A banalização do mal e a desumanização do indivíduo

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Escrevo num momento de reflexão sobre os rumos da sociedade mundial, somente nesta semana a sociedade internacional se assustou com dois eventos que trouxeram perplexidade, medos e desesperanças, os eventos inexplicáveis protagonizados por dois adolescentes que invadiram uma escola estadual e mataram oito pessoas e as atrocidades cometidas na Nova Zelândia, onde um atirador matou mais de quarenta pessoas com requintes de violência e traços acelerados de insanidade, diante disso, todos estão se perguntando para onde a sociedade internacional está caminhando e quais os motivos que levam cidadãos considerados normais a cometeram uma crueldade como esta?

Nos momentos iniciais destas atrocidades, os indivíduos buscam explicações, teorias e respostas variadas dos motivos que levaram os indivíduos a cometerem crimes tão violentos, destruindo sonhos, degradando famílias e destilando ódio, rancor e ressentimentos por todos os poros da sociedade, gerando nuvens de medo, desesperança e instabilidades.

Muitas questões são aventadas por especialistas, todos dotados de teorias e grandes instrumentos científicos para opinar e dar suas opiniões, cercados por uma mídia sedenta por respostas e por uma sociedade atônita por explicações mais bem estruturadas e convincentes, que possam trazer um pouquinho mais de esperança e confiança para a coletividade.

Estamos inseridos em uma sociedade que se transforma com grande rapidez, as mudanças tecnológicas deixaram as fábricas e as organizações empresariais e estão, cada dia de forma mais intensa, adentrando nossas casas e residências, exigindo dos trabalhadores uma ampla capacidade de adaptação, capacitação e qualificação constantes, tudo isto exige dos indivíduos uma centralidade maior do mundo do trabalho em nossas vidas contemporâneas, diminuindo o tempo que passamos com nossas famílias, nossos filhos, amantes e conosco mesmo, o trabalho nos consome mais do que queremos e mais, ao nos consumir diuturnamente, passa a nos transformar intimamente.

Anteriormente, as famílias se subdividiam, os homens saíam de casa para o trabalho cotidiano e as mulheres eram responsáveis pelas atividades do lar e pela educação dos filhos, desta forma a figura da família estava sempre presente na vida dos filhos, gerando proximidade, intimidade, responsabilidade e segurança, estas características estão ausentes na família contemporânea, gerando desequilíbrios e desestruturas.

O mundo do trabalho exige dos indivíduos uma constante transformação, sob pena de exclusão e dificuldades de inserção neste mercado que, cotidianamente, se transforma, gerando desafios que os indivíduos não estão mais em condição de suportar, tudo isso leva o cidadão a desequilíbrios generalizados, medos incessantes e transtornos psicológicos, emocionais e espirituais em escalas até então jamais vistas e imaginadas.

Além das mudanças constantes na sociedade contemporânea, este mundo do trabalho exige dos trabalhadores uma guerra constante, palavras como metas, produtividade, empreendedorismo, bônus, competição, lucro e competitividade, são constantes no vocabulário do mundo da gestão, levando os indivíduos a uma interiorização destes conceitos no ideário de cada trabalhador, busca-se uma racionalidade, uma maximização de lucros e uma minimização de custos que coloca o trabalhador na berlinda, dando-lhe uma centralidade na produção e na prestação de serviços e, ao mesmo tempo, retirando-lhe uma forte capacidade de participação mais intensa nas decisões.

Nesta sociedade, percebemos uma crise do indivíduo, os relacionamentos não mais se sustentam, os enamorados se afastam uns dos outros, o medo do fracasso e da frustração leva o indivíduo a se distanciar da realidade e, muitas vezes, levando-o a construir mundos paralelos para dar vazão a insegurança, criando perfis falsos e acessando mercados obscuros nas redes sociais para dar vazão a uma intolerância crescente.

Nesta sociedade encontramos uma grande competição entre todos, Estados competem uns com os outros, empresas se digladiam por mais mercados, lucros e rentabilidade, trabalhadores se encontram perdidos e perplexos com as cobranças que se avolumem cotidianamente, obrigando-os a se adaptarem a estas transformações frenéticas e alucinantes, neste clima de constante competição estamos cada vez mais estressados, cansados e desesperançados, muitos se rendem a depressão que aflige mais de 300 milhões de pessoas no mundo, enquanto outros optam pelo suicídio, acreditando com isto, que estão se escondendo dos duros embates da vida contemporânea.

A desagregação das famílias está associada ao excesso de cobranças na sociedade, às transformações do mercado de trabalho, que obrigam os pais a se ausentarem de suas casas para buscar o alimento necessário para a reprodução dos seus entes queridos, nesta nova sociedade marcada pela crescente introdução de máquinas e tecnologias, além de sua formação inicial, faz-se fundamental uma atualização constante, obrigando os trabalhadores a se ausentarem de suas casas ou a se fechar em seus escritórios, deixando filhos e familiares sem os contatos essenciais para a construção contínua da personalidade e da segurança de seus filhos, amados e dependentes.

