Conceição Tavares e Delfim Netto, por Daniel Afonso da Silva

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Daniel Afonso da Silva – A Terra é Redonda -16/08/2024

Nem clichê nem ilusão: a passagem de Antônio Delfim Netto (1928-2024) de par com a passagem de Maria da Conceição Tavares (1930-2024) causou um vazio imenso na vida nacional brasileira. Foi um choque, sinceramente, sem precedentes. Um sinistro, evidentemente, de difícil remediação. A ausência deles dois, por ser assim, inaugura um mal-estar que nada parece conseguir conter nem superar.

Conceição Tavares e Delfim Netto, cada um com o seu jeitão, deixaram marcas profundas,
indeléveis, positivas e superlativas na história do país e na vida de quem conviveu, muito ou pouco, com eles. Marcas tão perenes e constitutivas que, seguramente, quase ninguém, nos últimos cinquenta, sessenta ou setenta anos, conseguiu comparar. Marcas que, portanto, vão ficar. Como patrimônio imaterial do Brasil. Feito de vivência singular. Paradigma de savoir faire. Modelo.

Muitos observadores – não raramente envenenados por ideologias confusas e rasteiras – tentam afastá-los, Conceição Tavares e Delfim Netto, um do outro. Mas isso, por lógica e verdade, é impossível. Eles sempre foram complementares. E todos sabem.

Os, hoje em dia, autodeclarados analistas, tentam reduzi-los, Conceição Tavares e Delfim Netto, à condição de economistas. Sim, eles atuaram nessa nobre área, a economia. Mas, claramente, não foram convencionais. Foram, em contrário, sempre e em tudo, outiliers. Fora da cursa, excepcionais, extraordinários. Geralmente emulando os clássicos. Sendo, assim, antes de tudo, filósofos. Filósofos morais.

Como foram seus mestres atemporais Adam Smith, David Ricardo, Karl
Marx, Joseph Schumpeter e o próprio John Maynard Keynes. Praticantes, portanto, de Political Economy. Sem, nesses termos, jamais se render às simplificações da Economics.

Faziam, desse modo, Conceição Tavares e Delfim Netto, assim porque sabiam que o mundo é real independentemente das ilusões manifestas sobre ele. E, fazendo dessa maneira, eram, para além de tudo, humanistas no sentido mais agudo da expressão. Eram, portanto, verdadeiros eruditos. Mestres em seu ofício. Mas profundos entendedores do fluxo da vida.

De modo que eram práticos por devoção, pragmáticos por convicção e realistas por vocação. Isso, neles, era sempre líquido e certo.

E, vendo assim, poucos de verdadeiros seus pares – dos quais, entre os brasileiros, por idade e geração, talvez apenas Eugênio Gudin (1886-1986), Roberto Campos (1917-2001), Celso Furtado (1920-2004), Mário Henrique Simonsen (1935-1997) e Luiz Carlos Bresser-Pereira (nascido em 1934 e vivo entre nós) mereçam menção – foram, assim, tão dignos, fidedignos e completos.

Com acertos e erros. Mas sempre envoltos em honestidade e convicção.
Honestidade e convicção que impuseram a Conceição Tavares e Delfim Netto o imperativo da transmissão.

Pois eles, intimamente, sabiam que o verão necessita de muitas andorinhas. Não feitas em seguidores nem discípulos. Mas, continuadores. Gente competente para receber, carregar e legar o bastão. E, visto assim e recompondo todos os seus tempos, é possível dizer que eles dois, Conceição Tavares e Delfim Netto, foram, antes de tudo, professores/transmissores. E, por serem quem eram, dos melhores. E, salvo melhor juízo, foi nessa condição e persona que mais cada um deles mais gostou de estar e ser. De modo que, não ao acaso, a história da consolidação da universidade brasileira se confunde com a trajetória pessoal e profissional deles dois: professor Antônio Delfim Netto e professora Maria da Conceição Tavares.

Digam o que quiser dizer, mas, sim: esses dois professores, Conceição Tavares e Delfim Netto, foram, ao longo da vida, sobretudo, construtores e formadores. Construtores de instituições e formadores de quadros.

E, justamente por isso, a USP, a Unicamp e a UFRJ, onde Conceição Tavares e Delfim Netto estiveram mais longa, duradoura e diretamente, lamentaram e lamentam tanto a ausência de seus mestres. Uma ausência que, para muito além da USP, a Unicamp e a UFRJ, deixou tudo muito triste e muito gris.

Triste e gris porque, ao fim das contas, Conceição Tavares e Delfim Netto eram, em si, instituições. Instituições que, curiosamente, retroalimentavam o ethos de um tempo que, por variadas razões, parece, naturalmente, não existir mais. Um tempo que mesclava inteligência, honestidade intelectual, ideias e elegância somadas a sinceridade, honestidade pessoal e convicções. Um tempo em que, claro, os idiotas, dos quais tanto Nelson Rodrigues (1912-1980) se referia, ainda possuíam alguma modéstia e estavam longe, muito de dominar o mundo, a sociedade no Brasil e a universidade brasileira.

Dito assim e sem pudor, Conceição e Delfim eram, por assim dizer, um obstáculo moral à afirmação da indigência cultural e intelectual no país. Tanto que todas as suas manifestações públicas – em gestos, palavras, presenças e olhares –, mesmo quando controversas e imperfeitas, sempre foram convictas e rigorosas. Sempre ensejando conscientemente impedir o espraiamento do asqueroso vale tudo que, pouco a pouco, foi tomando conta dos espaços de produção e difusão de conhecimento e saber no Brasil – sendo universidade o maior alvo – nos últimos vinte, trinta ou quarenta anos.

Mas, agora, com a sua ausência, a ausência de Conceição e Delfim, esse sustentáculo – desde muito, esmaecido e cansado de guerra – tende a ficar ainda mais frágil. E frágil sim porque, sem Conceição e sem Delfim, uma certa ideia de compromisso moral com o trabalho intelectual vai perdendo a sua condição de existir. Consequentemente, a produção de conhecimento e saber tende a singrar inocuamente irrelevante. E a universidade – especialmente a pública – tende a seguir estagnada, estrangulada e esmagada.

A idiotia moral, todos sabem, galopa por todas as frentes. A indigência intelectual, todos veem, avança para conquistar a sua plenitude. E a sinergia desses dois fenômenos – o da cretinice moral e da indigência intelectual – acentua a conhecida entropia do cotidiano intramuros das universidades no Brasil de modo a acelerar a sua deformação rumo à sua destruição.

E, sobre isso, Darcy Ribeiro (1922-1997) já disse muito. Em seu entender, trata-se de algo que vem de longe. Que foi bem pensado e bem cosido. E, com o tempo, foi se revelando no nefando projeto de se fazer do atraso da universidade (e da educação em geral) uma missão.

O problema geral é que esse projeto – inaugurado no regime militar, acelerado depois dele e afirmado neste quarto de século XXI – foi escancarado greve dos docentes das federais deste ano de 2024 e afirmado como uma cruel e inequívoca realidade. Basta lembrar pra ver. Mas quem desejar, de fato, tudo comprovar, que retorne à ambiência da paralisação deste ano.

Fazendo isso, desde que feito com paciência e sem parti pris, o cético observador vai rápido notar que, no frigir das questões, pelo menos, três reflexos alimentaram as discussões e inundaram os espíritos.

Um primeiro, de cunha afoita e majoritariamente sindical, em defesa da greve. Um segundo, de franca mistura governista, em recusa e negação da greve. E um terceiro, assentado em questões de ordem e princípios, sugerindo o caminho do meio; ou seja, o caminho da reflexão e da meditação sobre o sentido da universidade, a natureza da atuação de seus frequentadores e o lugar dessa instituição multissecular no interior da sociedade brasileira.

Foi isso e não mais que isso o que se teve. A saber, posições a favor, contra e nem a favor nem contra a greve. E, sendo assim, esses três reflexos produziram uma massa crítica e analítica impressionantemente inédita e rica. Parte disso, é válido reconhecer, pelo papel decisivo exercido pelo site A Terra é redonda.

Observando todo o debate com calma, publicou-se, nos mais de oitenta dias da greve, perto de duas centenas de artigos sobre o assunto. E, sinceramente, não foram quaisquer artigos. Foram artigos, em geral, muito bem informados e intencionados. Produzidos por docentes de todas as regiões e sub-regiões do Brasil. Das mais remotas às mais centralmente situadas. Reunindo-se, assim, impressões e sensibilidades oriundas de praticamente todas as realidades universitárias.

Das instituições federais, universidades e institutos, mais antigas às mais recentes e às novíssimas. E, realizando-se, assim, a melhor e mais densa fotografia do ofício docente nas federais hoje.

De minha parte, inaugurei uma modesta colaboração com um singelo artigo, muito gentilmente publicado aqui, no início da greve, no dia 15 de abril, dia 1 da paralização, sob o título de “A greve dos professores das universidades federais”, onde se podia ler que, em minha compreensão,

“Não vem, assim, ao caso defender ou não a greve dos professores das federais por merecidas, constitucionais e morais reposições salariais. O fundamental é se recobrar nas forças para se reconhecer com honestidade a brutalidade do peso derrota de cunho existencial dos últimos anos e enfim voltar a meditar com seriedade sobre pra quê todos nós professores das federais e das demais universidades brasileiras efetivamente servimos”.

Adiante, como desdobramentos de reafirmação de minha convicção, apareceriam “Muito além das relvas verdejantes dos vizinhos” e “Navegando a contravento”. Dois artigos produzidos em diálogo, sempre sincero e respeitoso, com argumentos contrários aos meus. Onde pude ressaltar que “A greve dos docentes das federais enseja decorrer de desconforto muito mais profundo, fundamental e quase existencial”.

E, de modo mais detalhado, ainda acentuar que “Afinando o debate nesse tom do diapasão, apoiar ou denegar a greve vira uma estranha navegação. Navegação a contravento. Sem bússolas e sem direção. O que, por certo, não retira a legitimidade de todas as ações de paralisação ou de negação da paralisação nas federais. Entretanto, infelizmente, simplesmente, sinceramente, indireta, mas insistentemente, vai jogando água nos moinhos daqueles, notadamente extramuros, que consideram que ‘A universidade brasileira, salvo raros quadros, é inofensiva, inócua. Mesmo assim, alguns estão debatendo o que a greve poderá fazer com o governo (desgoverno) Lula’”.

Essas singelas manifestações – em linha com um artigo anterior, “Alicerces desertificados” –, como se pode, de saída, notar advogavam pelo caminho do meio. Aquele da meditação e da reflexão.

Um caminho, sinceramente, perigoso. Sobretudo quando se circula sem armaduras pelo interior do sistema. Um sistema, como bem sabido, preenchido de armadilhas e eivado de terrenos movediços que, não raramente, mostram a sua face na forma de represálias e admoestações. Esse habitat, todos sabem, detesta divergentes.

Mas, desta vez, não singrei sozinho tampouco arei o mar. Bem do contrário. Tão logo a greve foi se afirmando, vários docentes da mais alta qualidade intelectual, competência técnica e valores morais e espirituais adentraram a trincheira em comum e, sinceramente, sofisticaram a globalidade dos argumentos que impõe a todos o caminho do meio.

Para ficar apenas em alguns, vale fortemente acentuar que a professora Marilena Chaui subiu indelevelmente o nível da discussão com o seu precioso “A universidade operacional”. Em seguida, o antigo reitor da UFBA, João Carlos Salles, alargou a senda guiada de sua colega de ofício da USP com o seu sugestivo “Mão de Oza”. Mais à frente, foi a vez do professor Roberto Leher, antigo reitor da UFRJ, ampliar ainda mais a complexidade cognitiva do debate mobilizando evidências contundentes que quase ninguém sabiam ou, ao menos, ainda não tinha observado em perspectiva.

Desse modo, eles três – para ficar apenas neles, Chaui, Salles e Leher – estraçalharam a mesquinhez da discussão varejista sobre apoiar ou não a greve dos docentes em 2024 e lançavam a discussão em um, verdadeiro, outro patamar. Um patamar que, sinceramente, teve o mérito de avivar o único debate urgente, necessário e válido sobre a universidade brasileira que diz respeito à permanente perquirição de seu sentido, natureza e dignidade. Trocando em miúdos, qual universidade, universidade pra quê e universidade pra quem.

É curioso, mas foi assim. E fazendo assim eles se reataram ao elo perdido das batalhas de Conceição Tavares e Delfim Netto, que sempre foi a educação.

Conceição Tavares e Delfim Netto sempre singraram os mares agitados e controversos da excelência do ensino superior brasileiro. E, nesse sentido, eles sempre foram defensores implacáveis de uma universidade pública, digna e honesta. Um espaço intelectualmente decente, culturalmente relevante e politicamente engajado no aperfeiçoamento da sociedade brasileira – leia-se: na redução de suas aporias, desigualdades e injustiças. E, portanto, uma universidade avessa ao atraso, à estagnação, à indigência, ao ensimesmamento e à mediocrização.

Conceição Tavares e Delfim Netto, nesse propósito, foram, sim, teóricos, mas também práticos. Veja-se, como exemplos, os departamentos de Economia que eles, com seu suor, criaram. Mas, no plano mais geral, foi no início da redemocratização, na viragem dos anos de 1970 para os de 1980, que eles – e todos – começaram a notar que a deriva da universidade brasileira em geral ao encontro do atraso era grave, crônica e acelerada. Mas, depois do Muro e sob a mondialisation heureuse, essa primeira apreensão virou pesadelo.

Os ingênuos dilemas que envolviam provincianismo versus cosmopolitismo tornaram-se mais acentuados. As inconsequentes reações que aplacavam complexos de interioridade versus receios dos grandes centros, com o início da expansão da interiorização da malha universitária pelos interiores do país, produziram verdadeiras deformações e dramas – alguns deles, ainda hoje, não superados. Mas, pior que tudo isso, os ventos daqueles tempos depois do Muro inebriaram os olhares, taparam os ouvidos e soterraram a quase totalidade do ensino superior público brasileiro nas ilusões do utilitarismo técnico frente aos imperativos do pensamento complexo.

Como resultado, como bem notou Marilena Chaui, abriu-se caminhos para o surgimento dessa excrescência denominada “universidade operacional.”

De todo modo, vale bem marcar, por aqueles tempos, in real time, sob as tormentas dos anos de 1990, Conceição Tavares e Delfim Netto militavam em outras paragens. Estavam no Parlamento. Eram deputados. Acreditavam na política e entendiam-na como salvação.

Enquanto isso, no chão de terra do cotidiano intramuros das universidades, vozes inquietas vocalizavam o mal-estar. Mas uma delas, francamente, destoou e desconcertou. Destoou pela força, pela presença e pela estridência. E desconcertou pelo seu tom, visto hoje e em perspectiva, macabramente profético.

Tratava-se da voz de um brasileiro peculiar, de inteligência superior, conhecido e afamado – como seus pares Florestan Fernandes (1920-1995), César Lattes (1924-2005) e Mário Schenberg (1914-1990) – no mundo inteiro. Era a voz de um sujeito baiano, crescido em Brotas, formado, inicialmente, em Salvador e que atendia pelo nome de Milton de Almeida Santos (1926-2001). Mestre incontornável e inesquecível de todos nós.

Milton Santos, como tantos outros brasileiros ilustres, foi cassado, perseguido, preso, humilhado e maltratado pelos militares após 1964. Mas, diferente de muitos, jamais perdeu a esperança tampouco a dignidade. Milton Santos não se vendeu nem abandonou as suas convicções.
E, talvez, também por isso, o seu retorno ao Brasil e a sua reintegração – após martírios – ao sistema universitário brasileiro foram, para dizer pouco, experiências, nitidamente, complexas, ruidosas e tortuosas.

Para fazer curto, ele não foi aceito no arranjo CEBRAP, teve dificuldades na UFRJ e viveu uma rude novela para ser integrado à USP.

Mas, uma vez integrado à mais importante universidade do país, ele expandiu a sua diferença.
Não é o caso de aqui se esmiuçar o impacto político, moral, intelectual e estético de obras suas como Por uma Geografia Nova (1978), O trabalho do geógrafo no terceiro mundo (1978), O espaço dividido (1978), O espaço do cidadão (1987), A natureza do espaço (1996) e Por uma outra globalização (2000). Qualquer geógrafo – ou qualquer pessoa minimamente academicamente bem formada – sabe do se trata.

Também não é o caso de muito se rememorar nem de muito se acentuar que esse ilustre baiano e cidadão de Brotas recebeu o Prêmio Vautrin Lud, espécie de prêmio Nobel em sua área exclusiva de atuação, em 1994. Mas, para quem alimenta dúvidas ou, quem sabe, complexos de vira-lata ao encontro da genialidade desse distinto brasileiro, vale simplesmente ressaltar que os mundialmente conhecidos e afamados David Harvey, Paul Claval, Yves Lacoste e Edward Soja – para ficar apenas em alguns dos mais célebres de métier comum – receberiam o mesmo prêmio só tempos depois ou bem depois.

