Oriente Médio está à beira de uma guerra aberta regional, por Hussein Kalout.

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Israel e seus adversários romperam os limites que regulavam até então a rivalidade

Hussein Kalout, Cientista político, professor de relações internacionais e pesquisador na Universidade Harvard; ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018, governo Temer).

 Folha de São Paulo, 06/10/2024

[RESUMO] Recente escalada do conflito iniciado há um ano entre Israel e Hamas, com Irã lançando ataque maciço com mísseis contra o primeiro, expõe mudanças profundas nas relações de força no Oriente Médio e gera apreensão sobre os próximos passos na região. Estratégia do governo Netanyahu levou a um isolamento diplomático de seu país sem precedentes, assim como arranhou a imagem de potência bélica inconteste sobre seus vizinhos. Por sua vez, Irã e o Eixo da Resistência já não temem mais um conflito aberto e direto com Israel.

Benjamin Netanyahu apostou na conflagração de uma guerra regional no Oriente Médio como principal rota de atuação estratégica de seu governo. O objetivo é redimensionar a arquitetura de segurança coletiva da região e prolongar a sua vida política como chefe de governo do Estado de Israel.

A conjuntura atual do Oriente Médio expõe mudanças profundas. Do ponto de vista político, militar ou estratégico, Israel e o Eixo da Resistência romperam os limites que regulavam até então essa rivalidade.

Apesar de haver visões distintas sobre o conceito do que seria uma “vitória” ou uma “derrota”, o embate entre ambos os lados ganhará contorno cada vez mais intrincado.  O confronto decisivo entre Irã e Israel começou. Ainda que ambos não assumem, os preparativos para a guerra regional já estão engatilhados.

Israel emprega ao máximo o seu poder de letalidade —contra alvos militares ou civis, indistintamente— e busca traduzir essa destruição em grande triunfo político com definitivas vitórias para preservar a sua imagem e para manter sob o seu domínio o controle dos acontecimentos.

Conquistas estratégicas importantes como, por exemplo, a possibilidade de paz com palestinos, libaneses e sírios não compõem o arcabouço desse repertório.

Por outro lado, o Eixo da Resistência interpreta o conceito de vitória sob prisma distinto. Para Teerã, são considerados triunfos claros a proteção de seu arsenal estratégico, o imobilismo da economia israelense, a permanente instabilidade securitária de Tel Aviv, o isolamento diplomático de Israel no mundo e a danificação da base industrial de defesa israelense.

A estratégia de Israel de eliminar a cadeia de comando e controle do Hezbollah, associada ao assassinato de lideranças políticas que compõem o topo da cadeia decisória do grupo e a demolição da infraestrutura humana e física do Líbano, em nada gera, na visão do Eixo da Resistência, transformações tangíveis na equação de força.

Portanto, essa estratégia é interpretada como ineficaz e categorizada no bojo de ações paliativas e contornáveis, já que não indicam ser suficientes para desagregar a força e a coesão do Eixo da Resistência como um todo.

Quando o Estado de Israel recorre a esse tipo de expediente não fica apenas revelada a sua vulnerabilidade, mas também a sua necessidade de autoafirmação como potência militar inconteste na região. Contudo, na visão do Irã e de seus aliados, o emprego desses meios não tende a restaurar o poder dissuasório dos israelenses.

Os últimos ataques de Irã à Israel, em retaliação às mortes de líderes do Hamas e do Hezbollah, demonstraram que Tel Aviv perdeu o domínio de como traçar novas regras de engajamento com seus inimigos. As retaliações iranianas mudaram a correlação de forças. A aposta na autocontenção iraniana e na reticência do emprego dissuasório de armas bélicas contra Israel revela que Netanyahu errou o cálculo da equação.

O Irã, que vinha evitando a deflagração de um confronto armado aberto, respondeu com dureza e impingiu danos reais ao complexo militar e securitário israelense. No fundo, os iranianos demonstram estar cada vez mais dispostos a enfrentar Israel —não importando a dimensão dos custos, pois sabem que a Rússia não deixará de subsidiá-los em armas.

Por sua vez, a invasão militar do Líbano por terra pode se provar uma péssima escolha por parte dos decisores políticos de Israel. A estratégia de empurrar as forças do Hezbollah ao norte do rio Litani vai por hora esbarrando na agressividade e na capacidade de resistência dos combatentes do grupo libanês.

O uso brutal da força por parte de Israel contra o Líbano também não provou ser o meio adequado para viabilizar o retorno dos deslocados israelenses para as suas casas ao norte do país.

Derrotado em todos os tabuleiros diplomáticos, Netanyahu e seu governo fazem Israel experimentar um isolamento internacional sem precedente. As iniciativas propostas por americanos, egípcios e cataris para a libertação dos reféns israelenses sequestrados pelo Hamas foram torpedeadas pelo próprio Netanyahu e o seu arco extremista de alianças políticas.

A proposta franco-americana de um cessar-fogo entre Israel e o Líbano, lançada às vésperas da última Assembleia Geral da ONU, em Nova York, também sofreu o mesmo destino.

No fundo, ao que parece, a palavra “diplomacia”, na gramática política do atual governo de Tel Aviv, nada mais é que sinônimo de guerra e destruição. É essa, pois, a imagem que o mundo possui hoje do país. O aniquilamento de Gaza e de sua população civil e o franco conflito contra o Líbano podem ter afastado todos os países árabes propensos a selar a paz definitiva com Israel.

O último ataque iraniano contra o território israelense revela a força, a ousadia e a disposição sem limites de Teerã. O discurso do líder suprema do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, nesta sexta (4/10) não escamoteia mais o objetivo de Teerã de buscar o confronto aberto e direto com Israel.

O tom da fala não deixa dúvidas de que o que está porvir lançará uma sombra de insegurança sobre Israel que pode perdurar por um longo período. O tempo das humilhações políticas ou militares ao Irã e aos seus aliados já não se acomoda no âmbito da flexibilidade pragmática de Teerã.

Contudo, tanto o Irã como o Hezbollah parecem ainda não ter plena clareza do grau e da dimensão real do poder tecnológico e de inteligência de Israel. Ambos subestimaram a capacidade cibernética do país e a disposição de Tel Aviv de empregá-la a qualquer custo.

Na visão deles, sem apoio absoluto e dedicado engajamento dos EUA, Israel não possui os recursos necessários para vencer militarmente o Irã e seus aliados do Eixo da Resistência. A superioridade militar de Israel já não é mais absoluta —para seus inimigos, atualmente é segmentada e se dá essencialmente em três campos: cibernético, tecnológico e aéreo.

O cenário do momento sugere que, até o resultado da eleição presidencial nos EUA, o governo israelense irá tirar o máximo proveito do vácuo de poder em Washington para alcançar os seus pretendidos objetivos: segurança e estabilidade.

Sem o pesado apoio bélico dos americanos, Netanyahu não teria ido tão longe no tabuleiro regional médio-oriental.

Resta saber, por fim, quais são os próximos movimentos estratégicos do governo israelense: se irá amortizar a virulência dos ataques do Irã ou se a resposta será reciprocada. Na visão do Eixo da Resistência, a guerra regional já foi declarada.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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