanço da extrema direita na Europa me leva a duas constatações, uma mais tranquilizadora e outra bastante inquietante. Pelo lado menos negativo, como já observou Adam Przeworski, a direita radical da Europa Ocidental é de uma variante menos tóxica do que suas congêneres das Américas e da Europa Central. É uma direita nacionalista, anti-UE, anti-imigração e anti-Islã, mas que, ao contrário de Trump, Bolsonaro e Orbán, não viola as regras básicas da democracia.

Do lado mais preocupante, o crescimento global da extrema direita está calcado no voto jovem. Nós fizemos algo de bastante errado se não conseguimos convencer as novas gerações de que o pacto liberal-democrático é algo em que vale a pena apostar.

Momento Econômico

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Depois de grandes transformações na economia internacional no século XXI, geradas pela crise financeira dos anos 2007/2008, a ascensão da economia chinesa e a pandemia, responsável por mais de seis milhões de mortes no globo, percebemos que o pensamento neoliberal vem perdendo espaço na sociedade mundial, neste cenário percebemos o crescimento do intervencionismo, a retomada das políticas industriais, o incremento do protecionismo, o aumento dos subsídios governamentais e o retorno do Estado como agente planejador da economia, uma verdadeira transformação em curso na sociedade.

O pensamento neoliberal, que ganhou relevância nos anos 1970 em decorrência do enfraquecimento do pensamento desenvolvimentista, com o fortalecimento dos mercados como agente de desenvolvimento, propagandeando a redução do papel do Estado na economia, o crescimento da privatização e da desestatização, além do incremento da abertura econômica, aumento da concorrência, diminuição dos subsídios dos setores produtivos e a redução das políticas protecionistas, vistas como instrumentos de fortalecimento da economia nacional, melhorando a produtividade dos setores produtivos e o enriquecimento das nações. Como balanço destas propostas encontramos um crescimento da desindustrialização, desnacionalização, dependência externa e perpetuação do modelo primário exportador.

A economia brasileira vem passando por essas transformações estruturais, alternando modelos caracterizados por mais Estado e modelos que rechaçam as intervenções estatais, gerando momentos de instabilidades e incertezas, gerando visões e políticas públicas diferentes, uns acreditando que o mercado deve ser o agente que deve liderar o desenvolvimento econômico, outros acreditando que o governo nacional e seu investimento devem ser o motor do crescimento econômico. Neste cenário, percebemos que os grupos econômicos vivem num conflito ideológico, levando a sociedade a ausência de um verdadeiro projeto nacional, sem rumo claro e sem direcionamento próprio. Na minha visão, essa discussão é desnecessária, ultrapassada e equivocada, para construir uma sociedade mais desenvolvida, precisamos unir esforços para encontrarmos o caminho do desenvolvimento econômico, atacar fortemente as desigualdades que se perpetuam no país, investir fortemente em educação, tributando aqueles que pagam pouco imposto, revendo os subsídios e atacando as raízes da insegurança que aflige a sociedade brasileira.

Ao analisar a economia nacional e observando os indicadores nacionais encontramos muitos dados positivos internamente, taxa de juros em diminuição, redução do desemprego, inflação na mínima de dez anos, reservas internacionais em mais de US$ 350 bilhões, superávits comerciais de US$ 100 bilhões, investimentos em crescimento, Bolsas de Valores em ascensão, dados estes que levaram as agências de classificação de risco a melhorarem as notas dos títulos nacionais, com isso, essas mesmas agências acreditam que o grande desajuste no Brasil está no campo político, nos conflitos e incertezas na lógica política, onde os grupos se digladiam buscando seus interesses imediatos e deixando de lado os interesses nacionais.

Neste cenário, percebemos que os indicadores econômicos são sólidos e consistentes, mas precisamos ousar na condução da política econômica para que consigamos reduzir as grandes desigualdades históricas que acumulamos. Precisamos ainda, primeiramente atacar essas desigualdades acumuladas durante séculos, deixando de lado polarizações equivocadas e ultrapassadas que servem para incrementar nossa incivilidade e deixando claro que não estamos preparados pelos ventos da contemporaneidade, marcados por medos, incertezas e instabilidades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário;

O bolsonarismo pode voltar ao poder? por Valério Arcary

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Valerio Arcary – A Terra é Redonda – 22/05/2024

O lulismo, ou lealdade política à experiência dos governos liderados pelo PT, permitiu conquistar o apoio entre os muito pobres. Mas a esquerda, embora mantenha posições, perdeu a hegemonia sobre sua base social de massas original.
“Duas luvas da mão esquerda não perfazem um par de luvas. Duas meias verdades não perfazem uma verdade
(Eduard Douwes Dekker, Ideias).

O bolsonarismo pode voltar ao poder em 2026? Sim, pode. Devemos considerar a existência de poderosos fatores objetivos e subjetivos para explicar a resiliência da extrema direita, mesmo depois da derrota da semi-insurreição de janeiro de 2023.

Mas, em primeiro lugar, é lúcido reconhecer o contexto internacional do fenômeno, no qual a
extrema direita cumpre um papel instrumental: (a) a turbulência no sistema de Estados com o fortalecimento da China e a estratégia do imperialismo norte-americano de preservação da supremacia da Troika, para a qual uma orientação protecionista mais dura é útil; (b) as disputas provocadas pela emergência da crise ambiental e transição energética que deixam em desvantagem temporária quem fizer a descarbonização mais rápida.

(c) O giro de frações burguesas para a defesa de regimes autoritários que enfrentem o protesto popular e abracem um linha nacional-imperialista; (d) a tendência à estagnação econômica e o empobrecimento e deslocamento à direita das camadas médias; (e) a assombrosa crise da esquerda, entre outros.

Mas há peculiaridades brasileiras na fragmentação política do país. Elas são, essencialmente, cinco: (i) a hegemonia entre militares e policiais; (ii) a gravitação da imensa maioria do evangelismo pentecostal em torno da extrema-direita; (iii) o peso do bolsonarismo nas regiões mais desenvolvidas, o Sudeste e o Sul do país, em especial entre a nova classe média proprietária, ou de altíssima escolaridade que cumpre funções executivas no setor privado e público; (iv) a liderança da corrente neofascista dentro da extrema-direita; (v) a audiência da extrema direita entre as camadas médias assalariadas entre três e cinco, ou até sete salários-mínimos.

As quatro primeiras singularidades têm sido muito investigadas, mas a última, menos. Estudá-la é estratégico, porque pode ser a única possível de reverter, no contexto de uma situação muito desfavorável de relações sociais de forças ainda reacionária.

Há fatores objetivos que explicam o afastamento, divisão ou separação política entre parcelas da classe trabalhadora e os muito pobres, como a inflação da educação privada e dos planos de saúde, e o aumento do Imposto de Renda, que são ameaças a um modelo de consumo e padrão de vida, e subjetivos, como o ressentimento social e o rancor moral-ideológico. Os dois estão entrelaçados e, talvez, até indivisíveis.

