Pôr mais ‘criminosos’ na cadeia não vai resolver nada, a não ser gerar mais demanda por venda de sentenças
Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.
Folha de São Paulo, 30/03/2024
Os dois problemas principais do Brasil são a segurança pública e a desigualdade de renda. No caso da segurança pública, fomos enganados.
O debate público tem vendido a ideia, há décadas, de que a solução para a segurança pública passa por questões práticas: estatuto do desarmamento, policiamento ostensivo, invasão de comunidades e outras soluções que envolvem, normalmente, violência contra os mais pobres. O caso Mariele Franco descortinou a nossa triste realidade: o problema começa no Estado. Portanto, a solução também tem que começar lá.
Precisamos de uma reforma dos sistemas judiciário e policial. E deve ser uma reforma profunda, indo desde a carreira de juiz até os incentivos para quem estiver entrando na carreira policial. Precisamos de soluções de gente grande, muito além de slogans simplistas (embora não necessariamente errados) como “acabar com a Polícia Militar”.
O problema é que ninguém quer largar o osso. Qualquer reforma séria transformaria a relação do Judiciário e da polícia com o resto da sociedade. Hoje, a independência do Judiciário não funciona como deveria. É independência sem responsabilidade.
Embora a maioria dos funcionários públicos trabalhe direito, cumprindo suas funções como estabelecidas pela lei, os incentivos do sistema estão mal ajustados. Isso vale para a seleção de conselheiros, investigações pela corregedoria, punições por malfeitorias e muitas outras coisas. Sem acertar a estrutura do sistema, vai ter gente que vai continuar achando que segurança pública se faz entrando em comunidades com armas em riste.
Mas juízes, procuradores e outros teriam de largar o osso. É comum ouvir a tese de que precisamos pagar a juízes bem para que não tenham incentivos a se corromper. Mas isso é uma piada. Não faltam escândalos no Judiciário de vendas de sentenças e coisas do gênero.
Temos um dos Judiciários mais caros do mundo, mas já sabemos que o que importa não é o quanto gastamos com o sistema jurídico, mas sim o desenho correto dos incentivos e da estrutura do sistema.
Por exemplo, Botero, La Portae outros autores (2003) deixam isso claro, mostrando que o quanto uma sociedade gasta com o sistema jurídico não tem nenhum impacto no desempenho; há sistemas corruptos nos quais juízes e procuradores ganham pouco e também nos quais são os profissionais mais bem pagos do país. Exemplos da Holanda e do Japão mostram como reformas bem-feitas podem melhorar o sistema e diminuir custos ao mesmo tempo.
O problema é que, no Brasil, o Estado não é de ninguém quando deveria ser de todos. Não nos importamos com quem toma vantagem dele. E, pior, chamamos de otário quem tem a oportunidade de se dar bem e não o faz. Se uma carreira consegue um aumento, outras correm atrás do seu. Se um juiz tem dois meses de férias, outras também querem.
Isonomia é bonitinho no papel, mas vira uma corrida para saquear o Estado. É isso que os artigos científicos mostram quando afirmam que o mais relevante é o desenho dos incentivos dos agentes públicos. Hoje, temos funcionários públicos que heroicamente fazem o melhor que podem para cobrir os rombos dos outros. E um sistema jurídico no qual servidores ganham 20, 30 ou 40 vezes mais que um salário-mínimo e acham pouco.
Colocar mais “criminosos” na cadeia não vai resolver nada estruturalmente, a não ser gerar mais demanda por venda de sentenças. O Estado é de todos, ou pelo menos deveria ser.