Dito, portanto, assim e sem pudor, Milton Santos foi, sim, genial e singular.
E, por tudo isso, os seus pares na USP decidiram conceder-lhe, em 1997, o honroso título de Professor Emérito da USP. Ao que, Milton Santos recebeu, por claro, com muito gosto.

Mas, diferente de muitos de seus pares em situação similar, ele usou o momento para realizar uma alentada denúncia sobre a situação da universidade brasileira.

Quem viveu, pode lembrar. Quem simplesmente ouvir falar, que acredite: a sua manifestação não foi nada amena.

O intelectual e a universidade estagnada era o seu título. O ano era 1997. O mês, agosto. O dia, o 28.

Milton Santos iniciou a sua manifestação com uma curiosa ode aos obstáculos e derrotas vida intelectual acentuando que “um homem que pensa, e que por isso mesmo quase sempre se encontra isolado no seu pensar, deve saber que os chamados obstáculos e derrotas são a única rota para as possíveis vitórias, porque as ideias, quando genuínas, unicamente triunfam após um caminho espinhoso”.

Mas, logo adiante, chamou a atenção para o fato desse “caminho espinhoso” estar sendo solapado pelo carreirismo universitário imposto pelo modelo de universidade em vigência. Um carreirismo, ao seu ver, só podia conduzir ao conformismo e ao silenciamento do pensar. E, ao fim, fazia entender que, claro: uma universidade que não pensa nem deixa pensar não é bem uma universidade.

E seguia o discurso. Onde, adiante, vaticinou que “acreditar no futuro é também estar seguro de que o papel de uma Faculdade de Filosofia é o papel da crítica, isto é, da construção de uma visão abrangente e dinâmica do que é o mundo, do que é o país, do que é o lugar e o papel de denúncia, isto é, de proclamação clara do que é o mundo, o país e o lugar, dizendo tudo isso em voz alta”.

E continuou dizendo que “essa crítica é o próprio trabalho do intelectual”.

Um trabalho, anteriormente, praticado, genuinamente, por filósofos. Mas, em tempos hodiernos, depositário dos artífices das Humanidades. Ou seja, da gente que, por ofício, vai metida seriamente com Artes, Filosofia, Geografia, História, Letras e afins. Gente que, ao fim das contas, possui formação e disposição para navegar pelas encruzilhadas da incomensurabilidade da complexidade da transversalidade do processo de construção do conhecimento. Gente sem a qual, fazia novamente entender, a universidade simplesmente não existe. Ou, quando insistem em subsistir, na melhor das hipóteses, vai fadada à indigência.

Sim: duro assim. Mas contundente e veraz. E, sinceramente por isso, O intelectual e a universidade estagnada, merece ser lido e relido, meditado e entendido.

Seguramente ninguém foi mais direto, honesto e preciso no diagnóstico sobre o sinistro da universidade brasileira que Milton Santos. Lá atrás, em 1997 e até a sua morte em 2001, ele chamava a atenção para essa crise crônica. Que, ao fim e ao cabo, era uma de sentido e de identidade. Crise essa que, com o passar dos anos, só fez piorar.

E vem sendo assim, sobretudo, porque a indigência intelectual, cultural e moral tomou, efetivamente, de tudo conta. De modo que, hoje em dia, parte majoritária dos frequentadores das universidades se tornou indiferente ao problema. Parte por não dispor de competência cognitiva para adentrar a discussão. Parte por, sinceramente, nem saber do que se trata.

Desse modo, sim: leia-se Milton Santos. E, ao se fazer, vai-se perceber o óbvio: não existe universidade sem Humanidades. Mas, como tudo na vida, pode-se apreender isso de modo diferente e contemporizador. Quem saber numa fórmula mais amena que sugere, simplesmente, que o destino da universidade depende do destino que se der às Humanidades.

Quando Milton Santos clarificou essa compreensão, vivia-se, no Brasil, o imediatamente após o regime militar, Muro de Berlim, fim do bloco soviético e início da ubiquidade da globalização. Pois, depois disso e século XXI adentro, todo esse quadro ficou mais complexo e, com ele, a situação da universidade.

Ocorreu, de saída, uma desbragada expansão da malha de instituições de ensino superior no país.

O que, por claro, gerou uma ampliação do número de instituições. Mas, ao mesmo, curiosamente, não aumentou o número de universidades. Do contrário, quem sabe, até diminuiu. E diminuiu porque, aos poucos, o que se entendia por universidade foi virando outra coisa, que, sinceramente, não se sabe muito bem o que é.

Mas as razões, depois de se ler Milton Santos, ficam clarividentes. Basta-se retomar com calma o processo de aceleração da expansão de instituições de ensino superior desde o início do século.

Quem fizer isso vai rápido notar que, por mais incrível que se possa parecer, houve, em geral, pouco ou nenhum verdadeiro interesse em se valorar o lugar das Humanidades no interior das novas instituições. E isso, quer-se crer, não foi simples descuido nem mera desatenção. Trata-se do atraso como projeto. E, visto assim, virou o féretro da universidade como missão. Pois, claramente, as instituições que saíram do zero ou se emanciparam de outras a partir do ano 2003-2005 foram sendo, em geral, forjadas sem nenhum interesse na criação de cursos realmente consistentes e relevantes em campos essenciais do conhecimento e do saber como artes, filosofia, geografia, história, letras e afins.

Esse imperdoável despautério, levado às últimas consequências, violentou o próprio sentido da universidade no Brasil. Isso porque, sem a latência das Humanidades no interior dessas novas e novíssimas instituições, a formação de uma ou duas gerações de brasileiros foi integralmente deformada a ponto de se comprometer a “construção de uma visão abrangente e dinâmica do que é o mundo” no interior da sociedade.

Consequentemente, não adiante negar, a indigência intelectual virou norma em todas as partes e ajudou a pavimentar um caminho seguro para a ascensão de um verdadeiro estúpido à presidência da República. O leite foi derramado. Todos viram e todos sabem.

As agonias das noites de junho de 2013 ao 8 de janeiro de 2023 foram imensas. Mas, assim, não sem razão. E a greve dos docentes das federais em 2024 veio simplesmente ampliar a convicção do sinistro e evidenciar que a situação virou muito pior que a que Milton Santos imaginou.

O lapso de vinte ou vinte e cinco anos de expansão/deformação universitária brasileira, produziu entre os acadêmicos uma maioria sem nenhuma aptidão nem sensibilidade para notar as infinitas sutilidades no interior da variedade de campos de conhecimento e saber. Dito sem nenhum pudor, perdeu-se a noção de coisas básicas, como a distinção entre humanidades e ciências (humanas ou naturais).

Diante disso, sinceramente, o melhor é se calar. Mas com o silêncio, a universidade – sem as Humanidades – vai morrendo. Pois como vaticinou Milton Santos “A universidade, aliás, é, talvez, a única instituição que pode sobreviver apenas se aceitar críticas, de dentro dela própria de uma ou de outra forma. Se a universidade pede aos seus participantes que calem, ela está se condenando ao silêncio, isto é, à morte, pois seu destino é falar.”
Tudo, portanto, além de muito triste, é muito grave.

E, talvez, agora, vendo-se, assim, a gravidade de todo o quadro, perceba-se o quanto Conceição Tavares e Delfim Netto, sem clichê nem ilusão, fazem falta.

Conceição Tavares e Delfim Netto eram obsessivos no falar. Não no falar por falar. Mas no falar – agora, talvez, entenda-se – para adiar o silêncio do fim. Do fim da universidade e do fim do devir.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ)

As torneiras abertas dos recursos naturais e um até logo! por André Roncaglia

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Países emergentes não podem cair na armadilha do neoextrativismo

André Roncaglia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 16/08/2024

A transição energética é altamente intensiva em recursos naturais. A reconfiguração da geopolítica e a guerra comercial entre as potências tecnológicas atuais, como EUA, Europa e China, acendem alertas de instabilidade global persistente. Enquanto isso, as economias emergentes lutam com dívidas pesadas em meio a demandas crescentes por gastos sociais e de adaptação climática.

A crescente demanda por recursos naturais impulsionada pela transição energética pode beneficiar os países emergentes. No entanto, é crucial que esses países não caiam na armadilha do neoextrativismo.

A América Latina, rica em minerais críticos e recursos naturais essenciais para essa transição, pode continuar a ser um mero exportador de matérias-primas ou tomar medidas para redefinir seu papel na economia global, promovendo o desenvolvimento sustentável e a soberania tecnológica. É preciso evitar o piloto automático do comércio internacional.

No prefácio à edição de 2010 do seu livro “As Veias Abertas da América Latina” (L&PM 2022), Eduardo Galeano indaga: “Exportamos produtos ou exportamos solos e subsolos? Salva-vidas de chumbo: em nome da modernização e do progresso, os bosques industriais, as explorações mineiras, as plantações gigantescas arrasam bosques naturais, envenenam a terra, esgotam a água e aniquilam pequenos plantios e as hortas familiares. (…) Os expulsos da terra vegetam nos subúrbios das grandes cidades, tentando consumir o que antes produziam. O êxodo rural é a agrária reforma… ao contrário”.

No artigo “Imperialist Appropriation” in the World Economy: Drain from the Global South through Unequal Exchange, 1990–2015″, Jason Hickel et al (Global Environmental Change, 73, 2022) usam a análise de balanço de recursos da economia ecológica para comprovar o receio presciente de Galeano. A dinâmica de troca desigual entre o Norte Global e o Sul Global implicou forte fluxo de recursos e de valor dos pobres para os ricos: entre 1990 e 2015, a drenagem do Sul totalizou US$ 242 trilhões (a preços constantes de 2010).

Tomando apenas o ano de 2015, o estudo mostra que o Norte apropriou do Sul 12 bilhões de toneladas de matérias-primas incorporadas aos bens e serviços importados do Sul, 822 milhões de hectares de terra incorporada, 21 exajoules de energia incorporada (o equivalente a 3,4 bilhões de barris de petróleo) e 188 milhões de pessoas-ano de trabalho incorporado, no valor de US$ 10,8 trilhões em preços do Norte. A soma é suficiente para acabar com a pobreza extrema 70 vezes.

A troca desigual é facilitada por mecanismos de preços no comércio internacional, onde os produtos primários e recursos naturais exportados pelo Sul são subvalorizados em comparação com os produtos manufaturados e serviços do Norte. O dreno em preços médios globais mostra que as perdas do Sul devido à troca desigual superam seus recebimentos totais de ajuda ao período por um fator de 30.

O artigo conclui com uma chamada para redesenhar as relações econômicas globais, por meio de uma reavaliação da dinâmica dos termos de troca, da implementação de políticas de comércio justo e da promoção de modelos de desenvolvimento que priorizem o bem-estar social e ambiental no Sul Global.

Os minerais críticos —como lítio e cobre— são fundamentais para a fabricação de baterias de veículos elétricos, turbinas eólicas, painéis solares e outras tecnologias verdes. No entanto, sem uma abordagem estratégica, esses países correm o risco de perpetuar um modelo econômico baseado no extrativismo, que historicamente tem gerado pouco valor agregado localmente, exacerbando desigualdades e causando danos ambientais significativos.

Ensino superior à distância: um debate inadiável, por Dyogo Patriota

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Multiplicam-se cursos EaD oferecidos por corporações privadas. Muitos são caça-níqueis, com até 2,6 mil alunos por professor. Portaria do governo Temer isentou-as de supervisão – e segue em vigor, produzindo precarização do ensino e do trabalho docente
Dyogo Patriota – OUTRAS PALAVRAS – 14/08/2024

O setor de educação superior, do modo como está constituído, dificilmente formará um consenso sobre o ensino a distância. Interessa entender se seu crescimento nos últimos anos foi ou não um erro e se tal modelo deve ser extinto. Dados concretos demonstram que o EaD está profundamente relacionado à precarização do trabalho dos professores. Uma parte dos integrantes do setor diz que o modelo serviu à captação de alunos pobres moradores de regiões nas quais não há IES próximas. Entretanto, tais localidades, no momento presente, são poucas e não justificam a difusão ingente dessa modalidade de ensino.

O ensino superior surgiu no país por uma necessidade de letramento dos filhos dos colonos e de religiosos em instituições, principalmente, confessionais. A estatização dessa política dependeu da chegada da família real ao Brasil em 1808. Houve a criação de faculdades isoladas de medicina e de direito, na Bahia, no Rio de Janeiro, em Pernambuco e em São Paulo. Com isso, o setor de educação superior foi engendrado para ser “não lucrativo ou não empresarial”, havendo uma forte similaridade entre as instituições públicas e as confessionais e comunitárias, que pareceram todas as demais.

No fim do século XX, a Constituição e a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) permitiram a exploração da atividade de educação pela iniciativa privada. O setor adquiriu conotações de livre mercado. Decorrente disso, porém de forma não previsível, houve a financeirização do ensino superior (principalmente nos últimos 20 anos), com a constituição de sociedades anônimas de capital aberto; criaram-se os grandes Conglomerados Empresariais Educacionais. Pode não ser claro, mas há poucas semelhanças entre uma empresa de educação comum e um Big Player Educacional, embora ambas trabalhem conforme a lógica do lucro.

Os Big Players Educacionais são produto da “financeirização da educação superior” e causam o maior tensionamento já visto com o Ministério da Educação, que tem sido constantemente fragilizado. O EaD, que é uma das premissas para compreender essa conjuntura, é hegemonicamente ofertado por essas sociedades anônimas. A Portaria MEC n.º 11/2017 (conhecida como “bônus regulatório”), permitiu a abertura de 50, 150 e 250 polos a distância sem supervisão prévia. Na prática, o MEC abriu mão de auditar essa atividade. O resultado disso foi auferido pela apresentação dos dados do “Censo da Educação Superior-INEP” (ano base 2022). Ali, há informações relevantes, como o fato de quatro IES reterem 23% dos alunos nessa modalidade e da proporção de professor por alunos, que chega a 1 para cada 2.594 graduando em alguns casos.

O setor de educação superior traz as entidades estatais, as comunitárias e as confessionais como líderes no ensino presencial. Já os Big Players dominam o ensino a distância. No ano 2000, havia 1.682 matrículas nessa modalidade. Foram necessários 10 anos para alcançar cerca de 1 milhão de alunos. Após o bônus regulatório o crescimento do EaD foi exponencial.

Mas, afinal, quem são os alunos do ensino a distância? São pessoas mais velhas, de classes sociais menos favorecidas, divididos entre a primeira e a segunda graduação. Isso explica a agressividade nos preços das mensalidades tendo em conta o público-alvo. No entanto, a redução da contraprestação financeira vem com cortes de custos em instalações físicas, monitorias, professores e materiais didáticos. A fórmula para isso é a padronização da educação e a autoaprendizagem superlativada.

Os EUA e Austrália têm amplos programas de financiamentos estudantis, com bilhões de dólares envolvidos; Israel financia quase 70% do custo das Universidades e de seus estudantes; o Tribunal Constitucional Alemão criou, ainda nos anos 1970, o instituto “a reserva do possível” para limitar o direito dos cidadãos de dispor do orçamento público para o ingresso ao ensino superior, já que não havia recursos suficientes para abarcar todos os pretendentes. Então, como é viável ofertar cursos de EaD com qualidade por R$ 49,99 ou R$ 99,99 no Brasil?

O Ministério da Educação é outro dos sujeitos centrais que compõem essa equação. Existem indícios de que esse órgão tenha tido uma forte perda de credibilidade. Um dos motivos para isso está no fato de que diversas matérias de sua competência foram levadas ao Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade, isso é um indício da perda de capacidade dele de resolver os temas educacionais de modo administrativo e definitivo. Entre os casos mais recentes que podem ser citados estão a redução compulsória de mensalidades (ADPF n.º 706-DF), a discussão sobre o total de bolsas que podem ser concedidas via PROUNI (Reclamação Constitucional 57.525-DF) e as autorizações de cursos de graduação em medicina (ADC n.º 81-DF e ADI n.º 7.187-DF).

A intenção é conclamar o Ministério da Educação a proporcionar igualdade aos sujeitos dessa relação. Não há, aqui, uma condenação a priori do EaD. Mas a maneira pela qual está sendo desenvolvido o ensino a distância não atende aos interesses nacionais do Brasil. O país não se desenvolve, o PIB cresce aos solavancos e não há influência relevante no processo de letramento de seu povo.

Dyogo Patriota é assessor jurídico do Crub e da Abruc

Como reduzir a pegada material do crescimento, por Ricardo Abramovay

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Embora mais “eficiente”, extrativismo cresceu 3,5 vezes desde anos 1970. Apostar na tecnologia não bastará. Transição justa inclui novos padrões de produção e consumo e outra agenda global, que não penalize o desenvolvimento do Sul global

Ricardo Abramovay – OUTRAS PALAVRAS – 08/08/2024

O mundo não está conseguindo desacoplar o crescimento econômico dos impactos provocados pela insaciável sede de recursos naturais dos quais depende a oferta de bens e serviços. Mudanças climáticas, erosão da biodiversidade e poluição (o que as Nações Unidas chamam de “tríplice crise planetária”) não serão enfrentadas com seriedade se a riqueza continuar se apoiando na extração crescente dos materiais que hoje estão na base do próprio crescimento econômico.

