Realidade Paralela

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As movimentações na sociedade internacional geradas pelo desenvolvimento da tecnologia e da integração econômica e produtiva estão gerando novas formas de comportamentos nos indivíduos, levando as organizações, em escala global, a buscarem formas de satisfazer os novos anseios dos consumidores, assim como os governos estão se organizando para melhorar os serviços públicos, as regulamentações e novas formas de inclusão dos cidadãos neste ambiente centrado na concorrência e na competição constantes.

Neste cenário, percebemos o crescimento do embate entre os atores sociais e econômicos como forma de perpetuar seus ganhos indiretos, as isenções fiscais e seus benefícios tributários, moldando um grande conflito distributivo nos seios da sociedade contemporânea, cada um está buscando seus ganhos imediatos e se esquecendo da importância de pensarmos como atores integrados e interdependentes, garantindo seus recursos em detrimento de outros setores mais fragilizados, desta forma, contribuem ativamente para o incremento das desigualdades sociais que crescem na sociedade global.

Nesta sociedade, percebemos o crescimento de uma realidade paralela, construída, estruturada e difundida para legitimar interesses mesquinhos, individualistas e imediatistas, onde poucos grupos sociais usufruem diretamente, mas foram construídas de forma altamente profissional, com grandes investimentos financeiros, mesmo sabendo que poucos grupos sociais ganham com estas ideias e pensamentos.

Nesta situação, encontramos grupos econômicos e políticos importantes que investem somas altíssimas de recursos para desacreditar aqueles que combatem as violentas alterações climáticas, rechaçando as transformações no Meio Ambiente e se mobilizam para fragilizar as organizações que trabalham para aumentar a regulamentação governamental e impor mais responsabilidade nos investimentos que podem impactar sobre a natureza e os seres humanos.

Encontramos ainda, grupos econômicos e financeiros dotados de grandes recursos monetários e influência política que usam seus recursos para fortalecer os mercados das armas, das tecnologias militares, das indústrias bélicas e todo um arsenal que fatura bilhões de dólares, empregando pessoas e são responsáveis pela destruição inteira de regiões e nações em todas as partes do mundo, vide o acontecido em nações como o Iraque, a Ucrânia, a Síria, o Líbano, a Palestina, países destruídos pela devastação militar e, ao mesmo tempo, garante o enriquecimento da indústria da morte.

Neste mesmo cenário global, vivenciamos aqui, no Brasil, uma realidade paralela, encontramos nos meios de comunicação e nas universidades discussões secundárias e ultrapassadas, falamos constantemente em corrupção e nos esquecemos das raízes deste fenômeno, nos esquecemos das evasões fiscais, não discutimos nosso sistema tributário regressivo e concentrador e menos ainda, nada falamos de um Congresso turbinado por emendas pouco transparentes, foco constante de corrupção e desperdícios. Falamos das farras fiscais e nos esquecemos dos juros estratosféricos definidos pelo Banco Central que consomem bilhões de reais e aumentam a dívida pública. Criticamos os servidores públicos e degradamos as políticas públicas como ineficientes e nos esquecemos que convivemos com um judiciário caro, lento e ineficiente.

Precisamos urgentemente sair desta realidade paralela, os desafios contemporâneos exigem maturidade, senso de responsabilidade, compreensão do momento atual e forte capacidade de liderança, construindo políticas públicas sólidas e consistentes, vislumbrando uma nação melhor, mais harmônica, com mais oportunidade para os cidadãos e menos parasitas, especuladores, aproveitadores e exploradores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A cultura dos juros altos, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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 Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 19/12/2024

A economia brasileira está presa em círculo vicioso da quase estagnação

Um dia desses, um dos meus filhos me perguntou por que o governo Lula estava privatizando estradas de rodagem que são monopolistas e, por isso, não devem ser privatizadas. Não seria esse governo neoliberal? Ou neoliberal progressista, acrescentei parafraseando a filósofa americana Nancy Fraser.

Não, o presente governo é social-progressista e desenvolvimentista: defende uma diminuição da desigualdade e a intervenção do Estado na economia para aumentar o investimento público e promover o investimento privado. Não obstante, esse governo não tem alternativa senão privatizar as rodovias que exigem investimentos para os quais não tem recursos. O Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação.

Entendo por quase estagnação o fato de um país não realizar o “catch-up” – o fato de seu crescimento per capita ser quase sempre inferior aos dos Estados Unidos, de forma que o padrão médio de vida dos brasileiros se afasta cada vez mais do padrão americano. Apesar de um desempenho econômico razoável neste ano e nos dois últimos anos, nada aconteceu de novo na economia brasileira que nos permita afirmar que escapamos da quase estagnação, inclusive porque a taxa de investimento continua muito baixa.

A economia brasileira está quase estagnada desde 1980. Hoje, a distância em relação aos Estados Unidos é maior do que era em 1980. A causa direta dessa quase estagnação é a taxa de investimento muito baixa. Tanto o investimento privado quanto o público é sistematicamente inferior a 17% quando deveria girar em torno de 25% do PIB. Sete pontos percentuais é uma diferença muito grande.

Se compararmos a presente situação com meados dos anos 1970 (a última década em que o Brasil cresceu satisfatoriamente e estava realizando o “catch-up“), veremos que o investimento privado, que naquela década estava em torno de 15% do PIB, se manteve nesse nível, embora devesse ter crescido devido às privatizações – deveria ter crescido para pelo menos 20% do PIB.

Já o investimento público, que deveria ter caído um pouco devido às mesmas privatizações, caiu muito; correspondia a aproximadamente 8% do PIB, agora está em torno de 2,5%. Em consequência, o investimento total caiu de 23% para aproximadamente 16% do PIB, e a taxa de crescimento caiu correspondentemente.

A primeira razão para isso é a taxa de juros exorbitante que existe no Brasil desde a abertura financeira (1992). A taxa de juros real vem sendo desde então em média cerca de 6% a 7% ao ano, quando deveria se manter em torno de 3% ao ano, ou seja, igual a taxa de juros real internacional mais um adicional que dê conta do risco dos brasileiros em investir no Brasil (não dos estrangeiros), que eu estimo ser de aproximadamente 1%.

Duas vezes menor, portanto, que a taxa real que o Banco Central tem praticado e, portanto, uma taxa que desestimula o investimento. Eu falei em risco dos brasileiros, que deve ser menor que o risco Brasil, calculado pelos mercados internacionais para investidores fora do país aqui investirem, que é maior de cerca de 2,5%.

A segunda razão é a tendência de apreciação da taxa de câmbio no Brasil, que tem por trás quatro motivos: (i) porque a taxa de juros é alta para poder atrair capitais; (ii) porque o Brasil incorre sistematicamente em déficits na conta corrente de aproximadamente 2% do PIB, quando deveria mantê-los em torno de zero; (iii) porque o Brasil não reconhece e não neutraliza a doença holandesa, não tendo, portanto, uma política que evite que a taxa de câmbio se torne valorizada para as empresas industriais, a qual reduz a competitividade internacional dessas empresas; e (iv) porque a taxa de poupança no Brasil é muito baixa, não sendo por isso compensada pelo recurso a financiamento interno ou externo.

Os atores

Para sabermos o porquê das três primeiras razões, precisamos considerar os atores que causam a baixa taxa de investimento e o círculo vicioso da quase estagnação. São eles os capitalistas rentistas e seus financistas, o agronegócio, o Norte Global ao qual os dois primeiros grupos estão associados, os empresários industriais, os eleitores e os políticos. Todos são responsáveis pela taxa de câmbio apreciada, a baixa taxa de investimento e a quase estagnação do Brasil.

Os rentistas e financistas, que são dominantes, querem uma taxa de juros real (descontada a inflação) alta e uma taxa de inflação baixa (para garantir o objetivo anterior). Os dois grupos são liberais: não querem que o Estado invista ou intervenha na economia; não querem, por exemplo, que o Estado tenha uma política cambial que estabilize a taxa de câmbio e evite que ela seja apreciada.

Assim, estão felizes com um déficit na conta corrente em torno de 2% do PIB e não querem saber da doença holandesa, embora esta surja quando o preço das commodities exportadas pelo Brasil sobe e torna as empresas industriais não competitivas, ainda que sejam competitivas no plano técnico.

Rentistas e financistas estão satisfeitos. Eles têm poder suficiente sobre a sociedade brasileira para capturar indevidamente cerca de 3% do PIB graças à diferença entre a taxa de juros média razoável (de 3% ao ano, como vimos acima) para a taxa praticada de 6% ao ano. Esses juros altos naturalmente desestimulam o investimento, a não ser que a taxa de lucro esperada seja alta e a desigualdade econômica, acentuada.

O agronegócio, embora recebendo altos subsídios do Estado, se afirma liberal e, como os dois grupos anteriores, não quer saber de uma política de neutralização da doença holandesa; quer realizar lucros extraordinários quando há um boom de commodities.

A doença holandesa é uma apreciação de longo prazo e cíclica da taxa de câmbio para a indústria causada por um substancial aumento de preços das commodities exportadas pelo país, que causa uma apreciação da taxa de câmbio geral ou corrente. Enquanto, para o setor exportador de bens primários (agronegócio e exportador de minérios e petróleo), essa taxa de câmbio mais apreciada é satisfatória porque o aumento de seus preços compensa a valorização da moeda nacional, para a indústria essa apreciação é desastrosa. É papel do Estado garantir uma taxa de câmbio competitiva para a indústria.

Nos países exportadores de commodities, a taxa de câmbio é cíclica porque os preços das commodities também tendem a ser cíclicos: ela se deprecia fortemente quando há uma crise financeira e depois se aprecia, chega à taxa de equilíbrio geral (que equilibra a conta corrente do país) e afinal se torna mais apreciada à medida que o déficit na conta corrente aumenta devido à política que os países adotam equivocadamente de incorrer em déficits na conta corrente (“poupança externa”). Começa então o endividamento externo que, afinal, levará o país a nova crise de balanço de pagamentos e a nova depreciação violenta da taxa de câmbio, encerrando-se assim o ciclo.

O Norte Global (o conjunto dos países ricos liderados pelos Estados Unidos) não tem qualquer interesse em uma taxa de investimento alta na sua periferia. Pelo contrário, visa evitar que os países em desenvolvimento se industrializem, porque não querem concorrência no futuro.

Para isso, além de nos recomendarem que tenhamos déficits na conta corrente desde que esses não levem o país a uma crise de balanço de pagamentos, buscam manter economicamente abertos os países em desenvolvimento para a exportar capitais (investimentos diretos e empréstimos) e para manter a troca desigual – a troca entre bens tecnologicamente sofisticados, que pagam bons salários e lucros, e bens pouco sofisticados que se caracterizam por baixo valor adicionado per capita.

As empresas industriais, que não precisam de proteção com base no argumento da indústria infante, precisam dramaticamente de proteção contra a doença holandesa que, em boom de commodities, as tornam não competitivas. Não obstante, seus dirigentes ou empresários não sabem ou não querem saber o que é a doença holandesa, que pode ser mortal para eles.

O setor interno de serviços, muito amplo e diversificado, quer que a taxa de juros seja baixa, mas seus dirigentes não têm poder político capaz de influenciar o Banco Central. Ao contrário, eles acabam sendo corresponsáveis pelos altos juros porque as associações que os representam são ocupadas por economistas neoliberais.

Os eleitores, principalmente a classe trabalhadora e de empregados, criticam a taxa de juros elevada, mas estão satisfeitos com uma taxa de câmbio apreciada que aumenta o poder aquisitivo de seus salários e demais rendimentos.

Os políticos, finalmente, acompanham seus eleitores e estão felizes com uma taxa de câmbio apreciada que facilita sua reeleição.

Os déficits na conta corrente e os investimentos privados

Os liberais afirmam que o principal problema da economia brasileira é o déficit público que causa aumento da dívida pública em relação ao PIB e causaria inflação. De fato, manter o equilíbrio fiscal é importante, mas mais importante é manter a conta corrente do país (a conta externa comercial mais os serviços) equilibrada, algo que só acontece raramente.

Na verdade, rentistas, financistas, agronegócio, interesses estrangeiros, eleitores e os políticos estão todos satisfeitos com um déficit na conta corrente moderado, porque esses déficits aumentam o poder aquisitivo dos seus rendimentos e mantêm tudo como está, inclusive a quase estagnação.

Ora, uma das características do populismo é procurar dar rendimentos artificiais aos eleitores que são, afinal, prejudiciais ao país. Ao aceitarem como bons os déficits na conta corrente (porque implicam acesso à poupança externa), nossos atores são todos populistas. Mas não teriam eles razão? Afinal, seria mais que natural que os países ricos em capitais transfiram seus capitais para países pobres em capitais como é o Brasil.

Não, a política de crescimento com poupança externa ou de déficits na conta corrente é uma política que contém a causa do seu fracasso). Ao incorrer em déficit na conta corrente, as entradas de capitais são maiores que as saídas, a taxa de câmbio se aprecia e, além de estimular indevidamente o consumo, desencoraja o investimento.

Esse caráter auto fracassante da política de crescimento com endividamento externo deixa de sê-lo se o país adota uma política cambial capaz de compensar o excesso de entradas de capitais. Tudo, portanto parece desestimular o investimento privado que, por isso, não aumentou sua participação no PIB como seria de se esperar.

Finalmente, é preciso considerar que a poupança brasileira é muito baixa e, ainda que esse fato possa ser superado pelo recurso ao financiamento interno (por isso Keynes e Kalecki disseram nos anos 1930 que o investimento precede a poupança), ela precisa ser considerada. A poupança deveria ser, em princípio, quase igual aos lucros, os quais, para os empresários industriais, são necessariamente baixos, dada a taxa de juros alta e a taxa de câmbio apreciada.

Eles, portanto, não têm recursos necessários para financiar os investimentos de modernização de suas fábricas e de expandir sua produção, o que leva à desindustrialização. Além disso, ao não investirem, ficam atrasados tecnologicamente e a produtividade da economia permanece estagnada.

Já o agronegócio realiza lucros elevados, mas seus empresários investem na própria agricultura e pecuária e se opõem a qualquer política industrial e de neutralização da doença holandesa. Os rentistas e financistas, por sua vez, recebem juros e aluguéis elevados, mas não investem na indústria porque ela não dá o retorno que desejam. Preferem investir seu dinheiro no mercado financeiro e seus altos juros ou em imóveis que rendem bons aluguéis e se valorizam.

Em síntese, a taxa de investimento na indústria em relação ao PIB não aumentou apesar das privatizações que ocorreram desde os anos 1970. Em todo o período, os investimentos foram fortemente desestimulados porque apresentaram uma taxa esperada de lucro insatisfatória, incapaz de motivar os investimentos, dada a taxa elevada de juros que desde 1992 caracteriza a economia brasileira. Foram, portanto, claramente insuficientes para que o país retome o desenvolvimento e volte a realizar o “catch-up“.

A cultura dos juros altos

Além de rentistas e financistas defenderem juros altos e estes serem necessários para atrair capitais que financiem um déficit na conta corrente que não deveria existir, há uma causa subjacente para os juros serem altos: a cultura de juros altos, a acomodação de todos com os juros altos, que decorre do poder estrutural do capital e de um hábito cultural existente há muitos anos.

Duas indicações desse fato. Em 1964, já no quadro do regime militar, garantiu-se para as cadernetas de poupança, além da correção monetária, uma taxa de juros real de 6% ao ano. Em 1988, a nova Constituição limitou a 12% a taxa de juros real. Um limite muito alto, mas foi tanta a pressão do capital contra esse dispositivo que o STF decidiu depender de lei complementar do sistema financeiro internacional. Assim, a Constituição se tornou letra-morta nesse ponto, enquanto o Congresso não se move para discutir a lei necessária.

A falta de poupança pública e o investimento público

Voltando à comparação entre os anos 1970 (a última década em que o crescimento foi satisfatório no Brasil) e o presente, foram os investimentos do setor público que mais sofreram na virada dos anos 1970 para os anos 1980. A poupança pública que girava em torno de 4% do PIB caiu de repente para -2%, uma diferença de seis pontos percentuais.

Dois fatores foram determinantes da queda da poupança pública e do investimento público: a crise da dívida externa e a crise fiscal do Estado, que estudei bastante naquela época. Pergunto agora: seria possível o Estado voltar a realizar uma poupança pública e recuperar pelo menos uma parte daqueles seis pontos percentuais? Isto não parece provável. O Brasil continua com uma poupança pública negativa e a possibilidade de voltar a ter uma poupança pública positiva parece impossível.

Para aumentar a poupança pública, a maneira mais óbvia seria aumentar impostos para, assim, compensar o excesso de juros que são pagos aos rentistas locais e aos do Norte Global. Como vimos que esse excesso é de 3% do PIB, a carga tributária em relação ao PIB deveria aumentar na mesma proporção, mas ninguém quer pagar mais impostos.

A solução dada por rentistas e financistas ou, mais amplamente pelos, neoliberais é reduzir as despesas do Estado exceto os juros. Vimos que os investimentos públicos já foram reduzidos ao mínimo. Quanto às despesas sociais, é impossível reduzi-las. Seria, sim, possível reduzir os penduricalhos que a burocracia pública logra incluir em seus salários. O atual governo vem tentando fazer alguma coisa em relação a esse problema.

Seria também possível reduzir os incríveis e absurdos subsídios e isenções de impostos, como vem tentando o atual ministro da Fazenda, mas além de ter de neutralizar o lobby dos interessados nos subsídios e nas isenções, o Ministério da Fazenda tem que convencer muitos dos próprios membros do governo, que se julgam representantes dos interesses de suas áreas, e o próprio presidente da República que deve ser reeleito. Nessa área, como na dos juros, há bilhões a ser economizados, mas os interesses contrários são poderosos.

Demitir funcionários? No plano federal, não há excesso de servidores públicos. Nos governos estaduais e municipais, o excesso deve ser pequeno e o problema precisa ser enfrentado, mas não fará grande diferença. Onde faria uma grande diferença seria a redução da despesa com juros, que se obteria com a baixa da taxa para um nível civilizado e perfeitamente compatível com o controle da inflação. Mas quem será capaz de dobrar os rentistas e os financistas?

Assim, sem poder reduzir significativamente as despesas e sem conseguir aumentar os impostos para financiar essas despesas, o Estado não consegue realizar a poupança pública que seria necessária para financiar os investimentos públicos, que compensariam o não aumento do investimento do setor privado. Na verdade, o país não consegue zerar seu déficit público, que lhe permitiria realizar alguma poupança pública, a qual permanece negativa.

Os rentistas e financistas, porém, estão satisfeitos, porque não querem que o Estado invista – o que eles denominam “estatização”. Os rentistas e financistas (o “mercado financeiro”) querem que o Estado realize o superávit primário, uma métrica que lhes agrada porque exclui (esconde) os juros e, não obstante, garante que a dívida pública em relação ao PIB não aumente. Mas mesmo esse superávit o governo tem grande dificuldade de conseguir.

O círculo vicioso se fecha

Em consequência de tudo isso, o Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que tem alguma semelhança com o fluxo secular de Joseph Schumpeter, definido em 1911. Nesse fluxo circular, que decorre da lógica da teoria econômica neoclássica ou ortodoxa e do seu ideal de concorrência perfeita, não há lucros (existe apenas o lucro normal, igual à taxa de juros), os investimentos são iguais à depreciação efetivamente ocorrida e não há crescimento.

Já no caso do círculo vicioso da quase estagnação brasileira, há lucros, mas são baixos para a indústria de transformação; há investimentos e há crescimento porque setores do agronegócio, da indústria e o setor de serviços investem, mas esses são poucos, insuficientes para que o país saia da quase estagnação em que está mergulhado desde os anos 1980.

