Análises apressadas ignoram múltiplos perfis; compreender as nuances desse universo é essencial para aprimorar políticas públicas e modelos de negócio
Lauro Gonzalez, Breno Barlach e Mauricio de Almeida Prado
Respectivamente, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV e diretores do instituto de pesquisas Plano CDE
Folha de São Paulo – 03/11/2024
Virou moda falar em pobre de direita, empreendedor, conservador etc. A hipótese aventada em diversos artigos de opinião conecta a desilusão desse grupo com governos de esquerda, que não estariam atentos às preferências pelo empreendedorismo e por formas mais flexíveis de trabalho. Esse argumento foi usado como explicação para o sucesso da candidatura de Pablo Marçal (PRTB) em São Paulo. Seu discurso, alinhado à teoria da prosperidade das igrejas evangélicas, soaria bem aos ouvidos de um estrato social que vive no “corre” diário, como autônomos, motoristas de aplicativos, entregadores etc.
De fato, muitos estudos mostram uma afinidade entre o ethos do trabalhador autônomo e políticas que preconizam a desconfiança de políticas públicas e colocam o Estado como entrave. Para esses trabalhadores, promessas de estabilidade ligadas ao regime celetista são vistas como obstáculos para oportunidades de aumento de renda.
Entretanto, no calor dos resultados eleitorais, análises apressadas ignoram os múltiplos perfis da população de baixa renda. Cria-se uma espécie de categoria analítica denominada “pobre” a qual se associa um bloco homogêneo de ideias, valores e preferências. Em um preconceito às avessas, a diversidade existente nas classes de renda mais elevada é ignorada quando se analisa essa população.
No tocante ao empreendedorismo, são claras as evidências de uma diversidade de perfis. Estudo de 2020 estimou que 23% dos empreendedores gostariam de ter um emprego formal. Ou seja, são empreendedores por necessidade. Outro estudo, mais recente, com jovens das classes CDE na escola pública, mostrou que apenas 18% tinham o empreendedorismo como objetivo profissional —os demais sonhavam com empregos formais. Estudo do Instituto Plano CDE em conjunto com o Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV sobre o uso de serviços financeiros por parte da população de baixa renda estimou a fração de empreendedores em torno de 20% dessa população.
O mesmo estudo mostrou a existência de múltiplos perfis atitudinais, com diferentes preferências por modos de trabalho. O mais comum destes perfis foi chamado de “conservador” (33% da população das classes C, D e E). O nome deriva não de preferências políticas, mas de uma predileção por segurança. São aqueles que temem se endividar, evitam o uso do cartão de crédito, controlam os gastos e tendem a preferir rendas estáveis.
Indo aos detalhes desse universo heterogêneo, é frequente uma variabilidade de perfis dentro do próprio domicílio. Isso porque muitas pessoas moram em domicílios com “famílias estendidas”, nas quais as composições familiares são mais complexas e contemplam múltiplas fontes de renda. É o avô que recebe a aposentadoria convivendo com o casal, ela CLT e ele empreendedor. Mas ela também faz bicos de manicure aos finais de semana, assim como o jovem que mora com eles e trabalha na feira alguns dias da semana. Portanto, em domicílios assim, coexistem múltiplos perfis comportamentais, vínculos de trabalho e, possivelmente, visões de mundo.
Vale dizer que os resultados dos estudos acima são condizentes com postulados da teoria econômica. Como destacou a ganhadora do Prêmio Nobel Esther Duflo, o empreendedorismo exige uma maior disposição para assumir riscos, sendo que o ser humano médio tende a exibir um grau de aversão ao risco elevado.
Em relação aos empreendedores por necessidade, outro Nobel, Amartya Sen, dizia que o bem-estar é alcançado pela liberdade de fazer o que se valoriza. Portanto, Sen diria que é possível aumentar o bem-estar real dessas pessoas através de outros tipos de vínculo de trabalho.
Em suma, a realidade do mundo do trabalho não só é diversa como apresenta uma dinâmica que dá os contornos das preferências por diferentes formas de trabalho. Muitas pessoas buscam flexibilidade e independência, enquanto outras preferem a segurança de um emprego formal. Compreender as nuances desse universo heterogêneo é essencial para aprimorar políticas públicas e modelos de negócio.
Por fim, talvez exista uma tendência de culpar os pobres em diversas situações. Durante a pandemia, jornalistas tarimbados não hesitaram em tacar pedra na Geni. Alguém escreveu que, ludibriado pelo pagamento do auxílio emergencial, o “rebanho de gente que precisa do governo para sobreviver, até para comer”, cairia no colo de Bolsonaro. Não foi o que aconteceu…