Segundo o Painel Internacional de Recursos do Programa Meio Ambiente das Nações Unidas (IRP/UNEP, na sigla em inglês) há quatro materiais básicos cujo ritmo de obtenção sinaliza a qualidade da relação entre a sociedade e os recursos em que está assentada sua reprodução: biomassa, minerais metálicos (ferro, cobre, ouro, mas também produtos como alumínio, mercúrio, níquel, entre outros), minerais não metálicos (areia, argila, fundamentais para a construção) e combustíveis fósseis.

Foi em 2011 que o IRP/UNEP publicou o primeiro trabalho sobre o tema, cujo título já indica uma importante ambição: “desacoplar o uso dos recursos naturais e os impactos ambientais do crescimento econômico”. Do que se trata?

Em 1970, quando a população mundial era de 3,7 bilhões de habitantes e o PIB global (em valores de 2015) atingia US$ 18 trilhões, os quatro materiais somavam 30 bilhões de toneladas. O mais recente relatório sobre o tema do IRP/UNEP (Bend the trend. Pathways to a liveable planet as resource use spikes) mostra a explosão no uso dos recursos. Hoje, com uma população de 8,1 bilhões de habitantes e um PIB global de US$ 93 bilhões (em valores de 2015), o sistema econômico extrai anualmente o vertiginoso montante de 106 bilhões de toneladas destes quatro materiais. A população, desde 1970, foi multiplicada por pouco mais de 2, o PIB por 5 e o uso de materiais por 3,5.

Isso significa então que houve um progresso importante, pois cada unidade de riqueza, ao longo dos últimos cinquenta anos, foi alcançada com o uso de uma quantidade menor de materiais. Cinco vezes mais riqueza usando “apenas” 3,5 vezes mais materiais indica, à primeira vista, que o objetivo do desacoplamento entre riqueza e uso dos recursos está sendo atingido. Por que então a consigna Bend the Trend (Mudar a Tendência) do recente trabalho do IRP/UNEP? Da imensa riqueza deste relatório, podem-se extrair quatro respostas a esta pergunta.

A passagem de 30 para 106 bilhões de toneladas anuais na extração de biomassa, minerais metálicos, minerais não metálicos e combustíveis fósseis compromete, muitas vezes de forma irreversível, serviços ecossistêmicos essenciais como a oferta de água, o ar limpo, estabilidade climática e a biodiversidade.

A segunda resposta para a urgência de “mudar a tendência” refere-se às desigualdades. A pegada material per capita, que era de 8,4 toneladas anuais em 1970 cresce para 12,2 toneladas ao início da terceira década do milênio. Mas não poderiam ser mais chocantes as desigualdades que estas médias escondem: nos países de baixa renda a pegada material per capita em 2020 era de 4 toneladas. Já no segmento mais próspero dos países de renda média (onde estão China e Brasil) a pegada ultrapassa a média mundial e chega, em 2020, a 19 toneladas per capita, aproximando estes países da média dos países de alta renda que é de 24 toneladas per capita. É claro que tem que existir espaço para ampliar o uso de recursos por parte dos países mais pobres (para a construção de escolas, hospitais, meios de comunicação e transporte), mas isso supõe drástica redução na pegada material dos países ricos e mesmo no segmento mais próspero dos países de alta renda.

Daí decorre a terceira resposta sobre as razões para “mudar a tendência”, que se refere à interação dos fatores sociais, ecológicos, institucionais e tecnológicos com base nos quais se extraem e transformam recursos naturais para preencher demandas e necessidades sociais. O relatório examina quatro setores econômicos (alimentação, moradia, mobilidade e energia) mostrando que a premissa básica para reduzir as desigualdades e, ao mesmo tempo, as ameaças contidas no crescente uso de recursos é que haja mudanças drásticas nos padrões de produção e de consumo. E estas mudanças não podem depender de decisões individuais. Muito mais que carros elétricos, o essencial é incrementar a mobilidade coletiva e estimular o uso e o
reaproveitamento das áreas centrais para implementar iniciativas como as da “cidade de quinze minutos”. Na moradia, a ideia de cidades compactas e conectadas e o uso de materiais alternativos aos atualmente dominantes são os caminhos para reduzir a pegada material. Na alimentação, mais do que aumentar a produtividade das áreas em que predomina a monotonia dos grãos voltados à produção animal a prioridade é estimular a diversificação das dietas e a correlativa redução no consumo de produtos animais, hoje excessivo na maior parte do mundo.

A quarta resposta está na ligação que o relatório faz entre as noções de justiça e de suficiência, expressão que ganha força crescente na agenda das organizações multilaterais. É o conceito de suficiência que vincula a ideia de “transição justa” ao uso dos recursos. O trabalho do IRP/UNEP chega a propor que se altere o foco desta transição da eficiência para a suficiência. É que a eficiência no uso dos recursos, embora fundamental, tem como contrapartida padrões de consumo que estimulam sua extração crescente. Daí a ênfase do IRP/UNEP no vínculo entre justiça e suficiência.

É na luta contra as desigualdades, apoiada em padrões de consumo que fortaleçam os bens e os serviços de uma vida digna para todos, que está o cerne da conquista de uma sociedade capaz de impedir que os ganhos de eficiência continuem se exprimindo na destruição em larga escala das bases que dão sustentação à própria vida.

Novos consumidores globais

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Nos últimos trinta anos, a economia internacional incluiu mais de 1 bilhão de consumidores ávidos para consumir, grande parte deste contingente saíram das nações asiáticas, gerando uma verdadeira revolução global e silenciosa, levando as empresas e as organizações a transformarem suas estratégias de produção, de logística, de marketing e de comunicação, como forma de satisfazer as mais variadas necessidades deste exército de compradores, com suas vontades, com seus desejos e buscando valorizar seus recursos monetários e financeiros.

Desde os anos 1980, as economias asiáticas estão transformando o cenário internacional, suas empresas estão trazendo novos modelos de negócios, aumentando a concorrência global, incrementando a produtividade do trabalho e exigindo de todas as nações severas transformações nas formas de gestão e organização produtiva, como forma de sobreviverem ao crescimento da competição no comércio global.

Nações como a China, Coréia do Sul, Taiwan, Japão, Indonésia, Malásia, Singapura e Vietnã estão gerando uma verdadeira guerra comercial e produtiva, transformando valores arraigados dos países ocidentais, reconstruindo as estruturas produtivas, investindo somas elevadas em capital humano e incrementando os dispêndios em infraestrutura.

A inclusão de milhões de trabalhadores asiáticos no mercado de consumo global pressionou as nações ocidentais a novos investimentos produtivos, aumentando os gastos em tecnologia, novos dispêndios em pesquisa e inovação, pressionando mercados monopolizados ou oligopolizados como forma de sobreviver às invasões de produtos asiáticos, empresas orientais e novos modelos de organização do trabalho.

O mercado de trabalho ocidental sentiu na pele o incremento da concorrência asiática, a inclusão desse contingente de novos consumidores, com novos modelos de trabalho, com salários achatados, ausência de benefícios sociais e emprego degradante trouxe grandes impactos para os trabalhadores ocidentais, que passaram a sentir no contracheque uma redução salarial e uma degradação das condições de trabalho, levando os trabalhadores a um visível empobrecimento, com cargas de trabalho escorchantes, metas elevadíssimas, além do aumento dos desequilíbrios emocionais, estresse, ansiedades, suicídios e desajustes variados.

As nações asiáticas investiram grandes somas de recursos financeiros no setor educacional como forma de capacitar seus trabalhadores para alcançarem um espaço na economia globalizada, forçando as nações ocidentais a saírem da letargia que viviam a muitas décadas, neste cenário, as empresas ocidentais sentiram a competição com as organizações orientais, com seus novos valores organizacionais, com uma cultura milenar e arraigada, com ênfase na consciência e na imaterialidade.

O crescimento asiático está transformando o capitalismo mundial, as empresas ocidentais e os valores do Ocidente. A difusão de empresas asiáticas na sociedade internacional como Lenovo, KIA, BYD, Hyundai, Shopee, Shein, Samsung, LG, Huawei, Baidu, TSMC, Chery, dentre outros grandes atores e conglomerados empresariais estão revolucionando a economia mundial, exigindo uma maturidade maior das nações ocidentais, tanto as desenvolvidas e as em desenvolvimento, como forma de competir no mercado internacional, sem esta maturidade o capitalismo asiático tende a dominar a sociedade internacional, impondo valores, comportamentos e formas de organização produtiva.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O extremismo enquanto fetiche, por Leonardo Goldberg

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O mais eficaz não é o lobo solitário radical, mas o mestre no jogo do cinismo

Leonardo Godberg, Psicanalista, é doutor em psicologia (USP).

Folha de São Paulo, 13/08/2024

Definir o que significa o extremismo político é importante para pensarmos nas discussões contemporâneas sobre os significados que orientam a vida pública, da macropolítica às batalhas culturais. Poderíamos pensar que os extremistas são aqueles que não apenas divergem do sistema vigente, mas se recusam a endossá-lo.

Em vez da figura do ermitão, do lobo solitário radical, o extremista mais eficaz é o mestre no jogo do cinismo. Por exemplo: ele pode defender radicalmente a democracia social se lhe convém, mas, ao mesmo tempo —e dependendo do grupo ao qual fala—, dizer que a democracia social, liberal ou dos pesos e contrapesos institucionais é apenas uma forma autocrática de manutenção do poder; e, por isso, deveria ser combatida. O cínico político é aquele que domina a artimanha de distanciar aquilo que diz do seu modo de viver, não apenas sem vergonha alguma, mas dotado de certa insolência com verniz.

De forma praticamente intuitiva, alinhamos tal modelo de cinismo às necessidades do jogo político. Porém, o cinismo político ancorado por uma recusa das instituições, do pluralismo, marcado pelo tom acusatório e policialesco e pela relativização da violência de acordo com o aliado político, talvez seja a forma contemporânea mais precisa da pulverização dos extremismos.

Um caso paradigmático para pensarmos nessa figura do cínico político enquanto extremista é o de Adolf Eichmann (1902-62), um dos artífices do Holocausto. Eichmann foi imortalizado pela filósofa Hannah Arendt como aquele que incorporaria a banalidade do mal, através de uma espécie de sujeito cumpridor de ordens. No fundo, essa visão é confortável, pois coloca o mal ao lado de uma razão técnica mais ou menos ingênua.

Por outro lado, a filósofa e historiadora Bettina Stangneth esmiuçou a vida e gravações de Eichmann e mostrou que um dos principais organizadores do nazismo era um político astuto, ardiloso, eficiente, e que depois do nazismo articulou e participou ativamente de campanhas políticas de grupos extremistas na Argentina. Era, portanto, um animal político por excelência, sem banalidade alguma.

Um dos desafios mais importantes das democracias contemporâneas é identificar essa faceta do extremismo que está diluída em todos os espectros e amplificada pelas redes sociais, cuja estrutura reitera toda violência simbólica e física —vide os vídeos de guerra e de massacres que primeiro viralizam e depois são negados por seus autores (quando não chamados de método, por inconsequentes).

Se há uma psicopolítica do extremismo prenhe de certezas, a aposta das sociedades plurais deveria ser naquilo que o filósofo político Norberto Bobbio chamou de uma política da serenidade, essa virtude que, longe de se reduzir à “política do possível”, é justamente ancorada em uma ética que inclua visões opostas no campo do conflito, do debate público, para que a palavra “tolerância” não seja apenas título de livro de cabeceira ou mantra matutino, mas a base inegociável daquilo que chamamos de democracia.

Normalização da extrema direita encobre o mal em nossas ações, por Bernardo Carvalho

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Ryusuke Hamaguchi maneja com maestria, em ‘O Mal Não Existe’, a arte de contradizer valor nominal dos discursos

Bernardo Carvalho, Romancista, autor de ‘Nove Noites’ e ‘Os Substitutos’
Folha de São Paulo, 11/08/2024

Por ocasião da eleição presidencial de 2018, o escritor peruano Mario Vargas Lhosa, político de direita e prêmio Nobel de Literatura, sentenciou, em defesa de Jair Bolsonaro, que não poderia ser fascista um governo eleito por uma maioria de 57 milhões de votos.

A lógica peculiar e pueril foi reciclada recentemente por comentaristas que insistem em comprar a nova face da extrema direita mundo afora pelo valor nominal de seu programa de normalização, como se assumir e enfrentar as contradições da democracia (que, sim, o fascismo pode ser gestado dentro dela, contra ela, servindo-se de suas instituições) não fosse a única forma de defendê-la e preservá-la.

“O Mal Não Existe”, de Ryusuke Hamaguchi, não é uma resposta irônica à leviandade dessa lógica. Não diretamente. O filme também não é uma ilustração da “banalidade do mal” formulada por Hannah Arendt, embora possa ser visto como um desdobramento dela.

A história é simples, mas difícil de contar sem spoilers. Uma pequena comunidade nas montanhas, que vive em equilíbrio delicado com a natureza e da qual fazem parte o protagonista Takumi e sua filha, recebe a visita de uma dupla de produtores do showbiz, associados a um projeto que, com financiamento estatal, pretende instalar um “glamping” (camping com glamour) na região. Uma reunião é convocada com os habitantes, na qual ficam claros os efeitos deletérios e a insustentabilidade ambiental do empreendimento.

De volta a Tóquio, a dupla de produtores confronta o chefe com os problemas e os obstáculos levantados pelos membros da comunidade durante a reunião e é reenviada às montanhas para tentar uma conciliação. Não dá para adiar o projeto sem perder o prazo do financiamento para a revitalização da economia pós-pandêmica na região. Vão procurar convencer Takumi, o faz-tudo local, a participar do empreendimento. É o jeito de quebrar a resistência da comunidade.

No caminho, porém, o produtor dá a entender à colega que já não está tão convicto de seu trabalho e de sua missão. Gostaria de mudar de vida. Ao chegar à comunidade, passa a fazer esforços canhestros para se integrar às tarefas locais. Decide ficar.

Desde o início, diversos elementos vão dando conta da tensão e da precariedade do equilíbrio entre homens e natureza. Ouvem-se tiros de caçadores ao longe. Há carcaças de animais pelas trilhas nevadas. Os cervos alvejados, mas que conseguem escapar feridos, tornam-se violentos, invertendo a balança da ameaça. Tudo parece estar por um triz, de modo que a misantropia do protagonista e a antipatia da comunidade pelo empreendimento se explicam por um sentido urgente de sobrevivência. Qualquer novo elemento pode ser fatal.

A conclusão, entretanto, terá menos a ver com um elogio do conservadorismo e da imobilidade do que com a necessidade de resistência ao mecanismo de autoengano e normalização (essa combinação de narcisismo e ignorância com má-fé e oportunismo) que nunca nos permite reconhecer o mal em nossas próprias ações.

Há uma cadeia complexa de fenômenos, atos e decisões que não podem ser isolados. Querer fazer o bem sem considerar essa cadeia coletiva, sem se ver dentro dela, fazendo parte dela, produz o efeito inverso. É o que mostra a perspectiva trágica, capaz de desconstruir as ideias feitas por trás das premissas que levam ao oposto do que prometiam.

A divisa “ordem e progresso”, por exemplo, mesmo sendo falsa e equivocada, é palatável porque traduz uma ideia que não contradiz nossa autoimagem. Já “ordem e destruição”, mais verdadeira em vista das informações de que hoje dispomos sobre a ação do progresso humano, é insuportável, inconcebível. Ninguém quer se identificar com “ordem e destruição”. Melhor acreditar na normalização da extrema direita, já que teremos de conviver com ela.

É aí que entra o potencial de resistência da arte, ainda mais num momento de crise da consciência e da espécie: na contradição do valor nominal dos discursos, na capacidade de romper a membrana de normalização da autoimagem e fazer ver a complexidade contraditória dos fenômenos e das ações humanas.

Ryusuke Hamaguchi maneja com maestria essa arte crítica, da contracorrente e do dissenso, levando o espectador pela mão até onde ele não gostaria de ir, até a imagem enigmática com a qual ele não gostaria de se identificar. É o contrário da lógica de identificações e soluções fáceis que a cartilha “feel-good” do mercado cultural tem a nos oferecer como espelho, suposto remédio empoderador contra a crise.

Por que a democracia brasileira sobreviveu? por Celso Rocha de Barros

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Vale a pena discutir como o país se mostrou e e ainda se mostra pronto a acomodar golpistas

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 11/08/2024

Em “Por que a democracia brasileira não morreu?”, os cientistas políticos Marcus André Melo e Carlos Pereira discutem por que a democracia brasileira sobreviveu à crise política que começou com os protestos de 2013 e durou até o fracasso da tentativa de golpe de Jair Bolsonaro.
O livro tem duas teses. Uma é muito mais bem demonstrada que a outra.

Os autores estão certos quando dizem que a culpa das últimas crises políticas não é do presidencialismo de coalizão. Aqui Melo e Pereira jogam em casa: são autores de um livro clássico sobre como o sistema político brasileiro funciona melhor do que se pensa (“Making Brazil Work”, de 2013).