Por outro lado, o Estado não tem recursos para complementar o setor privado. Nos anos 1970, investia cerca de 8% do PIB. Hoje, investe apenas cerca de 2%. Não consegue nem sequer financiar os investimentos públicos em infraestrutura que são necessários para o país crescer. A solução proposta pela ortodoxia liberal é privatizar. Os governos vêm seguindo essa trilha, mas os resultados são parcos. O apetite e as possibilidades do setor privado são restritos.

Entretanto, alguns investimentos em infraestrutura, cujos lucros são certos, como nas concessões de rodovias, atraem muitos os rentistas e financistas e são relativamente necessários. O governo Lula, portanto, avança nas concessões por falta de alternativa.

Já outros investimentos muito necessários em infraestrutura não atraem o setor privado, a não ser que o Estado subsidie seus investimentos (parcerias público-privadas). A potencialidade dessas parcerias, porém, é limitada porque envolve gastos do Estado, o qual é mantido no nível de subsistência.

Há 20 anos, afirmo que a economia brasileira está presa na armadilha dos juros altos e do câmbio apreciado. Hoje, apoiado na teoria novo-desenvolvimentista, posso acrescentar que o Brasil está preso ao círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que se fecha com a impotência do Estado de rompê-la.

Ao apresentar o Brasil, sua economia e sua política de uma maneira nova, na qual podemos ver como os diversos atores tratam de manter a economia brasileira presa a esse círculo, sou obrigado a me mostrar pessimista quanto ao futuro do Brasil e do seu povo.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV) 

 

Os desafios do movimento pela reforma agrária, por João Pedro Stédile

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João Pedro Stédile – Instituto Humanitas Unisinos – 06/12/2024

No MST nós temos uma prática social de resolvermos tudo de maneira coletiva e mesmo que eu tenha uma cara mais conhecida na sociedade brasileira, sempre procuro expressar a opinião do nosso coletivo. Quando o MST nasceu e foi construído coletivamente há 40 anos atrás e o nosso ideal era a luta pela reforma agrária que se baseia naquela visão zapatista da Revolução Mexicana: “tierra es para quien la trabaja”, que foi adotada em toda a América Latina pela luta dos movimentos camponeses, isso levava uma concepção campesinos da luta pela terra, ou seja se lutava de forma massiva mas a essência era resolver os problemas das famílias camponesas e agora nós estamos numa nova etapa do capitalismo internacional.

Nos últimos 20 anos o capitalismo mundial sofreu grandes mudanças e hoje quem domina a produção agrícola é o capital financeiro e grandes empresas transnacionais; no Brasil e em todo mundo, o que levou o MST e os movimentos camponeses em geral, nós nos aglutinamos na Via Campesina, a adequar seu programa diante da nova realidade da luta de classes na agricultura. Hoje nós temos uma situação onde três modelos, ou três propostas de organização da agricultura se enfrentam a todo momento no campo no Brasil e na América Latina, que modéstia à parte, conheço um pouco.

O primeiro modelo nós chamamos de latifúndio predador, não é nenhuma nomenclatura acadêmica, é um conceito da luta política. O latifúndio predador são aqueles grandes fazendeiros capitalistas financiados pelo capital de mercado e pelas empresas transnacionais que vão lá na natureza e se apropriam dos bens que são comuns: terras públicas, florestas, minérios, água e biodiversidade em geral; e transformam aqueles bens em mercadorias e com isso tem uma taxa de lucro fantástica.

Portanto, é um modelo que enriquece, porém não é um modelo socialmente justo e é insustentável do ponto de vista ambiental. O segundo modelo é o agronegócio cantado em verso e prosa todas as noites no Jornal Nacional como se fosse moderno, como se fosse o futuro como se fosse o que carregasse o Brasil nas costas. Porém o modelo do agronegócio se fundamenta numa forma de organização baseada no monocultivo e aqui no Brasil se resume a apenas cinco produtos: soja, milho, cana-de-açúcar, algodão e pecuária bovina extensiva, mas todos esses produtos são commodities agrícolas para exportação não é para resolver os problemas do povo.

Por outro lado, por serem monocultivos em larga escala, eles adotam sementes transgênicas e agrotóxico e o agrotóxico mata a biodiversidade, mata a fertilidade do solo e desequilibra o meio ambiente e são mais perversos para as mudanças climáticas do que as próprias queimadas porque com as queimadas, a natureza se recupera, mas com o veneno não, ele fica lá e mata. Então, o modelo do agronegócio é insustentável também tanto do ponto de vista social porque ele não quer empregar pessoas quanto do ponto de vista ambiental porque ele destrói o meio ambiente.

O terceiro modelo é o modelo da agricultura familiar, que, de novo, a imprensa burguesa chama de atrasada, que não existe mais, que não sei o que, porém, a agricultura familiar do Brasil dá emprego para 16 milhões de trabalhadores familiares sem exploração; é a agricultura familiar que produz os alimentos para o mercado interno. O único produto que vai para a mesa do trabalhador que ainda sai do agronegócio é o óleo de soja, fora esse, tudo vem da agricultura familiar e é um modelo que pratica policultura, ou seja, tu vai lá em cinco hectares e encontra diversas formas de produção, diversos vegetais, diversos animais e essa combinação é que preserva o meio ambiente, preserva as nascentes.

Em São Paulo, nos últimos meses com a seca, houve os incêndios e como é que começaram os incêndios? Uma usina colocou fogo na cana para facilitar a colheita mecanizada, o vento veio e levou ao incêndio que queimou 300 mil hectares de cana em outras regiões. Foi feita a mesma prática por fazendeiros para queimar o pasto que estava seco e aí rebrotava a grama. Veio o vento e queimou 600 mil hectares de cana de pasto bom. A fumaça chegou aqui em São Paulo e, durante uma semana, os médicos denunciaram que morriam 60 pessoas por dia pela inalação da fumaça, claro, em geral idosos e crianças que são muito afetadas por doenças pulmonares.

Agora, fica a pergunta: por que na região da agricultura familiar não houve incêndio, na região de Itapeva no sul do estado, no Vale do Ribeira ou lá na região de Andradina? Porque na policultura existem diversas formas de vida vegetal e animal que convivem e, portanto, não há seca e incêndio que destruam isso. Bom, então agora vou ao que interessa: lutar hoje por reforma agrária não é apenas lutar por terra para os camponeses; lutar hoje por reforma agrária é lutar pelo que nós chamamos de uma reforma agrária popular.

Ou seja, precisam acontecer mudanças estruturais na propriedade da terra e na organização da produção, que tenham como centro de sua função social dois grandes objetivos: primeiro, produzir alimentos saudáveis para todo o povo, porque o povo brasileiro se alimenta muito mal. Quando a gente fala produzir alimentos para o povo, é de fato pensar em uma cesta básica que leve nutrientes, proteína animal, ovos caipiras para todo o povo. Se continuar essa agressão que o agronegócio e o latifúndio praticam contra a natureza, isso coloca em risco a vida do ser humano, que já está morrendo também por esses crimes ambientais. Então, essas novas funções de uma reforma agrária popular precisam ser daqui para frente.

Por uma agricultura sustentável

Para fazer com que a agricultura familiar, que tem 16 milhões de pessoas trabalhando, cumpra a missão de defender a natureza e produzir alimentos saudáveis para todos, é necessário implementar, como modo de produção tecnológica, a agroecologia. A agroecologia é uma junção de conhecimento dos saberes populares, que vêm de geração em geração do convívio dos camponeses com a natureza, mas há também um componente fundamental, que é o conhecimento científico produzido na academia, na Embrapa e nos institutos de pesquisa.

É da combinação dessas duas vertentes, a sabedoria popular e o conhecimento científico, que você vai introduzir e propagar a agroecologia. Para que a agroecologia seja utilizada de forma massiva e não como agora, que infelizmente poucas famílias conseguem adotar, não porque não queiram, mas porque não sabem, é preciso difundir e utilizar a agroecologia de forma ampla em todo o Brasil e em todos os biomas. Precisamos enfrentar alguns desafios, e é esse o diálogo que o MST e a Via Campesina têm feito com os pesquisadores, nossos aliados das universidades, e agora até com a Universidade da Agricultura da China.

O primeiro desafio é que precisamos controlar a produção de sementes. Quem não controla a semente será refém de alguma empresa. A empresa que controla a venda de semente de milho híbrido transgênico, vende 15 quilos por R$ 200 reais, com a taxa de lucro lá em cima. Esse mesmo milho poderia ser produzido pela própria agricultura familiar, e o agricultor poderia reservar a semente que vai utilizar. Para citar um exemplo, precisamos resolver o problema do fertilizante orgânico. As formas predatórias de agricultura vão exaurindo a fertilidade natural do solo, que contém milhares de formas e nutrientes.

Em geral, as pessoas, influenciadas pela propaganda do agronegócio e dos agroquímicos, pensam que a fertilidade do solo se baseia apenas em NPK (nitrogênio, fósforo e potássio), mas isso não é certo. Agora, qual é o problema que enfrentamos? Como produzir um solo fértil? Alimentando com fertilizantes orgânicos, que ativam os micro-organismos e a vida no solo. No Brasil, não há quem venda ou forneça fertilizantes orgânicos em grande escala. O agricultor tenta fazer isso em sua unidade, usando esterco de animal e compostagem, mas isso é em pequena escala.

Por exemplo, nós, no Rio Grande, temos seis mil hectares de arroz orgânico que precisam ser alimentados com fertilizantes orgânicos. Alimentar seis mil hectares a cada safra exige uma produção em grande escala. Aqui entra a experiência da China. Durante nossas viagens para lá, onde temos uma brigada de militantes morando em Pequim e Xangai para interagir com a agricultura chinesa, descobrimos que eles desenvolveram a produção de fertilizantes orgânicos a partir dos resíduos das cidades, com restos da alimentação das famílias, restaurantes, podas de árvores, sobras das feiras e mercados. Eles juntam essa matéria orgânica, inserem bactérias que ativam o processo de dar nova vida a essa matéria, e em sete dias têm a produção de fertilizante orgânico.

Esse processo, que chamamos de biorreator, envolve colocar toda essa matéria orgânica num cilindro grande como se fosse um silo, injetar as bactérias, e as bactérias trabalham dia e noite para produzir o fertilizante. O que estamos fazendo agora, e que reforçamos com a vinda da delegação chinesa à reunião do G20, é que queremos instalar unidades dessas fábricas aqui no Brasil para produzir os fertilizantes que a agroecologia adora. A terceira linha importante como desafio da agroecologia e do conhecimento científico são as máquinas agrícolas.

Você não vai conseguir produzir alimentos para todo mundo com enxadas, e ninguém mais quer trabalhar apenas com enxadas. Nenhum jovem camponês sonha em ganhar uma enxada no Dia de Natal; ele sonha em ganhar uma moto, um computador, algo moderno e nós também acreditamos nisso. Portanto, as máquinas são a única maneira de aumentar a produtividade do trabalho, pois com menos pessoas, você produz mais, e também aumenta a produtividade da área. Assim, em uma mesma área, você poderá produzir mais arroz, mais feijão, mais produtos variados, etc. De novo, no Brasil, temos cinco fábricas de máquinas agrícolas, todas multinacionais, como FiatJohn Deere e New Holland, etc. Todas elas só fazem apenas grandes máquinas para o agronegócio, porque o objetivo delas não é resolver os problemas dos agricultores, o objetivo deles é lucro.

Elas se concentram em fabricar máquinas grandes para alcançar uma escala e um lucro cada vez maiores. Então, vamos ser salvos novamente pelos chineses, porque na China, em vez de oito marcas, existem oito mil fábricas de máquinas agrícolas espalhadas por todo o território. Com a reforma agrária realizada entre 1949 e 1952, cada camponês possui apenas um hectare. Assim, a indústria de máquinas que eles implementaram nos últimos 30 anos, na reindustrialização do país, precisou desenvolver máquinas adequadas para apenas um hectare.

Isso resultou em uma grande variedade de máquinas. Nós queremos trazer essas máquinas para cá. Não será através de compras ou importações, mas sim realizando parcerias com nossas cooperativas e com os governos estaduais, estabelecendo fábricas de máquinas para os camponeses. Aqui no Brasil, já temos delineados pelo menos cinco locais onde vamos colocar essas fábricas.

As relações com a China

O processo de parceria com a China, que já vem de muito tempo, agora, com o governo Lula, acelerou as possibilidades. Mesmo durante o governo Bolsonaro, quando havia um boicote à China, começamos as conversações através do Consórcio Nordeste, já que todos os governadores da região eram progressistas. A parceria com o governo da China indicou, como contraponto, a Universidade da Agricultura da China, que é a maior universidade do mundo em agricultura e é responsável por pesquisas e protótipos de máquinas para a agricultura familiar.

Universidade da Agricultura da China convocou fábricas para nos fornecer 33 tipos diferentes de máquinas para testarmos. Essas máquinas chegaram em fevereiro deste ano, e, como o Consórcio Nordeste apadrinhou essa primeira parceria, foi nossa obrigação testá-las inicialmente no Nordeste. As máquinas foram desembarcadas lá e usadas em algumas áreas. Depois, as levamos para o Ceará e o Maranhão para serem testadas. Nos próximos dias, antes do final do ano, a universidade fez novos incentivos às fábricas na China, e esperamos a chegada de mais 55 máquinas para testar.

Estamos estabelecendo uma parceria com a Universidade Nacional de Brasília, e essas máquinas serão enviadas para Brasília para testarmos as condições específicas do Cerrado e daquela região do Centro-Oeste. Estamos todos na expectativa para ver que tipo de máquina vai chegar para nós testarmos. Estamos instalando, nesta semana, um sistema de controle das máquinas por satélite. Então, lá dentro da universidade, vai ter um grande computador com painéis, e em cada máquina vai ter, como se fosse, um chip. Por meio deste chip, serão enviadas mensagens via satélite, que chegarão aos computadores lá da universidade, permitindo que possamos controlar o gasto de combustível, quantas horas a máquina trabalha, qual é o seu desempenho e quantos dias choveu na região onde ela está.

Uma joint venture para máquinas agrícolas

O modelo é montar uma nova empresa aqui no Brasil, uma joint venture, onde já dissemos para os chineses que eles poderiam entrar com até 49%. O 51% seria brasileiro, para que a empresa seja nacional. Assim, o 51% brasileiro será uma mescla entre uma cooperativa nossa e uma empresa brasileira que deseja ser sócia, entendeu? E vamos buscar financiamento no BNDES e fundos que possam se interessar. Há alguns dias nos reunimos com a diretoria da empresa Tupi, que é de propriedade da Previ, dos bancários. Eles são os maiores acionistas, portanto, a Tupi virou uma empresa social.

Ela é a maior produtora de motores aqui no Brasil. Os diretores da Tupi se interessaram bastante, pois poderiam entrar como sócios na fábrica e produzir os motores aqui, ao invés de importar motores da China, nós temos capacidade tecnológica de fazer os motores aqui. Outro exemplo é o projeto da fábrica de pequenos tratores em Maricá, onde a prefeitura também vai entrar como sócia, garantindo que os empregos sejam dos moradores de Maricá, o que gerará uma multiplicação de renda no município.

O formato é mais ou menos esse, e estamos exatamente nessa etapa de negociar com as empresas chinesas. 90% delas são estatais, e estamos avaliando quais delas se interessam. E, em dois anos, poderemos, então, estabelecer uma joint venture com eles para fabricar os equipamentos aqui no Brasil. Especificamente, estamos falando do biorreator, que é como uma grande panela de pressão onde você coloca os resíduos orgânicos e as bactérias para funcionar.

As famílias assentadas

Infelizmente, a reforma agrária está parada. Nos 40 anos de luta, conquistamos terra para 450 mil famílias, o que representa em torno de 8 a 9 milhões de hectares, dando uma média de 20 hectares por família. É importante ressaltar que, nessas áreas, na totalidade de 8 milhões de hectares, existem os 30% de reserva legal, o que significa que nem tudo pode ser cultivado. Na sociedade brasileira, ainda há cerca de 3 milhões de famílias sem-terra, que trabalham como assalariados rurais, como meeiros e arrendatários, e que desejariam ter seu próprio espaço. O que falta é a capacidade do MST, dos sindicatos e da Cpt de ajudar a organizar esses 3 milhões de pessoas para que ocupem a terra. Se não ocuparem, nenhum governo do mundo se mexe.

No período de Jair Bolsonaro, que ficou para trás, e nos últimos seis anos, incluindo o período de Michel Temer, acumulamos um passivo de famílias que estavam acampadas, e os governos não resolveram essa situação. Esta semana, o INCRA finalizou o cadastro de todos os acampamentos, e atualmente há cerca de 90 mil famílias acampadas no Brasil. Uma parte delas está vinculada ao MST, mas também há muitas famílias ligadas a outros movimentos menores, à CONTAG e aos sindicatos de trabalhadores rurais.

No Mato Grosso do Sul, inclusive, existe um movimento ligado à CUT Rural, que se autodenomina assim, e está acampado na região. Então, temos um passivo, e essa é a nossa luta com o Ministério do Desenvolvimento Agrário agora. Não se pode falar de reforma agrária sem resolver a situação dessas famílias que, somando 2 anos de Temer e 4 anos de Bolsonaro, totalizam 6 anos, e agora já se vão mais 2 de Lula. Isso significa 8 anos acampados esperando.

A maioria dessas famílias está lutando para sobreviver. Algumas conseguem plantar na área ocupada, ainda que de forma ilegal. Outras estão acampadas à beira da estrada, onde conseguem arranjar trabalhos aqui e acolá. Além disso, alguns assentados cedem áreas para que eles trabalhem, mas essa é uma situação completamente insustentável. Não adianta qualquer ação se não resolver os problemas dos acampados, e já dissemos isso ao Lula. Como diria o saudoso José Gomes da Silva, o maior especialista em reforma agrária, que completaria 100 anos este ano, e deu uma entrevista histórica para a revista Teoria e Debate, aqueles que tiverem curiosidade, leiam na Teoria e Debate.

Ele era um homem fantástico, um agrônomo de primeira, tinha uma área aqui em Pirassununga que acho que era de 700 hectares, cultivada de maneira exemplar, e era um defensor da reforma agrária como forma de superação da pobreza. Ele tinha uma expressão sobre a reforma agrária que é genial, quase como uma veia no estilo de Carlito Maia. Ele dizia o seguinte: a reforma agrária é igual à feijoada. Você pode ter toucinho, orelha de porco, o que quiser colocar na panela. Mas, se não tiver feijão, nunca será feijoada.

Na reforma agrária é a mesma coisa; você pode ter um monte de medidas complementares, mas se não tiver terra, não será reforma agrária. Então, essa é a lição: leia a entrevista do José Gomes da Silva que você vai aprender um pouco sobre o que é reforma agrária. Sem desapropriação e sem resolver o problema dos acampados, não se pode falar a respeito da reforma agrária.

Os golpistas

Dessas mentes insanas dos golpistas eu não duvido de nada. Lembremos que ele foi expulso do exército em função do seu comportamento insano. Tenho a biografia auto-entrevistada, pasmem, do general Ernesto Geisel, que foi dada a um historiador da Fundação Getúlio Vargas com uma condição: só publique o livro depois que eu morrer. Assim como tenho a autobiografia daquele outro general que se comportou muito mal durante o governo Lula e depois apoiou Jair Bolsonaro, que nem vou citar, mas ele está lá numa cadeira de rodas.

