O mais eficaz não é o lobo solitário radical, mas o mestre no jogo do cinismo
Leonardo Godberg, Psicanalista, é doutor em psicologia (USP).
Folha de São Paulo, 13/08/2024
Definir o que significa o extremismo político é importante para pensarmos nas discussões contemporâneas sobre os significados que orientam a vida pública, da macropolítica às batalhas culturais. Poderíamos pensar que os extremistas são aqueles que não apenas divergem do sistema vigente, mas se recusam a endossá-lo.
Em vez da figura do ermitão, do lobo solitário radical, o extremista mais eficaz é o mestre no jogo do cinismo. Por exemplo: ele pode defender radicalmente a democracia social se lhe convém, mas, ao mesmo tempo —e dependendo do grupo ao qual fala—, dizer que a democracia social, liberal ou dos pesos e contrapesos institucionais é apenas uma forma autocrática de manutenção do poder; e, por isso, deveria ser combatida. O cínico político é aquele que domina a artimanha de distanciar aquilo que diz do seu modo de viver, não apenas sem vergonha alguma, mas dotado de certa insolência com verniz.
De forma praticamente intuitiva, alinhamos tal modelo de cinismo às necessidades do jogo político. Porém, o cinismo político ancorado por uma recusa das instituições, do pluralismo, marcado pelo tom acusatório e policialesco e pela relativização da violência de acordo com o aliado político, talvez seja a forma contemporânea mais precisa da pulverização dos extremismos.
Um caso paradigmático para pensarmos nessa figura do cínico político enquanto extremista é o de Adolf Eichmann (1902-62), um dos artífices do Holocausto. Eichmann foi imortalizado pela filósofa Hannah Arendt como aquele que incorporaria a banalidade do mal, através de uma espécie de sujeito cumpridor de ordens. No fundo, essa visão é confortável, pois coloca o mal ao lado de uma razão técnica mais ou menos ingênua.
Por outro lado, a filósofa e historiadora Bettina Stangneth esmiuçou a vida e gravações de Eichmann e mostrou que um dos principais organizadores do nazismo era um político astuto, ardiloso, eficiente, e que depois do nazismo articulou e participou ativamente de campanhas políticas de grupos extremistas na Argentina. Era, portanto, um animal político por excelência, sem banalidade alguma.
Um dos desafios mais importantes das democracias contemporâneas é identificar essa faceta do extremismo que está diluída em todos os espectros e amplificada pelas redes sociais, cuja estrutura reitera toda violência simbólica e física —vide os vídeos de guerra e de massacres que primeiro viralizam e depois são negados por seus autores (quando não chamados de método, por inconsequentes).
Se há uma psicopolítica do extremismo prenhe de certezas, a aposta das sociedades plurais deveria ser naquilo que o filósofo político Norberto Bobbio chamou de uma política da serenidade, essa virtude que, longe de se reduzir à “política do possível”, é justamente ancorada em uma ética que inclua visões opostas no campo do conflito, do debate público, para que a palavra “tolerância” não seja apenas título de livro de cabeceira ou mantra matutino, mas a base inegociável daquilo que chamamos de democracia.