Mas não foi assim quando, há quarenta e cinco anos atrás, se abriu a fase final da luta contra a ditadura. O PT nasceu apoiado nos metalúrgicos, professores públicos, petroleiros, bancários e outras categorias que, comparativamente, à realidade das massas populares, tinham mais escolaridade e melhores salários. O lulismo, ou lealdade política à experiência dos governos liderados pelo PT, permitiu conquistar o apoio entre os muito pobres. Mas a esquerda, embora mantenha posições, perdeu a hegemonia sobre sua base social de massas original. Esta trágica realidade, porque se trata da fratura da classe trabalhadora, nos impõe uma análise em perspectiva histórica.

O período do pós-guerra (1945/1981) de crescimento intenso, em que se duplicava o PIB a cada década, e que favoreceu a mobilidade social absoluta no Brasil, acompanhando a urbanização acelerada, parece ter ficado, irremediavelmente, no passado. Pleno emprego e elevação da escolaridade, em um país em que a metade da força de trabalho era iletrada, foram os dois fatores chaves para a melhoria de vida deste estrato de trabalhadores. Mas eles não pressionam mais como no passado.

É evidente que, na última década, o capitalismo brasileiro perdeu impulso. Regrediu 7% do PIB entre 2015/17 e, depois da pandemia de covid entre 2020/21, demorou três anos para voltar aos níveis de 2019. A despeito de todas as contrarreformas antissociais – trabalhista, previdenciária – que tiveram como objetivo reduzir os custos de produção a taxa de investimento não foi além de 18% do PIB em 2023, apesar da autorização da PEC de transição de furar o Teto de Gastos Públicos.

O Brasil, o maior parque industrial e maior mercado de consumo de bens duráveis na periferia, passou a ser uma nação de crescimento lento. O aumento da escolaridade deixou de ser, também, um fator de impulso tão poderoso. Melhorar de vida passou a ser muito mais difícil.
O Brasil de 2024 é um país menos pobre do que foi no século XX, mas não menos injusto. Ainda há, evidentemente, muita miséria: duas dezenas de milhões ou até mais oscilam na insegurança alimentar, apesar do Bolsa Família, em função do ciclo econômico. Mas ocorreu uma redução da extrema pobreza sem que a desigualdade social tenha diminuído, qualitativamente.

A distribuição funcional da renda entre capital e trabalho conheceu variações na margem. A distribuição pessoal da renda melhorou entre 2003 e 2014, mas voltou a aumentar desde 2015/16, na sequência do golpe institucional contra o governo Dilma Rousseff. A pobreza extrema diminuiu, mas a metade da população, economicamente, ativa tem uma renda que não vai além de dois salários mínimos. Um terço dos assalariados ganha entre três e cinco salários mínimos. A iniquidade permaneceu quase intacta porque, entre outras razões, o lugar das camadas médias assalariadas com nível de instrução mais elevada conheceu uma estagnação com viés de queda.

Inúmeros estudos confirmam que o aumento da escolaridade média não mantém relação com a empregabilidade, e as pesquisas do IBGE confirmam, paradoxalmente, que o desemprego é maior na medida em que aumenta a escolaridade. A maior parte das milhões de carteiras assinadas, desde o fim da pandemia, foi de empregos de até dois salários mínimos, com muito reduzidas exigências de formação escolar.

Consideram-se duas taxas de mobilidade, a absoluta e a relativa, para avaliar a maior ou menor coesão social em um país. A taxa absoluta compara a ocupação do pai e a do filho, ou a primeira atividade de cada um com o último emprego de cada um. A taxa de mobilidade relativa confere em que medida os obstáculos de acesso a posições de emprego – ou oportunidades de estudo – que favorecem a ascensão social, puderam ou não ser superados pelos que estavam em posição social inferior.

No Brasil, tanto a taxa absoluta quanto a relativa foram positivas até à década dos anos 1980, mas a primeira foi mais intensa que a segunda. Em outras palavras, conhecemos uma intensa mobilidade social no pós-guerra devido à pressão da urbanização e das migrações internas, do Nordeste para o Sudeste, e do Sul para o Centro-oeste. Mas deixou de ser assim. Esta etapa histórica se encerrou a partir dos anos noventa, quando o fluxo que vinha do mundo agrário se esgotou.

Desde então diminuiu a miséria, mas os trabalhadores das camadas médias experimentaram uma realidade mais hostil. O que explica esse processo é que as trajetórias de mobilidade social nos últimos vinte anos beneficiaram milhões de pessoas que viviam na pobreza-extrema, mas muito poucos ascenderam de forma significativa. Muitos melhoraram de vida, mas subiram, somente, para o degrau imediatamente acima ao que seus pais ocupavam.

A mobilidade social relativa permaneceu muito baixa, porque os incentivos materiais ao aumento da escolaridade foram, nos últimos quarenta anos, menores do que tinham sido para a geração que chegou à vida adulta nas décadas de cinquenta ou sessenta. A recompensa das famílias por manter seus filhos sem trabalhar por pelo menos doze anos, até à conclusão do ensino médio, comparativamente, à geração anterior, diminuiu, apesar do acesso mais fácil.

Um país pode partir de uma situação de grande desigualdade social, mas se a mobilidade social for intensa, a desigualdade social deveria se reduzir, aumentando a coesão social, como aconteceu na Itália do pós-guerra. Inversamente, um país que, comparativamente, aos vizinhos que ocupam um lugar semelhante no mundo, tinha baixa desigualdade social pode ver a situação se deteriorar, se a mobilidade social passar a ser regressiva, como se evidencia hoje na França.

No Brasil, contrariando o senso comum sobre o tema, a maioria dos novos empregos dos últimos dez anos não beneficiou a parcela mais instruída do povo. Estudar mais não diminuiu o perigo do desemprego. A escolaridade média subiu, nos últimos quarenta e cinco anos que nos separam de 1979, de três para mais de oito anos. Mas aconteceram duas transformações que tiveram um impacto duradouro na consciência da juventude da classe trabalhadora.

A primeira é que o capitalismo brasileiro deixou de ser uma sociedade de pleno emprego, como tinha sido durante meio século. A segunda é que, mesmo com os sacrifícios das famílias para manter os filhos estudando, adiando a entrada no mercado de trabalho, a empregabilidade se concentrou em atividades que exigem pouca escolaridade, e oferecem baixos salários. Pela primeira vez na história, os filhos perderam a esperança de poder viver melhor do que os pais.

O desemprego entre aqueles com escolaridade de nível superior é, proporcionalmente, maior que o daqueles com baixa escolaridade e, se a desigualdade pessoal de renda diminuiu nos últimos quinze anos, é porque o salário médio de integração no mercado de trabalho dos que têm média e alta escolaridade veio diminuindo. Não surpreende, portanto, a vertiginosa expansão da uberização. As pesquisas mensais de emprego do IBGE na região metropolitana de São Paulo indicam uma evolução muito lenta e próxima somente, quando muito, da recuperação da inflação.