Embora acertada, a análise merece um matiz: além dos choques externos, sofremos com legados históricos que enviesaram nosso sistema para a direita. Fizemos nossa transição à democracia com a classe política herdada da ditadura, fortemente conservadora (pois a esquerda foi perseguida) e bastante corrupta (pois na ditadura conviveram grandes projetos de desenvolvimento e ausência de controle institucional).

Por outro lado, em um país desigual como o Brasil, era de se esperar que a esquerda fosse bem-sucedida em eleições majoritárias (como a presidencial). Isso teria criado crises quando a esquerda chegasse ao poder em qualquer cenário.

Por outro lado, discordo dos autores quando dizem que, durante o bolsonarismo, a democracia nunca correu risco sério. Essa tese não é demonstrada pelo fracasso do golpe: se um investimento deu certo, isso não quer dizer que o capitalista nunca correu risco nenhum. Rebeca Andrade é uma heroína nacional exatamente porque derrotar Simone Biles era altamente improvável antes da prova.

Os autores apresentam bons argumentos sobre a complexidade institucional brasileira contemporânea, que tornaria uma centralização autoritária mais difícil. Entretanto, regimes autoritários podem lidar com alguma complexidade: a própria ditadura de 64 foi institucionalmente mais complexa que, por exemplo, o Estado Novo, sem deixar de ser autoritária.

Talvez uma ditadura Bolsonaro fosse só um passo além da complexidade do regime de 64; ou talvez fosse muito mais violenta, destruindo parte da complexidade institucional em que Melo e Pereira talvez apostem fichas demais.

De longe, a maior falha do livro é a análise muito apressada dos militares. As investigações da Polícia Federal sugerem que a luta interna nas Forças Armadas, sobre a qual ainda não sabemos o suficiente, foi muito importante para o fracasso dos extremistas. O livro não dedica muita atenção aos resultados dessas investigações.

Valeria a pena também discutir como a política brasileira mostrou-se —e ainda se mostra— pronta a acomodar golpistas. A bancada bolsonarista, que em 30 de novembro de 2022 pediu golpe dentro do Congresso Nacional, continua a ser tratada como parte legítima do jogo democrático. Há candidatos à Presidência do Senado negociando impeachment de ministro do STF para conseguir votos dos bolsonaristas.

Melo e Pereira conhecem o funcionamento do sistema político brasileiro de trás para frente, mas por vezes subestimam o peso de sua história, bem como as lutas que ocorrem fora dele (no Exército, por exemplo). De qualquer forma, é um livro que faz as perguntas grandes, e já vem suscitando boas conversas.

Como a extrema direita manipula rancores para obter ganhos políticos, por Bruno Boghossian

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Derrotada na eleição, ultradireita do Reino Unido tenta tirar proveito de um espetáculo de racismo

BRUNO BOGHOSSIAN – FOLHA DE SÃO PAULO – 11/08/2024

A extrema direita foi às ruas no Reino Unido para propagar uma onda de ódio contra imigrantes. O bando espalhou medo e fúria, mas não fez muito sucesso. Depois de invadir abrigos, incendiar carros e agredir policiais, a turma despertou grandes atos antirracistas que, na prática, frearam os ataques. A maioria da população condenou a violência.
Mesmo assim, os políticos que usam a xenofobia como língua corrente não acharam que era o caso de voltar para a toca. O desprezível Nigel Farage tentou convencer o público de que repudia a violência, mas aproveitou para dizer que os protestos exigiam uma iniciativa urgente para conter a imigração.

A ação política da extrema direita é uma aula do jogo baixo que é possível fazer para contaminar o debate público. Partido anti-imigração por natureza, o Reform UK de Larage foi derrotado na última eleição do Reino Unido e ficou com 1% das cadeiras do Parlamento. A legenda, no entanto, tenta explorar os ataques para fazer valer suas preferências.

A manipulação de rancores não é uma tarefa difícil quando ocorre num ambiente inflamável. No Reino Unido, grupos extremistas estimularam a perseguição a imigrantes depois que informações falsas nas redes deram conta de que um imigrante em situação ilegal teria sido o responsável por assassinar três crianças na cidade de Southport.

A ultradireita conhece bem esse território. Ainda que 85% da população tenha rejeitado protestos violentos, 42% dos britânicos disseram ao YouGov que as manifestações que ocorreram de forma pacífica eram justificadas —ainda que tenham sido convocadas por radicais, a partir de um estopim xenofóbico e mentiroso.

A violência pode até ser condenada, mas o espetáculo que ela produz é capaz de ampliar o alcance de um assunto e até amplificar a adesão à retórica de grupos que, em tempos de calmaria, são vistos como radicais. Em certos casos, com alguma boa vontade coletiva, essa mudança é suficiente para que mais gente passe a considerá-los normais.

Crises Financeiras

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Nesta semana a economia internacional passou por grandes incertezas e instabilidades que geraram pânicos e preocupações generalizadas no mercado financeiro, com impactos para todas as regiões, moedas derreteram, Bolsas apresentaram baixas históricas, investidores entraram em alerta e autoridades monetários tiveram que acompanhar com maior atenção os movimentos do mercado.

Na última segunda-feira, as Bolsas asiáticas balançaram a economia internacional, levando a quedas homéricas, algumas caíram mais de 12% num único dia e contribuíram ativamente para espalhar caos e muita confusão no cenário econômico internacional. Vários motivos contribuíram para a compreensão dessa crise financeira, a possível recessão norte-americana, a bolha no mercado de empresas de tecnologia e a crise dos mercados de carry trade.

O carry trade é uma situação quando o investidor pega dinheiro emprestado em países onde a taxa de juros é baixa, como o Japão, e aplica esses recursos em mercados onde a taxa de juros é mais alta para ganhar com a diferença. Neste cenário, o aumento recente dos juros japoneses reduziu os ganhos destes investidores, levando-os para buscar mercados mais sólidos como os norte-americanos.

As crises financeiras acontecem desde os primórdios da humanidade, com impactos generalizados e repercussões imediatas, gerando enriquecimentos de um lado e perdas elevadas de outro, que demandam atuação mais intensa e mais efetiva dos governos nacionais para impedir que os sistemas econômico, produtivo e financeiro entrem em colapso, levando as nações a fortes recessões, aumentando o desemprego e reduzindo a renda agregada, contribuindo ativamente para a concentração das riquezas e o incremento das desigualdades sociais.

Neste momento de grandes incertezas e instabilidades que culminaram em pânico no sistema financeiro, os agentes sociais e econômicos buscam, ativamente, as razões da volatilidade que aumentam as incertezas, reduzindo os investimentos produtivos e estimulando a busca frenética de ativos de baixo risco, como forma de defender seus patrimônios e, se possível, garantir ganhos imediatos.

Os setores financeiros concentram grandes poderes na sociedade internacional, impondo seus interesses imediatos, seus ganhos estratosféricos, transformando as relações sociais, estimulando um verdadeiro cassino financeiro, modificando valores enraizados na comunidade e criando novos valores, centrados no imediatismo, no individualismo e na busca crescente dos lucros monetários e financeiros.

Dados divulgados na semana passada mostram uma possível recessão na economia norte-americana que pode gerar desaceleração da economia internacional, levando muitas nações a exportarem menos para os EUA e impactando negativamente nas economias locais, gerando menos empregos e reduzindo a demanda agregada interna.

Outra situação preocupante para a economia internacional foi os dados divulgados sobre as ações de empresas de tecnologia, muitas delas reportaram quedas elevadas em seus ganhos, levando especialistas a vislumbrarem um possível fim da bolha das empresas de tecnologia. Empresas como a Nvidia apresentaram valores surreais no mercado, as ações da gigante dos chips, a norte-americana Intel, reportou aos investidores perdas de mais de 25% nas ações, destacamos ainda, a venda das ações da Apple pelo grande investidor norte-americano Warren Buffett, gerando incertezas e instabilidades no mercado acionário.

As finanças dominam a economia mundial impondo seus valores, estimulando o imediatismo, o individualismo, o lucro monetário e fortalecendo valores materiais, deixando de lado as aflições humanas, as depressões e os ressentimentos que crescem em todas as regiões do mundo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

País dos privilégios, por Hélio Schwartsmam

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Livro tenta atualizar clássico de Raymundo Faoro que mostrou como certos grupos extraem para si benefícios da sociedade

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.
Folha de São Paulo, 04/08/2024

Sou fã de Bruno Carazza desde os tempos em que ele mantinha um blog no qual tentava introduzir medidas objetivas para analisar questões de direito. É com satisfação, portanto, que o vejo agora envolvido no ambicioso projeto de escrever uma trilogia que atualiza “Os Donos do Poder” o clássico de Raymundo Faoro”, que mostrou como alguns estamentos sociais conseguem sequestrar o poder do Estado brasileiro para beneficiá-los. O título da obra de Bruno é “O País dos Privilégios”, da qual acaba de sair o primeiro volume.

Neste tomo inicial, Bruno se debruça sobre o funcionalismo público. Esse livro teria potencial de ser um dos mais aborrecidos do mundo. O que Bruno faz essencialmente é comparar tabelas com rendimentos de servidores e outros dados que não despertam entusiasmo. Mas ele consegue transformar isso numa leitura interessante. Eu exageraria se afirmasse que a obra se lê como um Agatha Christie, romance de mas o texto é agradável e prende a atenção. Até desperta algumas emoções no leitor, quando descreve as formas criativas pelas quais certos estamentos extraem benefícios da sociedade.

O número de funcionários públicos no Brasil não é exagerado –12%, bem menos que o registrado em algumas economias avançadas–, mas empenhamos em suas remunerações a formidável fatia de 13% o PIB, padrão só verificado nos países nórdicos. A distribuição é, como tudo no Brasil, desigual.

Enquanto funcionários municipais ganham em média menos que trabalhadores da iniciativa privada em funções semelhantes, grupos de elite do funcionalismo federal ganham bem mais, além de gozar de outros privilégios. Estamos falando de juízes, membros do Ministério Público, fiscais de renda etc.

O livro não é uma diatribe contra servidores públicos. Bruno é muito cuidadoso ao lembrar que eles desempenham um papel importantíssimo na administração, que justifica alguns (mas não todos) os privilégios.

Reconstruindo as capacidades estatais, por André Roncaglia

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Transparência ajuda a qualificar debate sobre o papel das empresas públicas no século 21

André Roncaghia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 08/08/2024

A Sest (Secretaria de Coordenação e Governança das Estatais) do MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos) apresentou, há alguns dias, o “Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais”, um mapa do sistema de empresas estatais federais.

O relatório oferece uma descrição de cada uma das 44 empresas sob controle direto da União e permite uma análise mais adequada dos resultados das estatais ajustados aos seus objetivos.

A imprensa costuma repercutir uma análise superficial, tipicamente financista, de lucro ou prejuízo. A extrema direita se gaba de o governo Bolsonaro ter melhorado a gestão das estatais, mas os números mostram o desmonte a granel do sistema, por meio de cortes de investimento e da venda lesa-pátria da Eletrobrás.

Os objetivos das empresas estatais transcendem a mera busca de resultados financeiros de curto prazo. Sua governança considera aspectos ligados ao interesse público, como a geração de empregos de qualidade, o abastecimento e a segurança alimentar, a inovação tecnológica e a gestão focada em resultados.

Em 2023, o sistema de empresas estatais federais contribuiu com cerca de 6% do PIB em valor adicionado bruto e mais 6% na compra de insumos, ativando cadeias produtivas nacionais. Os ativos somaram cerca de R$ 6 trilhões (60% do PIB), e o lucro líquido foi de R$ 197,9 bilhões: dois terços desse resultado vieram da Petrobrás (R$ 125,2 bilhões), seguida pelo Banco do Brasil (R$ 33,8 bilhões), pelo BNDES (R$ 21,9 bilhões) e pela Caixa Econômica Federal (R$ 11,7 bilhões). A queda de 28% nos lucros relativos a 2022 se deveu à redução nos preços do petróleo e ao aumento de 30% dos investimentos das empresas.

Em termos de emprego, o sistema detém mais de 436 mil postos, com atuação em todo o território nacional, e vem melhorando a baixa representatividade das mulheres (ainda em 38% do total), mas que já detém 49% dos empregos gerados nos últimos dez anos.

Ao longo do ano de 2023, foram distribuídos R$ 128,1 bilhões em dividendos e juros sobre o capital próprio, dos quais a União recebeu R$ 49,4 bilhões. Cerca de R$ 222 bilhões foram pagos na forma de impostos, taxas e contribuições para municípios, estados e a União. Os lucros retidos no total de R$ 101 bilhões podem reforçar os investimentos ligados ao Novo PAC.

A Ebserh, que controla 41 dos 45 hospitais universitários federais (responsáveis por mais 8 milhões de cirurgias em 2023), e a Embrapa (tecnologia agropecuária) receberam, cada uma, cerca de R$ 4 bilhões do Tesouro. E os Correios receberam R$ 532 milhões para universalizar o acesso à distribuição postal.

No mundo inteiro, as empresas estatais retomam sua centralidade em setores estratégicos, como os de rede (ferrovias, portos, eletricidade, saneamento, telecomunicações etc.) e na produção e na prestação de serviços (saúde, financeiros, manufatura, indústria aeroespacial etc.). Um estudo do Roosevelt Institute —”Industrial Policy 2025: Bringing the State Back In (Again)”—mostra que, das 10 maiores empresas do mundo, 4 são estatais. A França, por exemplo, tem mais empresas estatais que a ex-soviética Rússia. O Brasil tem menos cobertura estatal do que Suíça, Alemanha e Argentina.

Ao operar uma agenda intensiva em inovações para o setor público, o MGI visa construir as capacidades estatais para lidar com os desafios da transição ecológica e da digitalização da economia. É uma estrada longa e repleta de obstáculos. Por isso, a maior transparência ajuda a qualificar o debate público sobre o papel das empresas estatais no século 21.

Desigualdades sociais

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Nos últimos anos estamos percebendo o incremento das desigualdades sociais na sociedade internacional, anteriormente ao falar sobre esse assunto percebíamos que essa desigualdade acontecia fortemente nas economias subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, na contemporaneidade esse assunto se apresenta em todas as nações do globo, tanto as ricas e desenvolvidas como as nações pobres e atrasadas economicamente, gerando novos desafios para os gestores públicos, as elites empresarial e financeira, além da academia e para todos os integrantes da sociedade civil.

Desde os anos 1990, com o incremento da globalização, da abertura econômica e do aumento das tecnologias que culminaram numa sociedade digital e centrada no conhecimento, percebemos uma grande transformação na estrutura econômica e produtiva, alguns países conseguiram se adaptar melhor e mais rapidamente neste novo cenário, enquanto outras nações tiveram grandes dificuldades no mundo globalizado, gerando concorrências crescentes em todos os setores, impactando sobre os trabalhadores e os setores produtivos, impulsionando uma competição que tende a fragilizar muitas empresas e sistemas econômicos.

A desigualdade social sempre caracterizou a sociedade brasileira, somos vistos como uma das nações mais desiguais do mundo, que contrasta com as riquezas que caracterizam a sociedade nacional, afinal somos um país dotado de grandes recursos minerais, clima agradável, grandes reservas de água doce, além de florestas e vegetações em abundância que nos coloca no centro de uma das nações mais ricas de recursos naturais.

Mesmo assim, as desigualdades sociais existentes na contemporaneidade brasileira estão diretamente ligadas a história degradante da escravidão que perdurou mais de trezentos anos, uma colonização caracterizada por uma exploração gigantesca, além de privilégios de poucos grupos econômicos e financeiros, um Estado capturado por elites predadoras e imediatistas, além de um sistema educacional fracassado e ultrapassado para os grupos mais fragilizados economicamente da sociedade, que contribuem para a perpetuação de uma pobreza estrutural que nos afasta imensamente da cidadania e da conscientização política e social.

Além destas características que contribuem maciçamente para o incremento das desigualdades sociais, destacamos salários degradantes que pouco auxiliam na sobrevivência dos trabalhadores e estimulam a construção de um sistema de proteção social para garantir a sobrevivência dos indivíduos, sem estes a degradação social tende a aumentar e gerar graves constrangimentos políticos e sociais.

Nesta sociedade, que se compraz com as desigualdades variadas que vivenciam no Brasil, encontramos grupos altamente privilegiados, que garantem sua reprodução através de ganhos escorchantes de taxas de juros obscenas, dominando as Autoridades Monetárias sem produzir efetivamente nada, sem geração de emprego e de renda, sem pudor, sem caráter e sem capacidade de compreender que seus benesses e imediatismos contribuem diretamente para a manutenção deste quadro de degradação social, além de um exército de cidadãos bem remunerados, bem formados e que se vendem para garantir seu enriquecimento pessoal e suas férias em terras estrangeiras em prol de uma sociedade deficiente e centrada nas desigualdades sociais.

