Concentração de renda e desigualdade social: anotações sobre a obra Capital no século XXI, de Thomas Piketty

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Existe na sociedade contemporânea uma nova discussão no campo da política e da economia, que está provocando muitos confrontos intelectuais, tudo suscitado pela obra do economista francês Thomas Piketty, O Capital no século XXI, uma obra de fôlego que destaca o incremento na desigualdade social em muitos países importantes da sociedade mundial.

Segundo o autor, vivemos em uma sociedade que está gerando cada vez mais desigualdades, onde uma pequena parte da sociedade possui uma parcela considerável da renda, criando um embaraço muito grande para os agentes políticos, isto porque vivemos numa sociedade muito rica, onde a tecnologia avança de forma acelerada, gerando contrastes cada vez mais significativos entre os indivíduos, tudo isso fragiliza os laços entre os indivíduos e coloca em xeque a democracia.

Pelas pesquisas de Thomas Piketty, no período 1915 à 1970, a desigualdade social foi reduzida sensivelmente na sociedade mundial, isto esta diretamente ligado aos dois grandes conflitos que o mundo viveu no período, primeira e segunda guerras mundiais, somados à crise de 1929 e a reconstrução do pós guerra, onde a tributação foi aumentada diretamente, reduzindo os recursos de grupos mais bem aquinhoados. Dos anos 70 em diante, as curvas de desigualdade começaram a subir nos Estados Unidos e na Europa, em 2010, os 1% dos norte-americanos mais ricos detinham 20% da renda total, percentual equivalente ao da Europa em 1910. Se nenhuma medida for adotada pela sociedade, estima-se que, em poucas décadas, os 0,1% da população mundial vai absorver entre 40 e 60% da renda global, uma desigualdade jamais vista na sociedade capitalista, com forte impacto sobre a arena política e econômica.

Para visualizar melhor sua pesquisa, o autor analisa a remuneração dos grandes executivos mundiais que, em 1950, recebiam retornos financeiros compatíveis a 20 vezes os salários médios de mercado, enquanto, em 2014, os vencimentos chegam a duzentas vezes os salários médios de mercado, um incremento espetacular. Esta classe dos super salários é composta por operadores de fundos de investimentos, diretores de grandes empresas e outros trabalhadores super qualificados, tais como os empreendedores do Vale do Silício, região marcada pelas grandes startups mundiais, o berço das grandes empresas ponto.com.

A diferença de remuneração levou o economista francês a analisar a rentabilidade das empresas que pagam os super salários e percebeu que a diferença de retorno das ações de empresas que pagam mais de US$ 10 milhões para seus executivos e aquelas que pagam US$ 1 milhão era pouco significativa, destruindo a tese da meritocracia, vista por muitos como a explicação desta discrepância. O grande problema disso, segundo o autor, é que a democracia, visto como a melhor forma de organização política, esta se mostrando bastante fragilizada diante do poder dos grandes grupos econômicos, cujos recursos conseguem “comprar” as benesses do Estado Nacional, criando uma discrepância muito grande no modelo político e na organização econômica.

Os dados fornecidos pelo autor geram grande inquietação na sociedade, os 10% mais bem pagos na pirâmide de renda, abocanham hoje em dia algo entre 45% e 50% da massa salarial nos Estados Unidos, enquanto que, em 1950, este valor era de 35%, um crescimento bastante significativo que acaba criando um grande fosso entre ricos e pobres e que podem gerar graves distúrbios sociais.

O incremento da desigualdade leva o Estado a adotar políticas públicas direcionadas para atender este público em situação de risco, obrigando-o a uma postura firme e direta para evitar que esta desigualdade acabe gerando graves desajustes sociais que poderiam culminar em violência e desagregação social.

O Brasil é um exemplo clássico destas políticas, nos últimos 20 anos, o país apresentou um resultado bastante satisfatório, em 1993, tinham 44% da população ou 62,5 milhões de pobres, enquanto que, em 2012, este número recuou para 29,4 milhões de pessoas ou 16% da população, colocando o Brasil no restrito clube dos poucos países que conseguiram reduzir a população pobre nos últimos 20 anos, mesmo assim, os dados ainda são bastante ruins, fruto de uma herança histórica bastante negativa, acumulada durante muitas décadas.

As novas descobertas de Thomas Piketty, colocaram em xeque as descobertas de Simon Kuznets, que nos anos 50 foi laureado com o Prêmio Nobel de Economia, segundo o economista, a desigualdade acompanha o grau de desenvolvimento dos países, países desenvolvidos reduzem consideravelmente seus índices de pobreza, diante disso, muitos países empenharam grandes esforços para a industrialização, vista como uma forma de levar as economias ao desenvolvimento, o que se mostrou, posteriormente, insuficiente. Piketty descobriu que, dentro dos países desenvolvidos, encontramos ricos e pobres convivendo juntos e que o fosso entre eles está aumentando de forma acelerada e gerando graves desajustes no sistema democrático.