Quase quarenta anos depois do fim da ditadura militar, o balanço econômico-social do regime de democracia liberal revela-se desanimador. As reformas realizadas pelo regime, como a ampliação de acesso ao ensino público, implantação do SUS, do Bolsa-Família para a extrema-pobreza, entre outros, foram progressivos, mas insuficientes para reduzir a desigualdade social.[i] A hipótese de que uma população mais educada mudaria, gradualmente, a realidade política do país, impulsionando um ciclo sustentável de crescimento econômico e distribuição de renda não se confirmou.

Uma forma de ilusão gradualista na perspectiva de justiça social nos limites do capitalismo foi a esperança de que uma população mais instruída mudaria, gradualmente, a realidade social do país. O que nos remete aos limites dos governos de coalizão liderados pelo PT, que apostaram na concertação com a classe dominante para uma regulação do capitalismo “selvagem”. Embora existam correlações, na longa duração, entre escolaridade e crescimento econômico, não se identificaram causalidades diretas que sejam incontestáveis, menos ainda se incluímos a variável da redução da desigualdade social, como confirma a Coreia do Sul.

O que é incontroverso é que a burguesia brasileira se uniu em 2016 para derrubar o governo Dilma Rousseff, apesar da moderação das reformas realizadas. Não deveria nos surpreender que a classe dominante não tenha tido pudores de ir até à manipulação do impeachment, subvertendo as regras do regime para tomar o poder para os seus representantes diretos, como Michel Temer. O desafio é explicar porque a classe trabalhadora não teve disposição de luta para defendê-la.

Os salários respondiam por mais da metade da riqueza nacional no início da década de noventa e, no intervalo dos últimos trinta anos, caíram para pouco mais de 40% em 1999 e, apesar da recuperação entre 2004 e 2010, ainda estão hoje, em 2024, aquém do patamar de 50% de 2014. Esta variável é significativa para uma avaliação da evolução da desigualdade social, porque o Brasil de 2024 é uma sociedade que já completou a transição histórica do mundo rural para o mundo urbano (86% da população vive em cidades), e a maioria dos que trabalham com contratos, 38 milhões com carteira e 13 milhões de funcionários públicos, recebem salários.

Outros dez milhões têm patrão, mas não têm contratos. É verdade que ainda existem 25 milhões de brasileiros que vivem do trabalho por conta própria, mas são menos, proporcionalmente, que no passado. [II] Em resumo: não melhorou a distribuição funcional da renda entre capital e trabalho. A burguesia não tem porque se queixar do regime-liberal. Ainda assim uma fração burguesa, como o agronegócio e outros apoia o neofascismo e sua estratégia autoritária.

Os dados que indicam que, dentro do universo dos assalariados, diminuiu a desigualdade social são convincentes. Mas não porque diminuiu a injustiça, embora a miséria tenha sido reduzida. Este processo ocorreu porque se verificaram duas tendências opostas no mercado de trabalho. Uma delas é, relativamente, nova, e a outra é mais antiga. A primeira foi uma elevação dos pisos salariais dos setores menos qualificados e menos organizados. O salário mínimo veio se elevando acima da desvalorização de forma lenta, porém, contínua desde 1994 com a introdução do real, acelerado nos anos dos governos Lula e Dilma Rousseff.

Este fenômeno foi novo, porque nos quinze anos anteriores tinha acontecido o inverso. O salário mínimo é uma variável econômica chave porque ele é o piso da remuneração das aposentadorias do INSS, por isso a burguesia exige a desvinculação. A recuperação econômica favorecida pelo ciclo mundial de aumento da demanda de commodities permitiu, a partir do segundo semestre de 2005, uma diminuição do desemprego que culminou em 2014 em situação de quase pleno emprego.

A massificação da distribuição do Bolsa-família parece ter exercido, também, uma pressão sobre a remuneração do trabalho manual, sobretudo, nas regiões menos industrializadas. A segunda tendência foi a permanência da queda nas remunerações dos trabalhos com exigência de escolaridade média e superior, um processo que vinha desde os anos oitenta. Em conclusão: os dados disponíveis parecem indicar que o aumento da escolaridade deixou de ser um fator de ascensão social importante, como foi no passado.

A lealdade política das massas populares ao lulismo é expressão do primeiro fenômeno. A vida dos mais pobres melhorou nos anos dos governos liderados pelo PT. A divisão entre os assalariados que ganham acima de dois salários-mínimos expressa um ressentimento social que foi manipulado pelo bolsonarismo. Se a esquerda não reconquistar confiança nesta parcela dos trabalhadores o perigo para 2026 é grande.

*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo)

Neofascismo contemporâneo, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 03/06/2024

O neofascismo é mais velado em suas expressões de racismo e autoritarismo, utilizando as mídias sociais para difundir suas mensagens e conectar seguidores globalmente

fascismo italiano e o nazismo alemão emergiram e se consolidaram em repúblicas democráticas, aproveitando-se contextos de graves crises econômicas, sociais e políticas. Essas crises criaram um ambiente propício para movimentos autoritários ganharem apoio eleitoral e tomarem o poder. Depois, destruíram a democracia.

Valer recordar, sinteticamente, os fatores específicos para o sucesso eleitoral e subsequente consolidação de poder por parte do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. O neofascismo ameaça em vários Estados contemporâneos, onde a extrema direita se organizou por meio de rede sociais, religiosas e policiais-militares, inclusive no Brasil: temos de aprender com a lamentável história.

A Itália, apesar de ter ficado do lado vitorioso na Primeira Guerra Mundial, sofreu grandes perdas humanas e materiais. O país sentiu-se traído pelo Tratado de Versalhes, porque não atendeu plenamente às suas aspirações territoriais.

A economia italiana estava em ruínas, com alta inflação, desemprego em massa e agitação social, incluindo greves e ocupações de fábricas por trabalhadores. O sistema político italiano era frágil, com uma série de governos de coalizão ascendendo e colapsando rapidamente. A incapacidade dos governos democráticos de lidar com os problemas econômicos e sociais aumentou o descontentamento popular.

Benito Mussolini e seu Partido Nacional Fascista usaram táticas de intimidação e violência paramilitar (por meio dos “camisas negras”) para criar um clima de medo e desordem. Em outubro de 1922, Benito Mussolini organizou a Marcha sobre Roma, uma demonstração de força para pressionar o rei Vítor Emanuel III a nomeá-lo como primeiro-ministro.

Uma vez no poder, Benito Mussolini rapidamente tomou medidas para consolidar seu controle. Ele obteve poderes de emergência, suprimindo a oposição e transformando a Itália em um Estado de partido único. A propaganda fascista e a repressão violenta de adversários políticos garantiram Mussolini manter-se no poder até a Segunda Guerra Mundial.

A Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial, foi severamente punida pelo Tratado de Versalhes, resultando em perdas territoriais, desmilitarização e pesadas reparações de guerra. Isso gerou um profundo ressentimento entre a população alemã.

A humilhação nacional e a percepção de traição (“a lenda da punhalada nas costas”) foram exploradas por grupos nacionalistas em ambiente econômico propício à sublevação. A hiperinflação no início dos anos 1920 e a Grande Depressão a partir de 1929 devastaram a economia alemã, causando desemprego em massa, pobreza e desespero generalizado.

A incapacidade da República de Weimar de lidar eficazmente com a crise econômica e a instabilidade política levou a uma perda de confiança nas instituições democráticas. Temia-se uma rebelião em massa, dada a revolta popular.

O Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), liderado por Adolf Hitler, capitalizou o descontentamento popular com promessas de restauração da grandeza alemã, revogação do Tratado de Versalhes e recuperação econômica.

Em eleição realizada em 1932, o NSDAP se tornou o maior partido no Reichstag, mas não obteve a maioria absoluta. Em janeiro de 1933, após uma série de manobras políticas e pressão das elites conservadoras, Adolf Hitler foi nomeado chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg.

Após o incêndio do Reichstag, em fevereiro de 1933, Hitler usou o evento como pretexto para suspender liberdades civis e prender opositores políticos. A Lei de Plenos Poderes, aprovada em março de 1933, permitiu a Hitler governar por decreto, efetivamente estabelecendo uma ditadura.

A repressão violenta de adversários, a criação de um Estado policial e a propaganda intensa consolidaram o controle nazista sobre a Alemanha.

Tanto o fascismo italiano quanto o nazismo alemão emergiram em contextos de crise extrema, onde as instituições democráticas eram vistas como incapazes de resolver os problemas da sociedade.

Em ambos os casos, líderes carismáticos utilizaram táticas de intimidação, violência e propaganda para obter apoio popular.

Porém, uma vez no poder, rapidamente desmantelaram as estruturas democráticas para estabelecer regimes autoritários. A combinação de desespero econômico, instabilidade política e ressentimento nacional criou as condições para a ascensão desses movimentos autoritários.

O nazifascismo e o neofascismo contemporâneo compartilham algumas semelhanças ideológicas e táticas, mas também apresentam diferenças significativas, devido às mudanças nos contextos históricos, sociais e políticos. Apresento abaixo uma análise esquemática das semelhanças e diferenças entre esses movimentos.

(i) Nacionalismo extremado: ambos os movimentos enfatizam um forte nacionalismo, frequentemente acompanhado por um sentimento de superioridade nacional e xenofobia. (ii) Autoritarismo: tanto o nazifascismo quanto o neofascismo advogam por um governo autoritário, rejeitando o liberalismo, a democracia representativa e as liberdades civis. (iii) Culto à personalidade: os dois movimentos promovem líderes carismáticos vistos como “salvadores da pátria”, necessitando de poder quase absoluto para realizar suas visões.

(iv) Uso da violência e intimidação: a violência e a intimidação contra opositores políticos, minorias e outras comunidades marginalizadas são comuns em ambos os movimentos com uso de grupos paramilitares e milícias para esses fins. (v) Propaganda e controle da mídia: no uso da propaganda para manipular a opinião pública e controlar a narrativa política, a mídia é atacada e desacreditada.

Mas há diferenças entre Nazifascismo e Neofascismo Contemporâneo: (a) Contexto histórico: o nazifascismo surgiu na Europa no período entre as duas guerras mundiais, em um contexto de crise econômica, instabilidade política e ressentimento pós-Primeira Guerra Mundial; o neofascismo emergiu após a Segunda Guerra Mundial e, especialmente nos últimos anos, em resposta a crises econômicas, globalização, imigração em massa e mudanças sociais rápidas.

(b) Foco ideológico: o nazismo, em particular, era centrado no racismo biológico e no antissemitismo extremo, promovendo a ideia de uma “raça superior ariana”, mas o fascismo italiano também era nacionalista e imperialista, embora com menor ênfase racial diante do nazismo; o neofascismo contemporâneo, ainda xenófobo, expressa sua islamofobia e racismo, na oposição à imigração e em um nacionalismo cultural, além de usar a retórica da “defesa da civilização ocidental” contra o multiculturalismo.

(c) Estratégias e táticas: o nazifascismo tomou o poder através de golpes de estado ou manipulação de sistemas democráticos e rapidamente estabeleceu regimes totalitários com controle total sobre o Estado; o neofascismo usa mais táticas de infiltração dentro dos sistemas democráticos existentes, tentando influenciar políticas através de partido(s) político(s), movimentos sociais e meios de comunicação, sendo mais adaptável às leis democráticas ao operar dentro das fronteiras da legalidade para evitar repressões enquanto não ascende ao poder – depois altera seu comportamento.

(d) Tecnologia e comunicação: o nazifascismo utilizava os meios de comunicação de massa disponíveis na época, como rádio, cinema e imprensa; o neofascismo explora a internet e as redes sociais para disseminar sua ideologia, recrutar membros e organizar ações, tornando-se muito mais eficaz em termos de alcance e mobilização rápida.

Portanto, o nazifascismo, incluindo tanto o fascismo italiano de Benito Mussolini quanto o nazismo alemão de Adolf Hitler, e o neofascismo contemporâneo compartilham algumas semelhanças ideológicas e de estilo. Mas também apresentam diferenças significativas devido a mudanças históricas, sociais e políticas.

O neofascismo mantém um forte nacionalismo com foco na identidade nacional e na oposição à imigração e à globalização. Sua xenofobia e racismo transparece de forma mais velada.

Promove ideias autoritárias, como a centralização do poder, restrição das liberdades civis, e uma ênfase na lei e ordem. De maneira anacrônica, expressa sua ideologia de extrema-direita ao se opor à esquerda como ela ainda fosse adepta do comunismo (ou socialismo real), utilizando a retórica da ultrapassada Guerra Fria para mobilizar apoio.

O neofascismo continua a adotar estratégias populistas, apresentando-se como “a voz do povo comum” contra as elites corruptas. Defende o armamentismo e políticas demagógicas, em suposto benefício de sua base de apoio, insustentáveis em longo prazo.

As maiores diferenças entre nazifascismo e neofascismo dizem respeito aos distintos contextos históricos e sociais. O neofascismo surge em um contexto de globalização, crises econômicas contemporâneas, imigração em massa, e a ascensão das mídias sociais. As ameaças percebidas e as questões centrais são diferentes das do período entreguerras.

Embora inclua elementos de racismo e xenofobia, tenta evitar a retórica explicitamente racista e antissemita do nazismo por ela ser considerada crime em países atentas para seu mal. Em lugar dela, foca em retórica anti-imigração e islamofóbica, disfarçada de preocupações culturais e de segurança.

