Amores e relacionamentos líquidos

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Os filmes de Hollywood sempre nos mostraram histórias de amor cheias de sentimentos intensos e verdadeiros, romances marcados por abraços e beijos acalorados, casais apaixonados e vivendo intensamente este sentimento, tudo isso sempre encantou a sociedade mundial e embalou muitos sonhos de amor verdadeiro, levando casais a juras eternas de amor, de respeito e de fidelidade, sentimentos nobres e intensos que, na sociedade contemporânea, se encontram fora de moda, o amor romântico se tornou ultrapassado e pouco cultivado.

Nos contos modernos os mocinhos foram substituídos, as princesas foram trocadas e os sentimentos verdadeiros estão adormecidos, as histórias em quadrinhos não atraem nem mesmo as crianças que, nesta sociedade acelerada são estimulados, logo cedo, a acessar seus aparelhos digitais e navegar num mundo de descobertas e fantasias, mas ao mesmo tempo de perigos e ameaças de todas as naturezas, obrigando dos pais ou responsáveis atenção e controle.

Vivemos numa sociedade marcada pela superficialidade, nossos relacionamentos são sempre muito vazios, as instabilidades do mundo invadem os corações das pessoas e impedem que os enamorados se entreguem, o medo da frustração é tanto, que preferimos cultivar toda esta superficialidade, fugir dos grandes amores e dos grandes sentimentos e se contentar com momentos fixos de prazer, de sexo e de gozos sexuais, somos marionetes do ficar e fugimos assustadoramente do amar e se entregar.

O sociólogo polonês Zygmunt Baumann, famoso intelectual da sociedade contemporânea, cunhou a expressão mundo líquido, para definir uma sociedade que se compraz com a superficialidade, no mundo atual tudo é líquido, os amores e os sentimentos escorrem pelas mãos, os modelos mais intensos de relacionamentos foram deixados para trás, o medo dominou as relações cotidianas, não queremos nos frustrar com os relacionamentos mais intensos e verdadeiros, pois eles podem nos causar dores íntimas, decepções violentas e criar mágoas e constrangimentos dos mais severos possíveis.

Nesta sociedade do século XXI vivemos o drama do individualismo, depois da hegemonia do pensamento liberal em que o indivíduo é visto como sobrepondo ao coletivo, percebemos que este indivíduo cunhado pelas teorias liberais se encontra em crise profunda, esta crise se manifesta numa intensa solidão e desesperança, estamos mergulhados num mundo em que não mais confiamos no futuro, as bases da democracia estão solapadas, os modelos de liberdade clássica estão ameaçadas e o ser humano amedrontado e infeliz, a crise da modernidade é, antes de mais nada, a crise dos indivíduos.

A lógica econômica se sobrepõe a todas as outras lógicas da sociedade contemporânea, acreditamos que pensamos e agimos como o homem econômico, todas as nossas ações julgamos racionais e calculadas, nosso trabalho se dá envolto em contas e cálculos intensos de ganhos e perdas, no campo religioso buscamos maximizar nossas oferendas e trocas com o divino, nossos relacionamentos são colocados na ponta do lápis e maximizamos nossos gozos e buscamos reduzir, e até acabar, com nossas dores, somos seres quase racionais que nos julgamos reflexivos e racionais, mero autoengano.

As grandes mudanças contemporâneas estão criando novos modelos de família, os modelos tradicionais estão sendo substituídos por novas organizações familiares, o modelo clássico baseado em um casamento heterossexual, papai e mamãe, está sendo substituído, em ritmo acelerado, por vários modelos diferentes, casais de homem com  homem, de mulher com mulher, de relacionamento com três pessoas, dentre outros, são várias as fórmulas de amores em constantes transformações na sociedade contemporânea, tudo isto gera medos, instabilidades e incertezas crescentes nos indivíduos e acabam abrindo espaços crescentes para xenofobismo, intolerâncias e sectarismos.

As famílias deixaram de ser o porto seguro para as crianças e para os casais, se transformando em um espaço de confrontos e inconveniências, onde encontramos conflitos, rancores e ressentimentos que contribuem para minar o papel social da família, soma-se a isto, as violências que crescem de forma acelerada, pais violentos que se agridem mutuamente, pais austeros se insurgem com seus filhos discordando de atitudes, comportamentos ou relacionamentos, acumulando mágoas e dores intensas e, para muitos, insustentável.

A violência contra filhos homossexuais cresce de forma acelerada, alguns pais dizem que não batem em seus filhos, mas quando descobrem sobre sua sexualidade, os marginalizam, humilhando e os agredindo verbalmente, criando um caldo de rancores e ressentimentos que quando explodem resultam em violências das mais intensas que existem, culminando em crises que seus impactos são sentidos muito além desta vida atual.

