Claudia Goldin, Nobel de Economia de 2023, afirma que casais podem ter divisão mais igualitária de carreiras, mas o preço é uma renda menor para a família
Folha de São Paulo
Patrícia Campos Mello As mulheres conquistaram o direito ao voto, a pílula anticoncepcional, leis que condenam discriminação por gênero e já são maioria entre pós-graduados em várias áreas. Mesmo assim, continuam ganhando menos que os homens.
Para a professora de Harvard Claudia Goldin, vencedora do Prêmio Nobel de Economia em 2023, a grande culpada é a divisão desigual das carreiras entre os casais. Mulheres avançam na mesma velocidade que os homens até terem filhos. Aí, alguém precisa ter o emprego mais flexível, que permite buscar o filho doente na creche no meio da tarde e estar de prontidão para a criança.
Esse alguém, por tradição ou normas sociais, costuma ser a mulher. Já o homem mantém seu “emprego ganancioso” —trabalha mais horas, está sempre disponível, ascende na carreira e ganha muito mais.
Goldin adverte que não tem por que as mulheres serem sempre as que abrem mão de suas carreiras. “As mulheres são mais necessárias nos primeiros meses de vida de um bebê. Mas os homens poderiam muito bem assumir [a maior parte das tarefas] depois disso”, diz Goldin, que acaba de lançar no Brasil o livro “Carreira e Família”, em que analisa como gerações de mulheres derrubaram
barreiras para conciliar família e carreira e os obstáculos que permanecem. “Todos os casais têm que se sentar e conversar: podemos ter um relacionamento 50-50 [os dois com empregos mais flexíveis e ganhando menos]? Quanto isso vai nos custar?”
Em seu livro, a senhora documenta como gerações de mulheres conquistaram melhores condições no mercado de trabalho e se tornou possível conciliar uma carreira com uma família e filhos, quando optaram por ter filhos. Mas mesmo havendo avanços significativos, ainda existe uma grande diferença salarial entre homens e mulheres. A senhora pode explicar por que e falar sobre seu conceito de ‘trabalho ganancioso’?
Houve muitas mudanças importantes e muito positivas para as mulheres. E, hoje, as mulheres não são apenas iguais aos homens em termos de graduação universitária nos EUA, mas superam os homens em formação avançada em diversos campos. Então por que ainda existe essa grande diferença? Limitando nossa exploração às mulheres com ensino superior, vemos que as mulheres avançam na mesma velocidade que os homens na carreira, mas dão um passo para trás depois de terem filhos.
Meu exemplo favorito: Você tem um homem e uma mulher se formando na mesma instituição, com a mesma formação e especialização avançada, trabalhando com o mesmo nível de motivação, ambição e inteligência. Os dois trabalham em escritórios de advocacia de alto nível. Depois de um tempo, este homem e esta mulher têm um filho ou dois. Eles percebem que não podem terceirizar todo o cuidado, então um deles dá um passo para trás e assume o emprego no escritório de advocacia menor e o outro fica no trabalho ganancioso.
O trabalho ganancioso é aquele em que quanto mais horas você trabalha, quanto mais disponível está, maior é o pagamento implícito por hora. Esse casal poderia arrumar empregos equivalentes (os dois mais flexíveis), que permitem que ambos tenham mais tempo em casa. Isso seria bom para ambos, porque muitos homens que não conseguem ver seus filhos darem o primeiro passo, jogarem futebol, se arrependem mais tarde.
Então, a questão é: quanto isso vai custar a eles? Eles poderiam assumir ambos os empregos mais flexíveis, poderiam trabalhar no agradável escritório de advocacia na rua de casa e não ir para Nova York, mas isso significa que o rendimento do casal vai sofrer um grande impacto, então depende de quanto estão dispostos a pagar. A grande questão, no final, é: ok, se tudo avançou tanto, por que ainda não está equilibrado? Os culpados não são apenas os indivíduos, mas o mercado de trabalho e a interação. A chance deveria ser a mesma: em 50% das famílias, a mulher assume o emprego ganancioso, e nos outros 50%, o homem. Mas, na verdade, há muito poucos casos em que isso acontece. Geralmente, o homem assume o emprego ganancioso. Precisamos considerar também as tradições e as normas sociais que fazem com que essa seja a maneira usual de agir.
Algumas pesquisas mostram que, mesmo quando os pais dizem para a escola ligar para o pai, eles ligam para a mãe. Está arraigado.
Portanto, o casal (hétero ou gay) que optar por ter um casamento mais igualitário terá os dois parceiros assumindo empregos mais flexíveis que pagam menos. Mas o que poderia mudar institucionalmente, para que não haja essa diferença tão forte entre os empregos flexíveis e os
gananciosos?