Como estratégias de comunicação, o nazifascismo utilizou propaganda estatal centralizada, rádio, jornais e eventos públicos para mobilizar apoio. O neofascismo utiliza extensivamente as mídias sociais e a internet para espalhar suas ideias, mobilizar seguidores e organizar eventos. A descentralização e a natureza viral das mídias sociais permitem uma disseminação mais rápida e ampla das ideias neofascistas.

Ele se organiza de forma menos hierárquica e mais descentralizada, se comparado às milícias paramilitares como os SA e SS na Alemanha nazista. Brota de grupos informais, movimentos online e partidos políticos com negação de ser fascistas, embora adotem ideologia de extrema direita.

Embora se apresente como nacionalista, ele se conecta internacionalmente com essa extrema-direita através de redes online. Compartilha suas táticas e retóricas, mas sem as mesmas ambições imperialistas explícitas do nazifascismo.

Embora o neofascismo contemporâneo compartilhe várias características ideológicas e táticas com o nazifascismo histórico, ele opera em um contexto significativamente diferente. Por isso, adaptou suas estratégias de comunicação, organização e retórica para se ajustar às realidades políticas e sociais do século XXI.

O neofascismo tende a ser mais velado em suas expressões de racismo e autoritarismo, utilizando as mídias sociais para difundir suas mensagens e conectar seguidores globalmente. A evolução dos meios de comunicação e as mudanças nas condições socioeconômicas moldaram a maneira como essas ideologias são promovidas e percebidas hoje.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

Em defesa de um Judiciário transparente, por Gregory Michener e Sérgio Praça

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Nossos juízes não deveriam esperar que a sociedade tolere baixa transparência em troca de garantias democráticas

Gregory Michener, Professor da FGV-Ebape e fundador do Programa de Transparência Pública

Sérgio Praça, Professor e pesquisador da FGV-CPDOC – Escola de Ciências Sociais

Folha de São Paulo, 03/06/2024

“A camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal”, escreveu o jurista Raymondo Faoro em “Os Donos do Poder”, de 1958 (pág. 705).

Parece que pouco mudou desde que Raymundo Faoro escreveu essas palavras. Embora a democratização parecesse prometer uma transição de um “Estado autocentrado” para um Estado que serve ao interesse público, a República Brasileira continua sendo indulgente. Um exemplo disso é que o país arrecada a mesma receita tributária de seus cidadãos que países como Canadá e Dinamarca, embora devolva comparativamente pouco em termos de valor.

Grande parte desses excessos tem a ver com salários grotescamente desproporcionais. Com todos os seus benefícios, os juízes brasileiros ganham em um mês mais do que a maioria dos brasileiros ganha em um ano.

Não é de admirar, então, que no ano passado o Judiciário tenha consumido o equivalente a 1,2% do PIB, com mais de 80% desse montante gasto em salários. Em comparação, o Judiciário de um país europeu médio custa menos de 0,5% do PIB. Isso significa que o Brasil gasta mais do que o dobro do que países desenvolvidos, o que é inaceitável, considerando as dificuldades financeiras que temos para realizar gastos sociais e investimentos que resultem em crescimento econômico.

A autogenerosidade do Judiciário brasileiro reflete uma instituição, em grande medida, orientada mais por interesses privados do que públicos. A falta de transparência é um sintoma disso. Há pouco mais de uma década, o Programa de Transparência Pública da FGV descobriu que os níveis de conformidade do Judiciário com a Lei de Acesso à Informação do Brasil estavam entre os mais baixos de todos os órgãos públicos.

Parece que, infelizmente, pouco mudou desde então, especialmente no que diz respeito ao STF (Supremo Tribunal Federal).

Tomemos como exemplo a recente controvérsia sobre o uso de aviões da FAB por ministros do Supremo. Após jornalistas iniciarem uma investigação sobre os gastos dessas viagens, o TCU (Tribunal de Contas da União) tomou uma decisão, em 30 de abril, permitindo que “altas autoridades” —incluindo os próprios ministros— mantivessem a informação sob sigilo por “razões de segurança”.

O portal de transparência do STF saiu do ar para uma “atualização” e, ao retornar, não disponibilizava os dados sobre os gastos com viagens internacionais. Tais ações levantam sérias dúvidas sobre o compromisso do STF com a transparência e o acesso à informação. Afinal, a informação pode estar disponível online, mas se não for facilmente encontrável, não pode ser considerada verdadeiramente transparente.

Outro exemplo preocupante são as recentes decisões do STF sobre casos de corrupção. O Estado brasileiro gasta bilhões a cada ano para pagar os salários daqueles que deveriam investigar, processar e julgar a corrupção. No entanto, decisões recentes, anulações e generosos habeas corpus beneficiando pessoas indiscutivelmente corruptas deixam claro que montanhas de dinheiro público alocado para combater a corrupção são desperdiçadas.

Como resultado, a impunidade está em ascensão e a confiança pública no STF está diminuindo. De acordo com o AmericasBarometer (Latin American Public Opinion Project), 40% dos entrevistados em 2023 expressaram desconfiança no Supremo Tribunal. Em 2010, esse número era de 32,6%.

Um possível alento para a instituição pode ser o reconhecimento pelo papel importante, após a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, na defesa da democracia. No entanto, um recente estudo de Diego Zambrano, Ludmilla Martins, Rolando Miron e Santiago Rodríguez publicado no Journal of Democracy mostra que esse comportamento de defesa da Constituição contra presidentes autoritários tem sido praxe na América Latina. Considerando isso, nossos juízes não deveriam esperar que a sociedade tolere baixa transparência em troca de garantias democráticas.

A crítica à falta de transparência e à cultura de privilégios no Judiciário brasileiro não é mera retórica. O Brasil precisa e merece um Judiciário modesto, frugal e orientado ao interesse público —e não uma instituição com “conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título”, para citar, mais uma vez, Raymundo Faoro.

O alarmante apagão docente, por Débora Garófalo e Bernardo Soares

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Há crescente escassez de professores qualificados, comprometendo o ensino

Folha de São Paulo, 03/06/2024

Débora Garófalo, Professora e gestora na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, é mestra em educação (PUC-SP) e professora universitária convidada do ICMC-USP

Bernardo Soares, Professor, é mestre em educação (Universidade de Lisboa) e pesquisador em formação docente e tecnologias digitais na educação

Em texto para o jornal português Diário de Notícias, o professor Antônio Nóvoa afirmou que, das muitas profissões que desaparecerão no futuro, os professores não estarão nesse grupo. A partir disso, o pesquisador destaca o papel insubstituível do docente, mesmo diante de uma escola cada vez mais influenciada pelas tecnologias, que, de início, parecem ameaçar seu trabalho.

De fato, em um cenário de transformações estruturais na educação, o professor é a base das mudanças — realidade exposta em estudos recentes de pesquisadores escoceses, os quais reforçam que reformas “de cima para baixo” são ineficazes, sendo necessária a liderança docente nesse caminho de inovação.