Quando o general Ernesto Geisel foi perguntado sobre sua opinião a respeito do deputado capitão Jair Bolsonaro, ele disse: “Eu não vou dar pitaco, porque essa pessoa é um desequilibrado mentalmente.” E foi por isso que ele foi expulso do nosso glorioso exército. São pessoas insanas que adotaram como ideologia, cujo responsável é Olavo de Carvalho, o fascismo. O fascismo ao qual me refiro não é um movimento de massas como ocorreu no Japão e na Europa. Aqui, o fascismo se manifesta na ideologia. O fascismo, como ideologia, prega o ódio e a violência na prática política para se chegar ao poder. Assim, esses senhores, do ponto de vista ideológico, são fascistas. Por quê? Porque adotam o ódio e a violência para obter e exercer o poder.

A violência pode ser tentar destruir o seu inimigo. Nós, o povo de esquerda, moralmente, fomos alvo do que eles fizeram com a prisão de Lula. Sérgio Moro e a turma da Lava Jato são fascistas, porque usaram a violência para destruir um inimigo. A violência moral. Ah, ele é ladrão, então tem que ir preso. Mas nem era ladrão, nem devia ser preso. Essa é a natureza da violência, que não se limita a atirar. A violência também é desmoralizar publicamente, como fazem com as fake news e as redes sociais. Esse setor tem apoio de outros setores fascistas do mundo.

Refiro-me ao governo de Israel, que sempre apoiou com seus instrumentos. Agora, isso está comprovado, inclusive com a venda de equipamentos para a ABIN, daquele programa Pegasus, e cedendo computadores. Na primeira eleição, os computadores estavam em Taiwan. Na última eleição, circularam informações de que os computadores que apoiaram Jair Bolsonaro estavam em vários países, entre eles a Moldávia, porque a Moldávia não está no Tribunal Penal Internacional.

Assim, escolheram um país que estaria à revelia do sistema judicial mundial. Portanto, está comprovado que os computadores que ajudaram a criar as fake news e que dispararam 80 milhões de mentiras durante a campanha estavam instalados na Moldávia, que, nem sabemos exatamente onde fica, precisamos procurar no mapa para descobrir que parte do mundo é essa. Com uma ideologia fascista que prega o ódio, ou seja, a tensão social permanente, e promove a tensão política como método, pode-se esperar de tudo. Quem está disposto a matar o presidente da república, qualquer um abaixo dele pode ser alvo.

Mas, como eles não adotam a luta de classes nem a correlação de forças como método, é evidente que eles não se consideravam, e nem se consideram, como sujeitos a reações e reações de massa. Nós, do MST, se houvesse um golpe, iríamos reagir. E, certamente, outros setores da esquerda, do PT, do movimento popular e do movimento sindical também reagiram. Ou seja, nós não somos sapos para morrer quietos debaixo da pata do boi, como dizíamos em Lagoa Vermelha, minha terra no Rio Grande do Sul.

As redes sociais

A atuação do MST e a causa da reforma agrária nas redes sociais são geridas pelo nosso setor de comunicação social. Foram eles que receberam o convite para ir ao Flow. Eu nem sabia que existia, porque sou meio alienado nessas coisas, mas eles insistiram: “João Pedro, vá lá, o rapaz não é fascista e se compromete a se comportar republicanamente.” Assim, como decidiu o nosso setor, eu disciplinadamente me submeti e fui lá, claro, acompanhado pelos nossos jornalistas. Tive uma grande surpresa, pois as perguntas foram todas muito sensatas, fui tratado muito bem e, depois, ainda estava aquele clima pré-eleitoral.

Soube que, no total, já chegaram a 5,7 milhões de visualizações. Fiquei até muito grato, porque nenhum outro espaço, exceto no Jornal Nacional, poderia proporcionar tanto alcance. Talvez, quando fui à CPI, a TV Câmara também tenha acompanhado o tempo todo, e parece que isso também resultou em muitas visualizações.

Agora, de maneira geral, é assim que me comporto: eu não tenho uma política pessoal, a política é do MST, mas me somo às teses de que a esquerda precisa difundir suas ideias naquilo que, tradicionalmente, chamávamos de agitação e propaganda. Agitação e propaganda envolvem duas vontades políticas: agitar é denunciar o capitalismo, expor as mazelas e os problemas que o povo enfrenta. Já a propaganda é anunciar qual é a solução para esses problemas, ou seja, defender nosso programa, que no caso do MST é defender a reforma agrária popular, entre outras mudanças. Agora, como é que você faz agitação e propaganda?

A nossa teoria e prática é que não podemos nos limitar a um único veículo; devemos atuar em todas as frentes possíveis. Porém, a primeira delas, que consideramos a forma mais eficaz, é que a melhor maneira de fazer agitação e propaganda é através dos meios culturais, porque é preciso chegar ao coração das pessoas. Não se ganha as pessoas pela lógica racional de um argumento; conquista-se as pessoas pelo coração, pelo sentimento. E como você chega ao sentimento das pessoas? Você chega pela poesia, pela música, pelo teatro, por uma palavra de ordem, algo em que Carlito Maia era especialista.

A realidade das esquerdas

Nas últimas três décadas, estamos vivendo tempos de crise mundial. Há uma crise do capitalismo, que por sorte gera muitas contradições, entre elas a decadência do império estadunidense, a decadência do dólar e a emergência dos BRICS, que é muito importante. Assim, há uma crise do capitalismo e suas consequências. Há também uma crise das esquerdas em geral, porque no fundo, os movimentos de esquerda são originários do período do capitalismo industrial, que tinha a fábrica, o sindicato e o partido operário. Esse mundo do capitalismo industrial ruiu.

Agora, emergiu, e é hegemônico, o capital financeiro, rentista, as grandes multinacionais e o agronegócio. Isso exige uma renovação das esquerdas, pois há uma nova base social que precisa ser construída e que exige novos métodos. Entre esses novos métodos, defendemos sempre a criação de novas articulações internacionais. As articulações que existiam no período anterior, onde partidos só falam com partidos e sindicatos só falam com sindicatos, estão superadas. Precisamos criar grandes articulações internacionais da classe trabalhadora sob a égide de uma unidade, o anti-imperialismo.

O imperialismo está levando a um risco de verdade, inclusive o risco de uma guerra atômica. O imperialismo está provocando genocídio em Gaza, genocídio na Síria, genocídio no Sudão, e não podemos ficar calados. Então nossa unidade mundial deve ser a derrota do império estadunidense. Refiro-me a isso porque nós, do MST e da Via Campesina, fomos contundentes na defesa do governo Maduro e da Venezuela. Por quê? Porque quem é hoje anti-imperialista na América Latina? Poucos governos e poucos países, entre eles, claro, Cuba, que é anti-imperialista há 60 anos, e a Venezuela. Portanto, todos que forem anti-imperialistas, devemos nos somar a eles. Queremos novos espaços de articulação internacional sob a bandeira do anti-imperialismo estadunidense.

 

Sucessão

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Estamos nas portas do ano de 2025, neste ano que termina, percebemos grandes desafios e inúmeras oportunidades, uma economia que cresce mais de 3% ao anos, trazendo boas perspectivas para o próximo ano, mas acredito que alguns setores não estão satisfeitos com a condução da política econômica, afinal, nos últimos meses o câmbio desvalorizou de forma acelerada, com impactos sobre os preços internos e levou o Banco Central a aumentar as taxas de juros em 1% percentual, saindo de 11,25% para 12, 25%.

Lendo a mídia comercial, percebemos em uníssono, uma fala recorrente de que estamos em crise econômica, com graves desequilíbrios fiscais e as perspectivas no próximo ano devem ser de redução do crescimento da economia e, para melhorar o cenário, seria necessário um forte ajuste fiscal.

No discurso dos representantes do mercado, percebemos que a economia passa por uma grave crise econômica, mas qual crise se estamos crescendo quase 4% ao ano, com desemprego em queda, redução da pobreza, aumento do investimento e capacidade industrial em ascensão ….??

Sabemos que o governo federal vem passando por grandes dificuldades, um governo de coalizão, onde o poder legislativo está cobrando mais atenção e mais recursos para seus grupos políticos e seus interesses econômicos, algo natural neste modelo de democracia construída internamente. Embora faça parte da democracia, o poder legislativo ganhou muito poder no governo anterior, com empenhos elevados, emendas PIX e grandes somas de recursos, gerando distorções e dificultando na construção das políticas públicas.

Todos os especialistas e economistas ortodoxos falam da necessidade de cortarmos gastos públicos para evitar uma bancarrota fiscal, mas precisamos destacar: onde será cortado os recursos do governo nacional?

No governo anterior os recursos eram retirados do andar de baixo, contingenciando as políticas públicas, diminuindo os repasses de programas públicos e garantindo como mantra recursos para os financistas, para as isenções fiscais e monetárias e para os empréstimos subsidiados, que contribuíram para aumentar os benefícios do andar de cima.

Neste ambiente, embora o ambiente esteja turbulento, destacamos um problema que começa a crescer de forma acelerada, um Presidente da República com 79 anos e com histórico de várias intervenções cirúrgicas, podendo criar ruídos e gerar graves constrangimentos nos próximos anos, principalmente em 2026, momento de uma nova eleição presidencial.

Esta semana, percebemos inúmeras postagens de setores da oposição se alegrando com as cirurgias do Presidente Lula, aguardando a vacância do cargo presidencial, um verdadeiro absurdo!

Os grupos de direita ou de extrema-direita tem vários nomes para representar seus grupos políticos, governadores, senadores e um ex-presidente, mas na contemporaneidade nenhum deles tem envergadura para ganhar a eleição nas próximas eleições presidenciais, mas como as mudanças mudam todos os momentos, quem sabe novos atores apareçam nos horizontes.

A esquerda, ou algo parecido com a esquerda, precisa repensar as estratégias nas próximas eleições e sua forte dependência da imagem do atual presidente, afinal, o que vai acontecer se os chamados progressistas tiveram que encarar estas escolhas em 2026, quem será o candidato da sucessão do presidente Lula, vale a reflexão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia.

 

 

 

 

Lendo, estudando e indagando

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A sociedade mundial vem passando por severas transformações, todas as bases da sociedade global vêm passando por grandes modificações, gerando graves constrangimentos emocionais e afetivos, alterando comportamentos, impulsionando confrontos variados, medos e ressentimentos.

A sociedade contemporânea, descrita por muitos especialistas, como um mundo centrado no conhecimento e nas informações, onde os dados e as imagens estão transformando a sociedade, anteriormente as informações demoravam dias para chegar nas nossas residências e na contemporaneidade, estas informações chegam instantaneamente, criando novos modelos de negócios, setores tradicionais estão sendo transformados no cotidiano e novos negócios estão surgindo, crescendo e se consolidando, exigindo dos seres humanos uma maior atualização, uma busca crescente por qualificações e novas formas de conhecimento.

A Doutrina dos Espíritos, desde os primórdios do século XIX, nasce centrada no estudo sistemático, na busca crescente do conhecimento e na capacidade de compreender as lições do nosso Mestre Jesus, seus ensinamentos, suas reflexões e suas vivências como forma de compreender as leis que regem a sociedade mundial, lembrando-nos, que Jesus é o grande governador do planeta, espírito altamente desenvolvido e dotado de poderes, para todos nós, inimagináveis na atualidade.

O Espírita precisa se pronunciar e se posicionar sobre os grandes desafios da sociedade global, compreendendo os caminhos pelas quais a comunidade está sendo pavimentada, mostrando a importância da educação libertadora da ignorância que perpassa a sociedade global, levando informações referente as questões políticas que influenciam a todos os indivíduos na vivência e convivência sociais e mostrando a importância da preservação da natureza e dos recursos naturais, participando ativamente das discussões contemporâneas, afinal, precisamos relembrar que o mundo, o planeta Terra é palco da nossa encarnação e, posteriormente, estaremos novamente encarnado no planeta, o conhecimento da reencarnação é imprescindível para que os seres humanos compreendam a relevância de preservarmos a natureza, o meio ambiente, os rios, os mares e toda a riqueza concedida por Deus para o nosso progresso espiritual.

Neste momento de grandes descobertas, somos impulsionados ao estudo e a reflexão crítica, para compreendermos os caminhos que estamos trilhando nesta caminhada no mundo material, uma sociedade altamente tecnológica, dotada de grande desenvolvimento das técnicas, das pesquisas científicas, das ciências materiais e, ao mesmo tempo, distante dos valores morais mais sólidos e consistentes, onde os valores do capitalismo contemporâneo estão presentes nos corações dos indivíduos, nos valores da acumulação, no individualismo e no imediatismo, onde colhemos, enquanto sociedade, os frutos dos valores que cultivamos e reproduzimos no cotidiano.

Nesta sociedade, percebemos que a vida passa com grande rapidez, com alterações constantes sobre tempo e espaço, as mudanças tecnológicas nos aproximam e, ao mesmo tempo, nos afastam, nos distanciam e nos tornamos mais frios e imediatistas, deixando de lado, planejamentos e estratégias de vivência e de sobrevivência, sempre fundamentais para compreendermos os desafios dos indivíduos e da comunidade.

A Doutrina Espírita tem um papel imprescindível nesta nova sociedade, nos traz elementos para a compreensão dos grandes ideários da vida, os desafios como seres humanos e, principalmente, para compreendermos que todos somos seres imortais, entendermos que a morte não existe, embora saibamos que esse ensinamento nos parece difícil e altamente complexo para grande parte da comunidade. A compreensão da imortalidade, fundamental na Doutrina Espírita, nos colocam no centro das escolhas cotidianas e nos auxilia para compreendermos que não mais podemos terceirizar as nossas escolhas sociais, econômicas e políticas.

Lembremos ainda, que a Doutrina Espírita, há tempos nos alerta sobre a existência da transição planetária, um momento único que denota as grandes transformações do planeta Terra, onde o mundo vem passando por grandes transformações vibracionais, espírito renitentes na maldade não mais retornariam na Terra, espíritos despreparados para essa transição não mais reencarnariam na Terra, sendo degradados para outras comunidades planetárias e a Terra caminharia para ser um planeta de regeneração.

As vivências na casa espírita nos trazem elementos para compreendermos a imortalidade da vida, que somos seres humanos imortais, nossa realidade cotidiana está diretamente ligada às milhares de vidas que vivemos no mundo material, nossas trajetórias de vidas pregressas, experiências variadas e comportamentos diferenciados nas inúmeras vivências como espírito imortal.

A Doutrina Espírita nos traz elementos para compreendermos as leis que regem a vida, a reencarnação, os esquecimentos cotidianos, a importância do amor, da fé, da caridade e da solidariedade como instrumentos que dão ao ser humano, uma bagagem mais consistente para seu progresso espiritual.

Nestas experiências, o espiritismo nos traz instrumentos para compreendermos que não existem vítimas e algozes, na verdade somos todos, ao mesmo tempo, vítimas e algozes de nossas escolhas e de nossas atitudes, nas variadas existências terrestres cometemos inúmeros erros e equívocos, mas ao mesmo tempo, tivemos acertos e crescimentos variados.

Quantas vezes nos deparamos com situações degradantes nas sessões de desobsessão, quando recebemos irmãos desencarnados, muito sofredores e que se comprazem com o mal e a degradação de seus “algozes”, se colocando como vítimas desta situação. Espíritos que se alegram com a devastação da vida de seus desafetos e, não percebem ou não querem perceber, que esse prazer imediato passa rapidamente, ainda mais, quando os espíritos superiores nos mostram as raízes desta situação, acreditando serem “vítimas” na atualidade, mas anteriormente, eram grandes “algozes”, que se esqueceram de sua trajetória de desequilíbrios, de insensatez e de degradações que os levaram aos infortúnios dos dias atuais.

Nestas situações, a Doutrina dos Espíritos nos mostra que somos todos responsáveis pelas nossas desditas, todos somos responsáveis pelas nossas escolhas, pelos caminhos e pelos comportamentos cotidianos, nos esquecendo de nossas trajetórias e de nossas vivências em vidas anteriores.

Muitas pessoas no dizem que não lembramos de nossas escolhas e não sabemos perfeitamente de nossas trajetórias, neste momento, a doutrina dos espíritos nos mostra, claramente, que tudo está inscrito em nosso interior, no nosso íntimo e nas nossas intimidades, mas não queremos adentrar nossos sentimentos e nossas inclinações, para muitos indivíduos nos colocariam no centro dos nossos problemas e não mais terceirizar seus desequilíbrios mais íntimos.

O Espiritismo nos traz elementos interessantíssimos para a compreensão das realidades da vida, muitos começam estudar a doutrina dos espíritos e querem buscar explicações, mas não conseguem se deparar com as descobertas e buscam outras denominações religiosas ou abandonam a caminhada, mas não querem encarar, posteriormente, que é imprescindível retomar a caminhada abortada.

Recentemente, tivemos a oportunidade de assistir uma palestra espírita deveras interessante de um escritor de renome, Adeilson Salles, autor de mais de 100 livros, muitos deles para crianças e adolescentes. Nesta palestra, o autor destaca que, na sociedade contemporânea, encontramos mais ou menos 5% das pessoas que estudam, refletem e buscam conhecimento, uns 10% acham que sabem e uns 85% vivem alienados, não buscam conhecimento e vivem por viver, terceirizando seus problemas e se esquecendo que todos somos responsáveis pelas nossas escolhas cotidianas.

A Doutrina Espírita nos traz elementos para compreender conceitos que perpassam várias ciências, filosofia, sociologia, economia, antropologia, educação, pedagogia, psicologia, psicanálise, física, biologia, história….entre outras, desta forma, os espíritas precisam estudar, perguntar, indagar e refletirmos todos os momentos. A doutrina espírita nos traz instrumentos para fazermos escolhas mais sólidas e consistentes, nos trazendo uma bagagem ética e moral para compreender as dificuldades dos seres humanos e os desafios da comunidade.

A literatura espírita nos traz inúmeros instrumentos para a reflexão das nossas dificuldades, são livros e artigos, além das palestras com temática da doutrina, que nos auxiliam na compreensão dos problemas que nos envolvem, afinal, todos temos dificuldades, estamos encarnados num mundo marcado por provas e expiações, onde as dores acometem a todos os seres humanos, neste momento, precisamos compreender as raízes de nossas dificuldades e de nossos equívocos, para rever comportamentos e alterar atitudes.

Aos espíritas, precisamos ter efetivamente, a companhia efetiva dos livros, como nos disse Monteiro Lobato “Um país se faz de homens e livros”. Ao acompanhar os livros, precisamos nos aproximarmos dos conhecimentos que eles podem nos dar, indagar e refletir sobre as situações que vivenciamos no cotidiano, usar os conhecimentos da doutrina codificada por Allan Kardec para aproveitar a atual encarnação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

 

 

 

 

 

Reduzir a pobreza no Brasil não afeta a desigualdade, por Laura Muller Machado

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Para afetar a desigualdade, é necessário mudar a alta concentração de riqueza entre poucos

Laura Muller Machado, Mestre em Economia Aplicada pela USP, é professora do Insper e foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo

Folha de São Paulo – 14/12/2024

O dicionário diz que pobreza é falta, em especial, falta daquilo  é necessário à subsistência. Pobreza significa pouco, carência. Desigual, também segundo o dicionário, significa um estado de coisas que não são iguais entre si, é uma comparação.

Muitas são as memórias de fatias de bolos divididas desigualmente entre irmãos na infância. Enquanto pobreza é uma forma de se referir à escassez de algo, a desigualdade é uma forma de se referir à comparação de algo entre pessoas. Pobre é quem tem um pedaço pequeno do bolo, desigualdade é a comparação dos tamanhos dos pedaços entre as pessoas.

Internacionalmente falando, o bolo brasileiro está muito mal distribuído. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano 2021/2022, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil é um dos países de renda mais desigual do mundo: ocupa o 14º lugar e divide a posição com o Congo.