Com a ausência dos genitores, os filhos passam a ser educados pela escola e pela televisão, que tem importância central na sociedade, mas não dispõem dos aparatos necessários para auxiliar na construção da personalidade de crianças e adolescentes, com isso, estes últimos passam a atrair pessoas com interesses negativos diversos, desde drogas, álcool e prostituição, dificultando uma possível melhoria num futuro imediato.

As causas destas dificuldades estão na busca constante pelo prazer, pelo gozo farto e pelas responsabilidades mínimas, sexo, drogas, álcool e dinheiro nos trazem um prazer imediato e nos leva a um precipício, o hedonismo nos seduz e esconde as nossas responsabilidades enquanto pais, cônjuges e profissionais, quando acordamos deste pesadelo nos assustamos com nossas escolhas individuais e nos amedrontamos diante da vida.

O mundo do trabalho exige cada vez mais dos trabalhadores, nos lares mais abastados os problemas estão na complexidade das atividades imateriais, enquanto nos lares mais desprovidos de recursos financeiros, os trabalhadores passam grande parte seu tempo em condução, com isso, estar próximo de filhos e familiares é um luxo incomensurável, gerando sempre insatisfação e consciência intranquila, medos e preocupações.

Nestas mudanças do mundo da gestão, as empresas trocam mão de obra por tecnologia, levando os trabalhadores a uma situação de constante instabilidades e medos de serem substituídos por máquinas, na atualidade o medo aumenta porque esta troca está atingindo trabalhadores mais qualificados e em cargos de diretoria e supervisão, que sofrem a concorrência com a inteligência artificial, obrigando-os a novas capacitações e constantes atualizações, tudo isso leva as famílias a um distanciamento crescente, uma desumanização ascensional e uma perda das funções sociais dos pais, gerando um caos generalizados na sociedade e uma perda de referências positivas no cotidiano das crianças e adolescentes.

Somos vítimas de uma sociedade centrada no lucro e na acumulação financeira, enterramos nossas vidas na loucura da competição desenfreada do mundo moderno e nos esquecemos dos compromissos familiares anteriores, neste ambiente, algumas famílias desistem de ter filhos e buscam uma vida que lhes garanta uma maior acumulação financeira e orçamentária, garantindo-lhes, nos momentos de senilidade, bolsos cheios de recursos, propriedades e tesouros monetários e corações marcados por parcos sentimentos de solidariedade e uma grande porção de solidão e desesperança.

A legitimação desta sociedade está nas vitrines das lojas e nas televisões de alta resolução, nos prazeres dos desfiles nos shoppings, no espetáculo da tecnologia, nos avanços das comunicações e nas facilidades dos smartphones que nos conectam com um mundo de sonho e fantasia, onde não existe espaço para tristezas, onde as postagens são sempre de pessoas alegres e bem sucedidas e as homenagens são feitas, na grande maioria, aqueles que menos fizeram para a coletividade, mas que mais apareceram para a mídia e para a coletividade.

A busca constante por lucros está matando o ser humano, enterrando os sentimentos mais nobres, isolando os indivíduos, degradando a natureza e condenando as pessoas a uma perda constante de sua sensibilidade social, os dramas no mundo não mais nos assustam, os medos das pessoas não mais nos levam a empatia e a perspectivas de uma melhora, esta está diretamente ligada as mudanças que devem ser conduzidas e empreendidas por cada indivíduo em sua intimidade, o mundo só muda quando o ser humano se transforma, esta transformação é urgente e necessária, se não a fizermos, em pouco tempo, estaremos novamente discutindo questões importantes, mas interpretando os fatos de forma equivocada e fugindo de discussões mais relevantes e fundamentais.

Os massacres assistidos quase ao vivo nesta semana mexeram com todos os indivíduos, uns se sensibilizam mais enquanto outros pouco se sintonizaram com a dor alheia, nesta busca por explicações das razões e dos motivos que levaram pessoas descritas como normais a adotarem atitudes irracionais, tentemos encontrar explicações nas escolhas que estamos fazendo nos últimos anos, deixemos de lado este excesso de tecnologias e as substituamos por mais diálogo, conversas e proximidade, substituamos presentes e mercadorias caras por mais limites, direitos e deveres,  assumamos a responsabilidade que cabe a cada um de nós e voltemos a mostrar a importância das crenças e dos valores morais, se não aprendermos com mais uma destas monstruosidades, muito brevemente estaremos conversando sobre os mesmos crimes e as mesmas violências, sempre buscando responsáveis e nos eximindo de nossas culpas.

Todos os seres humanos devem ser vistos como um misto de bem e de mal, nenhum indivíduo é dotado apenas de coisas boas e edificantes, aumentar nossas virtudes e reduzir nossas indigências nos levam a sinais claros de progressos visível e fundamental, este crescimento está centrado em valores e sentimentos melhores que demandam um incremento da educação, não uma educação que se concentre apenas em instrumentos cognitivos de compreensão do mundo, mas em uma educação que além destes instrumentos cognitivos nos auxilia na construção de valores maiores e mais sólidos, somente esta educação capacita o ser humano para a compreensão da vida e da sociedade e o aproxima dos valores que sustentam uma obra maior e mais consistente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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