Porém, há um contexto de desvalorização dessa classe no Brasil, especialmente no que diz respeito à formação inicial e à continuada, tornando a profissão cada vez menos atraente, satisfatória e, por fim, impactante.

O apagão docente já é uma realidade preocupante no nosso cenário educacional. Estudos divulgados pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) indicam uma crescente escassez de professores qualificados, comprometendo a qualidade do ensino. Para ilustrar a gravidade da situação, há escolas pelo território brasileiro que enfrentam dificuldades para preencher vagas em disciplinas essenciais, como matemática e língua portuguesa, gerando turmas superlotadas, sobrecarga de trabalho e impactando negativamente o aprendizado e a equidade.

Faltam, ainda, incentivo, definição clara da carreira, salários coerentes e condições de trabalho, contribuindo para o desinteresse, a desmotivação e a evasão de profissionais, além da dificuldade na atração de novos talentos para a carreira.

A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) destaca a importância da valorização do educador e da promoção de uma formação de qualidade, além de ressaltar que o desenvolvimento profissional deve ser pautado por princípios éticos, políticos e estéticos, buscando a formação integral do estudante e a garantia de uma educação de qualidade.

Destaca, ainda, a necessidade da reflexão sobre a prática pedagógica, que inclui novas metodologias ativas, abordagens como a cultura maker e a robótica, atualização constante e busca por aprimoramento profissional. Assim, deve-se fazer valer esse documento para reverter o jogo.

Para isso, são necessárias políticas públicas efetivas e a compreensão do docente como agente crucial na construção de uma sociedade mais justa e desenvolvida, com medidas que busquem a valorização profissional e a preocupação com sua saúde física e mental.

Para a valorização profissional, deve-se promover planos de carreira atrativos que ofereçam perspectivas de crescimento e valorizem sua experiência e qualificação, a exemplo da Secretaria Municipal da Educação de São Paulo, que se destaca nessa área. Convém, também, implementar programas de formação continuada de qualidade para a atualização e o aprimoramento de práticas e habilidades alinhadas à atualidade.

Além disso, a saúde mental precisa ser considerada para promover o bem-estar dos educadores, visto que a sobrecarga, o estresse, a pressão por resultados e a falta de apoio emocional são fatores que podem impactá-los negativamente. Por isso, é fundamental adotar programas de apoio psicológico e acompanhamento emocional através de espaços de acolhimento e orientação profissional; promover a capacitação para o autocuidado, a gestão do estresse e da saúde mental para que possam lidar com as demandas diárias; e incentivar a prática de atividades físicas e de lazer. Criar espaços de interação entre os educadores também fortalece as relações de apoio e o sentimento de pertencimento.

A educação é pilar essencial para o progresso da nação, e os docentes são cruciais nesse processo. Na verdade, ousamos dizer que educação se faz com professores no centro do debate. É urgente reconhecer e valorizar seu trabalho, garantindo condições necessárias para que possam exercê-lo com excelência e equidade e, então, impactar a aprendizagem. Só assim será possível superar esse alarmante apagão e construir um futuro promissor para a educação e o nosso país.

Há crises, como a do clima, que o mercado não resolve, avalia Nobel de Economia

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Professor de Chicago, Lars Hansen diz que é preciso descobrir formas de encorajar parcerias para preservar a Amazônia

Douglas Gavras – Folha de São Paulo, 31/05/2024

Diferentemente de políticos que se valem dos economistas de Chicago para referendar suas duras críticas ao Estado, Lars Hansen prefere a ponderação: o importante é sempre questionar se o governo pode resolver aquele problema melhor do que o setor privado.

“Há situações, como as mudanças climáticas, que o mercado por si só não consegue resolver e é preciso algum tipo de intervenção. Há outras em que os governos tentam fazer coisas que o setor privado pode executar melhor”, reforça o acadêmico.

Em 2013, ao lado de Eugene Fama e Robert Shiller, o professor da Universidade de Chicago conquistou o Prêmio Sveridge Riksbank em Ciências Econômicas em Memõria de Alfred Nobel (conhecido popularmente como Nobel de Economia), em reconhecimento a estudos de análise sobre preços de ativos, como ações e títulos.

Em meados de maio, o norte-americano participou, por videoconferência, de uma homenagem organizada pelo Insper a José Alexandre Scheinkman, economista brasileiro e professor da Universidade Columbia, em Nova York. Os dois têm estudado o potencial da amazônia para alavancar o crescimento sustentável.

Eles cooperaram, por exemplo, com o professor da PUC-Rio Juliano Assunção em um estudo que calcula quanto o Brasil ganharia ao deixar a floresta se regenerar. “O que descobrimos é que os custos econômicos são bastante modestos para mudar a orientação da amazônia. Agora é preciso encontrar maneiras de fazer com que esses custos sejam compartilhados com outros países”, diz.

Como o sr. vê os discursos de alguns políticos ultraliberais, que dizem se inspirar na Escola de Chicago para questionar a função e o tamanho do Estado?

A história da economia de Chicago tem sido muito impressionante. Quando era mais novo, em um curto intervalo de tempo, creio que de seis anos, quatro dos meus colegas ganharam o Prêmio Nobel.

Os economistas de Chicago levam a economia a sério, no sentido de que ela deveria ajudar-nos a resolver os problemas. Problemas reais.

É claro que há situações, como as mudanças climáticas, que o mercado por si só não consegue resolver e é preciso algum tipo de intervenção. Há outras em que os governos tentam fazer coisas que o setor privado pode executar melhor.

Então, acho que, do ponto de vista de Chicago, sempre é preciso perguntar se o governo pode realmente fazer determinada coisa melhor do que o setor privado. Se a resposta for não, então talvez seja necessário descobrir formas de encorajar o setor privado a ajudar a resolver o problema.

Os economistas acabam pagando a conta de certos discursos vazios?

Não estou dizendo que os economistas de Chicago sempre acertam nos cálculos. Há situações em que é muito importante que haja alguma forma de intervenção governamental, mas você quer entender o porquê disso.

Portanto, a influência de Chicago nem sempre funciona exatamente da maneira correta. Mas creio que é importante tentar garantir que se compreenda o que o privado pode fazer melhor e quando os governos são realmente necessários.

Há uma enorme quantidade de dados disponíveis atualmente para os pesquisadores, isso mudou a forma de fazer estudos em economia?

O ambiente para estudar economia mudou dramaticamente ao longo dos anos. Surgiram diversos conjuntos de ferramentas e métodos para analisar dados, e tudo isso foi positivo. Mas também acho que é muito importante ter bases conceituais para compreender o mundo, que vai além dos dados.

A própria Universidade de Chicago era uma espécie de referência em construir pontes entre uma área e outra, mas as áreas [da economia] tornaram-se cada vez mais especializadas, e tem sido difícil encontrar pessoas com experiência em múltiplos campos.

O pós-pandemia trouxe alguma mudança permanente no funcionamento da sociedade, como se chegou a cogitar durante a crise sanitária?

