A América do Sul na política externa brasileira

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Autor: Marcelo Coutinho

O debate sobre política externa deve enxergar o longo prazo, ajustando-se às condições da nova década
A política externa brasileira passou por dois grandes paradigmas e alguns interstícios mais ambíguos, como na Era Vargas. Essas referências respeitaram evoluções internacionais e domésticas que fizeram variar a maneira como definíamos nossa identidade, interesses nacionais e recursos que nos capacitavam a alcançá-los. Embora os enfoques mudassem significativamente, a América do Sul sempre foi objeto de atenção especial da nossa diplomacia. Hoje, a difusão do poder internacional e a modernização dos padrões de cooperação recomendam alianças flexíveis e multifacetadas. No entanto, para evitar dispersões contraproducentes, convém não esquecer que, se a geometria é variável, a geografia continua permanente.

A primeira referência paradigmática da política exterior brasileira foi a do Barão do Rio Branco, cujo legado predominou durante toda a República Velha e caracterizou-se pelo alinhamento com os EUA e o arbitramento internacional que tornou nossas fronteiras inquestionáveis. Ainda caudatária das fortes desconfianças entre o Império brasileiro e as novas repúblicas hispano-americanas no Século XIX, a região era vista com suspeição até depois da Primeira Guerra Mundial, pois temíamos uma frente sul-americana antibrasileira e essa preocupação nos levou a uma aliança preferencial com os EUA, com o apoio do Chile.

A segunda referência foi a política externa independente de Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Araújo Castro do início dos anos 1960, cuja definição é autoexplicativa e foi posteriormente recuperada pelo pragmatismo responsável de Azeredo da Silveira na segunda metade dos anos 1970, mas cujos rudimentos já estavam presentes no segundo governo Vargas e no governo Kubitschek. Nesses períodos abandonamos dogmas elitistas e passamos a diversificar nossas relações, mais orientados agora pela maximização dos interesses genuinamente nacionais. Criamos, por exemplo, a Alalc (1960) e a Aladi (1980). Até que os objetivos brasileiros na América Latina deixassem de refletir claramente a visão de Washington, passamos por algumas recaídas ideológicas de subordinação e realinhamento automático com a grande potência, que acabou por nos distanciar da região ou estabelecer com ela um quase “imperialismo por procuração”, nos termos do “key-country” (“para onde for o Brasil também irá a América Latina”, Nixon, 1971).
Cada vez mais consciente da sua condição de país latino-americano a partir do pós-guerra, o país elaborou a duras penas, ao passar das décadas, um consenso entre as elites nacionais de que a região é o aspecto mais importante das nossas relações internacionais, não sendo ela excludente com as ambições universalistas.
A latino-americanização ou sul-americanização da política externa ocorreu não como fórmula defensiva de evitar coalizões antibrasileiras na vizinhança ou mesmo fora dela, mas como forma positiva de nos desenvolvermos, ao mesmo tempo em que constituíamos uma plataforma regional para nossas demandas e inserção globalizada.

O crescimento do Brasil no cenário internacional e as mudanças políticas na região fizeram com que este consenso com respeito à integração regional estivesse ameaçado, pela primeira vez desde o último grande retrocesso, observado no governo Castelo Branco. Tendo em vista que o centro gravitacional do mundo está se pulverizando em múltiplos polos de poder para além dos EUA, começaram a aparecer defensores de um descolamento brasileiro da América Latina. A tese de menos Mercosul segue por esta linha. No entanto, tal contestação da centralidade política e econômica da América do Sul para o país entra em forte contradição com a crescente relevância que as regiões assumem no mundo, seja no comércio ou em questões de segurança e meio ambiente.

O Brasil conseguiu agregar valor às suas exportações graças à América Latina. O regionalismo estrutural está para a indústria brasileira hoje como o nacional-desenvolvimentismo esteve para os anos dourados. Em um contexto de maior imprevisibilidade, assegurar um ambiente de paz e cooperação no espaço onde vivemos e no âmbito de democracias com apelo social, pode ser ingrediente do sucesso. Assim sendo, o debate sobre política externa deve enxergar o longo prazo, ajustando-se às condições da nova década, mas sem nos descarrilar da história. Não obstante as diferenças, estamos ocupando o lugar deixado pelos Estados Unidos na região, que outrora foi da Inglaterra e, antes dela, da Espanha. Como “uma potência doce”, o Brasil faz isso sem ser violento ou imperialista. A pergunta é se devemos continuar com o espírito de comunidade, “socio y no patrón”, ou concorrermos com a voracidade chinesa, a grande potência emergente no Século XXI.

O aumento das expectativas com relação ao Brasil e a reierarquização mundial, que nos colocará algumas posições à frente, têm estimulado progressivamente o país a assumir novos compromissos e a abrir múltiplas frentes de trabalho. É positiva a forma como adotamos relações internacionais variáveis de acordo com os interesses em questão, formando inúmeros grupos e parcerias. Isso não chega a ser uma novidade.

Mas a diferença de agora é que podemos de fato consolidar os avanços acumulados nas últimas décadas desde que não se abra mão dos princípios clássicos da política externa brasileira como o de não intervenção e respeito aos direitos humanos e a democracia. Nenhum tipo de pragmatismo pode ser mais importante do que esses princípios, que em nada se confundem com o viés ideológico ocidentalista do período oligárquico ou da Belle Époque, quando alguns imaginavam ser superiores aos vizinhos.

O mundo não se move pela lógica Norte-Sul ou Sul-Sul. O mundo se globaliza. No entanto, a maleabilidade requerida pelo jogo complexo montado pela evolução do sistema internacional contemporâneo ainda respeita algumas leis básicas da geografia, das distâncias, fronteiras, culturas e territorialidades. As regiões são cada vez mais centrais nesse tabuleiro e em qualquer outro que venha a ser montado porque elas são permanentes. Podem adotar novas configurações, mas são constantes em inúmeros aspectos práticos. Mesmo que alguém considerasse desejável, não há como mudar de vizinhança nesse caso. Aliás, uma boa vizinhança, diga-se de passagem. Sem guerras e mais cooperativa do que muitas outras no mundo. Portanto, antes de sermos Brics ou G-20 financeiro seremos sempre latino-americanos.
Marcelo Coutinho é fundador e coordenador do Observatório Político Sul-Americano (OPSA), do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e professor de Relações Internacionais da UnB.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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