As adversidades do mundo

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Vivemos em uma sociedade que se martiriza constantemente por desajustes estruturais e conjunturais que ameaçam o equilíbrio social, as esferas produtivas e as perspectivas para o futuro envolvem sempre, medos e preocupações, onde as religiões perdem fiéis e as ocupações do cotidiano exigem dos seres humanos habilidades ilimitadas, que, mesmo sendo impossíveis de serem alcançadas obrigam os indivíduos a uma busca intensa e fadada ao insucesso, gerando crises depressivas e perturbações constantes.

O mundo do consumo é o mundo do prazer imediato, o mundo dos desejos e dos fetiches, onde os indivíduos se entregam às vontades e se escondem dos sentimentos, um mundo do comprar, do ter e do possuir, distante da reflexão e do auto-conhecimento, que são vistas como atividades chatas e cansativas, um mundo de aparência e da beleza, marcado pelo adquirir, neste mundo tudo se compra, neste mundo tudo se vende, neste mundo de sentimentos efêmeros o ser humano busca se encontrar, busca encontrar sua essência, mas se perde no supérfluo tentando encontrar o essencial, mas como destaca o grande escritor Antoine de Exubery, o essencial é invisível aos olhos.

É neste mundo marcado pela ilusão que nós, seres humanos, nos encontramos todos os dias, acreditamos que poderemos colher frutos de progresso com plantações marcadas por destruição e imediatismos, acreditamos encontrar a riqueza mas, trabalhamos intensamente para destruir a natureza, acreditamos no poder da ciência e da tecnologia mas, todos os dias, manipulamos esta ciência para esconder nossas conveniências, usando da tecnologia para mascarar nossos desejos de poder e de dominação.

Nesta sociedade da destruição nos chocamos com os terremotos e os tsunamis, nos levantamos para criticar as atitudes selvagens e brutalizadas de nossos semelhantes, as guerras e os conflitos regionais, nos escondemos de nossos medos mais intensos e ameaçadores, culpando os outros, bradamos contra Deus e, mais uma vez, fugimos de nossas responsabilidades cotidianas, somos seres pensantes e vivemos numa sociedade que acredita valorizar o pensar e o refletir mas, infelizmente, se esquece de que, toda e qualquer reflexão, na atualidade, deve repensar sobre as instituições dominantes do poder e do pensamento, sob pena de manter e perpetuar toda esta situação para as próximas gerações, nos esquecendo de que o mundo como está, com os desequilíbrios se agigantando em escalas planetárias, a destruição está mais próxima do que imaginamos e o fim do ser humano é uma realidade para todos nós, não mais para nossos filhos e netos, mas para todos os nossos contemporâneos.

Neste momento que escrevemos, as Coréias se agridem mutuamente, bombas e destruições se espalham pela Síria, o Iraque tenta se reerguer depois de dez anos de dominação, destruição e imperialismo, marcados por uma guerra insana e desnecessária, não que as guerras sejam necessárias, mas esta pode ser descrita como um dos conflitos mais torpes e irresponsáveis da sociedade mundial, responsável pela destruição de uma sociedade antiga e conservadora, com mortes e violências generalizadas, que levaram o país invasor a uma grave crise fiscal e financeira que, na atualidade, corrói sua economia, reduz sua credibilidade e contamina sua sobrevivência como potência internacional, abrindo espaço para novas hegemonias e concorrências no jogo do poder global, marcados por intrigas, corrupção, fofocas e contaminações éticas e morais como forma de dominar e controlar.

Depois de décadas de domínio das ideias neoliberais, onde os Estados Nacionais foram todos condenados como símbolos constantes de desperdícios e de irresponsabilidades fiscais e financeiras, e os mercados, vistos como deuses soberanos e bons condutores da vida social, foram exaltados pela eficiência e pela performance elevada, marcada pela alta produtividade e pelos ganhos constantes, a realidade se mostrou muito diferente da teoria, os mercados ruíram em crises financeiras destrutivas e deslegitimadoras, o sistema quase foi à falência mas foi salvo pelos Estados Nacionais, que endividados teve que, mais uma vez, socializar os prejuízos e privatizar os lucros, para evitar que a crise terminal do capitalismo se instalasse de vez na sociedade internacional, gerando o caos e todas as desavenças deles advindas com os seres humanos.

A tecnologia, pensada para melhorar a vida das pessoas, está gerando um grande fosso entre indivíduos, de um lado encontramos cidadãos conectados 24 horas por dia, indivíduos que se utilizam das redes sociais, pesquisam na internet e tem acesso a todas as descobertas das feiras internacionais de produtos digitais; de outro lado, encontramos pessoas desconectadas de todas as tecnologias e, principalmente, desconectadas da vida, indivíduos que não tem acesso ao básico mais elementar para a sobrevivência como ser humano, são pessoas que não podem ser descritas como cidadãos, sua renda inviabiliza esta nomenclatura, são apenas subcidadãos desprovidos de seus direitos mais elementares, vivem a vida sem perspectivas de dignidade e esperanças com relação ao futuro.