A pandemia pegou as pessoas de surpresa pela sua magnitude, e ainda há muito aprendizado importante a ser feito, questões que terão consequências de longo prazo, sobretudo se pensarmos no mercado de trabalho.

Antigamente, as pessoas saíam para trabalhar todos os dias, algumas delas viajavam longas distâncias para chegar ao trabalho, e isso era apenas visto como parte da rotina. A crise ensinou o trabalhador a ser produtivo mesmo sem estar o tempo todo no escritório.

Parece que cada vez mais empresas e instituições acadêmicas abriram opções flexíveis de trabalho em casa. Durante a pandemia, tivemos de fazer isso, e acredito que as consequências disso são permanentes, mesmo agora, na busca por um emprego.

O sr. fez alguns trabalhos em parceria com o economista brasileiro José Scheinkman, da Universidade Columbia. Como vocês se aproximaram?

José rapidamente se tornou um dos meus melhores colegas (se ele não tiver sido o melhor), quando estava na Universidade de Chicago. Era possível conversar com ele sobre diversos assuntos. Se observarmos seu trabalho, veremos que as áreas nas quais ele contribuiu são realmente impressionantes.

Fiquei triste quando ele decidiu sair de Chicago, mas mantivemos contato desde então. O fato de ele ser do Brasil é ainda melhor. Não consigo pensar em um economista brasileiro mais importante do que ele neste momento.

Vocês estudaram, por exemplo, os impactos positivos do reflorestamento da amazônia, em lugar de expandir a fronteira do agronegócio. A floresta pode ajudar a financiar a transição verde?

A amazônia é fascinante. O que descobrimos é que os custos econômicos são bastante modestos para que se altere a orientação da floresta.

A agricultura praticada na Amazônia brasileira não é tão produtiva em comparação com a performance do setor, em geral. No Brasil e no mundo. Isso faz com que o custo econômico da transição para atividades alternativas que preservem a floresta tropical não seja alto para a sociedade. É claro que existem desafios importantes em termos de implementação.

É preciso descobrir maneiras de fazer com que esses custos sejam antes de tudo compartilhados com outros países além do Brasil. Temos esperança de descobrir formas de encorajar investimentos externos para ajudar a preservar a floresta tropical. Isso não só ajudará o Brasil mas também o resto do mundo.

O Rio Grande do Sul está enfrentando uma catástrofe climática agora. Como os países podem se preparar para outros eventos assim?

Em termos gerais, acredito realmente que a melhor saída para essa situação é tecnológica.

Desenvolver novas tecnologias que sejam muito mais limpas e produtivas, mas isso leva tempo.

Conseguimos algumas melhorias marginais, mas, se quisermos pensar em mudanças maiores, como a fusão nuclear ou a geoengenharia solar [também chamada de modificação da radiação solar], teremos de começar a fazer coisas agora.

A questão é saber como podemos nos colocar em uma posição em que esse tipo de alternativa tenha maiores chances de sucesso. Esse é um problema no qual estou muito interessado e certamente requer continuar a pensar na redução de emissões.

Os governos nem sempre alocam recursos da maneira mais eficiente. É muito importante que os países mais desenvolvidos invistam em pesquisas e que continuem a descobrir formas de reduzir as emissões, para dar ao progresso tecnológico uma maior oportunidade de sucesso.

Salvar o planeta é o grande desafio que temos hoje?

É um enorme desafio que estamos enfrentando. Suponha que a gente consiga descobrir como lidar com a floresta tropical no Brasil. Isso certamente poderia ser parte da solução, mas há países como a China que ainda estão fortemente envolvidos com a produção de carvão, embora eles estejam fazendo esforços para fabricar carros elétricos.

A Índia tem uma população enorme e, no futuro, poderá também constituir um desafio importante para as alterações climáticas. E economias avançadas, como a dos Estados Unidos, estão envolvidas no consumo de combustíveis fósseis há muito tempo.

Então, como podemos ajudar a incentivar um país a tomar atitudes que sejam do interesse de todos? É um enorme problema, e certamente espero que possamos fazer mais progressos para resolvê-lo. Para mim, uma fonte de otimismo é a nossa capacidade de criar tecnologias novas e melhores.

As universidades americanas têm sido palco de protestos contra a ação de Israel em Gaza, e as imagens dos estudantes repercutiram mundialmente. Como esse movimento é visto por dentro?

Quando eu era jovem, o grande problema era a Guerra do Vietnã. Houve protestos estudantis
massivos. Alguns deles não foram muito produtivos, outros até terminaram em violência. Mas, na verdade, os estudavam provaram estar, em muitos aspectos, do lado certo na história. Tudo o que aprendemos nas últimas décadas foi que o Vietnã foi uma aventura militar imprudente dos Estados Unidos.

Na situação atual, o problema é muito complexo —e quero dizer que o que acontece aos cidadãos de Gaza é incrivelmente triste, mas todas as partes têm de assumir alguma culpa nisso. Existem tantas complexidades aqui. E também tem uma perspectiva histórica. Ao sair da Segunda Guerra Mundial, não está claro se havia uma forma muito prudente de resolver esse problema, e alguns aspectos disso nunca foram realmente resolvidos muito bem.

Creio que os campi universitários lidaram com isso de maneiras diferentes. Em Columbia, as coisas explodiram, infelizmente. Acho que Chicago lidou muito bem: deixou os protestos continuarem até que eles começaram a atrapalhar aspectos da vida acadêmica. A universidade cobrou uma resolução, e tudo caminhou pacificamente.

Esse movimento pode ter impactos que vão além da causa palestina?

Temo agora que haja um grupo de jovens, eleitores em potencial [já que nos Estados Unidos o voto não é obrigatório], que estão tão irritados com toda essa situação que não irão votar nas eleições deste ano. Acho que seria tremendamente triste se isso acontecesse.

Creio que os campi universitários lidaram com isso de maneiras diferentes. Em Columbia, as coisas explodiram, infelizmente. Acho que Chicago lidou muito bem: deixou os protestos continuarem até que eles começaram a atrapalhar aspectos da vida acadêmica. A universidade cobrou uma resolução, e tudo caminhou pacificamente.

Esse movimento pode ter impactos que vão além da causa palestina?

Temo agora que haja um grupo de jovens, eleitores em potencial [já que nos Estados Unidos o voto não é obrigatório], que estão tão irritados com toda essa situação que não irão votar nas eleições deste ano. Acho que seria tremendamente triste se isso acontecesse.