No entanto, quando se trata de países mais pobres, o Brasil não está listado pelo Banco Mundial entre as situações mais graves e que serão foco dos fundos internacionais de pobreza nos próximos anos. Não somos destaque internacional em pobreza, somos em desigualdade.

Essa realidade novamente apareceu na Síntese de Indicadores Sociais de 2023 do IBGE: a pobreza foi a menor já registrada na nossa história e a desigualdade ficou estagnada. Qual é a característica do Brasil que nos coloca nesta situação? De acordo com o World Development Indicators, os 20% mais pobres do Brasil detêm 4% da renda total do país, enquanto os 20% mais ricos detém 57%.

A anatomia da desigualdade do país é de alta concentração de renda entre os mais ricos. Portanto, mudanças na alocação de renda entre os mais pobres não reverberam facilmente na desigualdade brasileira por conta da altíssima concentração nos super-ricos. Isso quer dizer que a redução de pobreza irá afetar pouco ou nada a desigualdade, como ficou claro nos dados do IBGE de 2023.

Para afetar a desigualdade, é necessário mudar a alta concentração de riqueza entre poucos. Quais são as implicações para a política pública?

Primeiro, as estratégias de combate à pobreza e à desigualdade para o Brasil precisam ser absolutamente diferentes. Todo o esforço de combate à fome e pobreza de renda terão impacto pequeno sobre a desigualdade pois ela decorre da grande concentração nos mais ricos. Apesar de frustrante, é importante lembrar que existe uma vantagem. Considerando que os ricos geram arrecadação e não demandam política pública e os mais vulneráveis precisam de política social, ter ricos é bom. No cenário de ausência de ricos que geram arrecadação, a situação ficaria ainda mais complicada.

Segundo, considerando que o governo brasileiro arrecadou de fato, com mais ou menos justiça tributária, R$ 11 trilhões em 2023, um enorme bolo, nos falta gastar com qualidade em prol dos mais vulneráveis o que já temos. Há recurso suficiente não para reduzir como em 2023, mas para zerar a pobreza.

Não nos falta volume, nos falta gastar bem, nos falta qualidade do gasto. Por fim, apesar de ser uma vantagem, não existe combate à desigualdade sem repensar a tributação dos mais ricos no Brasil. No entanto, seria justo ter imediatamente uma qualidade de gasto mais adequada, arrecadar mais para gastar de maneira ineficiente não é o que queremos.

 

Por que o Senado quer baratear armas? por Thiago Amparo

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Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo -14/12/2024

Resultado serão mais pobres mortos, mais mulheres violentadas e mais criminosos com acesso facilitado

Para o Senado, a prioridade absoluta no país nesta semana foi fazer com que armas e munições fiquem mais baratos para quem as compras e, consequentemente, para os criminosos para quem são desviadas. Excluídas do Imposto Seletivo na reforma tributária, passarão a usufruir de uma carga tributária reduzida.

Não é porque o governo Bolsonaro tenha acabado que o lobby armamentista terminou, pelo contrário: parlamentares pró-armas continuam acumulando vitórias, diante da apatia da gestão Lula.

A pressão pró-armas é uma pauta sectária: 72% da população discorda que a sociedade seria mais segura se as pessoas andassem armadas, segundo Datafolha de 2022; e pesquisa de 2023 revelou que expressivos 48% discordam total ou parcialmente com o direito a ter armas. A proposta do Senado revela parte da classe política mais preocupada em baratear armas que custam vários salários-mínimos do que pensar se os brasileiros vão comer todos os dias. A Câmara, nesta mesma semana, votou por anistiar armas ilegais.

Por que, afinal, o Congresso Nacional quer baratear e facilitar o acesso a armas? Ao baratear armas, o Senado quer que mais mulheres sejam executadas por seus parceiros (43% dos autores de feminicídio cometidos com armas de fogo em 2022 no Brasil eram próximos às vítimas). Ao baratear armas, o Senado quer ajudar criminosos a ter acesso mais fácil a armas e munições (o crime se abastece, em sua maioria, de artefatos comprados legalmente, mostram os dados de armas apreendidas).

Ao baratear armas, o Senado quer que mais crianças sejam mortas de forma violenta (arma de fogo foi usada em 3 de cada 10 das mortes de crianças no país entre 2021 e 2023). Ao baratear armas, o Senado quer que mais pessoas negras sejam mortas (8 a cada 10 homens mortos por arma são negros no país).

Fora da realidade paralela do WhatsApp bolsonarista financiado por interesses privados armamentistas, o resultado do barateamento de armas no mundo real é: mais pobres mortos, mais mulheres violentadas e mais criminosos com acesso a armas.

 

Mais trabalho e menos direitos, por Caique Oliveira de Carvalho

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 Caique Oliveira de Carvalho – A Terra é Redonda – 13/12/2024

O caminho que a direita brasileira pavimentou nos últimos anos foi o de um debate moralizador de pautas das minorias sociais vocalizadas pela esquerda

Quantas vezes já vimos, na altura dos trinta minutos do segundo tempo, aquelas estatísticas aterrorizantes afirmando 60, 70% de posse para aquele time moroso de toques horizontais? Em um jogo de poucas emoções e riscos, é ele quem parece ter o domínio do campo. Contudo, quando menos se espera… gol. Gol daquele que soube o caminho certo e arriscou na hora correta. Pelo menos no futebol, sabemos disso: posse de bola não ganha jogo. Contudo, a tática política é distinta, e ao menos nela, ter a bola é fator de extrema relevância. Deixarei de lado a metáfora futebolística, à qual voltarei um pouco à frente, para desmembrar alguns elementos do atual estado de coisas que vivemos para cá dos trópicos.

O caminho que a direita brasileira pavimentou nos últimos anos foi o de um debate moralizador de pautas das minorias sociais vocalizadas pela esquerda. Ao absorvê-las, rearticulou-as de forma negativa, centralizando no outro – negro, indígena, gay, mulher etc. – os problemas nacionais. Já foi suficientemente discutido como esse modus operandi não se limita apenas ao Brasil, na medida em que é um movimento internacional cuja estratégia é o deslocamento de problemas estruturais de âmbito econômico, político e cultural para a esfera da moral. Os problemas passam, então, a ser discutidos através de pautas animadas pelo racismo, machismo e lgbtfobia: o desemprego é um problema do migrante ou do Bolsa Família; a corrupção, uma degeneração midiaticamente centralizada nos partidos de esquerda; a diversidade, uma imposição de normas comportamentais às crianças e jovens.

Quando Donald Trump brada uma América great again, sabemos perfeitamente do que se trata: é uma imaginação que estimula o desejo de reavivamento econômico e garantia de emprego, amalgamada a um país racialmente homogêneo e hierarquicamente estruturado em desigualdades de níveis diversos. Já o “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, que se repetiu como farsa na nossa história, promove um mesmo movimento.

O Brasil nunca foi grande como os Estados Unidos, mas “sempre foi brasileiro e cristão”, ao menos é isto que pensam os ideólogos da direita brasileira. Embora não tenhamos, neste país, um dilema migratório como as nações do centro do capitalismo, temos fricções históricas que rasuram a bandeira verde e amarela e parodiam o hino nacional, tornando-o peça cômica de um país inexistente. Falo de quilombolas e ribeirinhos, yanomamis e pataxós, negros e candomblecistas, dentre tantas outras formas de existência presentes à margem da nossa sociedade. Já o “Deus acima de todos”, não é preciso se alongar, dada a nitidez de sua falsidade.

Nesse panorama, as últimas eleições demonstram que há uma gradativa mobilidade da população – esmagada na atual estrutura social capitalista que exige mais trabalho e impõe menos direitos – às pautas e discursos neoliberais. Uma sociedade tensionada como essa precisa imaginar saídas, que têm sido dadas pela direita: o empreendedorismo articulado à moralização da política. Não à toa, Pablo Marçal repetia diversas vezes a “prosperidade” – termo vinculado às versões do neopentecostalismo – como finalidade da prática empreendedora.

Contudo, as rotas da direita não levam a classe trabalhadora a lugar algum, senão a uma rua sem saída, e eles sabem disso. A estratégia, no entanto, é bem tramada. O capitalismo neoliberal propõe a dinamitação da sociedade – lembremos da icônica fala de Margaret Thatcher, para quem havia apenas indivíduos e famílias – e, uma vez fragilizados os laços coletivos, ataca-se os direitos sociais conquistados.

O Estado neoliberal – distinto das bravatas ideológicas que o fantasiam com a máscara do mítico Estado mínimo – é grande, e sua atuação é mobilizada pela classe dominante para garantir a ordem social (intensificação das práticas de segurança e coerção) e a exploração do trabalho – reformas administrativas, da previdência, trabalhistas etc. – ao mesmo tempo em que funciona como impulsionador dos lucros da classe dominante, a partir da manutenção de taxas de juros exorbitantes e incentivos fiscais.

Uma vez alçada ao estresse com o aumento do desemprego e da violência, articula-se como saída milagrosa as pautas imediatistas já disseminadas no senso comum – principalmente pela grande mídia –, vocalizadas pelos políticos de direita: desemprego? Empreendedorismo. Violência? Pena de morte, prisão. O fato é que essas políticas tendem a gerar um ciclo de tensividade social, no qual os problemas que elas prometem resolver são, na verdade, intensificados.

Assim, cada volta do ciclo abre caminho para propostas mobilizadas pela direita, cada vez mais exorbitantes quanto ineficazes (Pablo Marçal falava, por exemplo, de mudanças de mentalidades para enfrentar problemas como a miséria e a fome). Nesse cenário, a esquerda é acuada, tendo que se defender das pautas neoliberais agressivas à população e das fake news, numa posição reativa próxima do time que tenta sair da linha alta de marcação do adversário.

A ruptura de uma noção cíclica, portanto, progressiva e regressivamente evolutiva, só pode se dar pela mobilização social. Somos nós os atores da nossa história já dizia Marx, e se eximir dela significa deixar-se levar por quem nela atua. É esse o sentido da provocação feita por Vladimir Safatle acerca da morte da esquerda. A pauta da escala 6×1, antes de contestar a tese, a confirma. A posição a que ficamos nos últimos anos, de responder às pautas da direita – seja às de destituição dos direitos sociais ou aquelas moralizadas –, fez retroagir não apenas a esquerda, mas a própria sociedade, que migrou cada vez mais para o campo da direita. A proposta do fim da escala 6×1 e da redução da carga horária semanal de trabalho irrompe, portanto, no cenário, como um momento de reencontro da esquerda com o povo.

Após as últimas eleições municipais, muito se falou da necessidade de a esquerda falar com os públicos hostis a ela, como a comunidade evangélica. Essa proposta inclui não apenas uma desmistificação das fake news perpetradas nos últimos anos (kit gay e fechamento de igrejas pelos governos Haddad e Lula), como uma aproximação no âmbito do discurso.

A discussão da 6×1 demonstra, contudo, que a estratégia a se seguir para solucionar o problema do diálogo não é a de uma performance evangelizadora por parte da esquerda, que passaria a incluir nos seus discursos termos como “prosperidade” e “bênção”. O fato é que, através dessa estratégia, continuaremos sendo sempre mais à esquerda, aos olhos do eleitorado, do que a direita, que há muito conjecturou à sua identidade política o neopentecostalismo.

Pior: as igrejas continuarão monopolizadas pelos grupos religiosos-empresariais que a comandam, transformando o púlpito eclesiástico em balcão de negócios e seus fiéis em potenciais consumidores. E mesmo que, em circunstâncias específicas – por exemplo, uma eleição acirrada e polarizada –, possa parecer eficiente a migração do discurso e da política à direita, isto só pode funcionar (e não é uma jogada segura) a curto prazo. No médio e longo prazo, significa, na verdade, um processo de intensificação da direita pela esquerda, que passa a reiterar seu glossário e política.

A pauta atual é unificadora porque, através do debate do trabalho, atinge a maior parte da população, significando ganhos reais que gays, negros, mulheres, mas também evangélicos e homens, se beneficiam. Aqui é o ponto em que retornamos à posse da bola; o momento é ímpar e instrutivo. A proposta protocolada pela deputada federal Erika Hilton obrigou a direita a jogar recuada, no seu campo, tendo que lidar com a pressão social.

O ponto nodal é que sabemos o quanto seus interesses classistas – ocultados nas pautas moralizadas que aprenderam a flamular aos quatro ventos – entram em conflito com o público que o elegeu. A pressão sobre o Nikolas Ferreira explicita, justamente, as incoerências da política de direita quando observada pelos de baixo. Tais inconsistências só podem ser abordadas se a esquerda atuar na promoção de pautas radicalizadas, pois tais propostas, ao mesmo tempo que significam a melhoria efetiva da vida da população, levam a direita a conflitar com seus eleitores, esmagadoramente pobres.

É isso que estamos presenciando: deputados de partidos como PT, PSOL, PCdoB, REDE e PV apoiam integralmente a proposta, seguidos do PSB e PDT, com índices positivos, respectivamente, de 92,8% e 83,3%. Algo que contrasta com o pífio apoio de partidos como União Brasil, MDB, PP e PL, com os respectivos apoios: 54,2%, 36,3%, 31,8% e 5,3%.[ii] Se verificarmos as bancadas temáticas, que são predominantemente de direita, como a evangélica, temos os seguintes dados: do total de 219 membros, 65 assinaram, perfazendo apenas 29,6% da bancada. Os números ficam ainda mais dramáticos se observarmos a frente parlamentar do agronegócio, em que, de 251, apenas 38 membros (15,1%) apoiaram a proposta até o momento.

Nesse cenário, a direita busca retomar a posse da bola, e, para isso, surgem no seu horizonte dois principais movimentos. O primeiro, para aqueles partidos e grupos que não assinaram o projeto, é a disseminação de mentiras e fake news. Por exemplo, parte das inverdades difundidas buscou apresentar a PEC como irresponsável e “não técnica”, como o corte de um vídeo da deputada Erika Hilton em entrevista à Globonews, dando a indicar que a proposta foi feita sem levar em conta estudos científicos.

Para além das mentiras acerca da PEC, há também as futurologias apocalípticas, cuja finalidade é espalhar medo e impedir que a população reconheça no projeto avanços sociais e trabalhistas dos quais precisa. Daí disseminam-se ideias como a de que, uma vez aprovada, aumentará a informalidade no mundo do trabalho e destruiria empregos.

Um segundo movimento é o sequestro da pauta, que pode acontecer através dos apoiadores e dos seus detratores. Dentre os detratores, há os que afirmam ser contra o fim da escala 6×1, como o deputado Kim Kataguiri, mas se negam a assinar e, portanto, a negociar os termos ou reescrever o projeto na votação da Câmara. O que o líder do MBL busca, na verdade, é cooptar a indignação popular para reforçar projetos contrários à classe trabalhadora, como, por exemplo, sua defesa pela implantação de um modelo de trabalho próximo ao dos Estados Unidos, buscando convencer sua base eleitoral de que o trabalhador teria escolhas e possibilidade de negociar com o patrão.

Já entre os deputados que assinaram e apoiaram o projeto, o sequestro pode vir a partir do seu rebaixamento, aceitando o fim da jornada 6×1, porém tensionando para manter a carga horária exploratória em vigência.

Para resguardar a posse da bola, a esquerda deve continuar pressionando e reafirmando a necessidade do fim da escala e da diminuição da carga horária de trabalho, como proposto na PEC, além de radicalizar em novas propostas que mobilizem e garantam direitos à sociedade, o que levará, cada vez mais, a direita ao atrito com parte dos seus eleitores expondo seus interesses classistas.

*Caique Oliveira de Carvalho é doutorando em ciências sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

 

A desordem do mundo, por Gilberto Lopes

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Gilberto Lopes – A Terra é Redonda – 06/12/2024

Com o aumento das tensões em praticamente todo o mundo, as despesas da OTAN atingiram no ano passado 1,34 trilhão de dólares, dos quais os Estados Unidos foram responsáveis por mais de dois terços

Guerras e dívidas

Com a dívida mundial aproximando-se dos 100 trilhões de dólares, o Fundo Monetário Internacional (FMI) recomenda aos governos que reduzam os déficits e constituam novas reservas para enfrentar a crise que se avizinha, provavelmente mais cedo do que pensamos, advertiu sua diretora, Kristalina Georgieva, no mês passado.

Os números deram o que pensar. David Dodwell, diretor executivo do Hong Kong-APEC Trade Policy Study Group, observou que em Washington se preocupam com o fato de que, pela primeira vez, o serviço da dívida ultrapassará o orçamento militar: 870 bilhões de dólares contra 822 bilhões. Com uma dívida de mais de 36 trilhões de dólares, os Estados Unidos pagam cerca de três bilhões de dólares por dia só em juros.

As consequências econômicas da guerra israelense em Gaza também são impressionantes: os danos em infraestrutura são estimados por instituições financeiras internacionais em 18,5 bilhões de dólares. A remoção de 37 milhões de toneladas de escombros pode levar 14 anos (ou mais), enquanto a restauração da economia levará sete décadas.

Em meio à tragédia humana, com mais de 40.000 mortos, a maioria de mulheres e crianças, a economia de Gaza se afundará 14% este ano em comparação com o ano passado. Nos territórios palestinos ocupados, a economia cairá 35%.

A outra guerra, na Ucrânia, fez com que as despesas militares do país aumentassem para 37% do Produto Interno Bruto (PIB) e 58% dos gastos governamentais. Na Rússia, essas despesas representam quase 6% e 16%, respectivamente.

Com o aumento das tensões em praticamente todo o mundo, as despesas da OTAN atingiram no ano passado 1,34 trilhão de dólares, dos quais os Estados Unidos foram responsáveis por mais de dois terços. De acordo com o Instituto Internacional de Investigação sobre a Paz de Estocolmo (SIPRI), elas representaram 55% dos gastos militares mundiais.

A desordem do mundo

Para ilustrar este mundo, talvez seja útil a ideia de Richard Haass, ex-presidente do Council on Foreign Relations – um prestigiado think tank norte-americano sobre política internacional – exposta em seu livro A world in disarray, publicado em 2017, que pode ser traduzido como “Um mundo desordenado”.

Richard Haass – que, entre outros cargos, foi diretor da equipe de planejamento político do secretário de estado Colin Powell, durante a primeira administração de George W. Bush – analisa a deterioração das relações entre os Estados Unidos e a então União Soviética, no final da Guerra Fria. As coisas complicaram-se desde o início, afirma ele.

Com os russos derrotados no Afeganistão – suas tropas abandonaram o país em fevereiro de 1989 –, os Estados Unidos contribuíram para “aumentar os problemas e humilhar” o país, diz Richard Haass. Mais importante ainda, acrescenta, foi a decisão de expandir a OTAN nos anos 90, durante a administração Clinton. Uma política que acabou sendo “uma das mais consistentes e controversas do período pós-Guerra Fria”.

As consequências de tal decisão têm sido analisadas de diferentes perspectivas. Se a OTAN deve continuar sendo um pacto militar e os Estados Unidos continuarem sendo um membro ativo, disse o notável diplomata norte-americano George Kennan, falecido em 2005, “espero que consigamos encontrar uma forma de não lhe dar a aparência de uma aliança orientada contra um país específico, mas sim como expressão de um interesse mais duradouro na segurança e prosperidade de todos os países europeus do que é atualmente”.

Não tem sido assim. A OTAN expandiu-se para leste em várias ondas, com um caráter cada vez mais ofensivo, dirigidas contra a Rússia, até que esse avanço ameaçou atingir suas fronteiras com a Ucrânia.

