O mal cotidiano, por Andréa Pimenta Sizenando Matos

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Andréa Pimenta Sizenando Matos – A Terra é Redonda – 06/12/2023

Padecemos do mal-estar da civilização, há esperança, mas não para nós, pois, do ponto de vista da psicanálise, não somos programados para a felicidade

O fenômeno do mal pode ser abordado sob diferentes perspectivas; através do senso comum, dos mitos, da religião, das várias ciências, etc. Interessa-me aborda-lo à luz da psicanálise para que se revele o surgimento de novas formas de apresentação do mal-estar na cultura e, como cultura, ontem e hoje.

Em O mal estar na civilização, Freud diz: “Eis que, em meu entender, a questão decisiva para o destino da espécie humana: se o seu desenvolvimento cultural conseguirá, e em caso afirmativo até que ponto, dominar a perturbação da convivência que provem da pulsão humana de agressão e de auto-aniquilamento. A nossa época merece talvez um interesse particular justamente neste assunto. Hoje, os seres humanos levaram tão longe o seu domínio sobre as forças da natureza que com o seu auxílio lhe será fácil exterminar-se uns aos outros, até o ultimo homem. Eles sabem-no, daí boa parte da inquietação contemporânea, da sua felicidade, do seu espirito angustiado. E agora podemos esperar que o outro dos dois poderes celestiais, o Eros eterno, faça um esforço para se consolidar na luta contra seu inimigo igualmente mortal.

Mas quem pode prever o desfecho?”

Será que a noção de banalidade do mal, forjada por Hannah Arendt na década de 1960, é suficiente para compreendermos as contradições da nossa sociedade? Freud nos auxilia no desenvolvimento desta noção para o conceito de sociopatologia da vida cotidiana, no texto citado.

O que esta em jogo no mal estar freudiano? Como Freud interpreta o processo civilizatório? A concepção de que o homem não é um ser pacificado portanto, encontra-se em constante conflito. Ele outorga a gênese do conflito à oposição entre as pulsões; Eros, pulsão de vida e Tánatos, pulsão de morte; luta ininterrupta no nosso mundo interno.

A agressividade humana, como disposição, como representante do mal, não é algo que se apresenta, somente, de forma espetacular mas, cotidianamente, banalmente. Não é somente dirigida ao mundo externo, mas, a si mesmo, como atos auto destrutivos e, não provem somente das pulsões mas, também, de processos sociais (inquisição, escravidão, terrorismo).

A concepção de que estarmos inseridos em um ambiente hostil, inóspito, que traduz-se por uma luta continua entre a nossa natureza e a cultura, a civilização. A concepção de que a sociedade é criada às custas do recalcamento das pulsões ou outra direção possível e aceitável à suas satisfações.

Chegamos a um paradigma da psicanálise: somos indivíduos desabrigados, vivemos no mal-estar e carregamos dentro de nós um estranho. Aqui levanta-se o problema crucial da relação do ser humano com a lei, lei primordial, que marca a passagem, o salto, da natureza para a cultura.

Este é o modelo edípico, onde as relações da criança e seus pais representam a derradeira etapa de um progressivo e doloroso processo de alienação e separação. O Édipo nos conduz a superar a infância, isto é, nossa dependência à mãe e ao seu desejo, e à introjeção da lei, lei da cultura, representada pelo pai.

O Édipo é pedra angular da estrutura intrapsíquica e do processo civilizatório. As vicissitudes edípicas, quais sejam, alguma renúncia às pulsões, à onipotência do desejo, ao princípio do prazer em prol do princípio de realidade, faz-se sob a égide de um pacto de mão dupla, pacto edípico, pacto social.

Perdemos e ganhamos. Em troca da renúncia exigida temos o direito de receber um nome, uma filiação, um lugar na estrutura de parentesco, acesso à ordem simbólica, além de tudo o mais que nos permita desenvolver e viver. Assim, identificamo-nos com os valores da cultura, entramos no círculo de intercâmbio social e nos tornamos, de fato e de direito, sócios da sociedade humana.

O pacto primordial prepara e sustenta o segundo pacto e vice-versa. A má integração de um ou de outro pode gerar problemas, confirma ou infirma, um e outro, até a um ponto de ruptura.

É esta a chave psicanalítica para a compreensão da violência que dilacera o tecido social. O mal-estar apresenta-se pela violência, pela guerra civil crônica: violência urbana, doméstica, a luta individual de cada um. Apresenta-se pela guerra militar armada: Rússia versus Ucrânia, Israel versus Palestina, para citar apenas as que estão em pauta na atualidade.

Aqui, vale uma digressão. Esta lei é também entronizada pela sociedade. As sociedades modernas são baseadas em estruturas de poder. Todo poder é violento. Percebe-se, justamente, o elemento mítico que há na estrutura legal, jurídica. A instância jurídica é um pilar desta violência. O poder jurídico deve ter um braço forte para a execução das leis, inevitável e infelizmente. Vê-se a ambiguidade da lei: há os que estão acima da lei, são justamente os que determinam o que é a lei e, a esta posição, corresponde-se uma outra, oposta, os que são banidos da lei, não cobertos por ela, passíveis de serem mortos: indígenas, negros, pobres. Estes estão, definitivamente, desabrigados.

O que podemos diante do mal-estar? Apropriarmo-nos dele, dominá-lo, deslocá-lo é fundamental. Transformar o mal-estar pela via de um dispositivo que nos permita refletir criticamente sobre ele; alcançar um olhar irônico e crítico para que se revele a nossa posição sobre o nosso estar no mundo, na pós-modernidade.

Transformá-lo através de uma nova criação, sublime: o trabalho, a literatura, as artes, uma solução subjetiva, particular de cada um.

Trata-se de reunir um sistema de fragmentos em uma boa obra.

Este é um modo de resistência à violência que nos ronda no século XXI, e em todos os séculos passados.

Finalizo com uma “profecia” do escritor tcheco Franz Kafka: “Há esperança suficiente, para Deus, esperança infinita, mas não para nós; sentencia o escritor. Se o universo traz a agonia das situações que nos oprimem e não controlamos; traz o embate inútil com leis e acasos que nos escapam, absolutamente.”

Padecemos do mal-estar da civilização, há esperança, mas não para nós, pois, do ponto de vista da psicanálise, não somos programados para a felicidade. Há pouquíssimos momentos de felicidade, quando mudamos de um estado ruim para um melhor. Nosso estado normal é o de estar jogado no mal-estar. Mas vivemos de projetar esperanças, ela é a última que morre.

*Andréa Pimenta Sizenando Matos é psicanalista.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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