As desigualdades sociais crescem de forma acelerada em todas as regiões do mundo, gerando um quadro obsceno e degradante, precisamos construir uma maturidade que ataque as raízes desta desigualdade, deixando de lado medidas cosméticas e ineficientes que apenas postergam os conflitos sociais e as crises econômicas que crescem todos os dias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O Império do Mal? por Elizabeth Schmidt

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Elizabeth Schmidt – A Terra é Redonda – 27/07/2024

A presença da China na África vem desde meados do século passado, inicialmente por simpatia política, hoje mais ligada a perspectivas econômicas

A crescente presença da China na África chamou a atenção global. À medida que seus acordos comerciais e investimentos eclipsaram os do Ocidente, políticos dos EUA e da União Europeia deram o alarme: Pequim, dizem eles, está explorando os recursos do continente, ameaçando seus empregos e apoiando os seus ditadores; ademais, está deixando de lado as considerações políticas ou ambientais.

As organizações da sociedade civil africana fazem muitas das mesmas críticas, ao mesmo tempo em que apontam que os países ocidentais há muito se envolvem em práticas semelhantes. Na mídia anglófona, a maioria das avaliações das perspectivas da China é obscurecida pela retórica da Nova Guerra Fria, que enquadra Xi Jinping como um sujeito que visa dominar o mundo. Pede-se, assim, às forças da civilização que o detenham. Ora, como se poderia fazer uma análise mais sóbria? Como se deve entender o papel da África nessa matriz geopolítica hostil?

Os interesses chineses na África – assim como as preocupações ocidentais sobre a influência de Pequim – não são novidade. Compreender o impasse atual exige que a sua história do imperialismo na África seja rastreada. Em abril de 1955, representantes de 29 nações e territórios asiáticos e africanos se reuniram para uma conferência histórica em Bandung, na Indonésia. Eles resolveram arrancar a própria autonomia do núcleo capitalista, promovendo a cooperação econômica e cultural, bem como a descolonização e a libertação nacional, em todo o Sul Global.

Nesse sentido, o envolvimento chinês com a África foi guiado inicialmente por esse espírito de solidariedade. Do início dos anos 1960 a meados dos anos 1970, a China ofereceu doações e empréstimos a juros baixos para projetos de desenvolvimento na Argélia, Egito, Gana, Guiné, Mali, Tanzânia e Zâmbia. Também enviou dezenas de milhares de “médicos descalços”, técnicos agrícolas e brigadas de solidariedade trabalhadora para países africanos que rejeitaram o neocolonialismo e, por isso, haviam sido rejeitados pelo Ocidente.

Na África Austral, onde o domínio da minoria branca persistiu em certas colônias, Portugal resistiu às demandas de independência, Pequim forneceu aos movimentos de libertação em Moçambique e na Rodésia treinamento militar, conselheiros e armas. Quando os países ocidentais ignoraram os apelos da Zâmbia para isolar efetivamente os regimes renegados, a China criou em empresa ferroviária na Tanzânia e Zâmbia, que construiu uma ferrovia que permitiu à Zâmbia exportar seu cobre através da Tanzânia, em vez da Rodésia e da África do Sul, governadas por brancos. Ao longo desse período, as políticas chinesas foram determinadas principalmente por imperativos políticos, pois o país buscava aliados em uma conjuntura global moldada pela Guerra Fria.

Após o colapso da URSS, porém, as suas prioridades mudaram. A China respondeu ao advento da unipolaridade americana embarcando em um programa maciço de industrialização e liberalização, na esperança de evitar o destino de outros projetos estatais comunistas. Com essa mudança, a África não era mais vista como um campo para iniciativas com teor ideológico, mas como uma fonte de matérias-primas e um mercado para produtos chineses, que vão de roupas a eletrônicos. A simpatia política deu lugar à perspectiva da utilidade econômica. As nações africanas foram valorizadas de acordo com seu significado material e estratégico para os planos de desenvolvimento do Partido Comunista Chinês.

Na primeira década do século XXI, a China ultrapassou os EUA como o maior parceiro comercial da África e recentemente se tornou a quarta maior fonte de investimento estrangeiro direto do continente. Em troca de acesso garantido a recursos energéticos, terras agrícolas e materiais para dispositivos eletrônicos e veículos elétricos, a China gastou bilhões de dólares em infraestrutura nesse continente: construção e reforma de estradas, ferrovias, barragens, pontes, portos, oleodutos e refinarias, usinas de energia, sistemas de água e redes de telecomunicações.

As empresas chinesas também construíram hospitais e escolas e investiram nas indústrias de vestuário e processamento de alimentos, juntamente com agricultura, pesca, imóveis comerciais, varejo e turismo. Os investimentos mais recentes se concentraram em tecnologia de comunicação e energia renovável.

Ao contrário das potências ocidentais e das instituições financeiras internacionais, Pequim não fez da reestruturação política e econômica uma condição para seus empréstimos, investimentos, ajuda ou comércio. Eles não estão também condicionados a proteções trabalhistas e ambientais.

Embora essas políticas sejam populares entre os governantes africanos, elas são frequentemente contestadas por organizações da sociedade civil, que observam que as empresas chinesas expulsaram empresas de propriedade africana do mercado e empregaram trabalhadores chineses em vez de trabalhadores locais.

Quando contratam mão de obra africana, as empresas chinesas muitas vezes os forçam a trabalhar em condições perigosas por salários miseráveis. Os projetos de infraestrutura da China também resultaram em dívidas maciças que aprofundaram a dependência africana. No entanto, os países africanos ainda devam muito mais ao Ocidente.

O mais danoso é que Pequim garantiu seu acesso irrestrito a mercados e recursos apoiando elites corruptas, fortalecendo regimes que roubam a riqueza de seus países, reprimem a dissidência política e travam guerras contra estados vizinhos. Os governantes africanos, por sua vez, deram à China o apoio diplomático muito necessário nas Nações Unidas e em outras organizações internacionais.

Durante décadas, a China se opôs à interferência política e militar nos assuntos internos de outras nações. No entanto, à medida que os interesses econômicos de Pequim na África cresceram, ela adotou uma abordagem mais intervencionista, envolvendo operações de socorro em desastres, antipirataria e contraterrorismo.

No início dos anos 2000, a China aderiu aos programas de manutenção da paz da ONU em países e regiões onde tinha interesses econômicos. Em 2006, a China pressionou o Sudão, um importante parceiro petrolífero, a aceitar a presença da União Africana e da ONU em Darfur. Em 2013, aderiu
à missão de manutenção da paz da ONU no Mali, motivada pelos seus interesses no petróleo e no urânio dos países vizinhos. Em 2015, trabalhou com potências ocidentais e organizações sub-regionais da África Oriental para mediar as negociações de paz no Sudão do Sul.

Durante este período, a China inicialmente se absteve de se envolver militarmente em áreas dominadas por conflitos, preferindo contribuir com trabalhadores médicos e engenheiros. Mas isso não durou muito. Houve uma notável presença militar chinesa nas missões de paz da ONU no Burundi e na República Centro-Africana.

A missão da ONU no Mali marcou a primeira vez que as forças de combate chinesas se juntaram a uma operação desse tipo, ao lado de cerca de 400 engenheiros, pessoal médico e policial. Pequim também enviou um batalhão de infantaria composto por 700 soldados armados para o Sudão do Sul em 2015. No ano seguinte, estava contribuindo com mais militares para as operações de manutenção da paz da ONU do que qualquer outro membro permanente do Conselho de Segurança.

A tendência de maior envolvimento político e militar na África culminou em 2017, quando a China se juntou à França, EUA, Itália e Japão no estabelecimento de uma instalação militar em Djibuti: assim nasceu a primeira base militar chinesa permanente fora das fronteiras do país.

Estrategicamente localizada no Golfo de Aden, perto da foz do Mar Vermelho, a instalação tem vista para uma das rotas marítimas mais lucrativas do mundo.

Isso permitiu que Pequim reabastecesse embarcações chinesas envolvidas em operações antipirataria da ONU e protegesse os cidadãos chineses que vivem na região. Também permitiu o monitoramento do tráfego comercial ao longo da Rota da Seda Marítima do Século XXI da China, que liga países da Oceania ao Mediterrâneo em uma vasta rede de produção e comércio. Isso ajudará a China a proteger seu suprimento de petróleo, metade do qual se origina no Oriente Médio e transita pelo Mar Vermelho e pelo Estreito de Bab el-Mandeb até o Golfo de Aden. A maioria das exportações da China para a Europa segue a mesma rota.

Embora Washington condene o que chama de imperialismo chinês, sua própria pegada militar na África é muito mais profunda e dolorosa, consistindo em 29 bases em áreas ricas em recursos. Os EUA prometem afastar os “impérios do mal” enquanto ostentam mais de 750 bases em pelo menos 80 países, em comparação com as três da China. Lutou em pelo menos 15 guerras estrangeiras desde 1980 – a China aderiu a apenas uma – e os regimes fiscais que impôs às nações africanas, baseados na privatização, desregulamentação e restrições de gastos, foram ruinosos.

O establishment de segurança dos EUA agora visa conter a ascensão da China, reforçando alianças militares, especialmente com regimes que receberam investimentos chineses. No entanto, um número crescente de estados africanos, cientes desse histórico desastroso, está se recusando a tomar partido na Nova Guerra Fria e, em vez disso, está tentando jogar seus combatentes uns contra os outros.

A verdade é, porém, que enquanto a África for tratada como um meio para as potências rivais expandirem seus mercados ou influência, em colaboração com as elites locais, o povo do continente não exercerá a verdadeira soberania. Hoje, os legados de Bandung são escassos.

*Elizabeth Schmidt é professora de história na Loyola University Maryland.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Para ‘despiorar’ o socorro aos estados, por Marcos Mendes

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Fundo garantidor bancado pelos estados reduziria comportamento predatório

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

Folha de São Paulo, 27/07/2024

Nos anos 1980 e 1990, a desordem fiscal nos estados era grande. Governadores contavam com a inflação para corroer a folha de salários e aumentar as receitas dos bancos estaduais, que financiavam diretamente os seus controladores.

O Banco Central, então responsável por autorizar operações de endividamento subnacionais (a partir de regras fixadas pelo Senado), era chamado à mesa de negociação toda vez que havia necessidade de socorro. A execução era feita via bancos federais, flexibilizando exigências prudenciais a bancos estaduais ou “emprestando” títulos de sua emissão para os estados captarem dinheiro em mercado.

O Plano Real desmontou o financiamento inflacionário dos bancos e dos tesouros estaduais, revelando o desequilíbrio que a inflação escondia. Foi necessário um programa de saneamento e privatização dos bancos, bem como a federalização das dívidas estaduais.

Esses socorros embutiram subsídio aos estados e custaram muito aos contribuintes. Em
contrapartida, exigiu-se um programa de ajuste fiscal e aprovou-se a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal).

O Banco Central foi retirado do processo de autorização de endividamento, afastando o risco de ser dragado para nova operação de socorro. A tarefa foi transferida ao Tesouro, que cumpriu bem a função, empoderado pela LRF e pelos instrumentos que garantiam o cumprimento do ajuste pelos estados, como a possibilidade de confiscar depósitos daqueles que não honrassem a dívida.

Os estados deixaram de ser um problema fiscal e melhoraram a qualidade e eficiência na prestação de serviços públicos.

A partir de 2008, esse arranjo institucional começou a ruir. Primeiro, porque o governo federal afrouxou os limites de endividamento. Segundo, porque os estados aprenderam a explorar brechas nos limites da LRF.

Em 2014, o desequilíbrio fiscal estadual já havia voltado a ser problema de primeira ordem. E o jogo político mudou. Os estados amealharam forte apoio no Congresso, onde cada parlamentar tem interesse em beneficiar o seu estado e jogar a conta para os contribuintes do resto do país.

Governadores conseguiram obter vitórias sobre a União no STF, mesmo em causas sem fundamento jurídico ou econômico, geralmente sob o argumento de que o atendimento da população não poderia ser prejudicado.

Rompeu-se a principal cláusula da LRF: a proibição de novos socorros fiscais. Todos os governos, desde Dilma, foram forçados a renegociar a dívida. O Tesouro, que antes tinha poder para exigir ajuste aos estados, ficou acuado, sob pressão de governadores, Congresso e STF.

Há incentivo a comportamento fiscal irresponsável, dada a alta probabilidade de repassar a conta para a União.

Tornou-se comum um estado tomar empréstimo no mercado com garantia da União, não pagar, e forçar a União a saldar o débito. Quando esta tenta executar a contragarantia, o estado consegue uma liminar do STF bloqueando a execução.

A coação ao Tesouro evoluiu ao ponto de os estados que estão no Regime de Recuperação Fiscal passarem a ter, por lei, o direito de não honrar as garantias e refinanciar o valor em 30 anos.

Desde 2016, a União já honrou R$ 70 bilhões e executou apenas R$ 6 bilhões em contragarantias.

Esse comportamento predatório só mudará se a vulnerabilidade do Tesouro for reduzida. Exatamente como se fez no passado com o Banco Central, ao isolá-lo da negociação política com os estados.

No caso do Tesouro, não será possível tirá-lo completamente das negociações, mas pode-se reduzir a sua exposição. Uma forma de fazê-lo, sugerida em estudo do FMI de 2019, seria a criação de um fundo garantidor de empréstimos dos estados custeado pelos próprios estados, sem participação financeira ou gerencial da União.

O Tesouro ficaria proibido de dar novas garantias. Somente este fundo poderia fazê-lo. Se um estado desse calote, o custo recairia sobre os demais estados, e não sobre a União.

A negociação de socorro fiscal que ora se desenrola no Senado prevê que parte dos juros pagos pelos estados, em vez de ir para a União, irá para um fundo, que financiará despesas de todos os estados. Em vez de financiar despesas, este fundo poderia garantir empréstimos. Capitalizações adicionais do fundo, somente com dinheiro dos estados.

Em troca das benesses que o projeto está dando aos estados, teríamos pelo menos uma mudança institucional para induzir um pouco de responsabilidade fiscal.

Trinta anos depois do Plano Real por Biderman, Cozac & Rego

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Ciro Biderman, Luis Felipe Cozac e José Márcio Rego – A Terra é Redonda – 20/06/2024

Menos de 20 anos depois do Plano Real, o governo voltou a tentar controlar a inflação segurando tarifas públicas de energia e combustíveis

Quando começamos a pensar nesse projeto que virou o livro Conversas com economistas brasileiros (Ed. 34), há cerca de 30 anos, acreditávamos estar no início de uma nova fase no Brasil. Parecia que teríamos um novo modelo econômico depois de décadas de um modelo esgotado. A inflação crônica estava em seu ato final e uma nova e saudável visão da política pública parecia se firmar. Podemos dizer que os 15 anos que se seguiram ao Plano Real confirmaram nossa percepção.

Os governos FHC 1 e 2, bem como os governos Lula 1 e 2, trouxeram nova perspectiva ao país. O Plano Real, que de fato resolve a inflação inercial no país, partiu de um mecanismo teórico que se verificou bem-sucedido na prática – a ancoragem dos preços em uma moeda indexada e virtual. A famosa proposta “Larida”, termo cunhado por Dornbusch em alusão aos seus dois criadores (André Lara Resende e Pérsio Arida) partia de princípios teórico-econômicos estabelecidos aplicados ao mundo real.

Mas há outra contribuição teórica original e pouco intuitiva, que cumpriu um papel relevante na compreensão do contexto econômico do período inflacionário: a ideia de que, no Brasil, o aumento da inflação faria diminuir, e não aumentar, o déficit do setor público. Seria um “efeito Tanzi às avessas”, ou seja, no Brasil a alta da inflação faria diminuir o déficit, visto que as despesas estavam menos protegidas que as receitas, indexadas pela correção monetária desde a sexagenária ditadura militar.

Este efeito ficou conhecido por “Efeito Bacha”, uma vez que foi disseminado por um dos pais do Plano Real, Edmar Bacha, e embasou a Emenda Constitucional que criou o Fundo Social de Emergência, e promoveu uma desvinculação de cerca de 20% das despesas, conferindo maior liberdade orçamentária e possibilitando gestão fiscal, o que foi crucial para controlar a inflação. O próprio Edmar Bacha dá os créditos da ideia original, sustentando que o nome justo seria “Efeito Guardia”, em alusão ao saudoso ex-Ministro da Fazenda Eduardo Guardia.

Importante é lembrar que voltamos a uma posição de aperto fiscal, onde a desvinculação de parte dos gastos é de novo necessária. Hoje, estamos no caminho oposto: da parca parcela “discricionária” dos gastos, cerca de um quarto está vinculada às emendas parlamentares (era apenas 7% em 2018).

Com otimismo juvenil, pensamos que não veríamos mais o uso de preços controlados para segurar a inflação. Essa estratégia, sistematicamente utilizada pelos governos anteriores ao Plano Real, apenas postergava o problema, gerando distorções de preços relativos que tornavam o problema ainda maior no futuro. Menos de 20 anos depois do Plano Real, o governo voltou a tentar controlar a inflação segurando tarifas públicas de energia e combustíveis. Novamente, o mesmo fantasma nos espreita hoje – e os resultados são conhecidos.