A meritocracia também é alvo do economista francês, segundo este, 60% dos bilionários da revista Forbes chegaram a esta soma devido a herança, ou seja, sua condição de bilionário se dá desde o nascimento, seu esforço e dedicação não foram condições indispensáveis para sua condição de vida atual, mas sim sua sorte no nascimento, nasceram ricos e estão “condenados” a riqueza até seus últimos dias.

A desigualdade deve ser vista com moderação, isto porque encontramos desigualdades boa e ruim, como o colesterol, a desigualdade boa é aquela que estimula os indivíduos a estudar com dedicação e buscar uma ascensão social e uma melhora em sua qualidade de vida. A desigualdade ruim é aquela que impede a mobilidade social e condena o indivíduo a viver na classe social de seus pais, impedindo-o de ascender na hierarquia social, gerando desesperança e insatisfação.

A pobreza e a exclusão social são duas condições da sociedade que chocam as pessoas e causam indignação entre os indivíduos mais sensíveis, como pode uma sociedade, marcado pelo grande avanço tecnológico, onde a ciência evolui rapidamente e a produção de alimentos cresce de forma acelerada, aceitar a morte de pessoas vítimas da fome? Que sociedade é essa, que aceita seus descendentes se digladiarem como animais em busca de um prato raso de comida? São questões fundamentais que os seres humanos precisam aprender para que possam ser considerados seres racionais, na atualidade, me parece que este aprendizado vai demorar muito tempo, ainda mais quando dados recentes nos mostram que os mais ricos ganharam, em 2012, dinheiro suficiente para acabar com a pobreza no mundo quatro vezes, e porque a pobreza insiste em continuar existindo? A resposta para isso é clara: existem muitos agentes que ganham com a pobreza do mundo, o negócio da pobreza enriquece muitas pessoas que, com isso, continuam usufruindo dos benesses do dinheiro e não se sensibilizam com as dores que envolvem outros seres humanos.

A meritocracia sempre foi um dos grandes legitimadores do sistema capitalista, uma forma clara de fazer com que as pessoas enxergassem a desigualdade por uma ótica menos negativa, uma forma de estimular os indivíduos a buscarem uma melhoria social e uma condição de vida mais digna e decente, deixando de lado uma trajetória de dificuldades crescentes e abrindo um novo horizonte para todos os indivíduos que se destacassem pelo esforço e dedicação, pena que, para Piketty, a meritocracia esta perdendo força com grande rapidez, as chances de indivíduos oriundos de classes sociais mais simples ascenderem socialmente esta em franca decadência, fruto da nova forma de acumulação do sistema capitalista, medidas urgentes devem ser tomadas para impedir que o capitalismo se destrua por si mesmo e os ganhos, inegáveis, do sistema sejam sobrepostos por tragédias e destruições iminentes.

O economista francês faz algumas sugestões interessantes, dentre elas destacamos uma forte tributação sobre o patrimônio, esta taxação deve ser feita em escala global para impedir que os atores econômicos saiam de seus países e busquem guarida em outras regiões, reduzindo a eficácia desta medida, o espaço certo para costurar estes acordos são os grandes tratados internacionais, como os que estão sendo discutido entre blocos econômicos, tais como o possível acordo entre Mercosul e União Européia.

As sugestões de Thomas Piketty foram recebidas de forma bastante diferentes, de um lado um grupo de economistas do mainstream viram-nas como uma crítica requentada das teorias de Karl Marx, coisa que o economista francês rechaçou com veemência, inclusive muitos criticaram os dados levantados e, principalmente, as conclusões que embasavam suas conclusões; de outro lado, um grupo de economistas heterodoxos aplaudiram suas ideias e o colocaram no bastião do novo pensamento progressista. Tirando os exageros dos críticos, as ideias de Thomas Piketty devem ser lidas com atenção e refletivas por todos os agentes sociais, visando responder como podemos, no século XXI, ainda encontrarmos uma sociedade tão desigual, e pior, como esta desigualdade está aumentando de forma acelerada e colocando milhões de pessoas na indigência e na marginalidade, abrindo novos mercados ilícitos que desvirtuam as condições de vida e de esperança de inúmeros grupos na sociedade.

Todas estas medidas devem ser adotadas visando a redução do fosso entre ricos e pobres e com o intuito de acabar com uma equação nefasta para a sociedade, nela encontramos uma situação, onde os mais ricos conseguem dar aos seus filhos melhores condições de educação e de conhecimento, abrindo-lhes novos horizontes intelectuais e culturais, capacitando-os para ocuparem os melhores empregos, perpetuando uma situação que lhe é dada logo em seu nascimento, de outro lado, os mais pobres se restringem a uma formação deficitária, marcada por pouco acesso ao conhecimento e, em contrapartida, ocupando, no mercado de trabalho os empregos mais vulneráveis as flutuações e instabilidades da economia.

 

 

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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