Vale a pena discutir como o país se mostrou e e ainda se mostra pronto a acomodar golpistas
Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.
Folha de São Paulo, 11/08/2024
Em “Por que a democracia brasileira não morreu?”, os cientistas políticos Marcus André Melo e Carlos Pereira discutem por que a democracia brasileira sobreviveu à crise política que começou com os protestos de 2013 e durou até o fracasso da tentativa de golpe de Jair Bolsonaro.
O livro tem duas teses. Uma é muito mais bem demonstrada que a outra.
Os autores estão certos quando dizem que a culpa das últimas crises políticas não é do presidencialismo de coalizão. Aqui Melo e Pereira jogam em casa: são autores de um livro clássico sobre como o sistema político brasileiro funciona melhor do que se pensa (“Making Brazil Work”, de 2013).
Embora acertada, a análise merece um matiz: além dos choques externos, sofremos com legados históricos que enviesaram nosso sistema para a direita. Fizemos nossa transição à democracia com a classe política herdada da ditadura, fortemente conservadora (pois a esquerda foi perseguida) e bastante corrupta (pois na ditadura conviveram grandes projetos de desenvolvimento e ausência de controle institucional).
Por outro lado, em um país desigual como o Brasil, era de se esperar que a esquerda fosse bem-sucedida em eleições majoritárias (como a presidencial). Isso teria criado crises quando a esquerda chegasse ao poder em qualquer cenário.
Por outro lado, discordo dos autores quando dizem que, durante o bolsonarismo, a democracia nunca correu risco sério. Essa tese não é demonstrada pelo fracasso do golpe: se um investimento deu certo, isso não quer dizer que o capitalista nunca correu risco nenhum. Rebeca Andrade é uma heroína nacional exatamente porque derrotar Simone Biles era altamente improvável antes da prova.
Os autores apresentam bons argumentos sobre a complexidade institucional brasileira contemporânea, que tornaria uma centralização autoritária mais difícil. Entretanto, regimes autoritários podem lidar com alguma complexidade: a própria ditadura de 64 foi institucionalmente mais complexa que, por exemplo, o Estado Novo, sem deixar de ser autoritária.
Talvez uma ditadura Bolsonaro fosse só um passo além da complexidade do regime de 64; ou talvez fosse muito mais violenta, destruindo parte da complexidade institucional em que Melo e Pereira talvez apostem fichas demais.
De longe, a maior falha do livro é a análise muito apressada dos militares. As investigações da Polícia Federal sugerem que a luta interna nas Forças Armadas, sobre a qual ainda não sabemos o suficiente, foi muito importante para o fracasso dos extremistas. O livro não dedica muita atenção aos resultados dessas investigações.
Valeria a pena também discutir como a política brasileira mostrou-se —e ainda se mostra— pronta a acomodar golpistas. A bancada bolsonarista, que em 30 de novembro de 2022 pediu golpe dentro do Congresso Nacional, continua a ser tratada como parte legítima do jogo democrático. Há candidatos à Presidência do Senado negociando impeachment de ministro do STF para conseguir votos dos bolsonaristas.
Melo e Pereira conhecem o funcionamento do sistema político brasileiro de trás para frente, mas por vezes subestimam o peso de sua história, bem como as lutas que ocorrem fora dele (no Exército, por exemplo). De qualquer forma, é um livro que faz as perguntas grandes, e já vem suscitando boas conversas.