LUIZ FELIPE PONDÉ Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.
[RESUMO] Escritor identifica na atividade legislativa e na baixa taxa de natalidade verificada entre defensores do secularismo os desafios mais importantes para a manutenção do Estado laico.
O Brasil corre o risco de deixar de ser um Estado laico? E pior: passaria a ser um Estado teocrático? E pior ainda: seria o Deus brega da classe média que tomaria conta do país? Sim, porque até entre os deuses há diferenças de classes. Se for um Deus chique que combine com vinho branco gelado no verão e incenso, está valendo. Mas, se for um Deus brega de “crente”, “tô fora”. Seria essa afirmação um preconceito?
Estado laico e sociedade secular, conceitos afins, são realidades históricas; logo, podem deixar de existir, pelo menos em teoria. Tudo que é histórico é, de alguma forma, efêmero. As angústias pela fundamentação absoluta da moral brotam dessa agonia com o transitório, o relativo e o efêmero. Por isso, a questão de se o Brasil (ou qualquer outro Estado) corre o risco de deixar de ser laico pode ser sempre levantada.
A máxima de Bolsonaro, “Deus acima de todos”, é uma ameaça velada ao Estado laico no Brasil ou é pura retórica? Na democracia tudo é retórica e, por isso, tudo é para valer, já que não existe nada fora da retórica. Não acho que Bolsonaro esteja “brincando” quando fala isso, mas não acho que ele vá pegar ninguém pelo braço e jogar dentro da igreja ou proibir o ensino de Darwin (e se tentar proibir o de Marx ou qualquer outro autor, vamos berrar) nas escolas.
Pelo contrário: acho que ele fala isso porque grande parte do povo brasileiro pensa assim, mas não no sentido de abrir mão do Estado laico ou da sociedade secular; pensa assim como quem se lembra de uma antiga cantiga de ninar familiar —se bem que hoje, como não existem quase mães e avós, essa comparação que fiz pode ser incompreensível. Você não entendeu o que Estado laico e sociedade secular têm a ver com o assunto de mães e avós em extinção? Têm muito, espere um pouco e verá.
Enfim, Bolsonaro fala “Deus acima de todos” da mesma forma que pode falar “bandido bom é bandido preso” ou “vou acabar com a corrupção”. Dizer “Deus acima de todos” acalma muitas almas. Outras se acalmam com #EleNão, outras com “namastê”, outras com Viagra.
Há gradientes entre uma sociedade secular e seu irmão gêmeo, o Estado laico, e seu oposto teocrático —e o Brasil está bem longe deste oposto. Há, no entanto, nuances, e o vetor pode pender mais para um lado ou para o outro.
Um teste possível para ver se um Estado deixou, de fato, de ser laico não é se há crucifixo nas paredes ou se na Constituição daquele país se evoca Deus, mas sim se um juiz aceita o depoimento de um pastor dizendo que fulano matou a mulher porque ouviu vozes do Diabo mandando que a matasse. E a partir disso declara que fulano foi vítima de manipulação espiritual maligna.
Por outro lado, se um Estado proíbe o aborto em nome da crença de que “a vida pertence a Deus”, está dando uma atenuada na sua condição de laicidade. Entre esses dois polos, já vemos o gradiente em ação.
O chamado Estado laico (separação de religião e Estado) é fruto histórico das guerras religiosas na Europa entre católicos e protestantes. A defesa de um Estado “sem religião” decorreu do esgotamento espiritual, físico, econômico, social, político e psicológico causado por essas guerras.
O filósofo romeno Emil Cioran dizia que sua busca na vida era “tornar-se virtuoso pelo cansaço”. Essa máxima aplica-se bem ao caso. O Estado laico não foi buscado como meta —chegou como resultado do cansaço das guerras religiosas na Europa. A discussão sobre o conceito vai nascendo como fruto dessa constatação.
Os acordos conhecidos como Paz de Vestfália —que não existiu como tratado único— são identificados como a data fundante (1648), de modo simbólico, do Estado moderno, e, consequentemente, do nascimento do Estado laico. Por quê? Porque as guerras entre católicos e protestantes deram empate.
Homens, mulheres, crianças, estradas, casas, cavalos, cidades, riquezas, tudo destruído e ninguém vencia ninguém. Como consequência, decidiu-se que ninguém poderia interferir no território de outro príncipe a fim de se meter na religião ali vigente.
Para quem conhece um pouco a história, a vitória simbólica foi do protestantismo, pois este já nasceu submetido ao poder secular (não religioso, isto é, poder sobre o tempo histórico), enquanto os católicos combatiam a favor de uma Igreja Católica que sempre viveu às turras com o poder secular, caso este não aceitasse a ingerência “divina” do papa e seu clero.
Por isso os protestantes cultos, quando indagados se o movimento evangélico gostaria de destruir o Estado laico, respondem com a seguinte pergunta: “Você acha que queremos destruir nossa própria invenção?”.