Um mundo unipolar

O presidente russo Vladimir Putin expressou repetidamente suas opiniões sobre as consequências desta decisão, que agora são bem conhecidas. Seu discurso na Conferência de Segurança de Munique, em 2007, é frequentemente citado. Naquele tempo, o presidente russo era convidado para a conferência. Hoje não é mais. Mas o retorno a esse discurso deve ajudar-nos a encontrar uma saída para o labirinto em que nos encontramos.

“O que está acontecendo hoje”, disse Vladimir Putin na altura, “é uma tentativa de introduzir o conceito de um mundo unipolar. Com que resultados? Com o abuso da força militar nas relações internacionais, com o desrespeito aos princípios básicos do direito internacional, com um Estado – os Estados Unidos – ultrapassando suas fronteiras nacionais, tentando impor um modelo econômico, político e cultural. Isto é extremamente perigoso. O resultado é que ninguém se sente seguro, avisou Vladimir Putin.

A expansão da OTAN para o leste não considerou a sugestão de Kennan, que foi embaixador na Rússia em 1952 (onde foi declarado “persona non grata” por Stalin). Os líderes políticos ocidentais em Washington ou na Europa também não deram ouvidos às advertências russas sobre os limites desses avanços, nem consideraram suas preocupações de segurança. Com o fim da Guerra Fria, não foi Moscou que avançou para oeste, mas o Ocidente que levou suas tropas para as fronteiras da Rússia. Com que objetivo?

Olga Khvostunova, do Programa Eurásia do Foreign Policy Research Institute, por exemplo, referiu-se às “linhas vermelhas” estabelecidas pelo Kremlin, cuja violação implicaria uma retaliação massiva, incluindo um ataque nuclear. Analisou-as em termos menores. Olga Khvostunova estimou – num artigo publicado em setembro passado na Foreign Policy – que, à medida que a guerra avançava, várias “linhas vermelhas” foram ultrapassadas “sem repercussões significativas”.

Na perspectiva dela, parece que nem a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022 nem a utilização do novo míssil balístico hipersônico contra um complexo industrial na cidade de Dnepropetrovsk, na sequência da utilização pela Ucrânia de mísseis ocidentais para atacar o território russo, devem ser vistas como uma resposta aos novos avanços ocidentais no cenário da guerra.

Os analistas do Institute for the Study of War (ISW) – uma instituição alinhada com os interesses ocidentais – acreditam que Vladimir Putin está tentando inflar artificialmente as expectativas sobre suas capacidades militares, destacando as caraterísticas de seu novo míssil. Eles acreditam que a arma é apenas uma adaptação do míssil Kedr, que a Rússia vinha desenvolvendo desde 2018-2019, e não representa um novo recurso militar.

A balcanização da Europa

Esta não é a opinião de líderes como o primeiro-ministro polonês Donald Tusk, uma das vozes antirrussas mais agressivas da Europa, para quem “a ameaça de um conflito global é realmente séria e real”. Ou a chanceler alemã, que fala de uma “escalada terrível”.

Um artigo do diário espanhol El País de 22 de novembro – “A OTAN convoca uma reunião urgente com as autoridades de Kiev após o lançamento de um míssil russo de nova geração” –, explica os acontecimentos como uma escalada russa.

Os russos têm uma visão diferente. Afirmam que os mísseis estadunidenses, ingleses e franceses, que a Ucrânia começou a utilizar para atacar seu território, não podem ser utilizados sem a participação de militares ocidentais. “Os próprios ucranianos não podem fazer isso”, disse o porta-voz oficial do Kremlin, Dmitry Peskov. A utilização do novo míssil de alcance intermediário “não é uma escalada, mas uma resposta à escalada provocada pelo Ocidente”, afirmou.

Em 1 de dezembro, a Europa voltou-se um pouco mais para a direita, na opinião da jornalista Ella Joyner, da agência alemã DW. Nesse dia, assumiu uma nova Comissão Europeia, mais uma vez chefiada pela democrata-cristã alemã Ursula von der Leyen, com a ex-primeira-ministra da Estônia Kaja Kallas responsável pela política externa e o ex-primeiro-ministro da Lituânia Andrius Kubilius responsável pela defesa, ambos particularmente agressivos contra a Rússia.

Em sua apresentação diante do Parlamento Europeu – que também se inclinou mais para a direita nas últimas eleições –, Kaja Kallas reiterou a importância da vitória da Ucrânia e apelou para sanções contra a China – que considera um “rival sistêmico” – por seu apoio à Rússia. “A China deve pagar por suas relações com a Rússia”, afirmou.

Com pouco menos de 1,4 milhão de habitantes, cerca de 20% da população da Estônia está em risco de pobreza, de acordo com as estatísticas oficiais. O Produto Interno Bruto (PIB) registrou uma queda de 3% no ano passado. O país entrou em recessão em 2024 e as previsões são de um crescimento fraco nos próximos anos, devido a uma série de fatores, incluindo a perda contínua de insumos baratos da Rússia.

Em outra pasta fundamental da nova Comissão Europeia, a da Defesa, criada especificamente para esta ocasião, o lituano Andrius Kubilius também caracteriza-se por sua posição particularmente agressiva em relação à Rússia, que descreve como um Estado patrocinador do terrorismo. É a favor da apreensão das centenas de bilhões de dólares russos congelados na Europa, uma medida controversa, que os outros países europeus encaram com mais cautela.

Num sinal do clima antirrusso que prevalece nos países bálticos, a estatal Rádio e Televisão da Lituânia (LRT) demitiu o jornalista Aigis Ramanauskas em meados de novembro. Aigis Ramanauskas tinha sugerido matar os que assistissem a filmes russos ou ouvissem música russa no país. Na opinião dele, era essencial manter as crianças afastadas dessas pessoas. Em resposta às reações, explicou: “É isto o que eu quero dizer aos nossos falantes de russo: Não, caros concidadãos, eu não incitei a morte de vocês. Não se tratava de vocês, embora seja evidente que odeio sinceramente o que conhecemos como ‘mundo russo’”.

Com a política externa europeia nas mãos de representantes do leste europeu; com a Inglaterra em franca decadência, fora da União Europeia; com a França e a Alemanha submersas em crise política e econômica, e uma inevitável terceiro-mundialização da Europa, com uma extrema direita controlando o Parlamento e a Comissão, com uma visão cada vez mais provinciana da política externa, a Europa é, mais uma vez, uma ameaça renovada para o mundo.

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

 

Mundo Incerto, quente e violento

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Vivemos numa sociedade marcada por grandes transformações estruturais que geram preocupações crescentes, medos e ressentimentos generalizados, levando os seres humanos a acumularem rancores e sentimentos preocupantes, impulsionando mágoas e violências crescentes, aversão aos estrangeiros e aos imigrantes, com estímulos para o incremento de protecionismos econômicos e polarizações políticas.

O crescimento do mundo digital, o desenvolvimento das tecnologias, as transformações no mundo das comunicações e o domínio das redes sociais criaram novos espaços de violências crescentes e degradações, as pessoas perderam seus sentimentos de empatia e de solidariedade, os indivíduos perseguem as curtidas nas redes sociais com publicações cada vez mais bizarras e deprimentes, deixando claro que a sociedade global vive dominada por patologias destrutivas e deprimentes, espalhando violências, conflitos militares, disseminando mentiras e destruindo reputações e estimulando preconceitos, racismos e intolerâncias.

Neste ambiente, percebemos uma degradação crescente do meio ambiente, transformações climáticas em todas as áreas e regiões do globo, com impactos generalizados para todos os setores econômicos e produtivos, impactando sobre empregos, investimentos e a produtividade da economia, neste cenário assustador, percebemos indivíduos e setores inteiros rechaçando relatórios de pesquisadores sérios que mostram as transformações perversas em curso  na natureza e no meio ambiente, defendendo visões negacionistas, investindo em pesquisas falsas e enganosas, defendendo setores produtivos altamente poluentes, que degradam a natureza e destroem uma riqueza comum da humanidade.

Vivemos num ambiente marcado por fortes protecionismos econômicos e comerciais, nações que anteriormente defendiam a liberalização comercial e propagandeavam as vantagens da abertura econômica e da concorrência, onde os mais fortes e empreendedores dominariam a sociedade global, perpetuando seus valores, suas crenças e sua capacidade de inovação. Essas crenças ocidentais vêm perdendo espaço na comunidade internacional, os países mais ricos perderam força no comércio internacional e passaram a defender políticas protecionistas mais escancaradas, sobretaxando produtos estrangeiros, limitando a entrada de imigrantes, aumentando as barreiras comerciais, impondo a venda do controle acionário de empresas estrangeiras inovadoras como forma de proteger seus setores econômicos e produtivos.

Neste cenário, percebemos o incremento de conflitos militares em variadas regiões do mundo, levando as nações a aumentarem seus investimentos em defesa, transferindo recursos preciosos que deveriam ser utilizados para melhorar as condições de vida de suas populações para a compra de armas, aquisição de aviões e caças militares, tecnologias bélicas, radares, drones, treinamentos e novas estratégias de guerra.

Neste ambiente de grandes transformações, percebemos uma sociedade cada vez mais violenta, com alterações e agitações climáticas, um ambiente mais quente, chuvas cada vez mais destrutivas e degradantes, uma comunidade marcada por instabilidades econômicas e produtivas, gerando medos, preocupações e desesperanças, angústias crescentes e medo do desemprego, renda em declínio, famílias desorganizadas e empresas assustadas pelo crescimento da competição econômica, que anteriormente era local e agora a concorrência é mundial, aumentando as incertezas, os estresses, as ansiedades e as depressões.

Neste cenário de instabilidades econômicas, de violências crescentes e clima descontrolado, será que não está na hora de refletirmos sobre as causas estruturais destes infortúnios globais que levam pessoas diferentes, com culturas variadas e comportamentos diferentes a viverem ou sobreviverem com privações parecidas? Será que não está na hora de refletirmos sobre o modelo econômico dominante….

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário.

Os grandes abutres do século XXI, por Sérgio Ferrari

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Um olhar sobre a indústria global de armamentos. Em 2023, faturamento chegou a US$ 632 bi — mais do que o necessário para erradicar a fome no mundo. Cinco maiores empresas, são norte-americanas. E a OTAN prepara-se para encomendar muito mais…

Sérgio Ferrari – OUTRAS PALAVRAS – 11/12/2024

Com uns vinte conflitos militares devastadores em todo o mundo, como o entre Rússia-Ucrânia ou o entre Israel-Palestina e Líbano, para citar os dois mais midiatizados, a questão-chave é: quem realmente se beneficia com a guerra?

Acima das especificidades, benefícios e repercussões geopolíticas de qualquer confronto militar, a grande indústria de guerra do mundo continua a ser a principal beneficiária. As receitas obtidas, em 2023, com a venda de armas e serviços militares das 100 maiores empresas do setor aumentaram em média 4,2% em relação a 2022, atingindo 632 bilhões de dólares – um valor muito superior ao que seria necessário para erradicar a fome no mundo. Três em cada quatro dessas empresas ampliaram suas receitas, uma recuperação significativa após o declínio médio que experimentaram em 2022.

Esse aumento foi registado tendencialmente em todo o mundo, embora tenha contabilizado números particularmente suculentos às empresas da Rússia e do Oriente Médio, como foi revelado, na primeira semana de dezembro, pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Stockholm International Peace Research Institute – SIPRI). Essa entidade internacional independente, com sede na capital sueca, dedica-se à pesquisa sobre conflitos, armamentos, controle de armas e desarmamento. Fundado em 1966, o SIPRI desde então fornece dados com base em informações públicas, análises e recomendações e continua sendo uma fonte de referência sobre o tema da guerra e da paz.

De acordo com Lorenzo Scarazzato, pesquisador do Programa de Gasto Militar e Produção de Armas do SIPRI, “2023 registrou um aumento significativo nas receitas de armas, e, provavelmente, essa tendência continuará em 2024”. Ainda assim, Scarazzato ressalta que essas “receitas das 100 maiores empresas de armas ainda não refletem totalmente a magnitude [real] da demanda, e muitas empresas iniciaram campanhas de contratação, sugerindo que estão otimistas sobre suas vendas futuras”.

Guerras mediatizadas e conflitos “ignorados”

O Relatório Alerta 2024!, publicado pela Escola de Cultura de Pau (Escola de Cultura da Paz), em Barcelona, contabilizou dezessete conflitos armados de alta intensidade em todo o mundo em 2023 (de um total de trinta e seis situações de conflito). Estes são definidos por seus altos níveis de letalidade (mais de mil mortes por ano), graves impactos na população, deslocamentos forçados maciços e graves consequências no território.

Essa organização, dedicada a analisar os confrontos bélicos, os direitos humanos e a construção da paz, bem como os conflitos Rússia-Ucrânia e Israel-Palestina, identifica confrontos militares de alta intensidade na Etiópia (em Amhara e em Oromia), em Mali, região do Lago de Chade (Boko Haram), no Sahel Ocidental, República Democrática do Congo (região oriental, com dois picos principais), na Somália, no Sudão, no Sudão do Sul, em Mianmar, no Paquistão, no Iraque, na Síria e no Iêmen. Em 2023, em quase metade dos casos registou-se um agravamento da situação. A grande maioria dessas trinta e seis situações de conflito está concentrada na África (18), na Ásia e no Pacífico (9).

Com nome e sobrenome

Quarenta e uma das 100 maiores empresas de produção e comercialização de armamentos estão localizadas nos Estados Unidos e, em 2023, declararam receitas de 317 bilhões de dólares, 2,5% a mais que em 2022. Desde 2018, as cinco empresas no topo do ranking mundial elaborado pelo SIPRI estão sediadas nesse país: Lockheed Martin, RTX, Northrop Grumman, Boeing e General Dynamics.

De acordo com o Instituto, a indústria europeia de armamento está “atrasada”. As receitas de armas das vinte e sete empresas sediadas no Velho Mundo (excluindo a Rússia) tiveram um faturamento de 133 bilhões de dólares em 2023, o que representa um aumento de apenas 0,2% em relação a 2022, o menor do mundo. A BAE Systems da Grã-Bretanha (sexta em importância); a transeuropeia Airbus (12), a francesa Thales (16), a inglesa Rolls-Royce (22) e a alemã Rheinmetall (26) estão entre as trinta primeiras. Mas Scarazzato argumenta que esse crescimento relativamente baixo não se deve à menor demanda, mas porque “os sistemas de armas complexos têm prazos de produção mais longos… [e, consequentemente] as empresas que os produzem reagem mais lentamente às mudanças na demanda”.

No entanto, vários produtores europeus registraram crescimento substancial em suas receitas, especialmente para munições, artilharia e sistemas de defesa aérea e terrestre, impulsionado pela demanda ligada à guerra Rússia-Ucrânia. Empresas da Alemanha, da Suécia, da Ucrânia, da Polônia, da Noruega e da República Tcheca, em particular, aproveitaram essa demanda. Por exemplo, a Rheinmetall, da Alemanha, aumentou sua capacidade de produção de munição de 155 milímetros e de seus tanques Leopard. Grande parte desses ganhos se deve a transações por meio de programas de intercâmbio circular, sob os quais os países que fornecem equipamentos militares à Ucrânia podem receber equipamentos de reposição de seus aliados.

O outro lado da moeda da guerra no Leste Europeu: as duas empresas russas incluídas no ranking das 100 maiores, a Rostec, empresa estatal que controla vários produtores de armas, em sétimo lugar, e a United Shipbuilding, no 41º lugar, aumentaram suas receitas em 40%, chegando a 25,5 bilhões de dólares. A maioria dos analistas, de acordo com o relatório do SIPRI, concorda que a produção russa de novos armamentos militares aumentou substancialmente em 2023, enquanto o arsenal existente passou por uma extensa renovação e modernização. Especificamente, mais caças, helicópteros, drones, tanques, munições e mísseis.

Os produtores de armas no Oriente Médio também experimentaram um crescimento de receita ligado aos conflitos em Gaza e na Ucrânia. Seis das empresas do ranking das cem mais importantes estão localizadas naquela região. Sua receita combinada cresceu 18%, para US$ 19,6 bilhões. Desde o início da guerra em Gaza, as três empresas israelenses no ranking ganharam US$ 13,6 bilhões, um recorde histórico para elas. Por sua vez, as três grandes empresas da Turquia registraram um aumento de 24%, crescimento impulsionado pelas exportações para a guerra na Ucrânia, bem como a determinação do governo turco em alcançar sua própria autossuficiência em armamentos.

Quando se trata da Ásia, as quatro empresas sediadas na Coreia do Sul (e que entram no ranking das 100 mais importantes) aumentaram suas receitas combinadas em 39%. Enquanto isso, as cinco principais empresas sediadas no Japão cresceram 35%. A NCSIST, única empresa taiwanesa no ranking, faturou 27% a mais que no ano anterior. As três empresas indianas no ranking aumentaram 5,8%. Quanto à China, as nove empresas que fazem parte do top 100 cresceram apenas 0,7%, seu menor aumento percentual anual desde 2019, devido à atual desaceleração econômica daquele país

As vítimas

Várias organizações internacionais estimam que até 2030 quase 600 milhões de pessoas ainda sofrerão com a fome em todo o planeta. Um estudo de novembro realizado por duas agências da ONU estima que acabar com a fome até essa data custaria cerca de US$ 540 bilhões. Ou seja, muito menos do que as receitas auferidas em 2023 pelas cem empresas mais importantes do setor de produção e comercialização de armas.

Uma grande parte das vítimas da fome vive em regiões dominadas por conflitos armados cruéis: da Palestina ao Sudão, passando pela República Democrática do Congo e Mali. Um relatório de outubro da Organização Não-Governamental Oxfam argumenta que a fome causada por conflitos armados ceifa até 21 mil vidas por dia em todo o mundo. Esse documento, intitulado Food Wars (Guerras Alimentares), analisou 54 países afetados por conflitos armados e constatou que eles concentram quase todas as 281 milhões de pessoas que atualmente sofrem de fome aguda. Da mesma forma, essa realidade de guerra tem sido uma das principais causas de deslocamento forçado, com um número recorde mundial de mais de 117 milhões de pessoas atualmente.

Armas matam. Somente em 2023, foram mais de 160 mil vítimas diretas em zonas de guerra. Além disso, as guerras causam fome e miséria extrema, que adicionam suas próprias cifras trágicas ao obituário global. Apesar desse drama, a corrida armamentista não para. E os benefícios disso são distribuídos, essencialmente, entre uma centena de grandes empresas de países que incentivam ou participam dessa fúria bélica: as grandes beneficiárias dos tiroteios planetários.

 

O tamanho do corte, por Otaviano Helene

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Otaviano Helene – A Terra é Redonda – 12/12/2024

O corte promovido na educação pelo governo paulista é a garantia do atraso futuro, de regressão para o setor e para o desenvolvimento do estado

O governo paulista promoveu uma mudança na Constituição Estadual que reduz as despesas mínimas com manutenção e desenvolvimento do ensino de 30% para 25% da receita de impostos e transferências, um corte de quase 17% nos valores destinados ao setor. Isso corresponde a mais do que R$ 10 bilhões a cada ano (valor, evidentemente, crescente com o tempo, seja por causa da inflação, seja por causa do crescimento econômico). O que isso significa para a educação básica e as universidades?

O investimento mensal por aluno da rede estadual de educação básica, correspondente à remuneração de professores e demais trabalhadores e todas as demais despesas de investimento e custeio, é inferior a R$ 700 por mês. Se fossem excluídas as despesas da Secretaria da Educação não diretamente voltadas aos estudantes da rede estadual, os valores seriam ainda menores. Se as condições de trabalho e estudo nas escolas estaduais não são ainda mais limitadas é graças à eficiência do setor público: o mesmo investimento por estudante feito por meio de instituições privadas jamais conseguiria o mesmo resultado.