Diante de tão desolador quadro, encontramos a sociedade envolta em perspectivas estranhas, crescer e se desenvolver sempre foi um sonho presente no imaginário dos seres humanos, ascender socialmente e vislumbrar situações melhores e mais favoráveis sempre estiveram presentes na mente das pessoas, afinal, somos seres racionais, pensamos, refletimos e buscamos sempre o melhor para cada um de nós, mas para isso, precisamos encarar os desafios que surgem no horizonte, os desafios da pobreza material e da opulência supérflua e desnecessária, que podem ser descritos como desafios que levam os seres humanos a repensarem suas matizes de desenvolvimentos econômicos, pautando este desenvolvimento não apenas por critérios econômicos e materiais, mas por novos critérios, como nos retrata o economista indiano Amartya Sen, criador do índice de desenvolvimento humano (IDH), que acrescenta à renda outros indicadores, como a expectativa de vida e o grau de analfabetismo, que dão ao índice um caráter mais amplo, mas mesmo assim, insuficiente para encararmos os desafios de um mundo que degrada o meio ambiente e que deixa as questões ecológicas de lado, que paradoxo, um mundo que cresce destruindo sua casa, um homem racional que destrói seu abrigo e chama isso de desenvolvimento, cria riquezas e, ao mesmo tempo, degrada o meio ambiente, levando-o, a gastar grande parte de seus ganhos para tentar consertar sua casa, lucra de um lado e, ao mesmo tempo, gasta fortunas tentando reconstruir seu habitat natural.

O mesmo mundo rico e opulento, que transforma tudo em cifrão, leva as religiões a se tornarem espaços de acumulação e enriquecimento, onde os homens se apoiam em belas palavras para arregimentar multidões, levando os seres humanos ao choro e às lágrimas, mas mostram claramente que seus corações estão vazios de sentimentos nobres, são donos de retóricas fantásticas, dominam grandes levas de pessoas, emocionam e encantam, vivem como celebridades, tem nos lábios o nome de Deus com profusão, conhecem, em teoria, todas as passagens bíblicas e os sermões falados pelo mestre, mas, na realidade, tem seus corações comprometidos com outros donos, são vinculados ao deus dinheiro, ao deus poder e ao deus do prazer imediato, são os falsos profetas descritos por Jesus em várias passagens evangélicas, são seres que sobrevivem ao tempo e, na atualidade, fazem-se presentes com grande carisma poder e audácia.

No mundo das finanças encontramos destruições aceleradas, o poder do dinheiro ganha relevância e atrai todos os olhares para o templo do capital, as bolsas de valores se transformaram no oásis da sociedade internacional, os jovens se miram nestes cenários, se inspiram nestes profissionais, pensam seus futuros e estruturam seus sonhos com as riquezas comercializadas nestes locais, chegam ao êxtase com o sobe e desce das bolsas, os devaneios do dinheiro são comemorados com festas regadas a champanhe francês e comidas extravagantes que servem apenas para o deleite do poder e da hegemonia do capital em uma sociedade marcada pela divisão entre os ricos e pobres, na verdade, uma divisão entre os muito ricos e os muito pobres, um hiato cada vez maior e mais ameaçador, que preocupa as pessoas mais sensíveis, assusta os governos e servem de estatística para os pesquisadores, na verdade, um mundo onde os pobres não mais fazem sentido para os ricos, no atual processo de acumulação social, os ricos não mais precisam dos pobres, são seres invisíveis e, se necessário, entreguem-nos ao Estado Nacional e seus aparatos policiais e repressivos.

O mundo globalizado pode ser descrito como um mundo onde as contradições se avolumam e as desigualdades estão em franco crescimento, os desafios contemporâneos devem envolver uma gama de atuação por parte dos agentes econômicos, as empresas crescentemente marcadas pela concorrência e pela competição constantes, os Estados Nacionais se concentrando na redução das desigualdades sociais geradas pela competição crescente entre pessoas e empresas, fruto dos ideais difundidos pelo neoliberalismo dominante nos últimos 30 anos, devendo, ainda, se preocupar com o desenvolvimento de instrumentos de regulação do sistema econômico que, da forma como está tende a gerar um desequilíbrio mais intenso e destruidor da economia internacional.

A sociedade civil cabe outros desafios importantes, dentre eles, a convivência democrática entre indivíduos das mais distantes regiões do mundo, o choque cultural gerado pela expansão das empresas transnacionais e a convivência pacífica entre povos com formatos culturais diferentes e matizes religiosas, muitas vezes contrárias, acaba gerando grandes desafios para os indivíduos, evitando, com isso, o crescimento de um clima belicista que corrói os laços da democracia e dos direitos humanos e inviabiliza a convivência pacífica entre grupos culturais.

A democracia é outro grande desafio do mundo contemporâneo, na atualidade mais de 2,4 bilhões de pessoas vivem em regimes autoritários, onde as liberdades individuais são limitadas e os seres humanos perdem a oportunidade de se manifestarem livremente, não assumindo, com isso, suas responsabilidades mais intimas e imediatas, legando ao Estado um poder imenso sobre a sociedade e os rumos das vidas de seus membros, um desafio que vai se mostrar cada vez mais evidente, que para ser enfrentado deve exigir dos líderes habilidades e flexibilidades desconhecidas por muitas lideranças, ou supostas lideranças, em ascensão no mundo.

Escrever sobre os infortúnios e as adversidades do mundo são formas de dar vazão aos sussurros que emanam da alma, sussurros que se confundem com gemidos de dor e de desesperança, que nos incomodam enquanto seres humanos mas, mesmo assim, nos estimulam a entender e a compreender o que move os seres humanos, e, com isso, compreender que na vida não existem inocentes, somos todos culpados pelas dificuldades do mundo e para solucionar todas estas dificuldades, faz-se necessário que, cada um na sua intimidade, assumamos nossas responsabilidades, arregacemos as mangas e trabalhemos um ao lado do outro, substituindo o termo competição pelo termo cooperação, esta sim deve ser a essência da sociedade no novo milênio, cooperar sempre e construir uma sociedade alicerçada em bases sólidas.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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