Uma variação dessa estratégia pseudo anti-inflacionária é segurar o aumento do salário-mínimo com o mesmo objetivo. Esse expediente foi utilizado inúmeras vezes pelos governos antes de 1994. Mas, a partir do Plano Real, os aumentos consistentes do salário-mínimo com seus efeitos distributivos foram a marca desses 15 anos de boa política econômica que assistimos. Para nossa surpresa, o aumento do salário mínimo e dos salários do funcionalismo público abaixo da inflação (juntamente com a ausência de concursos públicos) foi recentemente utilizado como estratégia de controle do déficit primário, no governo anterior.

Hoje assistimos a grupos autodenominados de esquerda novamente aplaudindo os movimentos deficitários e as reduções de juros sem fundamentos econômicos, sem se preocupar com a qualidade do gasto e seu financiamento. Assistimos aos grupos conservadores aplaudindo o controle do déficit às custas do salário-mínimo e do funcionalismo, sem se preocupar com a insustentabilidade e o “curto prazismo” dessa e de outras estratégias.

Assim seguimos, esquecendo o que aprendemos, cada grupo com sua irracionalidade para aplaudir. O debate técnico construtivo é asfixiado e se perde a boa gestão da política pública e do orçamento. A Reforma Tributária, que deve ser regulamentada neste ano, nos dá alguma esperança de que a racionalidade possa voltar a reinar.

Seguindo a tradição de esquecer a cada 15 anos o que ocorreu nos 15 anos anteriores, o que mais assusta é não lembrarmos sequer do valor da democracia. Desde a luta das “Diretas Já” há 40 anos, nunca imaginamos que a democracia seria questionada. Assistimos com tristeza a existência de grupos desprezando esse valor básico. Sabemos que é mais fácil fazer política econômica com ditadura, assim como é mais fácil ser veterinário do que médico (pois neste caso o paciente reclama!).

Mas havia o aparente consenso de que essa vantagem não compensava todos os males de uma ditadura. Ainda acreditamos que a democracia é o pior sistema fora todos os outros, como disse Churchill. Só que parte da população brasileira se esqueceu disso também.

*Ciro Biderman é professor nos cursos de Administração pública e de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP).
*Luis Felipe Cozac é doutor em Economia de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas – SP.
*José Marcio Rego é professor da Fundação Getulio Vargas – SP e professor titular aposentado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Hegemonias

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A ascensão da China na economia internacional está gerando grandes alterações na lógica do poder mundial, transformando a geopolítica global, movimentando parcerias estratégicas entre nações, construindo novos cenários externos, além de conflitos comerciais, protecionismos variados e medidas emergenciais para defender seus setores econômicos e produtivos nacionais.

Desde os anos 1990, com a desintegração da União Soviética, os Estados Unidos da América se tornaram a grande economia mundial, detentora da hegemonia global e responsável pelos rumos da sociedade internacional, suas empresas ganharam novos espaços nos setores produtivos mundiais, estimulando a concorrência no cenário global, além de fomentar grandes conflitos militares, alterando regiões inteiras, agitando culturas milenares e transformando as geopolíticas regional e global.

Nestas últimas décadas encontramos situações interessantes e diferenciadas na busca pela hegemonia internacional, onde os Estados Unidos competiram com uma nação forte militarmente, União Soviética, mas frágil e degradada do ponto de vista econômico e produtivo. Posteriormente, seu próximo rival, o Japão, era visto como uma potência econômica, dotada de grande tecnologia e organizações estruturadas, mas frágil do ponto de vista militar. Atualmente, percebemos que a busca pela hegemonia global nos traz grandes desafios para os Estados Unidos, na verdade, nos parece o grande desafio norte-americano do século XXI, afinal, seu competidor, a China, se caracteriza por grande força econômica e produtiva, dotada de grande potencial tecnológico e de inovação, além de grande força militar.

Estamos vislumbrando um conflito demorado pela hegemonia internacional, onde as estratégias são imprescindíveis para o sucesso das próximas décadas, exigindo de todos os contendores, grandes investimentos em capital humano, além de grande potencial de inovação para competir neste cenário marcado por grandes concorrências, incertezas e instabilidades crescentes.

Nesta busca pela hegemonia mundial, seus governos estão usando seus poderes políticos e financeiros para alavancar seus setores econômicos e produtivos, proibindo a entrada de produtos de seu concorrente direto, além de proibir que empresas locais transfiram tecnologias aos grandes competidores, além de pressionar seus parceiros comerciais para que se alinhem diretamente neste conflito global que tende a se estender por muitas décadas, gerando constrangimentos e preocupações de uma guerra militar em todas as regiões do mundo.

Países como o Brasil estão sendo cobrados internacionalmente para escolher um lado deste conflito entre hegemonias, diante disso, é importante construirmos consensos internos para compreender os cenários que estão sendo abertos neste conflito global, deixando de lado visões ideológicas e buscando os interesses nacionais, garantindo que a economia nacional se consolide, cresça e ganhe espaços no cenário internacional, consolidando uma neoindustrialização, fortalecendo setores vinculados as energias alternativas, reconstruindo e fortalecendo o setor da economia da saúde, fomentando a capacidade tecnológica para agregar valores aos produtos agrícolas produzidos internamente e melhorando os termos de troca da agricultura nacional, desta forma, garantindo recursos adicionais para melhorar os salários dos trabalhadores e fortalecendo um mercado de consumo de massa e contribuindo para alavancar o crescimento da economia nacional, deixando de lado décadas de estagnação econômica e arrocho salarial de grande parte dos trabalhadores nacionais.

Estamos num momento de escolhas difíceis e estratégicas, exigindo maturidade e sabedoria, além de liderança e ousadia, as escolhas repercutirão durante décadas e é fundamental compreendermos que não existe almoço grátis, como lembrou o economista norte-americano Milton Friedman.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

A militarização das escolas, por Erik Chiconelli Gomes.

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Erik Chiconelli Gomes – A Terra é Redonda – 12/06/2024

A implementação das escolas cívico-militares está inserida em um contexto político específico, marcado por uma agenda conservadora que busca reforçar valores tradicionais e hierárquicos

Como historiador, não posso deixar de refletir sobre as implicações históricas e sociais das escolas cívico-militares no Brasil, especialmente em um contexto de crescente militarização da educação.

A história da militarização na educação brasileira não é um fenômeno recente. Desde a Ditadura militar (1964-1985), temos visto tentativas de inserir valores militares na formação educacional dos jovens. A Constituição de 1988, em seu espírito democrático, não menciona a atuação dos militares na política educacional, uma escolha deliberada para afastar resquícios autoritários.

No entanto, as recentes movimentações políticas buscam reviver práticas que deveriam estar relegadas ao passado.

O Plano Nacional de Educação e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que são marcos da educação democrática no Brasil, também não contemplam essa abordagem militar. Isso evidencia que a inclusão das escolas cívico-militares é uma anomalia, uma tentativa de inserir um modelo ultrapassado e autoritário em um sistema que deveria prezar pela liberdade e pelo pensamento crítico.

Custos elevados e ineficiência

As escolas cívico-militares têm um custo por aluno três vezes maior do que as escolas públicas convencionais. Para embasar a afirmação de que as escolas cívico-militares têm um custo por aluno significativamente maior do que as escolas públicas convencionais, podemos citar algumas fontes oficiais.

Segundo informações apresentadas pelo Ministério da Educação (MEC), o custo das escolas cívico-militares é, de fato, elevado. O programa que institui essas escolas, chamado Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), foi detalhado em diversos documentos e reportagens. Por exemplo, a reportagem da Agência Brasília destaca que o investimento necessário para manter essas escolas é consideravelmente maior devido à necessidade de pagar pelos serviços adicionais dos militares da reserva, além dos custos comuns das escolas regulares.

Além disso, o levantamento realizado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal mostra que o modelo cívico-militar envolve custos adicionais com a infraestrutura necessária para acomodar as atividades militares e o pagamento de gratificações aos militares que atuam nessas instituições.

Em um país com enormes desigualdades sociais e educacionais, essa escolha parece mais um desperdício de recursos do que um investimento efetivo na educação. Segundo a deputada Andrea Werner (PSOL), “A escola cívico militar custa o dobro por aluno que as escolas regulares e não entrega o dobro de resultados positivos”.

Além do custo, a eficiência dessas escolas é questionável. O modelo de ensino militar não é necessariamente adequado para a formação integral dos estudantes. A disciplina rígida e o enfoque na obediência podem sufocar a criatividade e o pensamento crítico, habilidades essenciais para o desenvolvimento pessoal e profissional dos jovens em uma sociedade democrática.

Ideologização do ensino

A expansão das escolas cívico-militares é também um movimento ideológico. O governo de Jair Bolsonaro, ao instituir o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, promoveu uma visão de mundo que privilegia a ordem e a disciplina militares em detrimento da diversidade e da liberdade de pensamento. Esse movimento pode ser interpretado como uma tentativa de doutrinação, buscando formar cidadãos que aceitem passivamente a autoridade e não questionem as estruturas de poder.

Historicamente, regimes autoritários sempre buscaram controlar a educação para moldar as mentes das futuras gerações. As escolas cívico-militares representam um retrocesso nesse sentido, indo contra os princípios democráticos que deveriam nortear a educação pública no Brasil.

O impacto na qualidade da educação

A análise da qualidade da educação em diferentes países revela disparidades significativas no investimento e nos resultados educacionais. Países como Luxemburgo, Suíça e Noruega, que ocupam posições de destaque no cenário educacional global, possuem sistemas educacionais robustos e inclusivos. Nesses países, o foco está no desenvolvimento integral do aluno, promovendo um ambiente que valoriza a diversidade, a criatividade e o pensamento crítico.

Esses investimentos são direcionados para a capacitação contínua dos professores, a melhoria das infraestruturas escolares e a elaboração de currículos que fomentam a inclusão e a inovação pedagógica.

Em Luxemburgo, o investimento por aluno na educação básica ultrapassa os 26.370 dólares, enquanto na Suíça e na Noruega os valores são de 17.333 e 16.008 dólares, respectivamente. Esses investimentos resultam em sistemas educacionais que priorizam o desenvolvimento holístico do estudante, abordando não apenas o desempenho acadêmico, mas também o bem-estar emocional e social dos alunos.

Países como Finlândia, Canadá e Nova Zelândia são exemplos notáveis de sistemas educacionais inclusivos que priorizam o bem-estar dos alunos e o desenvolvimento integral. Na Finlândia, o sistema educacional é amplamente reconhecido por sua abordagem centrada no aluno, onde o foco está na personalização da aprendizagem e no apoio individualizado. Professores altamente qualificados e continuamente capacitados são a pedra angular desse sistema, que também valoriza a igualdade de oportunidades e a inclusão de todos os estudantes.

No Canadá, a diversidade cultural é celebrada dentro das salas de aula, e o currículo é desenhado para refletir as várias comunidades que compõem o país. A inclusão de tecnologias educacionais é uma prática comum, permitindo que os alunos desenvolvam habilidades para o século XXI. Além disso, a participação ativa da comunidade escolar é incentivada, criando um ambiente colaborativo que apoia o crescimento acadêmico e pessoal dos estudantes.

A Nova Zelândia também se destaca pela sua abordagem inclusiva. O sistema educacional neozelandês é conhecido por seu compromisso com a equidade e a justiça social, proporcionando suporte adicional a estudantes de grupos minoritários e com necessidades especiais. A educação na Nova Zelândia promove a participação ativa dos estudantes na tomada de decisões sobre sua própria aprendizagem, fomentando um senso de responsabilidade e autonomia.

A escolha por um modelo militarizado agrava as desigualdades no sistema educacional brasileiro.

Em vez de promover a igualdade de oportunidades, esse modelo tende a criar uma educação dual, onde os recursos são desviados para um segmento específico, deixando a grande maioria das escolas públicas em situação de vulnerabilidade. A falta de investimentos adequados em capacitação de professores, infraestrutura e currículos inclusivos impede que o sistema educacional brasileiro avance em direção a um modelo mais equitativo e de qualidade.

Desafios da política de militarização

A implementação das escolas cívico-militares está inserida em um contexto político específico, marcado por uma agenda conservadora que busca reforçar valores tradicionais e hierárquicos. No entanto, essa abordagem confronta-se com os princípios democráticos estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e pela própria Constituição Federal de 1988, que promovem uma educação voltada para a cidadania, a pluralidade e o respeito aos direitos humanos.

Historicamente, os regimes autoritários têm utilizado a educação como ferramenta de controle social e doutrinação. A militarização das escolas, além de aumentar os custos, representa uma tentativa de moldar o pensamento das novas gerações conforme uma ideologia específica, que privilegia a obediência cega e a conformidade em detrimento da autonomia e do pensamento crítico. Este movimento é preocupante, pois pode resultar na formação de cidadãos menos preparados para lidar com as complexidades de uma sociedade plural e democrática.

Enquanto países bem-sucedidos adotam práticas que promovem a inclusão, a diversidade e o pensamento crítico, o Brasil parece retroceder ao implementar um modelo que enfatiza a disciplina rígida e a obediência.

A resistência a esse modelo não vem apenas de setores progressistas da sociedade civil, mas também de especialistas em educação, que defendem a valorização dos profissionais da educação e a adoção de políticas públicas que fortaleçam a educação inclusiva e de qualidade. A exclusão dos militares da educação, defendida por diversos pesquisadores e entidades, baseia-se no entendimento de que a formação cidadã deve ser pautada pela liberdade, pela diversidade e pelo respeito aos direitos humanos.

As experiências internacionais demonstram que os sistemas educacionais mais bem-sucedidos são aqueles que investem na formação contínua dos professores, na inclusão de tecnologias educacionais e na participação ativa da comunidade escolar na gestão das instituições. Portanto, a adoção de um modelo militarizado no Brasil vai na contramão das melhores práticas educacionais observadas ao redor do mundo.

Educadoras como Sueli Carneiro e Bell Hooks têm postulado a importância de uma educação inclusiva que valorize a diversidade e a equidade. Sueli Carneiro, uma renomada intelectual e ativista brasileira, destaca a necessidade de uma educação antirracista e inclusiva que reconheça e valorize as diferenças. Ela argumenta que a educação deve ser um espaço de emancipação e transformação social, onde todos os estudantes, independentemente de sua origem, têm a oportunidade de alcançar seu pleno potencial.

Bell Hooks, por sua vez, enfatiza a pedagogia do amor e da inclusão, defendendo que a educação deve ser uma prática de liberdade que capacite os estudantes a pensar criticamente e a questionar as estruturas opressivas. Para Bell Hooks, a educação deve ser um processo participativo e democrático, onde a voz de cada aluno é ouvida e respeitada.

Estas perspectivas são fundamentais para entender os desafios e as oportunidades do sistema educacional brasileiro. A militarização das escolas não só ignora esses princípios, mas também perpetua um modelo autoritário que sufoca a criatividade e o pensamento crítico. Para avançar, o Brasil precisa adotar políticas educacionais que promovam a inclusão, a diversidade e a igualdade, seguindo os exemplos bem-sucedidos de outros países e as lições de educadoras visionárias.

Conclusão

Diante dos fatos apresentados, é imperativo questionar a real necessidade e eficácia das escolas cívico-militares. Este modelo não só onera os cofres públicos, mas também ameaça os princípios democráticos que devem nortear a educação brasileira. Como historiador, reitero a importância de uma educação que promova a liberdade de pensamento e prepare os cidadãos para participarem ativamente de uma sociedade democrática e plural. A história nos mostra que a educação é um poderoso instrumento de transformação social, e devemos garantir que ela seja utilizada para promover a inclusão, a igualdade e a justiça social.

A militarização da educação brasileira representa um retorno a práticas autoritárias que contrariam os avanços democráticos conquistados nas últimas décadas. Ao observar exemplos internacionais de sucesso, como os sistemas educacionais da Finlândia, Canadá e Nova Zelândia, percebemos que a qualidade da educação está intrinsecamente ligada à promoção de ambientes inclusivos e ao investimento contínuo na formação de professores. Esses países demonstram que a educação de qualidade é alcançada através da valorização da diversidade e da implantação de políticas educacionais que atendem às necessidades de todos os estudantes, independentemente de sua origem socioeconômica.

Além disso, é crucial considerar a perspectiva de educadoras como Sueli Carneiro e Bell Hooks, que defendem uma educação antirracista e inclusiva. Sueli Carneiro ressalta a importância de uma educação que reconheça e valorize a diversidade cultural e étnica do Brasil, promovendo a equidade e combatendo as desigualdades estruturais. Bell Hooks, por sua vez, enfatiza a pedagogia do amor e da inclusão, propondo uma educação que capacite os estudantes a pensar criticamente e a se engajar ativamente na construção de uma sociedade mais justa. Essas visões são fundamentais para redefinir a educação no Brasil, afastando-se de modelos autoritários e adotando práticas que promovam a liberdade, a criatividade e a igualdade.