Um critério adequado para comparar aqueles R$ 700 por mês com o investimento em diversos países e termos uma ideia de quanto estamos longe de uma situação aceitável, é usar o PIB per capita como referência. Tal critério permite relativizar os valores considerando tanto a capacidade econômica de países, pobres ou ricos, como os custos locais. A comparação com o PIB per capita indica o esforço que cada país dedica à escolarização de suas crianças e seus jovens hoje e de sua população adulta no futuro.

Usando esse critério como regra, vemos que países pobres ou ricos que mantêm bons sistemas escolares investem cerca de 25% ou mais de suas rendas per capita por estudante. Aqueles menos do que R$ 700 por mês correspondem a cerca de 15% da renda per capita estadual paulista. Ou seja, para se aproximar de uma situação mais adequada seria necessário aumentar tais investimentos. É impossível construir um bom sistema educacional com tão parcos recursos; é por isso que não o temos.

Ainda não foi definido como a redução ocorrerá, havendo algumas pontas soltas que devem ser completadas por propostas orçamentárias ou legislação complementar. Entretanto, caso a redução ocorra em todos os segmentos educacionais nas mesmas proporções de seus orçamentos atuais, o Estado de São Paulo passará a investir por aluno a cada ano alguma coisa perto de 12% ou 13% do seu PIB per capita. Caso as universidades sejam poupadas desse corte e ele caia exclusivamente na educação básica, o investimento por estudante será reduzido para valores inferiores a 10% da renda per capita ao ano.

Caso as universidades vejam seus recursos cortados em 17%, sofreremos uma combinação de fatores que incluem reduções salariais, redução do número de docentes e de funcionários técnico- administrativos, redução da pesquisa, redução do número de estudantes, sobrecarga de docentes e redução dos serviços prestados à sociedade (como manutenção de hospitais, museus, rádios, teatros, orquestras, editoras, cinemas e centros culturais, oferecimento de cursos e outras atividades de extensão, colaboração na produção de medicamentos etc.); 17% da USP corresponde, em números aproximados, a R$ 1,3 bilhão ao ano, perto de 900 docentes e cerca de 2 mil funcionários não docentes, mais do que 10 mil estudantes de graduação e pós-graduação, perto de 40 leitos hospitalares. É isso que o governador pretende cortar?

Qualquer que seja a forma como o corte será distribuído, teremos um processo de disputa entre os diversos segmentos do setor educacional e mesmo entre as universidades.

A justificativa encaminhada pelo governador à Assembleia Legislativa para o corte é estranha. Ela não argumenta, em nenhum local, que há espaços para redução dos investimentos em educação, pois, claro, não podia fazê-lo. A justificativa dada no encaminhamento da proposta de emenda à Constituição faz referência ao uso desses recursos cortados da educação no setor de saúde. Para tal, reconhece a falta de recursos para esse setor.

Esse tipo de raciocínio parece não ser muito bom do ponto de vista lógico: o reconhecimento de falta de recursos para um setor, saúde, ser usado como argumento para reduzir os recursos de outro setor também carente, a educação. Essa forma estranha de raciocínio foi aceita pela base legislativa do governador na Assembleia Legislativa.

Um bom sistema educacional é necessário para o desenvolvimento social e cultural e para o crescimento econômico. Um mau sistema educacional é suficiente para inviabilizar tal avanço. O que está sendo feito hoje no Estado de São Paulo é a garantia do atraso futuro.

*Otaviano Helene é professor sênior do Instituto de Física da USP.

 

O social sob ataque em nome do déficit zero, por Rosa Maria Marques

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Rosa Maria Marques – A Terra é Redonda – 11/12/2024

A economia brasileira registra excelentes resultados nos indicadores comumente utilizados para avaliar o desempenho econômico. O crescimento esperado do PIB para 2024 é de 3,5%; ao final de outubro, o nível do desemprego foi o segundo menor desde 2012 (6,4%); a renda média dos ocupados aumentou e o mesmo aconteceu com o investimento produtivo, embora este esteja muito aquém do desejável.

Ainda no rol dos indicadores positivos, a inflação está dentro da meta e a pobreza diminuiu significativamente. Lula sempre declarou que seu objetivo primeiro era o combate à pobreza. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população abaixo da linha de pobreza adotada pelo Banco Mundial (US$ 6,85 PPC por dia ou R$ 665 por mês) caiu de 31,6% (2022) para 27,4% (2023). Essa proporção foi a menor registrada desde 2012. Já a população em situação de extrema pobreza (US$ 2,15 PPC por dia ou R$ 209 por mês) recuou de 5,9% para 4,4%. Além desse percentual ser o menor desde 2012, é a primeira vez que ficou abaixo dos 5,0%.

Contrasta com esses indicadores, a taxa básica de juros (a taxa básica da economia e a taxa média de juros praticada nas operações compromissadas com títulos públicos federais) que está nas alturas (11,25%). Ao lado disso, o dólar ultrapassou, pela primeira vez, a barreira dos R$ 6,00 sem que as autoridades monetárias tomassem qualquer medida para conter a forte e rápida desvalorização da moeda nacional.

Tanto a taxa básica de juros como o câmbio são resultado da orientação do Banco Central (BC). Este, embora se diga independente, atua em concordância com as posições do chamado “mercado”, nome assumido pelas finanças. Para esse segmento – e por decorrência o Banco Central – tudo é motivo para aumentar a taxa de juros: se há pressão inflacionária, não importando se de oferta e não de demanda, cabe elevar os juros; se o PIB cresce alguma coisa acima do esperado pelo mercado, há que elevar os juros e, finalmente, é preciso aumentar os juros porque a dívida pública é elevada e o “mercado” considera que sua trajetória de expansão está mantida e mesmo aprofundada.

O imperativo do ajuste fiscal

O processo pelo qual o pensamento neoliberal passou a determinar a política fiscal e monetária no Brasil abarca décadas. Começou com a abertura da Bolsa ao capital estrangeiro, prosseguiu com a venda dos ativos públicos (as privatizações dos anos 1990), continuou com o estabelecimento de regras para a ampliação do gasto (somente possível com a definição de novos recursos) e pela proibição dos gastos correntes serem financiados com títulos públicos, e prosseguiu com a realização de reformas da aposentadoria tanto dos trabalhadores do setor privado como do público.

Essas primeiras medidas ocorreram particularmente durante o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), mas tanto Lula como Dilma Rousseff não as reverteram, mesmo que parcialmente, quando assumiram o governo. Ao contrário, no primeiro governo, Lula teve sucesso em aprovar mudança na aposentadoria, exatamente nos aspectos que FHC não tinha sido exitoso.

O segundo grande momento do avanço do neoliberalismo sobre a definição da política fiscal ocorreu em dezembro de 2016, no governo de Michel Temer, aquele que assumiu a presidência da República quando do impeachment de Dilma Rousseff. A partir desse momento, e inscrito na Constituição, o gasto público foi congelado por vinte anos. Ao contrário de outros países, o serviço da dívida pública não foi incluído nesse congelamento e os gastos sociais o foram.

Esse mecanismo ficou conhecido como “Teto do Gasto”. Teve como consequência desorganizar o aparelho do Estado e, entre os setores mais afetados, destacaram-se a Educação e a Saúde públicas. No âmbito da educação se congelaram os salários, não se realizaram concursos de ingresso, foram cortadas bolsas e deixadas à mingua a manutenção, afetando a limpeza, água e eletricidade. Na saúde, atividades de todos os tipos foram comprometidas, obstaculizando a realização de suas ações e serviços.

O ajuste fiscal no início do terceiro governo Lula

Em 2023, Lula aprovou um novo regime fiscal, o “Novo Arcabouço Fiscal”. A rigor, como se pode ver em seus parâmetros, houve flexibilização com relação ao Teto do Gasto, mas a primazia do seu controle foi mantida e aprofundada.

Parâmetros

  1. resultado primário
  2. definição da meta para 2023 e para os três anos seguintes (-0,5%; 0,0%; 0,5% e 1,0%, respectivamente).
    2. adoção de intervalos de tolerância nas metas, de modo que o resultado primário possa estar 0,25 pontos porcentuais do PIB acima ou abaixo da meta definida.
  3. evolução do gasto
  4. Crescimento do gasto real limitado a 70% da variação real dos recursos primários acumulados em 12 meses.
    2. Crescimento real do gasto primário limitado ao intervalo 0,6% a 2,5% anual, isto é, não pode crescer acima de 2,5% e não menos que 0,6%.
    3. Ficam excluídos dessas normas o Fundo Constitucional do Distrito Federal e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica.

III. Sansão no caso de descumprimento das normas

  1. O crescimento real dos gastos primários deverá se reduzir em 50% no ano seguinte.
    IV. Investimento Públicos
    2. Estabelecimento de um piso orçamentário, não necessariamente exigível.
    3. No caso de o resultado primário superar a meta, é permitida a utilização de parte dos recursos excedentes para investimentos.

Para tentar atingir o déficit zero previsto para 2024, o governo fez um restrito controle das despesas, adiando ao máximo inclusive aquelas de caráter social e dirigidas aos mais pobres. Ao final de novembro, finalmente, apresentou um conjunto de medidas com o objetivo de reduzir o gasto em R$ 70 bilhões nos próximos dois anos, com o objetivo de garantir as metas de resultados primários previstas no Arcabouço. Desse conjunto de propostas, destaco três que afetam diretamente a população mais pobre.

Mudança na política de valorização da salário mínimo

Em 2023 Lula retomou essa política, pois essa havia sido interrompida por Bolsonaro. Consistia em aumentar o salário mínimo considerando a inflação e o crescimento real do PIB dos dois últimos anos. Em seus primeiros governos, todos os estudos mostraram que essa política foi o principal instrumento para diminuir a desigualdade entre os ocupados e para aumentar a renda dos mais pobres (dado que a ele corresponde o piso dos benefícios sociais e que seu valor afeta positivamente a base da pirâmide salarial). A proposta é manter a regra do crescimento real pelo PIB, mas a variação estará dentro do marco fiscal, de um máximo de 2,5%.

Abono salarial

Hoje é pago anualmente aos trabalhadores do mercado formal que ganham até dois salários mínimos. A proposta é diminuir, ao longo do tempo, esse critério de acesso para 1,5 salário mínimo.

Benefício de Prestação Continuada

Pago a pessoas de 65 anos ou mais e a deficientes com renda per capita familiar igual ou inferior a 25% do salário mínimo. A proposta é incluir, no cálculo da renda per capita, a renda dos cônjuges e companheiros não conviventes e a renda dos irmãos, filhos e enteados conviventes (não só os solteiros).

Com essas e outras propostas, a adesão à ideia da primazia do déficit zero e de superávits se apresenta, agora, em outro nível, afetando diretamente políticas dirigidas aos mais pobres, e que haviam sido consideradas marca dos governos anteriores do PT. Em outras palavras, a adesão à tese da austeridade revela-se em sua totalidade.

A exigência do cumprimento das metas não poupa sequer as políticas sociais dos que mais necessitam. Uma escolha foi feita. E torna-se impossível se continuar dizendo que tudo isso decorre da desfavorável correlação de forças. Há coisas que não se propõe; há limites que não se transpõe.

*Rosa Maria Marques é professora do Departamento de Economia da PUC-SP. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP).

 

O pobre de direita, por Everaldo Fernandez

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 Everaldo Fernandez – A Terra é Redonda – 05/12/2024

Comentário sobre o livro recém lançado de Jessé Souza.

“Torcei, virai, mas eis a lei da vida: primeiro, o pão, depois, a moral” (Bertolt Brecht, Ópera dos três vinténs)

O pobre de direita é sem dúvida um fenômeno mundial, basta pensar no segundo mandato alcançado por Donald Trump. E, mais, não se trata somente da Argentina governada por Javier Milei ou do Brasil que elegeu Jair Bolsonaro.

O conceito ou noção de pobre de direita surge da suposição ou premissa segundo a qual o ideário conservador e individualista (da direita) não corresponde aos interesses materiais das camadas pobres ou empobrecidas. Posta assim, essa hipótese certamente não explica a ascensão de uma nova direita protofascista, ou ultraliberal, nesses tempos recentes.

Nos Estados Unidos há algum tempo estudos investigam por que as pessoas votariam contra seus interesses materiais. Uma hipótese bastante ventilada é que a modernização fez os valores das elites e estratos superiores mais cosmopolita e universalista, o que por sua vez teria afastado os eleitores da classe trabalhadora e engendrado uma contrarrevolução de valores.

Uma variante põe o foco no conflito moral ou cultural entre diferentes setores da elite. Este conflito entre as elites induziria uma polarização eleitoral e partidária que então se propaga e alcança o comportamento eleitoral entre os pobres. Parte desse esforço explicativo também considera o fato de na Europa a convergência entre os principais partidos políticos, em especial na Alemanha, produza um desencanto entre várias camadas da sociedade e a ascensão de uma direita abertamente racista e xenófoba,

No Brasil entre os esforços de análise veio à luz recentemente o trabalho produzido por Jessé Souza. Ele já é hoje um velho conhecido dos debates nacionais com suas várias obras sobre a ralé, as elites, e a classe média brasileira. Revelando sólida bagagem intelectual, o livro tem o mérito primeiro de ousar analisar um fenômeno a quente, enquanto ele acontece, e enquanto sua essência ainda não está totalmente constituída ou claramente perceptível.

No trabalho são configuradas e eleitas para reflexão, na medida em que tem papel emblemático, a figura do branco pobre e do negro evangélico. Historicamente ele situa o papel desses “personagens” no processo que levou Jair Bolsonaro ao poder em 2018 e o processo que se seguiu.

A análise desse assim chamado paradoxo do pobre de direita é então efetuada a partir de duas chaves interpretativas centrais: a rejeição do economicismo e a “culturalização” do racismo.

A rejeição do economicismo. Na contramão do liberalismo, e também de certos marxismos, a premissa abraçada é de que a racionalidade econômica não é o critério ou móvel central do comportamento em sociedade. O ganho econômico, afirma, não é o elemento determinante na sociedade moderna. Com propriedade ele descarta o utilitarismo, onde o único que importa é o cálculo linear entre perder e ganhar, ter maior ou menor vantagem, como se a noção qualitativa, de conteúdo, de ganho inexistisse. E isso porque a própria economia também não é um território pacificado.

Não existe a suposta neutralidade da economia, nem pode ela ser considerada a régua universal dos comportamentos sociais. É aqui que o texto nos brinda sua primeira premissa central: “o núcleo de qualquer produção e distribuição econômica é, […], uma questão e uma escolha moral.” Todo modelo econômico tem, então, embutida uma concepção de justiça, e um critério de distribuição da riqueza. Ou seja, por detrás da economia estão os valores e as escolhas morais.

A produção e repartição das riquezas, continua ele, está assentada em uma escolha moral. Chega-se então a uma das várias observações que não se conformam com o senso comum: “as pessoas pobres votaram em Jair Bolsonaro [por] causas morais, e não econômicas”.

Se se diz isto, nada mais é para imediatamente efetuar um segundo giro na compreensão: o conteúdo dessas motivações não-econômicas não são o conservadorismo moral e a pauta de costumes.

O conservadorismo seria então decorrência de algo mais profundo: o desprestígio e a humilhação cotidiana a que essas camadas são submetidas na sociedade brasileira. Dizer, portanto, que Jair Bolsonaro foi eleito porque os pobres são religiosos e conservadores é apontar mais um efeito do que uma causa, sem indagar a causa que leva os pobres a serem conservadores.

Para ganhar em compreensão a questão deveria ser formulada como segue: por que os pobres abraçam a religião e o conservadorismo?

Entra em cena então o segundo elemento do par de argumentos empregados na obra: o racismo brasileiro, e mais especificamente o racismo culturalizado do século XX. Esse racismo teria uma característica muito própria, sendo um racismo territorializado ou regionalizado, e opondo um branco europeu imigrante ao sul, e um negro e mestiço ao norte. Esse fenômeno é, na narrativa da obra, epitomizado na figura do branco pobre e do negro evangélico. Na parte empírica do trabalho essa caracterização é sustentada através da descrição e análise de 12 entrevistas realizadas com seis representantes de cada um desses agregados sociais.

Ao caracterizar o pobre recorre-se a uma estratégia aparentemente ambígua, entretanto. Embora inicialmente se rejeite a explicação do voto na direita a partir da pouca inteligência do pobre, logo em seguida se afirma que são eles quem “menos compreendem como o mundo social funciona”, ainda que vítimas primeiras do preconceito a serviço da opressão. O fato, assim, é que o pobre está submetido a uma situação de precariedade, que é não só material como também simbólica (e cognitiva).

Vencidas essas em nada desimportantes premissas teóricas o argumento seguinte é mobilizar os Estados Unidos como fator que serve para caracterizar a ordem mundial da atualidade, e também para afastar totalmente qualquer ilusão de que o Bolsonarismo seja uma jabuticaba, uma singularidade brasileira. Assim, diferente dos imperialismos conhecidos até então, o imperialismo americano combinaria de modo único hard e soft power. Essa produção de consentimento pela propaganda ganhou impulso inédito com o advento das big techs e dos novos gurus como Steve Bannon.

Entender a ascensão do extrema direita entre nós é o próximo desafio enfrentado. Parte-se da constatação que Jair Bolsonaro não criou, mas despertou um racismo pré-existente e adormecido na sociedade brasileira. O giro efetuado é compreensível na medida em que trata das modificações que a “instituição” do racismo no Brasil sofreu, em especial, no século passado. Uma dessas transformações centrais foi paulatinamente opor uma região sul européia a um norte mestiço, e por simetria e associação um polo civilizado, moderno, eficiente a um outro atrasado, impuro, mestiço e corrupto.

Essa culturalização do racismo opondo cultura do sul e cultura do norte é um processo que se opera gradativamente a partir da década de 1930 quando é reconstruído o imaginário do homem brasileiro, resultando no homem cordial e na nação do samba e futebol.

Há, ademais, dois capítulos específicos que analisam as figuras, tal como propostas pelo autor, do branco pobre do sul expandido e o negro evangélico. As entrevistas realizadas são material de leitura que se justificam por si só e não podem ser dispensadas.

Jessé Souza nos últimos anos tem brindado o Brasil com uma série de análises corajosas, inconformistas, marcadas por originalidade, que esboçam um retrato do Brasil neste século e sua estrutura social.

Há um aspecto que merece especial atenção nas abordagens elaboradas por ele, não só pela sua dimensão teórica, mas principalmente pelos desdobramentos políticos relativamente imediatos que pode ensejar.

As classes sociais, objeto central de suas indagações teóricas, seriam constituídas não a partir de determinantes econômicas, mas de determinantes morais, e subjetivas. Essa compreensão permitiria então explicar por que o pobre vota no rico, e – ainda mais surpreendentemente, porque alguns ricos votariam no pobre, ou na defesa dos interesses dos pobres.

Nessa concepção a autoestima e o reconhecimento social é que são a medida dessa determinante moral. De um só golpe se recusa a classificação das classes conforme a renda e tudo que isso tem de análogo com a economia como determinante das decisões individuais, como se adota paralelamente um critério de autoidentificação e consciência na conformação das classes sociais. O pobre que não quer ser humilhado teria encontrado essa valorização e dignificação na igreja, entre outros lugares.

Sua caracterização de classe parece bastante clara e simples para quem está usando a estrutura social como ponto de partida para entender a política e a história.

Os sujeitos são então os pobres, ou classes populares, a classe média, e por fim, a elite. Esses grupos são medidos como percentual da população. Se de um lado, a elite e a classe média são quantitativamente minoritárias, por outro, elas são material e simbolicamente hegemônicas.