Um Estado sem religião é bom para todos, porque a opinião religiosa das pessoas pode mudar —e quem mandava pode passar a vítima dos novos mandantes. A neutralidade religiosa garante a vida saudável das próprias religiões. É isso o que significa ser um religioso moderno. Religiosos ignorantes querem que o Estado se mele com religiões.
O filósofo Charles Taylor, no seu monumental “Uma Era Secular”, ensina que o processo de secularização da sociedade foi longo. Iniciado no século 15, passou pelas guerras religiosas, pelos avanços da burguesia comercial urbana e acabou por se organizar ao redor de dois vetores essenciais, que são, por si próprios, externos à política, ainda que a tenham impactado, levando a Europa à experiência laica e secular. Taylor fala de duas condições básicas de possibilidade do surgimento do Estado laico e da sociedade secular.
A primeira condição é o sucesso da técnica causado pelo avanço do método científico, baseado na experimentação empírica, a partir da “matematização” da natureza. Isso significou uma relativização, ainda que “inconsciente”, da necessidade das práticas religiosas cotidianas para resolução de problemas relacionados à saúde e ao sofrimento físico em geral.
A melhoria das condições materiais de vida, impactando as condições psicológicas e sociais, levaram a população europeia a experimentar um recuo na dependência da crença.
A segunda condição é o surgimento da organização do Estado moderno e de Direito. A melhoria da operação do Estado na lida com a organização da vida social, que dependeu do avanço técnico e científico, também implicou um recuo prático da dependência das expectativas religiosas como solução para os problemas do dia do dia no que tange a condições materiais urbanas, resolução de conflitos jurídicos, avanços na racionalização econômica —enfim, tudo que causa uma redução no sofrimento em escala social e política.
Segundo Taylor, mesmo o ateísmo orgânico —aquele ao qual a pessoa chega sem esforço de pensamento, mas por desinteresse prático numa vida religiosa— é fruto desse processo. Muitas pessoas mantiveram suas crenças, ainda que de modo atenuado.
A pergunta que deve ser feita: quem optaria pela mágica ou pela oração antes de buscar o antibiótico ou o juiz? Isso não significa que muitas pessoas não busquem ajuda de xamãs, como o ex-famoso João de Deus, mas o fato é que o médico e o juiz são os arquétipos do processo bem-sucedido de combate ao sofrimento levado a cabo pela condição laica e secular.
Agora perguntemos, os brasileiros estariam dispostos a abrir mão do médico e do juiz em favor da mágica e da oração naquilo que de fato impacta o sofrimento e a morte, por conta de uma frase de Bolsonaro ou de sua eleição? Não creio. Mas há risco de atenuação do gradiente de nuances em favor de uma religiosidade mais prática? Sim, há algum risco. Apontaria dois deles, maiores em termos de processo.
O primeiro é o uso do Legislativo para atingir hábitos e costumes. Se uma bancada religiosa prática se tornar significativa, pode haver algum risco.
No entanto, o histórico do movimento evangélico no Brasil tem sido de pragmatismo político beirando o fisiologismo (mesmo o PT, que posa de defensor do Estado laico e da sociedade secular, foi parceiro de atores políticos evangélicos) e de liberalismo popular periférico, melhorando mesmo as condições de vida de populações abaixo da classe média que perderam a “fé na política”. Talvez essas camadas a tenham recuperado na última eleição, mas isso leva tempo.
Outro impacto, também lento no seu efeito, contra o experimento laico e secular, e que não é apenas traço do Brasil —e nisso ele é mais sério, de certa forma—, é aquele ligado a mães e avós, que citei acima. Eric Kaufmann, demógrafo das religiões, publicou em 2010 um estudo comparativo, e provocativo, da fertilidade feminina entre mulheres seculares e mulheres de adesão religiosa estrita no Ocidente (em português comum, “religiosas praticantes”).
Em “Shall the Religious Inherit the Earth?” (os religiosos herdarão a Terra?), ele mostra como o experimento laico e secular pode ser duramente afetado nos próximos 50 a 100 anos pelo fato de que “os seculares têm ótimas ideias, mas os religiosos têm mais bebês”.
Os seculares defendem o darwinismo, mas quem o pratica são os religiosos, segundo Kaufmann, porque o darwinismo é, no limite, uma teoria demográfica: quem tem mais prole está mais bem adaptado —e se impõe. Resultado: a sociedade secular e o Estado laico podem sofrer sérias baixas, simplesmente, pelo fato de que os seculares preferem cachorros, um filho só (quando muito), bikes e mídia social.
À medida que as mulheres optam por papéis sociais que não a maternidade, “bebês seculares” deixam de nascer. A Europa agoniza de pânico diante desse risco. A solução é “atacar” os muitos jovens que vivem em famílias de adesão estrita e “convertê-los” à vida secular. O ciclo, porém, tende a se repetir. Cachorros e bikes não sustentarão o Estado laico nem a sociedade secular.
Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha, escritor e ensaísta, é autor de “Os Dez Mandamentos (+ Um)” e “Marketing Existencial”, ambos da Três Estrelas. É doutor em filosofia pela USP.