Portanto, a adoção de um modelo educativo que valorize a inclusão, a diversidade e o pensamento crítico é essencial para o desenvolvimento de uma educação de qualidade no Brasil. Ao direcionar recursos para a capacitação de professores, a melhoria das infraestruturas escolares e o desenvolvimento de currículos inclusivos, o Brasil pode avançar em direção a um sistema educacional que verdadeiramente prepare seus estudantes para enfrentar os desafios de uma sociedade democrática e plural.

Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Isenções fiscais: Assim o “mercado” drena o Brasil, por José Alvaro de Lima Cardoso

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Especuladores “exigem” cortes na Seguridade e Educação, mas ocultam a conta dos impostos que o Estado não cobra. Quais são eles? Como chegarão a R$ 790 bilhões, sempre beneficiando as elites?

Como somam-se aos juros da dívida para capturar a riqueza social?

José Álvaro de Lima Cardoso- A terra é Redonda – 22/07/2024

Pelas regras da política de benefícios fiscais vigentes no Brasil alguns setores ficam isentos, ou pagam menos impostos, por determinado período, normalmente assumindo em termos genéricos, contrapartidas, como a realização de investimentos. Estes devem produzir benefícios para a região escolhida, gerando empregos, tecnologia, atraindo outros investimentos etc., gerando assim um círculo virtuoso. Ou seja, a ideia da renúncia fiscal é atrair um volume de benefícios socioeconômicos para determinada região, de magnitude superior à perda de arrecadação do ente estatal em função da isenção. A rigor qualquer renúncia fiscal autorizada deveria ser precedida por um estudo econômico que indicasse os seus prováveis efeitos socioeconômicos na região impactada. Mas muitas vezes não é isso que acontece.

Segundo levantamento da Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), que em junho último publicou uma atualização do seu estudo sobre a questão, a renúncia fiscal da União em 2024 chegará a quase R$ 790 bilhões. No estudo esse valor inclui renúncias instituídas ao longo das últimas décadas, além de impostos que, apesar de previstos, não foram regulamentados. Conforme o levantamento, o valor de renúncia fiscal para este ano aumentou 46,9% em relação ao valor das isenções de 2023 (R$ 537,5 bilhões). O total considerado pela Unafisco inclui todas as isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia, conforme os dados do Demonstrativo dos Gastos Tributários (DGT) da União.

No estudo, a entidade qualifica como privilégios tributários, as renúncias fiscais concedidas sem contrapartida adequada e comprovada para o desenvolvimento econômico sustentável ou a redução das desigualdades sociais. Segundo a Unafisco, os principais privilégios tributários no país seriam:

1.Isenção dos Lucros e Dividendos Distribuídos por Pessoa Jurídica. Total renunciado: R$ 160,1 bilhões;

2.Não Instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Total renunciado: R$ 76,46 bilhões;

3.Benefícios da Zona Franca de Manaus. Total renunciado: R$ 30,99 bilhões;

4. Programas de Parcelamentos Especiais (Refis). Total renunciado: R$ 29,37 bilhões;

5.Simples Nacional. Total renunciado: R$ 125,36 bilhões. Segundo a Unafisco, embora este valor esteja sendo considerado parcialmente um privilégio, é um incentivo relevante para micros e pequenas empresas. A crítica aqui é a de que algumas empresas com faturamento alto, que não geram empregos, pegam carona no Simples;

6.Desoneração da Cesta Básica. Total renunciado: R$ 38,99 bilhões (parcialmente considerado privilégio). Segundo o estudo, a desoneração da cesta básica é também considerada privilégio, em parte, pois beneficia empresas com maior capacidade contributiva, que se aproveitam da brecha fiscal;

7.Benefícios para Entidades Filantrópicas. Total renunciado: R$ 19,75 bilhões;

8.Benefícios concedidos à SUDENE e SUDAM. Total renunciado: R$ 23,58 bilhões (SUDENE) e R$ 15,42 bilhões (SUDAM). Para a Unafisco, esses benefícios são enquadrados como privilégios porque não existe a comprovação devida de geração de empregos nas localidades atingidas;

9.Benefícios para Produtos Químicos e Farmacêuticos. Total renunciado: R$ 10,80 bilhões. Aqui também, os benefícios fiscais concedidos são tidos como privilégios por falta de comprovação de contrapartidas socioeconômicas adequadas.

Segundo o estudo, entre janeiro de 2012 e dezembro de 2023, as isenções cresceram 212,44%. Como, no que se refere a orçamento público, não existe milagres, o crescimento das isenções tem como contrapartida a redução de investimentos federais em outras áreas chaves. Por exemplo, o investimento do governo federal em “Gestão de Risco e Desastres” reduziu 5,44% no mesmo período apontado, entre 2012 e 2023.

Um dos problemas centrais dessa política de isenções crescentes e pouco debatidas pela sociedade, é que uma boa parte das renúncias corresponde a impostos que financiam a Previdência Social. Informações do Tribunal de Contas da União (TCU) dão conta que em 2023, as isenções subtraíram da previdência nada menos que R$ 274 bilhões em receitas. O TCU observa que, considerando PIS/Cofins e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a renúncia fiscal chegou a R$ 274 bilhões no ano passado. Esses tributos, mais as contribuições de empresas e trabalhadores ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), são as fontes de receita mais significativas para a Seguridade Social. Essa política representa uma verdadeira brincadeira na beira do abismo, em função da centralidade e da importância da Seguridade Social no Brasil.

A Seguridade Social brasileira acaba impactando a vida de cerca de 150 milhões de brasileiros, ou mais, direta ou indiretamente. Seguridade Social não é só Previdência, mas abrange Saúde e Assistência Social, áreas vitais para a sobrevivência da população, especialmente a mais pobre.

O sistema previdenciário brasileiro paga todo mês cerca de 39,5 milhões de benefícios e representa uma injeção de mais de R$ 70 bilhões mensais na economia do país, o que é fundamental para o mercado consumidor interno. Quase 70% dos municípios brasileiros tem como principal renda, os benefícios pagos pelo INSS.

Essas informações são muito importantes porque já está se falando em realizar nova “reforma” da previdência dentro de dois ou três anos, supostamente para “garantir a sustentabilidade” do sistema. Ou seja, ao mesmo tempo em que quase não se fala da escalada absurda das isenções fiscais no país nos últimos anos, vai se intensificando uma campanha contra o “déficit” da previdência social (com diagnóstico falacioso) e aos gastos sociais em geral. Como já ocorreu em outros períodos, algumas matérias na mídia corporativa comparam a previdência social a uma “bomba relógio”, em função dos benefícios e aposentadorias concedidas. Porém, essa discussão nem menciona o impacto das isenções fiscais sobre a arrecadação da Seguridade Social. Outras análises propõem o fim dos atuais pisos de gastos para a Saúde e a Educação.

Alguns críticos estão questionando inclusive a vinculação do reajuste do salário-mínimo com benefícios como BPC (Benefício de Prestação Continuada), abono salarial e seguro-desemprego, direitos históricos da população brasileira. O debate é realizado fora de contexto e sem levar em conta a importância desses gastos para atenuar a extrema concentração de renda, e para a própria alimentação do mercado consumidor interno, essencial para qualquer país. Uma comprovação de que essa discussão sobre o déficit da previdência, que é realizada de forma superficial e enganosa, tem objetivos inconfessáveis, é que não se menciona o problema dos gastos bilionários a cada ano, com a dívida pública. A “crise fiscal”, que uma parte da grande imprensa tanto alardeia, claramente, está sendo fabricada com objetivos políticos, em um ano em que a previsão de déficit primário, por parte de todos os especialistas, é zero.

A associação dos gastos com saúde, educação e bolsa família, ao déficit público, exerce ainda uma outra função fundamental, que é encobrir o problema central das contas nacionais: os gastos com a dívida pública. A Lei Orçamentária (LOA) de 2024 prevê despesas de R$ 5,5 trilhões. No entanto, a parte do leão é para o refinanciamento da dívida pública. Com esta rubrica, a previsão da LOA é que sejam gastos com a rolagem da dívida R$ 2,4 trilhões neste ano.

Enquanto com a previdência social, segundo maior gasto do governo federal, deverão ser investidos R$ 935 bilhões neste ano, com a rolagem da dívida serão comprometidos nada menos que 44% do orçamento federal. O gasto com juros previsto na LOA é de R$ 436 bilhões (está subestimado), mas a chamada rolagem da dívida, isto é o seu refinanciamento, irá alcançar 44% do orçamento federal. Na rolagem da dívida, o governo emite novos títulos, paga os juros e resgates com o dinheiro captado e assume uma nova dívida com novos prazos e condições. O total dos títulos que continuam em aberto, ou seja, que ainda não foram resgatados, compõem o “estoque” da dívida, formado pelo conjunto de obrigações assumidos ao longo do tempo, inclusive, por governos anteriores.

Os juros nominais do setor público consolidado, no acumulado em doze meses até maio, chegaram a R$781,6 bilhões (7,04% do PIB). Fala-se em pagamento de juros e amortizações, mas, apesar da fábula de dinheiro que é paga todo ano, a dívida só cresce. Ou seja, amortização da dívida não passa de um sonho. A Dívida Bruta – que abrange Governo Federal, INSS e governos estaduais e municipais – atingiu 76,8% do PIB, e equivalente a R$8,5 trilhões.

Os credores preservam esse estoque de dívida porque eles representam uma verdadeira galinha dos ovos de ouro. Não lhes interessa que a dívida seja paga. Os gastos com juros da dívida em 12 meses descritos acima equivalem a mais de 83% dos gastos previstos com a previdência para 2024.

Com uma diferença crucial: os gastos com a previdência social são fundamentais para cerca de 150 milhões de brasileiros (direta e indiretamente); os gastos com a dívida pública é dinheiro jogado fora: vai para o bolso de especuladores que não agregam nada à geração de valor no país.

Com o detalhe nada banal de que boa parte da dívida é ilegal, o seu pagamento é completamente irregular, conforme comprovam os estudos da Auditoria da Dívida Pública.

A dívida pública é um sistema de drenagem de recursos públicos do Brasil, legalizado e com total cobertura da grande imprensa. Uma breve análise do problema evidencia que esse é o nó das contas públicas no país. Super ricos, com bilhões de reais no mercado financeiro, e que se privilegiam da segunda maior taxa de juros reais do planeta (em torno de 8%), são os mesmos que estão propondo o fim da política de reajuste do salário-mínimo vinculado à evolução do PIB. O discurso hipócrita de todos os conservadores da política e da economia é o mesmo: estão muito “preocupados com a situação fiscal do país”.

Economia neoclássica versus keynesiana, por Marcos de Queiroz Grillo.

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Marcos de Queiroz Grillo – A Terra é Redonda- 22/07/2024

Os neoclássicos, no seu intento de desenvolvimento de uma análise precisa, rejeitaram a realidade e verdades óbvias universais, agarrando-se na ficção
Introdução

A ciência econômica anda décadas a reboque da história. Muitos economistas, que se descrevem como cientistas, não conseguem chegar a acordos básicos sobre quase nada em relação às políticas econômicas. Sem uma teoria correta não se consegue uma prática assertiva. Não havendo consenso sobre a teoria econômica, como se poderá levar a cabo políticas econômicas eficazes?

Da economia clássica derivaram, para um lado, a teoria econômica marxista ricardiana e, para outro, a teoria econômica neoclássica. Esta última, dominou completamente o debate econômico até a publicação, em 1936, da Teoria Geral, de John Maynard Keynes.

Os pais da teoria neoclássica foram os economistas clássicos do século XVIII, David Ricardo e Adam Smith. Eles criaram as bases para a rationale do laissez-faire, da não intervenção governamental na economia, da economia de livre mercado, de “pleno emprego” e de “preços de equilíbrio”, propiciado pelo conceito da mão invisível do mercado, com todos os agentes econômicos agindo racionalmente com base nos seus próprios interesses.

A teoria keynesiana questionou o conceito do laissez-faire com base no entendimento de que o mundo não é governado de cima, de forma que os interesses privado e social sempre sejam coincidentes. Segundo John Maynard Keynes, o conceito do laissez-faire teria contribuído para o advento da recessão de 1929, pois o conceito de equilíbrio do emprego e dos preços no longo prazo, propugnado pelo laissez-faire, não era somente enganoso, mas também, muito perigoso.

A crise tinha causais na gestão econômica, não tendo ocorrido por acidente; e a inação diante dos fatos correntes poderia ser desastrosa, já que o longo prazo é um guia enganoso para a realidade concreta dos negócios correntes. No final do século XX perfilavam os monetaristas, os keynesianos neoclássicos e os Pós Keynesianos, num debate interminável sobre os grandes problemas da economia: emprego, inflação e dinheiro.

São descritas aqui as diferenças/similaridades filosóficas e axiomáticas entre as diversas escolas, enfatizada a importância da teoria na prática do dia a dia da política econômica e levantados alertas do perigo, para a sociedade, de conceituações teóricas equivocadas que permeiam a aplicação de políticas econômicas enganosas.

Teoria neoclássica x teoria keynesiana

John Maynard Keynes publicou sua Teoria Geral em 1936. A Europa, diferentemente dos EUA, experimentou de 1922 a 1936 uma taxa de desemprego superior a 10% ao ano. Nos EUA o mesmo não acontecia, sendo que no próprio ano de 1929 o desemprego foi de apenas 3%. Contudo, do final de 1929 a 1933 a economia americana despencou, com uma queda no PIB per capita de 52% no período.

Em 1933 o desemprego foi da ordem de 25%. Tudo isso parecia indicar o completo fracasso do sonho americano e da própria teoria neoclássica de equilíbrio.

Ainda assim, com todas essas evidências, os economistas neoclássicos argumentavam tratar-se de uma aberração temporária numa economia de livre mercado e que o elevado desemprego não poderia persistir no longo prazo, sendo certa a tendência do mercado ao reequilíbrio de preços e ao pleno emprego. Segundo eles, para se governar bem, deve se governar menos. Intervenções econômicas só deteriorariam a situação momentânea de desequilíbrio.

No entendimento de Adam Smith, no livro A Riqueza das Nações, “cada indivíduo está continuamente buscando descobrir o mais vantajoso emprego do seu capital, vantagem para si e não para a sociedade. Ele visa somente seu próprio ganho, mas ele é conduzido por uma mão invisível que promove um fim que não era a intenção do indivíduo. Ele, na busca do seu interesse individual, termina promovendo o interesse da sociedade como um todo, de forma mais eficaz do que se ele quisesse conscientemente fazê-lo”.

A crença neoclássica de que a economia de livre mercado inevitavelmente geraria pleno emprego e prosperidade tem por base um “axioma” criado pelo economista francês Jean Baptiste Say de que “produtos são sempre trocados por produtos”. Este conceito foi refraseado pelo economista inglês James Mill como “a oferta cria a sua própria demanda”, que passou a ser conhecida como a Lei de Say. No fundo, produz-se coisas (oferta) que são colocadas no mercado para auferir-se renda para comprar outros produtos no mercado (demanda).

Nesse sentido, nunca haveria uma depressão pelo fato de a produção criar suficiente renda para comprar tudo o que é produzido. Igualmente, nunca poderia existir desemprego já que os empresários, visando lucro, sempre seriam capazes de encontrar demanda suficiente para a venda dos produtos produzidos pelos trabalhadores. Nesta visão, bens são trocados por bens. O dinheiro seria só um meio de troca para facilitar as transações. Mudanças na oferta de dinheiro não afetariam variáveis macroeconômicas como o nível de emprego e o produto agregado, já que o dinheiro nada mais seria do que um véu atrás do qual funcionaria a economia real.

Posteriormente, esta questão foi reconceituada, enfatizando o axioma técnico de neutralidade do dinheiro, ao não afetar o emprego e a produção dos bens e serviços. Nesse sentido, o aumento da quantidade de dinheiro na economia afetaria somente os preços, causando inflação, já que haveria muito dinheiro tentando comprar poucos bens e serviços.

John Maynard Keynes pensava diferente. Em sua obra, rejeitou o conceito de neutralidade do dinheiro e a Lei de Say, conceitos vigentes sem qualquer questionamento por mais de um século.

Segundo ele, um sistema onde o dinheiro não teria nenhuma outra interferência que não a de apenas meio de troca, teoricamente, seria uma economia real de troca que, na prática, não existe, já que o dinheiro tem implicações próprias na economia, afetando motivações e decisões de curto e de longo prazo, o que caracteriza uma economia monetária, na qual são peculiares os picos e os vales, onde a influência do dinheiro não seria neutra, mas, ao contrário, poderia afetar a produção.

John Maynard Keynes e a crise de 1929

Durante os quatro anos da administração Hoover nos EUA (1929-33) a economia americana sofreu uma significativa deterioração, apesar da “certeza” dos economistas neoclássicos que o aconselhavam de que um sistema de livre mercado, sem interferência governamental, voltaria sozinho ao equilíbrio. Os produtores descobriram que qualquer coisa que produzissem e colocassem no mercado sofreria deflação de preços causando-lhes prejuízos.

