A revisão dos gastos é uma agenda inevitável, por Cecilia Machado;

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Não é possível alcançar crescimento de gastos quando diversas despesas crescem em maior velocidade

Cecília Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo – 05/11/2024

Era um tanto quanto esperado que o descompasso entre o limite da expansão dos gastos e o crescimento das despesas obrigatórias trouxesse desconfiança com relação à sustentabilidade do novo arcabouço fiscal. Não é possível alcançar crescimento de gastos de até 2,5% (reais) quando diversas despesas crescem em maior velocidade. Esta inconsistência torna a revisão dos gastos uma agenda inevitável do ponto de vista fiscal.

Mas mesmo antes das inconsistências do arcabouço, já existiam bons motivos para que alguns programas fossem reavaliados. A revisão dos gastos permite ajustar as políticas públicas para que se tornem mais eficazes, além de abrir espaço para novos prioridades do governo.

No contexto atual, são inúmeras as oportunidades. Entre elas, programas como o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o abono e o seguro-desemprego podem ser reformulados não apenas para melhorar o resultado fiscal, mas principalmente para corrigir distorções e ampliar a produtividade da economia.

O BPC —que transfere um salário mínimo para o idoso ou pessoa com deficiência que é pobre— é um híbrido de assistência e previdência que faz pouco sentido sob a ótica de qualquer um desses dois programas.

Como assistência, por qual razão um idoso pobre recebe uma transferência cerca duas vezes maior que uma criança pobre do Bolsa Família, considerando que os investimentos feitos nas crianças trazem benefícios que se manifestam ao longo de toda sua vida? Como previdência, faz sentido garantir que uma pessoa que nunca contribuiu para a seguridade social receba a mesma aposentadoria que aqueles que contribuíram a vida toda sob um salário mínimo?

Não menos importante é a influência do desenho destes programas sobre o comportamento das pessoas e as suas implicações para o funcionamento da economia. Por exemplo, a possibilidade de aposentadoria sem contribuição, como no caso do BPC, faz com que muitos trabalhadores de baixo salário prefiram empregos informais, onde não há desconto das contribuições em folha.

Na mesma direção, programas como o seguro-desemprego estimulam a rotatividade em um mercado de trabalho que acomoda arranjos informais. Pois é possível receber o seguro-desemprego em um trabalho informal, já que este tipo de vínculo não é observado pelo governo. Funcionasse apenas como um seguro para a perda de emprego —que se verifica com mais frequência quando a economia não vai bem— não deveríamos estar vendo um crescimento tão grande dos gastos direcionados a este programa quando o mercado de trabalho exibe bom desempenho, como agora.

Sob a ótica redistributiva, o abono não incide onde a pobreza está. Apenas 16% da incidência do abono se dá entre o terço mais pobre da população, enquanto 39% incide sobre o terço mais rico. Além disto, é um benefício oferecido apenas aos trabalhadores formais, que se encontram em melhores condições de renda e proteção social que aqueles informalizados. O abono não atende cerca de 40% dos trabalhadores sem carteira assinada.

É impressionante que as regras correntes do BPC, do seguro-desemprego e do abono salarial tenham sobrevivido tanto tempo apesar das falhas óbvias de desenho. Por mais custosa que seja, a crise fiscal de agora pode ser a única oportunidade possível para introduzir racionalidade e bom senso no redesenho destes programas sociais.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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