Livro ‘Capital e Ideologia’, de Thomas Piketty, tem pesquisa de alcance histórico e geográfico maior que seu título anterior
Folha de São Paulo, 08/08/2020
Ninguém tira de Thomas Piketty o condão de ter posto a desigualdade no centro do debate econômico. Publicado em 2013, “O Capital no Século 21” foi traduzido para 40 línguas e vendeu 2,5 milhões de exemplares. Veio para ficar.
Com mais de mil páginas, centenas de gráficos e tabelas, cifras de tirar o fôlego, e escrito com objetividade, o livro deu sentido ao progresso. A saber: depois de um século de genocídios e revoluções, de um incremento tecnológico nunca visto antes, a concentração do capital é hoje a mesma da belle époque. Regredimos.
O século das guerras mundiais, às quais se seguiram a Guerra Fria e a implosão soviética, resultou num mundo semelhante ao da década que precedeu os tumultos. A concentração da riqueza é igual à dos anos 1910 —riqueza essa produzida por bilhões de miseráveis e remediados em benefício de um pugilo de nababos.
Piketty volta à carga com “Capital e Ideologia” (ed. Intrínseca, 1.053 págs.). É uma sequência do livro anterior, mas com uma pesquisa de alcance histórico e geográfico maior. Vai-se da Revolução Haitiana à Guerra Civil Americana e ao New Deal; da independência indiana ao pós-comunismo e aos governos do PT.
O primeiro “O Capital”, o de Marx, começa com a produção —o primeiro capítulo é sobre a mercadoria— para depois investigar a sua circulação e chegar ao sistema capitalista. Já “Capital e Ideologia” se centra na distribuição do capital, na desigualdade, e põe em xeque o ideário que a legitima.
A desigualdade é analisada na Revolução Francesa; em sociedades escravistas e coloniais; no pós-Guerra do século 20; e na atualidade. Social-democrata, Piketty concluiu sua pesquisa com uma receita: taxação
pesada dos ricos, de suas propriedades, lucros e heranças.
Não é preciso concordar com o receituário para usufruir do livro. Ele funciona como uma série de monografias sobre situações diversas no tempo e no espaço —algumas convincentes e outras não. Em todas, se procura investigar como um grupelho de proprietários disseminou a crença que a desigualdade é não só natural como positiva.
O pilar ideológico da crença é a meritocracia —para Piketty um “conto de fadas”. Trata-se do mito que, no capitalismo, qualquer um pode virar trilhardário. No altar-mor da devoção fica a santíssima trindade de Mark Zuckerberg (Facebook), Jeff Bezos (Amazon) e Bill Gates (Microsoft).
A meritocracia despreza o colossal esforço humano, o empenho social secular e a legislação em causa própria que permite aos novos paxás o acúmulo astronômico de capital.
Enfatiza os indivíduos, as garagens na Califórnia onde seres iluminados descobriram a pedra filosofal do dinheiro que gera dinheiro. E sublinha a sua filantropia, a generosidade com que jogam migalhas aos desvalidos. Como são bonzinhos. Desde que não lhe toquem no tesouro.
A mitificação dos megarricos —que no Brasil se manifesta no culto brega a Jorge Paulo Lemman, o maioral escutado como um sábio até quando manda um zé mané lhe engraxar os sapatos— só existe devido a mecanismos financeiros que espoliam o planeta.
O primeiro deles é a desregulamentação do lucro e a sua livre circulação. Ele foi obra do arraso neoliberal de Reagan e Thatcher —louvados em prosa e verso por economistas e devotos do livre mercado, ambos muito bem pagos.
O mecanismo é complementado pelos paraísos fiscais. Offshores, bancões e banquinhos fraudam fiscos nacionais numa boa. Papéis do Panamá, contas secretas na Suíça, ações e derivativos que pulam de Bolsa em Bolsa garantem sombra e água fresca —e jatinhos, helicópteros e apartamentos na Flórida— aos donos da cocada preta.
Piketty nota que a ideologia meritocrática não está isenta de preconceitos. Os bilionários ocidentais são tidos por empreendedores afortunados. Já os russos são chamados de oligarcas; os africanos, de cleptocratas; os árabes, de sheiks. E assim se fermentam disputas nacionais por mercados.
Em outros termos, que “Capital e Ideologia” não usa: a burguesia é internacional, mas com raízes nacionais. Elas estão cravadas em territórios onde multidões extraem riqueza material, de cujo trabalho a classe dominante se apropria.
Distributivista, Piketty também não tem no seu léxico o verbete “exploração”. Acredita que uma reforma tributária radical e internacional poderá construir uma nova ordem, a do “socialismo participativo”. Ele não está à vista. A alternativa mais evidente é a pauperização, o salve-se quem puder. Quem viver verá.
Mario Sergio Conti
Jornalista, é autor de “Notícias do Planalto”.