Se a elite é material, economicamente, dominante, traço típico da classe média é o monopólio do conhecimento legítimo. Por exclusão, as classes populares são definidas por essa dupla carência, material e simbólica, falta-lhe não só dinheiro como também dignidade.

Manejando a noção de capital cultural o que constata é que esse capital (o conhecimento legítimo) no Brasil é historicamente controlado por uma classe média branca de origem europeia. A ideia de capital cultural que está longe de ser novidade apareceu para as ciências sociais na década de 1960 combinando elementos do estruturalismo marxista francês com noções da sociologia norte-americana. O fundamental nessa visão é que ao fim e ao cabo todas as classes são detentoras em maior ou menor de medida de algum capital, seja ele simbólico ou material, e as distinções entre as classes, por decorrência, são quantitativas.

A consequência é que o trabalho como elemento de análise em sua oposição intrínseca ao capital é escamoteado ou simplesmente perde relevância. A mesma condição secundária ou de pouca relevância também é reservada ao fenômeno da exploração. A dinâmica social é vista como uma luta por distribuição e apropriação de capital nas suas distintas formas.

Há, ainda, outro elemento nessa definição de classe. Derivada da legitima crítica a um reducionismo economicista, a noção de classe social é deslocada para o eixo das escolhas morais: “as pessoas têm como razão última de sua ação social a dimensão moral, ou seja, a luta por reconhecimento social que garante autoestima e autoconfiança para cada um de nós.” Uma vez que o reconhecimento pelo outro passa a determinar a conformação das classes e dos sujeitos sociais, abre-se a porta para um subjetivismo do discurso acarretador de graves consequências.

Quando se adota um critério homogeneizador, vale dizer, o capital material ou simbólico em suas várias formas, a consequência primeira é que o conflito, se não desaparece totalmente, deixa de ser elemento definidor e constitutivo das classes e das relações de classe, para ser um elemento secundário e eventual. De outro lado, o campo das decisões, da racionalidade é circunscrito a um ciclo autorreferente onde o reconhecimento social não tem substrato, mas mera reflexividade, reflexividade circular e vazia.

A combinação destes dois e únicos critérios, ou seja, a mobilização do capital simbólico contra a humilhação e a busca por reconhecimento, produz subjetivismo, o reino onde discurso impera.

Parece claro que a rejeição do economicismo não impõe nem autoriza que se ignore dimensão material e objetiva da vida em favor de um mundo guiado simplesmente pela busca de reconhecimento que conforma mentalidades. Sem a dimensão do trabalho, sem a perspectiva de como se produzem os objetos que se irão repartir e distribuir na sociedade despencamos no abismo do relativismo e do voluntarismo. A luta contra a exploração e opressão fica para trás e o lema do reconhecimento social assume o palco.

O desdobramento perceptível desse enfoque teórico é a caracterização da questão social brasileira como um desafio para superar mentalidades arcaicas estranhas a nosso tempo.

“Essa divisão (a divisão regional entre os brancos do Sul e de São Paulo e o resto do Brasil) já está na cabeça das pessoas, seja do algoz, seja da vítima. E ela é arcaica e recalcada: um mero disfarce para o atávico racismo “racial””. Emblematicamente essa é a frase que fecha o livro de Jessé Souza.

Então de certo modo o que se sugere é que a chaga que aflige o Brasil é o racismo, agora culturalizado e territorializado. Arcaico, portanto, obstáculo para a modernidade (ainda que injusta e capitalista), e instalado na cabeça das pessoas. Custa acreditar que a violência, a miséria, o preconceito, o machismo, o patrimonialismo, possam ser o resultado simplesmente do que está na cabeça das pessoas, produto de mentalidades.

As mentalidades não se conformam por si mesmas. Há uma política que se alimenta do ódio, mas o ódio não brota do nada. Ele é alimentado pela fome, pela brutalidade policial, pela violência contra a mulher, pelo trabalho precário. Nada nasce do nada. Como uma sombra o ódio acompanha um monstro.

Parece, entretanto, razoável supor que fosse a questão social um assunto essencialmente de mentalidades, boa vontade e inteligência seriam potencialmente capazes de resolvê-la. A persistência do capitalismo e sua natureza intrinsicamente injusta certamente se deve a fatores mais efetivos que simplesmente mentalidades. Ele se sustenta em condições materiais de carência e abuso. A precarização do trabalho, a escassez induzida, a fragmentação da vida social, a alienação, antes de ser uma percepção e uma compreensão é uma condição material intencional e sistematicamente reproduzida. E são essas condições materiais que devem ser modificadas.

Se não for assim estaremos repetidamente nos culpando porque nos falta eficiência na comunicação e uso eficaz das mídias sociais, ou, ainda, de modo mais genérico, continuaremos lamentando a falta de educação política, a falta de conscientização. Como esse modelo de análise centrado nas mentalidades abraçamos uma espécie de voluntarismo masoquista, como vítima que se pune pelos abusos do agressor. Esquece-se assim que fazer educa, que fatos falam, O racismo, a opressão, a exploração não são simplesmente discursos, percepções, consciência, que se determinem a si mesmos.

Porque quando há quase dois séculos se disse que a realidade determina a consciência, o propósito não era fazer crer que a consciência não fosse relevante, mas sim que ela não é independente da realidade. Então não nos serve falar em fim do racismo sem pôr um fim ao sistema policial que mais mata no mundo, vitimando majoritariamente negros e jovens. Não nos serve “pôr” na cabeça das pessoas que o Sus é ótimo quando elas têm que pagar preços exorbitantes por planos de saúde, ou que o ensino deve ser público quando a maioria tem que financiar seu curso universitário e se endividar.

Fatos falam. Se a esquerda não usa o poder para alterar a realidade material então não irá convencer. Se a esquerda não discute e enfrenta a causa e origem da opressão racista e sua relação funcional e intrínseca com a exploração capitalista continuaremos discutindo questões secundárias, e nos escondendo atrás de desculpas como “não utilizamos a tecnologia”, não nos comunicamos bem, não falamos a “linguagem do povo”.

*Everaldo Fernandez é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

 

Aperto monetário

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Ontem o Banco Central do Brasil (BCB) elevou as taxas de juros para a economia brasileira de 11,25% para 12, 25%, um crescimento de 1 ponto percentual, com impactos imediatos para a economia nacional, impactando os investimentos e a geração de emprego e de renda.

Segundo o Banco Central, o crescimento da taxa de juros brasileira está diretamente ligado aos riscos fiscais que estão crescendo de forma acelerada, levando a Autoridade Monetária a adotar políticas imediatas para evitar o estouro das metas inflacionárias.

Nas últimas semanas percebemos que os valores do dólar aumentaram substancialmente, gerando pressões sobre os preços internos e impactando sobre a inflação, movimentando as especulações e os ganhos dos agentes econômicos.

Importante destacar, que os movimentos cambiais estão ligados às movimentações do mercado norte-americano, perspectivas de elevação dos juros nos Estados Unidos que absorvem grande parte do dólar no mercado global e impacta sobre todas as regiões, internamente somos muito prejudicados em decorrência, segundo o “mercado”, dos desequilíbrios fiscais da sociedade brasileira.

Essa discussão está marcada por fortes politizações da economia brasileira, muitos grupos usam seus instrumentos econômicos e políticos para pressionar o governo para aumentar as taxas de juros, destacando que os riscos fiscais são elevados e o governo precisa rever suas estruturas de gasto, reduzindo seus empenhos e organizando as finanças públicas, sob pena de ver os juros futuros em amplo crescimento e inviabilizando a política econômica.

Para equilibrar o orçamento o governo precisa de uma força tarefa para controlar os gastos governamentais, um auxílio do Congresso Nacional e setores representativos da Justiça nacional, mas infelizmente, como o governo federal não dispõe de apoio necessário para organizar as contas e, os setores citados acima, usam seus poderes para prejudicar o controle das contas públicas, evitando a redução de seus gastos e chantageando o governo nacional, mantendo seus ganhos e aumentando-os sorrateiramente,  transferindo para o governo federal o ônus da piora das contas fiscais.

De outro lado, encontramos grupos de economistas e analistas, que acreditam que a situação é ruim para a economia nacional, com taxa de crescimento econômico interno baixa e postergando a recuperação dos setores produtivos, situação que permitiria o aumento da geração de emprego e a melhora substancial da renda agregada. Na situação atual, com taxas de juros mais elevadas, percebemos uma retração dos investimentos produtivos e postergando a recuperação da economia brasileira.

Estes grupos acreditam que o movimento do mercado tem o intuito fragilizar a política econômica e inviabilizar a melhora da economia nacional nos próximos anos do governo Lula, evitando uma reeleição ou, até mesmo, inviabilizando um candidato defendido pelo atual Presidente da República.

Quando falamos de corte de gastos estamos entrando numa seara espinhosa, o chamado mercado defende a redução dos dispêndios sociais, com cortes do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Abono salarial, as multas do FGTS, dentre outros dispêndios sociais. Nesta conta, o chamado mercado não coloca uma progressividade dos impostos, se esquece da tributação dos lucros e dividendos, uma excrescência que existem em apenas três nações do mundo, e servem para garantir os altos rendimentos do andar de cima.

Deixando de lado as discussões econômicas, as taxas elevadas tendem a reduzir os investimentos e esfriar a economia nacional no próximo ano, postergando novos investimentos internos e elevando os ganhos das aplicações financeiras, gerando ganhos substanciais para poucos grupos econômicos, os chamados rentistas ou os financistas.

As taxas de juros cobradas no Brasil se colocam entre as mais altas do mundo, algo ruim para a economia nacional, neste momento, somos detentores da maior taxa de juros do mundo, estimulando gastos substanciais do orçamento público em prol do rentismo, além de contribuírem negativamente para os indicadores degradantes que vivemos na sociedade brasileira, piora social e dificuldades crescentes de recursos das políticas públicas.

Num momento de recuperação econômica, onde os agentes econômicos que mantinham recursos em caixa estudavam aumentar os investimentos produtivos para aumentar a capacidade de suas empresas, com taxas de juros elevadas os empresários repensam suas estratégias de gestão, pois sabem que juros elevados geram incertezas na produção e leva os agentes a colocarem seus recursos econômicos e financeiros em títulos públicos, cujos retornos rendimentos são muito elevados e evitam perdas dos setores produtivos.

Destacamos ainda, que cada ponto percentual de aumento nas taxas de juros da Selic, definidas pelo Banco Central, correspondem a mais de 30/40 bilhões de reais de gastos do governo federal, recursos que pioram as contas governamentais e postergam a recuperação e o crescimento da economia nacional.

Mais uma vez, estamos vendo, o Brasil perdendo oportunidades históricas de alavancar o crescimento interno, com taxas de juros civilizadas, novas ondas de investimentos produtivas e perspectivas produtivas que culminariam no tão sonhado desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Ciências Econômicas, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre e Doutor em Sociologia.

Brutalidade policial pode pavimentar o caminho das milícias em SP, por Ricardo & Risso

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Exemplo vem do Rio de Janeiro, onde o descontrole das polícias faz parte de uma estratégia de lealdade da tropa para a manutenção do poder político

Carolina Ricardo, Diretora-executiva do Instituto Sou da Paz

Melina Risso, Diretora de pesquisa do Instituto Igarapé

Folha de São Paulo,11/12/2024.

A série de casos protagonizados por policiais militares de São Paulo que chocaram o país é resultado direto do modelo de gestão escolhido e implementado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Os cidadãos paulistas precisam entender que estão seguindo o caminho da segurança pública do Rio de Janeiro, onde uma polícia sem controle ajudou a criar as milícias, fortaleceu o crime organizado e sustenta um tipo de política.

A atual orientação, que incentiva a brutalidade, resultou no maior índice de letalidade da PM de São Paulo desde 2020: 580 pessoas mortas em nove meses, segundo a própria Secretaria da Segurança Pública —um aumento de 55% ante o mesmo período de 2023. Com o aumento, o índice se equiparou ao dos anos em que a PM paulista não contava com as câmeras acopladas no uniforme, instrumento valioso para profissionalização da segurança e que comprovadamente previne excessos cometidos por policiais.

Nada do que vimos nos últimos episódios pode ser considerado como “exceções”. Ao contrário: dizem muito sobre a escolha deliberada de uma cultura de valorização da violência policial. O desmonte da estrutura de promoção nas polícias paulistas; a troca sem explicação de 34 coronéis na cúpula da PM; a criação de uma nova ouvidoria, sem independência; a orientação por ações midiáticas; e a falta de apoio psicológico aos policiais são evidências do aceno feito para a banda podre da polícia que venderá seu apoio político em troca da instalação da lógica do vale-tudo.

Vale até mesmo jogar um suspeito de uma ponte durante uma abordagem policial de rotina ou matar uma criança de 4 anos durante uma operação policial. Quando se valoriza esse tipo de ação, quem sofre são os bons policiais que entraram na corporação para defender a sociedade, com índices crescentes de suicídio e de vitimização.

Foram muitos os indicativos de que a mudança de rumo era urgente e necessária. Ao reconhecer seu erro em relação às corporais, o governador Tarcísio precisará provar que a mudança de posição não é mero oportunismo e sim convicção. Sem uma decisão política de que é importante controlar o uso da força e profissionalizar as polícias com medidas de tolerância zero para desvios, pouco adiantará colocar uma câmera no policial.

Os bons resultados que São Paulo vinha obtendo eram fruto de um conjunto amplo de medidas, como o investimento em armas menos letais, a criação de comissões de mitigação de risco, apoio psicológico a policiais, treinamento sistemático e, não menos importante, o envolvimento da cúpula da Segurança Pública no programa e na difusão de uma cultura de contenção ao uso desproporcional da força.

No Rio, o descontrole das polícias faz parte de uma estratégia de lealdade da tropa para a manutenção do poder político, seja por meio do expressivo voto da família policial ou do controle territorial que garante o curral eleitoral.

A economia política da violência criada pela lógica do vale-tudo se misturou ao crime organizado e hoje opera em sintonia, beneficiando uma determinada classe política em detrimento da segurança da sociedade.

Criar esse mecanismo é relativamente fácil, começa pela desestruturação das instituições. Ainda não sabemos como reverter o processo sem decretar a morte eleitoral dos que ousam fazê-lo.

Com ações movidas sob o espírito da aniquilação e da atenção midiática, como assistimos nas operações Escudo e Verão, São Paulo tem escolhido o modelo da vingança e da falta de controle das polícias. É assim que começa. Fica aqui o nosso alerta.

 

Ajuste fiscal

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Neste momento de grandes transformações estruturais da sociedade brasileira, marcadas pelo incremento da concorrência, alterações no mundo do trabalho, polarizações políticas, degradações ambientais, aumento dos conflitos militares, crescimento do protecionismo e incertezas econômicas, os agentes econômicos exigem, corretamente, um equilíbrio fiscal das contas públicas, com a definição de regras fiscais claras e consistentes para que os agentes produtivos tenham confiança nos rumos da economia nacional, estimulando novos investimentos produtivos, com geração de emprego e movimentando o ciclo econômico, evitando que o crescimento da economia sejam sustentável e consistente, não apenas um breve voo de galinha.

Ajuste fiscal é um tema complexo em todas as nações do mundo, gerando constrangimentos e conflitos na comunidade, suas repercussões impactam sobre toda a sociedade, diante disso, os agentes econômicos, sociais e políticos se organizam para evitar perdas monetárias e financeiras, buscando justificar as isenções e garantindo apoio dos legisladores e dos governos nacionais, mantendo seus privilégios e transferindo o ônus do equilíbrio fiscal para outros grupos econômicos e sociais

Diante da necessidade de controle dos gastos públicos e equilíbrio dos recursos, precisamos destacar a estrutura dos gastos governamentais, analisando em detalhes as origens dos recursos públicos que entram no caixa dos governos e para onde vão estes recursos, dando transparência dos recursos públicos, estudando a necessidade e a importância das políticas públicas, investigando as isenções fiscais e tributárias e as chamadas desonerações.

Neste cenário de ajustes das contas públicos, encontramos um verdadeiro conflito distributivo entre todos os setores da economia, onde grupos mais fortes e dotados de grande poder monetário e força política se utilizam de seus instrumentos para perpetuar seus ganhos financeiros e exige que os governos retirem recursos dos setores mais fragilizados da comunidade, se “esquecendo” dos bilhões acumulados historicamente em isenções fiscais e tributárias, além dos privilégios auferidos pelo sistema tributário nacional que não tributa lucros e dividendos, garantindo ganhos substanciais e aumentando as distorções sociais e, infelizmente, tributa fortemente uma classe média assalariada, endividada e incapaz de estimular o crescimento da economia.

O ajuste fiscal deve ser visto como algo imprescindível para todas as nações do mundo, ainda mais num momento marcado por grandes desequilíbrios financeiros globais e o incremento da competição entre empresas e governos nacionais para atraírem mais investimentos produtivos e a geração de emprego e a sobrevivência de seus trabalhadores de forma mais digna e decente. O ajuste fiscal deve priorizar os grupos mais privilegiados na sociedade, forçando os setores a pagarem seu quinhão do equilíbrio fiscal, reduzindo os penduricalhos salariais que garantem ganhos substanciais e sem tributação adequada, reduzindo os bilhões de isenções fiscais e tributárias de empresas e setores que, sistematicamente, cobram dos governos um ajuste nas contas públicas e não abrem mão de suas isenções tributárias e seus ganhos fáceis garantidos pelas taxas de juros elevadas praticadas pela Autoridade Monetária. Discutir ajuste fiscal e taxa de juros são assuntos urgente e imprescindível mas, receio que nossa sociedade não esteja capacitada para entrar a fundo nesta discussão, como disse Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário.

O mito do desenvolvimento econômico – 50 anos depois, por Leda Paulani

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Introdução à nova edição do livro “O mito do desenvolvimento econômico”, de Celso Furtado

Leda Paulani – A Terra é Redonda – 03/12/2024

Se há um traço distintivo na obra de Celso Furtado é a ideia de que não havia restrições objetivas para que o Brasil se tornasse um país forte, soberano, senhor de seu destino, com economia e cultura próprias e com um lugar ao sol no comando dos rumos mundiais. Mas, nele, isso nunca foi reflexo de um imaginário nacional grandioso, mas vazio, que se escorava preguiçosamente na fantasia do “país do futuro”.

Ao contrário, sua percepção embasava-se na análise que fazia do processo socioeconômico que ocorria por aqui, análise fundamentada teoricamente, colocando sempre como pano de fundo a conexão da economia brasileira com o andamento da acumulação de capital em nível mundial. Celso Furtado era um economista político. Mas, mais que isso, era um militante, que nunca deixou de lutar para que essa esperança se objetivasse e foi nessa condição que ocupou importantes cargos em vários governos. Constituiu-se, por isso, num intérprete privilegiado das venturas e desventuras desta periferia.

Mas, para falar cinquenta anos depois deste pequeno grande livro chamado O mito do desenvolvimento econômico, quero trazer à baila uma questão um tanto rarefeita e, à primeira vista, distante, tanto do tema do livro como do propósito de escrever sobre ele meio século depois. Refiro-me à questão metodológica, ou metateórica, ou epistemológica, como queiram. Para mostrar em que medida este livro pode ser entendido como um esforço singular de interpretação, é preciso considerar não só que Celso Furtado era um economista político, e que teve possibilidades concretas, como homem de Estado, de apurar ainda mais suas análises.

É preciso levar em conta também o que significava para ele o processo de produção do conhecimento, sobretudo no campo das ciências sociais. O desvio não será muito grande, não só porque o próprio livro traz também um ensaio metodológico, o que indica a importância que Furtado conferia ao tema, como porque, dado seu objeto, a reflexão mesma em torno da questão metateórica nos trará rapidamente de volta ao mito do desenvolvimento econômico.