Lars Hansen, 71
Economista norte-americano, é professor da Universidade de Chicago (EUA) e uns dos ganhadores do Nobel de Economia de 2013, por estudos de análise sobre preços de ativos. Nos últimos anos, tem pesquisado os impactos positivos da preservação do meio ambiente para a economia

Desenraizamento institucional, por Oscar Vilhena Vieira

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Nesta semana assistimos a mais um festival de deslealdades com o nosso combalido Estado de Direito

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 01/06/2024

O ambiente institucional brasileiro vem passando por um preocupante processo de degradação na última década, que se reflete numa dificuldade cada vez maior de a lei servir como instrumento de determinação de condutas e estabilização de expectativas. E onde a lei não impera, prevalecem o arbítrio, a violência, o oportunismo, o mandonismo e uma perversa forma de extrativismo institucional.

A fragilidade do direito brutaliza a vida das pessoas, especialmente daquelas que estão mais
vulneráveis ao crime, ao arbítrio e à negligencia do Estado ou mesmo à ação predatória de algumas poderosas corporações. A fragilidade da lei deteriora a eficácia das políticas públicas, das instituições democráticas e, por consequência, a confiança na democracia. A fragilidade da lei, por fim, reduz a eficiência dos mecanismos de mercado, inibe investimentos e emperra processos de desenvolvimento econômico e social mais sustentáveis e equitativos.

É fato que a lei jamais foi levada muito a sério entre nós. A indecente e persistente desigualdade, a perversa “cordialidade”, o patrimonialismo têm conspirado incessantemente contra um enraizamento mais profundo do império da lei nessas paragens. O pacto constitucional de 1988, no entanto, favoreceu algum avanço no fortalecimento de nossas instituições. Esse processo positivo, ainda que ambíguo, começou a descarrilhar a partir de 2013, desaguando na tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, em 8 de janeiro de 2023. Se é verdade que sobrevivemos, ainda que por um triz, o processo de degradação do Estado de Direito não foi interrompido.

Importa lembrar que direito não tem força própria. Sua efetividade depende, primariamente, dum delicado equilíbrio entre aqueles que têm poder na sociedade. Sem que os poderosos se convençam de que é mais vantajoso resolver suas disputas e conflitos por intermédio das regras do jogo, o Estado de Direito não para de pé. Quando esse equilíbrio político não é alcançado ou se rompe, a vida social, política e econômica se degradam.

A efetividade do governo das leis também depende da disposição daqueles que habitam as suas instituições em cumprir com suas responsabilidades de elaborar, implementar e aplicar as leis de maneira correta e consistente. Quando as instituições responsáveis pela produção e aplicação do direito não cumprem com suas atribuições, o direito deixa de ser um instrumento crível para contribuir com a coordenação pacífica da sociedade. Sem que os detentores do poder vejam vantagem em resolver seus conflitos de acordo com as regras do jogo, o Estado de Direito não sobrevive.

Nesta semana assistimos a mais um festival de deslealdades com o nosso combalido Estado de Direito patrocinadas por maiorias parlamentares, governadores de estado e até ministro do Supremo. A resistência às câmeras policiais, a implosão de acordos de delação, o jogo perverso de vetos são apenas exemplos dessa insurgência contra o direito, por parte de quem jurou defender e garantir a Constituição e as leis.

Essa completa falta de cerimônia, manipulação ostensiva e desrespeito à legalidade têm aprofundado uma perigosa sensação de anomia —de ausência de regras—, gerando um ambiente em que prevalecem apenas as lógicas da dominação, do arbítrio e do ardil. Romper esse círculo viscoso de degradação da legalidade é hoje nosso maior desafio. Sem o enraizamento do império da lei, dificilmente alcançaremos soluções para os outros enormes desafios que temos pela frente.

Atenção aos sinais, por Oded Grajew

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Mudança climática e desigualdade estão conectadas e se retroalimentam

Oded Grajew. Presidente emérito do Instituto Ethos, conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis e idealizador do Fórum Social Mundial; fundador e ex-presidente da Fundação Abrinq

Folha de São Paulo, 30/05/2024

Meus pais eram judeus e viveram na Polônia nos anos 1930. Hitler assumiu o poder na Alemanha em 1933 e iniciou a perseguição aos judeus promulgando leis chamadas de “proteção do sangue”, que excluíam qualquer direito ao povo judaico. Em 1938, promoveu a Noite dos Cristais, que causou a destruição de lojas de judeus e a prisão de muitos deles, levados para campos de concentração.

Em todos os seus discursos, Hitler anunciava seus planos de exterminar o povo judeu. A partir da invasão da Polônia em 1938, ele começou a colocar em prática seus planos que resultaram no Holocausto.

Meus pais então levaram a sério as ameaças e os sinais e resolveram emigrar para Israel, em 1938, um pouco antes da invasão da Polônia. Tentaram convencer familiares a fazerem o mesmo.

Infelizmente, não os consideraram e foram quase todos assassinados pelos nazistas. Devo a minha vida aos meus pais terem levado a sério os sinais, o que me ensinou sobre a importância dos alertas.

Vejo agora com grande tristeza e preocupação como o mundo tem desprezado os sinais. Apesar dos alertas da quase totalidade dos cientistas sobre as consequências das mudanças climáticas promovidas por ações humanas, das evidências, de conhecer as medidas necessárias para enfrentar os riscos e de termos recursos para isso, pouquíssimas ações são efetivadas para reverter o processo. Grandes conferências do clima terminam com declarações e promessas dos governantes que quase nunca são cumpridas. Os governos se restringem a correr atrás dos prejuízos e a renovar as promessas. Enquanto isso, vidas e patrimônios são destruídos, os desastres se sucedem, o planeta continua se aquecendo e se aproximando de um caminho sem retorno que inviabilizará a vida humana.

Processo semelhante ocorre com a forma como a maioria da sociedade e dos governos encaram as desigualdades sociais. Os dados são alarmantes: os 10% mais ricos detêm 76% da riqueza e 52% da renda; metade mais pobre da população fica com apenas 2% da riqueza e 8,5% da renda. O Brasil é o oitavo país mais desigual do planeta, apesar de estar entre as dez maiores economias (vergonha!). E pior: as desigualdades no mundo estão crescendo a cada ano! As desigualdades resultam em sociedade de castas, de dominadores e subordinados, de superiores e inferiores, de lutas pela ascensão social, de conflitos e violência, dentro e entre os países. Isso quando dispomos de armas cada vez mais potentes e do aumento a cada ano dos bilionários orçamentos militares.

As desigualdades fazem as pessoas desacreditarem na democracia, causam revolta, violência e a busca por bodes expiatórios. É um terreno fértil para políticos autoritários, extremistas e populistas.

Os dois fenômenos, mudanças climáticas e desigualdades, são conectados e se retroalimentam. As mudanças climáticas aumentam as desigualdades e as desigualdades aumentam a devastação ambiental. Os dois processos representam um enorme risco para a humanidade. Sinais não faltam: desastres ambientais cada vez mais frequentes e potentes, conflitos cada vez maiores e ameaçadores, crescimento de movimentos políticos extremos e ameaças cada vez maiores às democracias. Ou levamos a sério os sinais e agimos preventivamente ou corremos o risco de chegarmos a uma situação em que seja tarde demais para remediar.