A psicanálise e seus predicados, por Vera Iaconelli

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Psicanálise evangélica, positiva, próspera e demais bizarrices revelam oportunismo, má-fé e ignorância sobre a teoria

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 04/12/2024

A psicanálise é um campo centenário de teorização, de pesquisa e de tratamento que não se encaixa nos moldes do ensino universitário. Uma vez que a análise do analista é seu esteio, as supervisões e a escrita, seu testemunho e não há certificado, a academia e o Estado não têm nada a dizer sobre suas formas próprias de transmissão.

A psicanálise tem sido atacada desde o dia um por propor escutar os pacientes cujos sintomas os psiquiatras eram incapazes de curar e, ao fazê-lo, reverter quadros incapacitantes. Não se tratava, obviamente, de uma escuta comum, dessas que temos com médico, padre, amigo ou professor. Freud, com sólida formação como neurologista, sabia de experiência própria como as falas de um doutor não surtiam efeito nesses casos.

Ele passou a escutar o sofrimento dos pacientes, submetidos tanto a formas de opressão e injustiça do campo social quanto às suas altas exigências inconscientes. Logo ficou claro que uma psicanálise que não considerasse o reconhecimento da alteridade como um valor absoluto, e que não defendesse a diversidade humana, não teria razão de existir.

Há mais de 80 anos, Lacan já denunciava que medicina, linguística, psicologia estão entre as áreas afins à psicanálise, mas não devem ser confundidas com ela.

E seguimos, dentro dessa tradição, escutando como os sujeitos se estruturam nos ambientes nos quais foram formados, como lidam com os acontecimentos que se apresentam e, principalmente, como encaram o fato estrutural de que somos todos castrados, limitados.

A psicanálise se debruça sobre inúmeros campos de fenômenos (alcoolismo, desemprego, parentalidade, suicídio…) sem que arrede o pé de ser o exercício da escuta de cada sujeito único diante desses fenômenos. Isso quer dizer que, a rigor, os estudos da psicanálise sobre o suicídio, sobre o alcoolismo ou sobre o desemprego se referem à forma como estudamos esses fenômenos e não a qualquer predicado da psicanálise, cuja única qualidade é escutar o inconsciente.

Se o leigo pedir uma dica de como separar o joio do trigo na oferta obscena de psicanalistas que vemos hoje nas redes, diria que qualquer um que apresente uma psicanálise com adjetivos e/ou certificada está realizando uma impostura. Psicanálise evangélica, positiva, próspera, enfim, essas bizarrices oportunistas só revelam ignorância sobre a teoria, oportunismo e má-fé.

Uma psicanálise do Evangelho, por exemplo, deveria ser aquela que estuda o que Freud demonstrou em “O futuro de uma ilusão”: o caráter alienante das crenças baseadas em dogmas. A ideia de positividade, outro exemplo, vai na contramão de toda a história do pensamento psicanalítico, que se baseia no reconhecimento do negativo como constituinte da subjetividade.

De todas as perseguições e ameaças que a psicanálise sofre desde sua criação – nazismo, fascismo, racismo, misoginia–, as investidas atuais têm sido as que mais arriscam descaracterizá-la.

Seguindo os passos de Freud e dos pós-freudianos, sabemos que a resistência a escutar o inconsciente é um fato estrutural, por isso não existe caminho suave para a formação do psicanalista. Mas as formas nas quais essa resistência se apresenta em cada época variam e devem ser continuamente mapeadas e combatidas.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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