Apesar de haver muito dessa discussão em sua tríade autobiográfica, [1] valho-me aqui, para tanto, de uma entrevista que tive o privilégio de fazer com ele em 1997, e de onde se extraiu um depoimento que foi publicado na revista Economia Aplicada, [2] então do ipe-usp. [3] Naquela tarde, passada no Rio de Janeiro, em conversa com o grande economista, que impressionava por sua figura intensa e forte, mas igualmente serena, ouvi que ele tivera três ordens de influência: a do positivismo (ele tinha uma biblioteca positivista em casa, segundo informou), que lhe permitiu adotar uma sorte de “metafísica construtiva” que lhe trouxe confiança na ciência, a de Marx, através da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, que o projetou na história, e, por meio de Gilberto Freyre, a da sociologia americana, que o alertou para a importância da dimensão cultural e do relativismo que daí deriva.

Das três fontes de influência, disse que a primeira depois refutou, porque foi perdendo a confiança na ciência. O que permaneceu muito forte nele foi o “historicismo” de origem marxiana, ou seja, a percepção de que a história é o contexto que envolve tudo e que dá ao homem um marco de referência para pensar. Para ele, “quem não tem esse pensamento histórico, não vai muito longe. Isso é o que separa um pensador do economista moderno, que pretende ser um engenheiro social”. Na mesma linha, ele vai afirmar pouco mais à frente que “a economia vai se tornando uma ciência cada vez mais formal, que é exatamente a negação da ciência social”.

De toda forma, a combinação das três heranças resultou numa visão da produção do conhecimento sobre o mundo social que, além da inescapável consideração da história, associa ao necessário saber teórico e analítico também a imaginação. Para ele, a ciência se constrói, em grande parte, por aqueles que, confiantes em sua imaginação, são capazes de, empurrados pela intuição, ultrapassar determinados limites.

Para Celso Furtado, toda a teorização que se construiu, a partir da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), entre os anos 1950 e 1970, sobre a singularidade latino-americana foi resultado dessa postura: “Acredito que o passo a mais que nós demos na América Latina foi justamente este: imaginamos que éramos capazes de identificar os nossos problemas e de elaborar uma teoria para eles, ou seja, imaginamos que havia uma realidade latino-americana, uma realidade brasileira, e então o fundamental aí tinha que ser captado dessa realidade”. O mito do desenvolvimento econômico é igualmente resultado desse espírito.

Além da imaginação, há ainda outro elemento apontado por Celso Furtado como essencial. Segundo ele, é preciso ter compromisso com alguma coisa, ou seja, se o objeto cujo conhecimento se busca é a realidade social, o diletantismo não é suficiente para que a imagem de atividade nobre que a ciência carrega tenha efetividade: “A ciência social tem que responder às questões colocadas pela sociedade […], não podemos nos eximir de compromissos mais amplos, porque há muitas áreas que não merecem atenção da ciência, e são áreas vitais”. Assim, por mais que haja consciência dos limites ao desenvolvimento do conhecimento que lhe são intrínsecos, ou seja, criados pela própria sociedade, é preciso insistir na produção de uma ciência social pura, que não seja refém de interesses e clientelas específicos. Mas não é fácil, ele avisa.

Para o próprio Celso Furtado, no entanto, isso nunca foi um problema. O mito do desenvolvimento econômico, escrito num momento em que se entoavam loas ao dito “milagre econômico” – seis anos de crescimento a taxas que hoje diríamos “chinesas” –, não se deixou seduzir pelo clima de euforia (construído, ademais, sob as botas dos militares).

Considerado o momento de seu nascimento, não foi pouca coisa, em meio a tanto ufanismo, adentrar a cena um livro que insistia em que, para países periféricos como o Brasil, o desenvolvimento econômico, se entendido tão somente como a possibilidade de os países mais pobres alcançarem em algum momento o padrão de vida dos países centrais, era um mito; mais ainda, um mito que se configurava como “um dos pilares da doutrina que serve de cobertura à dominação dos povos dos países periféricos”. Seu compromisso com o país obrigou-o a dizer que era melhor ir devagar com o andor, escapar de objetivos abstratos, como o puro e simples “crescimento”, e realizar a tarefa básica de identificar as necessidades fundamentais do coletivo.

E com isso chegamos ao livro objeto deste prefácio, não sem antes enfatizar que ele jamais teria sido escrito se a pena que o redigiu tivesse por dono um economista convencional, que elabora seus modelos sem pudor, alheio à história e às carências de seu país, esquecendo-se, como disse Celso Furtado na citada entrevista, “que a ciência social se baseia na ideia de que o homem é, antes de tudo, um processo, não é um dado, uma coisa inerte”.

São quatro os ensaios que compõem o livro. O primeiro, o mais longo e então inédito, cuja quinta e última seção fornece o nome da obra, versa sobre as tendências estruturais do sistema capitalista na fase de predomínio das grandes empresas. A seu lado vão mais três peças: uma reflexão sobre desenvolvimento e dependência, que o próprio Furtado considera, na apresentação que faz, como o núcleo teórico dos demais, uma discussão sobre o modelo brasileiro de subdesenvolvimento e, por fim, o dito “ensaio metodológico”, no qual o autor, não por acaso, faz uma digressão sobre objetividade e ilusionismo em Economia.

O que conecta os quatro ensaios, para além de terem sido escritos entre 1972 e 1974 – período em que Celso Furtado atuou como professor visitante na American University (Estados Unidos) e na Universidade de Cambridge (Inglaterra) –, é o espírito militante do autor e sua inquebrantável disposição para analisar, alertar e apontar os descaminhos que ia tomando o desenvolvimento brasileiro, assentado em imensas desigualdades e delas dependente para ser “bem-sucedido”. Daí todo seu esforço de sustentar a análise na discussão sobre as tendências estruturais do sistema capitalista. Como pensar o desenvolvimento de um país periférico como o Brasil sem vinculá-lo ao plano internacional?

O objeto inicial de exame no ensaio que dá título ao livro é o estudo The Limits to Growth [Os Limites do crescimento], trabalho realizado por Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jorgen Randers e William W. Behrens em 1972, no Instituto de Tecnologia de Massachussetts (mit), nos Estados Unidos, para o Clube de Roma.

No estudo, que ficaria bastante famoso (traduzido para 30 idiomas, vendeu mais de 30 milhões de cópias) há aquilo que Furtado vai chamar de “profecia do colapso”. A tese central é que se o desenvolvimento econômico, nos moldes em que ia se dando nos países mais avançados, fosse universalizado, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem que o sistema econômico mundial colapsaria.

Celso Furtado discorda da tese, não por divergir da questão em si, isto é, do problema causado pelo consumo exacerbado de recursos não renováveis e da deterioração ambiental que daí advém. Ao contrário, chega mesmo a dizer que “em nossa civilização, a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico”, e que, portanto, é preciso reconhecer “o caráter predatório do processo de civilização, particularmente da variante desse processo engendrada pela revolução industrial”.

Sua discordância deriva do pressuposto da tese, a saber, que o desenvolvimento era um processo de tipo linear, pelo qual passariam todos os países, de modo que, em algum momento da história, todos teriam o mesmo tipo e o mesmo nível de desenvolvimento então em vigor nos países centrais. Para nosso autor, a tese, totalmente equivocada, se chocava com aquela que ele considerou, na entrevista, como “a contribuição mais importante que dei à teoria econômica”, qual seja, sua teoria do subdesenvolvimento, que ele desenvolvera uma década antes. Se o subdesenvolvimento era, não uma etapa, mas um tipo específico de desenvolvimento capitalista, a tese linear estava descartada por definição, o que tornava pouco realista a profecia do colapso.

Muito marcado pelo que ia se dando no Brasil, Celso Furtado concluíra que, dada a divisão internacional do trabalho, consagrada com a consolidação do capitalismo, passaram a existir estruturas socioeconômicas em que o produto e a produtividade do trabalho crescem por mero rearranjo dos recursos disponíveis, com progresso técnico insignificante, ou, pior ainda, por meio da dilapidação de reservas de recursos naturais não reprodutíveis. Assim, o novo excedente não se conectava com o processo de formação de capital, tendendo tais economias a se especializarem na exportação de produtos primários.

Todavia, para Celso Furtado, mais do que a tendência à produção de bens primários, sobretudo agrícolas, o que estabelecia a linha demarcatória entre desenvolvimento e subdesenvolvimento era a orientação dada à utilização do excedente engendrado pelo incremento de produtividade. Nessas economias, de fraca formação de capital, o excedente, transmutado em capacidade para importar, permanecia disponível para a aquisição de bens de consumo. Assim, era pelo lado da demanda de bens de consumo que tais países se inseriam mais profundamente na civilização industrial.

A industrialização por substituição de importações, quando surge, pelas mãos de subsidiárias de empresas dos países cêntricos, acaba então por “reforçar a tendência para a reprodução de padrões de consumo de sociedades de muito mais elevado nível de renda média”, resultando daí “a síndrome de tendência à concentração de renda, tão familiar a todos os que estudam a industrialização dos países subdesenvolvidos”.

A esse traço, que, no segundo ensaio do livro, Celso Furtado relaciona com aquilo que chama de “dependência cultural” (sobretudo das elites), ele associa as características tomadas pelo processo de acumulação naquele momento, a saber, o fato de serem as grandes empresas internacionais a dar-lhe o tom. Entre essas características, o domínio dos oligopólios (com os padrões de consumo se homogeneizando no plano internacional), operações em centros de decisão que escapam ao controle dos governos nacionais, e uma tendência à construção de um espaço unificado de atuação capitalista.

Nesse contexto, os países periféricos, em meio à industrialização por substituição de importações, verão um processo de agravamento de suas disparidades internas. Ao utilizarem tecnologia em geral já amortizada, as grandes empresas oligopólicas conseguiam superar o obstáculo produzido pela incipiente formação de capital, mas industrializavam a periferia perpetuando o atraso cifrado na desigualdade. Sem o dinamismo econômico do centro do sistema, caracterizado por permanente fluxo de novos produtos e elevação dos salários reais, o capitalismo periférico, em contraste, “engendra o mimetismo cultural e requer permanente concentração de renda”.

Em poucas palavras, para Celso Furtado, a evolução do sistema capitalista que ele presenciara caracterizava-se por “um processo de homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, na periferia, separa uma minoria privilegiada e as grandes massas da população”. Daí porque a profecia do colapso não tinha condições de vingar, já que o padrão de vida dos países do centro jamais se universalizaria na periferia do sistema.

O Brasil, com sua expressiva dimensão demográfica e um setor exportador altamente rentável, mostra Celso Furtado no terceiro ensaio do livro, tornara-se um caso de sucesso do processo de industrialização, mas não conseguira operar com as regras que prevalecem nas economias desenvolvidas, de modo que o sistema então criado foi espontaneamente beneficiando apenas uma minoria.

Feito esse rápido inventário das principais observações e análises de Celso Furtado, o que podemos dizer de O mito do desenvolvimento econômico cinquenta anos depois? É evidente que há um contexto datado na obra, por exemplo, quando nosso autor afirma que o privilégio de emitir o dólar “constitui prova irrefutável de que esse país exerce com exclusividade a tutela do conjunto do sistema capitalista”. Cinco décadas depois, ainda que o privilégio continue a existir, e tenha sido reforçado pela política de Paul Volcker, presidente do Federal Reserve, ao final dos anos 1970, a liderança americana tem estado sob permanente controvérsia, principalmente por conta da assombrosa evolução da China.

Da mesma maneira, considerada a forma como Celso Furtado faz sua análise, fica implícito que ele considerava ao menos a industrialização, ainda que não a superação do atraso, como algo que tinha se consolidado no Brasil, o que, sabemos hoje, não é verdade, dado o evidente processo de desindustrialização precoce sofrido pelo país.

Isso posto, porém, os acertos de Celso Furtado são de espantar. Nem é preciso considerar sua preocupação com o permanente desgaste dos recursos naturais, a inevitável poluição e o uso frequente de “vantagens comparativas predatórias”, sobretudo na periferia do sistema, que atravessa todo o livro, evidência máxima da correta sintonia em que operava a economia política furtadiana.

O que parece aqui mais importante mencionar é sua correta percepção quanto às tendências unificadoras do sistema capitalista. Note-se que estávamos em 1974, ainda bem longe, portanto, da queda do muro de Berlim e de se começar a falar em globalização, e mesmo assim ele afirma que “as tendências a uma crescente unificação do sistema capitalista aparecem agora com muito maior clareza do que era o caso na metade do decênio de 1960”.

Associada a isso, também a percepção precisa de que ia se formando ao longo do globo uma espécie de grande e única reserva de mão de obra à disposição do capital internacional, haja vista a facilidade com que as grandes empresas podiam evitar aumentos de salário, principalmente na periferia, deslocando os investimentos para áreas com condições mais favoráveis.

Contudo, o que é de fato mais assombroso é o acerto de seus prognósticos, feitos há cinquenta anos, quanto ao destino da modernização em curso no Brasil. Desde então até hoje, com um e outro alívio trazido por políticas sociais de alto impacto implantadas por governos populares, o atraso só fez transbordar. Esse esforço singular de interpretação não teria sido possível sem a compreensão que tinha Celso Furtado da verdadeira constituição do processo de produção de conhecimento do social, aliando à teoria e à percepção do caráter histórico dos fenômenos sob análise também a imaginação e o compromisso com a coletividade.

Na já citada entrevista, diz Celso Furtado: “Minha vida foi simultaneamente um êxito e uma frustração: um êxito pelo fato de que eu acreditei na industrialização, na modernização do Brasil, e isso se realizou; e uma frustração porque eu talvez não tenha percebido com suficiente clareza as resistências que existiam à consolidação mais firme desse processo, ou seja, que, a despeito da industrialização, o atraso social ia se acumulando”.

Não é preciso dizer mais, penso, sobre a importância de se voltar a ler hoje O mito do desenvolvimento econômico, reeditado boa hora.

*Leda Maria Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

 

Individualismo

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Vivemos numa sociedade marcadamente individualista, o modelo econômico estimula a concorrência, os valores que comandam a sociedade capitalista internacional estão centrados nos valores do imediatismo, queremos mais e mais…. e não estamos nos atentando com as destruições estruturais que ameaçam os seres humanos e a vida em sociedade.

Neste mundo, marcado pelo consumo e pela acumulação, percebemos a degradação crescente do meio ambiente, a temperatura do planeta aumenta de forma acelerada, o clima está vivendo grandes alterações que impacta em todas as regiões do globo, nações dotadas de grandes vantagens comparativas na agricultura e da produção agrícola e mineral estão passando por mudanças extremas, o futuro está sendo marcado por grandes incertezas e grandes instabilidades.

A concorrência é sempre salutar desde que os agentes econômicos, sociais e políticos estejam concorrendo com todas as mesmas “armas”, desta forma podemos acreditar que os melhores tendem a ganhar, mas o que percebemos é uma história diferente, o discurso do mérito está difundido na sociedade, mesmo sabendo que vivemos numa sociedade altamente desigual, marcada pela exploração, pela escravização e pela corrupção que crassa parte substancial da sociedade.

Nesta mesma sociedade, a busca pelo prazer cresce de forma acelerada, os esforços cotidianos que anteriormente passavam pelos estudos e pelas reflexões teóricas, cursos superiores e qualificações constantes estão sendo substituídos por horas e mais horas na academia, nas clínicas estéticas , conversas com personal trainers e nas redes sociais, buscando mais e mais seguidores e uma curtida em uma foto extraordinária, os profissionais que antes eram referência para os jovens e para as crianças estão sendo alteradas por uma carreira de youtubers, influencers, etc… quais as contribuições para o progresso da sociedade mundial estas áreas tendem a trazer para formação humana?

Zygmunt Baumam alertou a sociedade sobre o mundo líquido, os amores líquidos, os medos líquidos, o mundo digital nos trazem vantagens e desvantagens elevadas, mas  precisamos, antes de mais nada, que os seres humanos necessitem agendar uma viagem para os seus sentimentos mais íntimos e pessoais, sem esta viagem individual estaremos construindo uma sociedade cada vez mais narcisista, imaturo e incapaz de compreender os grandes e verdadeiros desafios da sociedade contemporânea.

A psicanálise e seus predicados, por Vera Iaconelli

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Psicanálise evangélica, positiva, próspera e demais bizarrices revelam oportunismo, má-fé e ignorância sobre a teoria

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 04/12/2024

A psicanálise é um campo centenário de teorização, de pesquisa e de tratamento que não se encaixa nos moldes do ensino universitário. Uma vez que a análise do analista é seu esteio, as supervisões e a escrita, seu testemunho e não há certificado, a academia e o Estado não têm nada a dizer sobre suas formas próprias de transmissão.

A psicanálise tem sido atacada desde o dia um por propor escutar os pacientes cujos sintomas os psiquiatras eram incapazes de curar e, ao fazê-lo, reverter quadros incapacitantes. Não se tratava, obviamente, de uma escuta comum, dessas que temos com médico, padre, amigo ou professor. Freud, com sólida formação como neurologista, sabia de experiência própria como as falas de um doutor não surtiam efeito nesses casos.

Ele passou a escutar o sofrimento dos pacientes, submetidos tanto a formas de opressão e injustiça do campo social quanto às suas altas exigências inconscientes. Logo ficou claro que uma psicanálise que não considerasse o reconhecimento da alteridade como um valor absoluto, e que não defendesse a diversidade humana, não teria razão de existir.

Há mais de 80 anos, Lacan já denunciava que medicina, linguística, psicologia estão entre as áreas afins à psicanálise, mas não devem ser confundidas com ela.

E seguimos, dentro dessa tradição, escutando como os sujeitos se estruturam nos ambientes nos quais foram formados, como lidam com os acontecimentos que se apresentam e, principalmente, como encaram o fato estrutural de que somos todos castrados, limitados.

A psicanálise se debruça sobre inúmeros campos de fenômenos (alcoolismo, desemprego, parentalidade, suicídio…) sem que arrede o pé de ser o exercício da escuta de cada sujeito único diante desses fenômenos. Isso quer dizer que, a rigor, os estudos da psicanálise sobre o suicídio, sobre o alcoolismo ou sobre o desemprego se referem à forma como estudamos esses fenômenos e não a qualquer predicado da psicanálise, cuja única qualidade é escutar o inconsciente.

Se o leigo pedir uma dica de como separar o joio do trigo na oferta obscena de psicanalistas que vemos hoje nas redes, diria que qualquer um que apresente uma psicanálise com adjetivos e/ou certificada está realizando uma impostura. Psicanálise evangélica, positiva, próspera, enfim, essas bizarrices oportunistas só revelam ignorância sobre a teoria, oportunismo e má-fé.

Uma psicanálise do Evangelho, por exemplo, deveria ser aquela que estuda o que Freud demonstrou em “O futuro de uma ilusão”: o caráter alienante das crenças baseadas em dogmas. A ideia de positividade, outro exemplo, vai na contramão de toda a história do pensamento psicanalítico, que se baseia no reconhecimento do negativo como constituinte da subjetividade.

De todas as perseguições e ameaças que a psicanálise sofre desde sua criação – nazismo, fascismo, racismo, misoginia–, as investidas atuais têm sido as que mais arriscam descaracterizá-la.

Seguindo os passos de Freud e dos pós-freudianos, sabemos que a resistência a escutar o inconsciente é um fato estrutural, por isso não existe caminho suave para a formação do psicanalista. Mas as formas nas quais essa resistência se apresenta em cada época variam e devem ser continuamente mapeadas e combatidas.