Por que existem empregos gananciosos? Porque não há substituição suficiente no local de trabalho. Empregos gananciosos são frequentemente voltados para o cliente. O cliente diz: ‘eu quero a Patrícia’. A empresa deveria dizer: ‘treinamos um grupo, uma equipe, para atender’. Sim, ninguém quer ser uma commodity. Mas não estamos falando sobre commodities, trata-se de ter um ou dois substitutos, isso não faz do funcionário uma mercadoria totalmente substituível.
Entre as ocupações em que isso ocorreu estão a anestesiologia, pediatria e farmácia. Todas são ocupações muito bem remuneradas e ainda assim, em cada uma delas, encontraram uma maneira de transformar indivíduos em equipes. Na anestesiologia, por exemplo. Se fosse preciso coordenar sempre a sala de cirurgia com a agenda do cirurgião e do anestesista, você não faria nenhuma cirurgia. Então hospitais ou cirurgiões contratam um grupo de anestesiologistas, que se revezam.
Até mesmo para mim, como professora. Eu dou um curso. Se alguém tivesse que me substituir, não daria da mesma forma. É o caso em que não é um substituto perfeito, mas, oras, espero que haja alguém que possa dar meu curso até melhor do que eu.
Como os homens poderiam contribuir para haver maior equilíbrio profissional nos casais?
Os homens podem ajudar de 1 bilhão de maneiras. É cara ou coroa: as mulheres são mais necessárias nos primeiros meses de vida de um bebê. Mas os homens poderiam muito bem assumir [a maior parte das tarefas] depois disso. Bebês não dizem apenas “mamãe”, eles dizem “papai”. Todos os casais têm que se sentar e conversar: podemos ter um relacionamento 50-50 [os dois com empregos mais flexíveis e ganhando menos]? Quanto isso vai nos custar? Ao mesmo tempo, as pessoas deveriam ir em massa até seus empregadores e dizer: queremos ter famílias e queremos ser bons funcionários. Vamos conversar sobre como podemos fazer isso?
Durante a pandemia, o home office tornou-se muito mais comum para faixas de renda mais altas. A senhora menciona em seu livro que o trabalho remoto é muito importante para as mulheres. Mas agora muitas empresas estão exigindo que os funcionários voltem ao escritório.
Bem, não muitas pessoas estão voltando. De acordo com algumas pesquisas, eram 5% em trabalho remoto antes da pandemia e agora são entre 25% e 30%. E faz diferença para as mulheres, porque permite conciliar seu dia com o tempo em família, é como estar da prontidão em casa, mas estar trabalhando efetivamente. Isso tem enormes implicações. Dados mostram que, nos EUA, a participação feminina na força de trabalho estava estagnada desde cerca de 1995 até a pandemia.
Depois, começou a aumentar. O aumento é maior para mulheres com filhos menores de cinco anos que têm educação universitária. Aquelas com menor nível de escolaridade terão menos possibilidades de trabalhar em casa. Agora, os dados apontam que isso também está acontecendo com os homens.
Então, acho que o próximo passo em uma pesquisa é descobrir quais são as circunstâncias para os homens que estão trabalhando em casa. Tenho amigos homens que têm filhos pequenos e trabalham em casa. Para eles, é um divisor de águas.
O título de um artigo que a senhora publicou no ano passado é “Por que as mulheres venceram”. As mulheres realmente venceram?
Sim, com certeza. Isso não significa que não haja alguns retrocessos ocasionalmente, mas elas fizeram conquistas enormes, desde o direito ao voto, até os direitos no local de trabalho, na família. Mas algo em que ainda estou trabalhando é o grau em que as mulheres conquistam direitos na rua, bastante importante na Índia, Paquistão, e também em partes da América Latina. Se as mulheres não têm direitos na rua, nos bondes, nos metrôs, nos ônibus, nas lojas, se elas não têm direitos sobre seu próprio corpo, direitos de não serem provocadas, assediadas, elas não podem
ser cidadãs eficazes e produtivas.
Depois de os filhos já estarem crescidos, muitas vezes as mulheres têm que cuidar dos pais idosos. Depois de terem essa pausa inicial em suas carreiras após terem filhos, como essa segunda pausa impacta suas carreiras?
Após as crianças estarem crescidas, as horas de trabalho das mães aumentam no início. Mas elas nunca conseguem alcançar os homens, provavelmente por causa dessa segunda onda de cuidados que chega quando elas têm 40 a 50 anos. Não sabemos exatamente por que isso está acontecendo. Mas vemos que as mulheres simplesmente nunca conseguem alcançar os homens, independentemente de terem filhos ou não. Então, parece que uma parte extremamente importante disso é o cuidado com os outros. Eu fui muito sortuda porque meus pais, quando eles tiveram problemas, cuidaram de si, e depois morreram também sem precisar de nenhuma assistência. Mas isso não é comum.
Raio-X
Claudia Goldin, 78, é professora de Economia na Universidade de Harvard. Ela se formou em Economia na Universidade Cornell e fez seu doutorado no mesmo campo na Universidade de Chicago. Goldin recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2023 “por contribuir para nosso entendimento sobre o mercado de trabalho feminino”.