Enquanto as pessoas das cidades passavam fome, os fazendeiros das cercanias destinavam sua produção para alimentar os porcos. O desemprego aumentou e a produção continuou em queda. Mesmo assim, o presidente Hoover continuou seguindo seus assessores neoclássicos, acreditando que a melhor solução seria de não intervenção na economia que, no longo prazo, se ajustaria sozinha.

Nas eleições de 1932, predominava o receio da revolução socialista, do anarquismo. O povo começou a se manifestar, exigindo medidas urgentes. Acampados perto do Rio Potomac, em Washington, os hoovervilles, como eram conhecidos, muitos dos quais veteranos da 1ª. Guerra Mundial, foram reprimidos violentamente pelo General Douglas MacArthur, que os dispersou a força.

Em 1933, com a eleição de Franklin Delano Roosevelt Jr., instaurou-se o “New Deal”, que nada mais era do que um conjunto de medidas legislativas de políticas compensatórias. Ele sabia que se não tomasse medidas urgentes, o próprio sistema capitalista americano estaria em risco. Roosevelt descartou os neoclássicos e convocou jovens que ele definiu como o seu “Brain Trust”, dentre os quais, o economista Rexford Tugwell e o advogado Adolf A.Berle, que implantaram algumas ideias keynesianas de estímulo à economia.

O emprego foi estimulado visando a criação de renda. Saiu de 39 milhões em 1933 para 51 milhões em 1941. A renda per capita cresceu 70% neste período. Roosevelt foi reeleito com sobras, em 1940, para um inusitado terceiro mandato. O povo americano estava convencido do sucesso do New Deal e da nova economia política keynesiana.

A principal medida foi o aumento da renda dos trabalhadores (conhecido como “pump-priming”), o que encorajaria o retorno à produção por parte dos empresários, retroalimentando a criação de novos empregos. Tratava-se, portanto, de priorizar o bombeamento do coração da economia através da criação de empregos, o que deu certo.

Os pós-keynesianos e os keynesianos neoclássicos

A lógica pós-keynesiana continuou negando a mais importante assertiva neoclássica de neutralidade do dinheiro e, como consequência, a falsa conclusão de que uma economia de livre mercado, no longo prazo, sempre asseguraria pleno emprego daqueles que querem trabalhar.

Mesmo assim, a economia neoclássica ficou de pé. Isto porque jovens economistas americanos, ganhadores de Prêmios Nobel, como Paul Samuelson, do MIT, James Tobin, da Yale University, além de outros como Hicks, Debreu e Arrow, com domínio da teoria neoclássica e muito afiados no formalismo e rigor dos modelos matemáticos, se desvencilharam da ortodoxia dos economistas neoclássicos tradicionais (Wilfredo Pareto, Leon Walras, James Mill, entre outros), e buscaram amalgamar a análise teórica neoclássica com as políticas keynesianas de incentivo governamental ao emprego, ao investimento agregado e tratamento dos níveis de preços da economia, desenvolvendo uma estrutura analítica, fortemente pautada em complexo simbolismo matemático, que eles denominaram de Síntese neoclássica do keynesianismo.

No fundo, eles reduziram a teoria keynesiana a um manual de cura para os desequilíbrios de curto prazo do sistema econômico que, no longo prazo, continuaria se autorregulando. Segundo eles, as políticas de curto prazo se faziam necessárias somente pela demora na correção dos desequilíbrios pelo próprio mercado, sendo necessárias pequenas doses dos remédios keynesianos.

Assim, no pós-guerra, o keynesianismo ficou voltado para os agregados macroeconômicos e os princípios neoclássicos continuaram dominando a microeconomia dos agentes econômicos. Contudo, na década de 1970, as fundações teóricas da economia neoclássica ampliaram seus domínios, expandindo-se da teoria microeconômica (teoria do comportamento de consumidores e produtores) para a macroeconomia (o estudo do comportamento dos sistemas econômicos). Isto foi possível em função do firme propósito de muitos dos consagrados economistas neoclássicos de transformar a economia em ciência exata, buscando diferenciá-la da sociologia e da ciência política.

O modelo neoclássico ganhou nova roupagem com o artigo do economista inglês John Hicks, de 1937, denominado “Mr.Keynes and the Classics” que consistiu numa tentativa de síntese neoclássica do keynesianismo, com seu famoso Sistema IS-LM, pretendendo sumarizar os quatro pilares básicos da teoria keynesiana: I para Investimento, S para a poupança, L para a demanda pela liquidez e M para a oferta de moeda. Segundo Hicks seu Sistema IS-LM de equações simultâneas fornecia o arcabouço matemático para a integração da teoria keynesiana como a modelagem matemática da economia neoclássica, conhecida como a Teoria Geral do Equilíbrio, ou também, Análise Walrasiana do Equilíbrio, já que foi o economista francês Leon Walras (1834-1910) que desenvolveu a primeira versão matemática da teoria neoclássica. Sir Hicks, posteriormente, foi ganhador do prêmio Nobel de 1972.

O sistema IS-LM passou a ser uma “verdade universal” para a maioria dos economistas americanos, levando o professor Martin Bronfenbrenner, da Duke University, a batizá-la como a religião ISLAMic dos economistas. As Universidades incorporaram na sua literatura os escritos dos keynesianos neoclássicos, desaconselhando a seus estudantes a leitura pesada e tediosa da Teoria Geral de Keynes. Em seu lugar, deviam se aprofundar no sistema Hickisiano IS-LM, que continha todas as ideias importantes de Keynes.

O próprio Hicks, posteriormente, reconverteu-se ao keynesianismo, ao afirmar que não estava satisfeito com as premissas de seu modelo, pois ele violentava a ordem que os eventos ocorriam no mundo real.

O economista neoclássico James Tobin, Prêmio Nobel em Economia, comenta: “na versão moderna da teoria neoclássica, onde ficaria a Mão Invisível?” Segundo ele, a boa notícia é que a intuição de Adam Smith e seus seguidores pode ser rigorosamente formulada e comprovada matematicamente; a má noticia, é que o teorema depende de condições e premissas especiais, dificilmente comprováveis nos dias de hoje.

Já quanto ao princípio de neutralidade do dinheiro, James Tobin o reconhece como falacioso, bastando apenas atentar para a política monetária de expansão ou enxugamento da oferta de dinheiro, tão correntemente aplicada na economia dos dias de hoje.Mas, como ele mesmo diz, a teoria do equilíbrio geral tem sido o maior desafio para os profissionais mais preparados em economia. Elegante, rigorosa, poderosa matematicamente, a teoria vai longe, diferenciando-se das outras ciências sociais e encantando a todos, muito mais pelos desafios do que propriamente pela sua capacidade de equacionar quebra cabeças e problemas do mundo real. E conclui: por isso, “o reconhecido irrealismo das suas premissas não vem ao caso”.

Por seu lado, os Keynesianos ingleses, dentre eles Sir Roy Harrod, da Oxford University, Joan Robinson, Lord Richard Kahn e Lord Nicholas Kaldor, de Cambridge, observaram que a revolução keynesiana alcançava tanto o plano teórico como as políticas econômicas. Alertaram que a Teoria Geral de Keynes mostrava a importância das instituições monetárias e financeiras no funcionamento da economia real, onde o dinheiro é um aspecto necessário de uma economia na qual o futuro é incerto.

Estes e outros muitos ensinamentos keynesianos foram esquecidos, com a volta da predominância da ortodoxia econômica. Nesse sentido, Joan Robinson acusou o Sistema IS-LM de keynesianismo bastardo, já que teriam distorcido os ensinamentos de Keynes ao aceitarem políticas de governo só para intervenções pontuais para aliviar desequilíbrios de curto prazo no emprego e na renda.

Posteriormente, o verdadeiro keynesianismo foi revivido nos EUA pelo economista Sidney Weintraub da Universidade da Pensilvânia e por seu aluno Paul Davidson.

Contudo, a vasta maioria dos economistas abraçaram a economia neoclássica, especialmente em períodos de performance econômica satisfatória. Somente em períodos de crises econômicas é que alguns poucos economistas voltavam a frequentar os princípios keynesianos. Com o advento da inflação na década de 1960 e depois com sua aceleração na década de 1970, houve a caracterização de três linhas de pensamento: a pós- keynesiana, a keynesiana neoclássica e o pensamento neoclássico mais puro e menos híbrido, conhecido como monetarismo, capitaneada pelo contemporâneo de Keynes, Frederick Von Hayek e seu sucessor Milton Friedman.

Nos dias de hoje, o debate ainda continua, com idas e vindas nas políticas econômicas públicas.

Na economia real, o equilíbrio macroeconômico continua sendo vulnerável a muitos tipos de fatores. A estagflação, que ainda continua sem uma explicação adequada, trouxe ao cenário os monetaristas.

Mas uma coisa é certa. Os salários e preços não dispõem da flexibilidade requerida pelos modelos matemáticos neoclássicos. A preferência pela liquidez, ocorrida na crise de 1930, foi e é um fato relevante, e os estímulos monetários e fiscais, no velho estilo keynesiano, estão na ordem do dia em todo o mundo. E isso para não falar da comprovação cabal do fracasso da teoria quantitativa da moeda, após a crise de 2008.

Futuro previsível ou incerto?

A maioria dos economistas reconhece que todas as teorias são abstrações e, portanto, simplificações da realidade. A finalidade das teorias é buscar tornar o mundo real compreensível, e não substituir o mundo real por um mundo ideal e simplificado, somente para poder tratá-lo matematicamente. Milton Friedman, autor da Metodologia da Economia Positiva parece não concordar com isso. Segundo ele, a questão relevante a ser perguntada sobre as premissas de uma teoria não é se elas são realistas, porque elas nunca são; mas, ao contrário, é se elas são aproximações suficientemente boas do objeto em questão.

Esta pergunta só pode ser respondida ao se comprovar se a teoria funciona, ao produzir previsões suficientemente acuradas do futuro. Para Friedman e seus seguidores, a aceitação, sem questionamentos, dos axiomas e simplificações é condição básica para a construção de qualquer teoria econômica de utilidade. O único teste é se o modelo apresenta boas previsões sobre os eventos futuros. E, ainda, segundo ele, os estudos realizados sobre mudanças nas quantidades de dinheiro, no longo prazo, teriam efeito desprezível na renda; portanto, somente as variáveis não monetárias teriam importância para a renda real, o que comprovaria a hipótese da neutralidade do dinheiro sobre o produto.

Milton Friedman não definiu e mensurou o que viria a ser longo prazo no seu modelo, deixando obscuro o volume de evidências que teria de ser coletado para a comprovação da hipótese da neutralidade do dinheiro na economia.

Os economistas neoclássicos argumentam que, se a economia é uma ciência comparável à astronomia (ou à física), ela também deve estar sujeita a regras ou leis imutáveis e, portanto, sua posição futura poderá ser prevista. A pressuposição básica é de que o futuro da economia já estaria predeterminado pela condição existente no primeiro momento. É como se existisse na economia o princípio determinístico do Big Bang de criação da existência, onde a posição do instante inicial é determinante da posição de qualquer estrela ou planeta no futuro. Por analogia, tendo em conta as expectativas racionais das pessoas, também seria possível antecipar o futuro da economia.

O matemático inglês Alan Turing, demonstrou que se a natureza sempre se comporta segundo regras e leis matemáticas imutáveis, então, o futuro pode ser previsto lançando mão da máquina de TURING, um aparato hipotético que funciona para qualquer cálculo matemático em premissas e condições fixas. Os neoclássicos argumentam que descobriram e desenvolveram um conjunto completo de leis econômicas exclusivas e imutáveis e que, portanto, a pesquisa econômica pode e deve se dedicar a análises e previsões à la Turing.

Desenvolveram-se diversas teorias, todas baseadas nos mesmos princípios básicos, como o da neutralidade do dinheiro, entre outros: equilíbrio geral Walrasiano, Sistemas Arrow-Debrew, teoria das expectativas racionais, síntese neoclássica do keynesianismo, monetarismo ou teoria do caos. Como definem Robert Lucas e Thomas Sargent, a teoria neoclássica lida com modelos que constroem inferências estatísticas sobre o comportamento futuro baseadas em séries temporais passadas. A crença na possibilidade de uma economia empírica não experimental fornece as bases para tais inferências, que permitem a construção de um modelo decisório que pode ser confrontado com vários cenários e produzir respostas para cada um.

Esta conceituação pode ser entendida como darwiniana, onde só aqueles que, dispondo de intuições corretas, teriam construído seus modelos decisórios baseados em expectativas racionais. Aqui os empresários tomariam decisões como robôs lançando mão de modelos matemáticos baseados em premissas comportamentais e séries históricas passadas.

Para Keynes, ao contrário, a economia é essencialmente uma ciência social e não uma ciência natural. A crença na possibilidade de se prever condições econômicas futuras como em leis estatísticas de probabilidade, subestima o papel e a importância do erro humano e da ignorância sobre o futuro. Na verdade, o que deve ser enfatizado é a evolução institucional e histórica do desenvolvimento econômico.

Para os keynesianos não existem relações e correlações quantitativas imutáveis que permitam previsões acuradas sobre o futuro. O lapso de tempo entre a decisão e o resultado é um fato de fundamental importância. O lapso de tempo entre a decisão de produzir e a efetiva disponibilidade do produto pode ser de semanas, meses ou até anos. O tempo transcorrido entre a aquisição de um bem de capital ou de consumo durável e seu efeito posterior produzindo lucro ou satisfação é comumente medido em anos, para não dizer décadas.

Os eventos econômicos são assimétricos; a verificação de eventos passados não pode assegurar sua repetição no futuro, que é criado pela ação humana não sendo determinado por qualquer lei econômica imutável e muito menos sendo passível de ser calculada por qualquer máquina TURING.

Aqui, os empresários vivem um cenário econômico de incertezas sobre o futuro, não dispondo de
modelos confiáveis para determinação dos riscos de sucesso ou fracasso dos empreendimentos.

Projetos de investimento criam emprego e, em consequência, renda, ou demanda, para aquisição dos produtos da própria e de outras indústrias. Segundo Keynes, o espírito empresarial, que se caracteriza pela decisão de investir em longo prazo em ambiente de incerteza, é a condição indispensável para a prosperidade numa economia monetária.

Quando o investimento declina, a economia se deteriora, trabalhadores perdem empregos, negócios são fechados, e a produção decresce. Assim, para Keynes, a compreensão dos ciclos econômicos de crescimento e depressão está intimamente ligada aos fatores que levam os empresários a investir ou, alternativamente, postergar suas decisões de investimento, preferindo a liquidez, o que tem a ver com o otimismo ou o pessimismo dos empresários. Segundo Keynes, a postura mais ou menos arrojada dos empresários deriva da emoção e cultura empresarial, denominadas por ele como “espírito animal”, e não de modelagens matemáticas baseadas em medias ponderadas de resultados multiplicadas pelas respectivas probabilidades quantitativas de ocorrência.

Receios de perdas e expectativas de lucro podem se alternar, não existindo nenhuma base real para sua mitigação através de cálculos matemáticos. Portanto, investidores não são máquinas TURING. As decisões de investimento são tomadas com base no espírito animal, sabendo-se que não existem fórmulas para mitigação das incertezas sobre resultados que só ocorrerão no futuro. As expectativas dos investidores são dadas em ambiente de incerteza futura. Nesse contexto, elas podem ser cautelosas, de espera, com clara preferência pela liquidez; ou arrojadas, seguindo suas intuições, de escolha dos investimentos produtivos, ambas não necessariamente plenamente racionais.

John Hicks, já na sua fase final de reconhecimento da teoria keynesiana, diz que a economia se diferencia das ciências naturais já que, em economia, diferentemente daquelas, não se pode estar seguro de que um evento ou uma correlação existente no passado permanecerá no futuro. Segundo ele, a economia está nas fronteiras da ciência e da história.

Este entendimento reforça a necessidade do estudo da evolução ao longo do tempo das instituições e processos econômicos para o efetivo estabelecimento das políticas.

Os neoclássicos keynesianos tentaram pacificar o impasse conceitual entre os neoclássicos e os keynesianos, ao aceitarem as críticas keynesianas ao modelo de equilíbrio reconhecendo a possibilidade de desequilíbrios no curto prazo, com a volta autoajustável da economia ao equilíbrio no longo prazo. Mas isto está longe de ser aceitável para os keynesianos.

De fato, para os neoclássicos, a teoria keynesiana não substitui a teoria neoclássica. Para os keynesianos a teoria neoclássica se baseia em axiomas inaplicáveis, não sendo capaz de poder resolver problemas do mundo real. Mas continua valendo a máxima imbatível keynesiana de que não adianta ficar esperando que a mão invisível traga de volta a economia ao equilíbrio no longo prazo, pois, até lá, “todos já estaremos mortos”.

Que fique bem claro que os neoclássicos, no seu intento de desenvolvimento de uma análise precisa, rejeitaram a realidade e verdades óbvias universais, agarrando-se na ficção, pela fraqueza das premissas utilizadas, torturando os modelos matemáticos para se “alcançar” os resultados por eles desejados.

Marcos de Queiroz Grillo é economista e mestre em administração pela UFRJ.