As famílias contemporâneas não mais fazem as refeições juntas, uns comem no quarto assistindo a programas de televisão, outros estão tão envoltos com o trabalho cotidiano que almoçam e jantam na rua, desta forma percebemos um distanciamento cada vez maior entre pais e filhos, abrindo caminho para um encontro, muitas vezes inadiável entre seu filho e o traficante da comunidade, este conhecerá a rotina de seu filho e se disponibilizará a acolhê-lo nos momentos de dúvidas quando tiver interesse em lhe vender drogas e tóxicos, o resultado desta equação as famílias brasileiras estão visualizando todos os dias, destruição, lágrimas, revoltas e arrependimentos.

Outro traço marcante desta nova configuração familiar é a falta de diálogo, as pessoas que compõem a família pouco conversam, os pais não encontram tempo para ver e, muitos menos, dialogar com seus filhos, que se perdem num mundo cheio de ilusões, os prazeres sexuais são fortes e chamativos, atraem os indivíduos e muitas vezes os levam a caminhos perigosos e tortuosos, as festas, os passeios e as alegrias geram prazer e também cobram um preço alto e, muitas vezes, impagável.

As religiões que sempre foram o espaço da conversação com o divino, o local do reequilíbrio, da conversa serena e da reflexão crítica, hoje se perdem na busca incomensurável pelos recursos materiais, pela gana do acumular, do ter, nos templos nos dedicamos a ouvir músicas e louvores sem consistências, cantamos e não sentimos os sentimentos mais nobres que deveriam emanar do local, o espaço religioso se perde do mundo do marketing, o dízimo é substituído pelo orar e os resultados são alienação e intolerância.

Vivemos em uma sociedade em forte transformação, viver neste momento é um misto de prazer, de medo e de incerteza, refletir sobre o mundo contemporâneo é um intenso procurar respostas para as variadas perguntas que nos são feitas todos os dias, neste mundo de transformações constantes, as tradições estão sendo destruídas e novas estruturas estão sendo colocadas no lugar, o resultado imediato é um misto de medo e preocupação, todos sabemos que estamos indo para uma nova sociedade e num ritmo crescente, mas ninguém saberia definir, com clareza, para que lugar estamos sendo conduzidos.

Quando falamos das dificuldades da sociedade internacional, é importante destacar que as famílias estão no centro destas mudanças, antigamente tínhamos família enormes, onde os filhos eram aproveitados como mão de obra na produção rural, com o crescimento da sociedade urbana, o desenvolvimento de novas técnicas reprodutivas, os investimentos cada vez maiores na criação de uma criança e as mudanças nos relacionamentos, tudo isto contribuiu para a diminuição do crescimento vegetativo, na atualidade encontramos lares com poucos filhos, muitos deles dirigidos por mulheres e sem a figura masculina presente no cotidiano.

As incertezas do mundo contemporâneo colocam em xeque a tolerância e a democracia, os indivíduos estão tão abobados com a sociedade que está emergindo que relutam em tentar compreender os seres humanos, não buscam se colocar no lugar das outras pessoas, a empatia tão fundamental para a construção de uma sociedade mais sólida se encontra perdido em algum local entre os indivíduos, suas crenças e seus mais intensos medos e desesperanças.

A violência crescente na sociedade brasileira, apenas no ano passado, mais de 63 mil pessoas foram assassinadas, deixando um rastro de dores e tristeza em famílias enlutadas, deixando muitos órfãos e órfãs a deriva, desestruturando famílias e aumentando as incertezas e os medos com relação ao futuro, onde muitos lares serão destruídos e marcados pelas dores dos assassinatos e das violências crescentes que assolam a sociedade.

A depressão e o suicídio também surgem como males contemporâneos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada quarenta segundos, uma pessoa se suicida no mundo, gerando desequilíbrios intensos sobre as famílias e todos que os cercam; a depressão se dissemina e atinge 5% da população mundial, algo em torno de 350 milhões de pessoas, uma doença que afeta todas as classes sociais e todos os indivíduos, levando os indivíduos a conviver com uma dor crescente e uma insatisfação generalizada, todos estes problemas mostram que a sociedade acelerada em que vivemos é uma sociedade doente em estado avançado e os indivíduos podem ser descritos como doentes terminais, perderam os verdadeiros valores da vida, a família é deixada de lado e as consequências de tudo isso visualizamos a todos os momentos no cotidiano.

 

 

 

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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