16/01/2014
Francisco Lopes critica tese de que o Brasil tem déficit público muito grande: “Em comparação com outros países, a posição fiscal brasileira é muito favorável”
Atualmente, o que mais incomoda Francisco Lopes, ex-presidente do Banco Central, é o grande pessimismo que tomou conta dos mercados financeiros. Os mais desavisados, diante de uma leitura rápida de suas opiniões, podem achar que ele defende a atual condução da política econômica. Lopes não lista nenhum grande problema de crescimento, fiscal ou na condução da política monetária.
Para ele, o erro começa – tanto no governo como entre quem o avalia – na percepção de que o país pode crescer 4% ao ano. Não pode e não tem crescido a essa velocidade, especialmente considerando o crescimento “normal” da atividade nos últimos 20 anos e a conta atual do Produto Interno Bruto (PIB). “Estamos mais para 3%”, diz. E essa é sua projeção para 2014, o que o torna bem mais otimista que a média. Neste ano, justifica, estarão presentes efeitos que tiraram PIB do Brasil em 2013, como uma maior produção de petróleo e um real mais desvalorizado.
A grande crítica de Lopes ao governo é que o PT não assume o que é, de fato: um governo que testa os limites econômicos em nome de uma política redistributiva levada a cabo talvez sem muita convicção. “Eu chamaria essa concepção de política econômica do governo do PT de socialista”, diz ele, com a clareza de quem fez 20 anos de psicanálise com a mesma pessoa e está escrevendo um livro sobre o assunto. A psicanálise, conta, o ajudou a entender melhor os economistas. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida no fim de 2013:
Valor: Como o sr. avalia o cenário econômico atual?
Francisco Lopes: A coisa que me incomoda atualmente é o grande pessimismo. As análises estão muito contaminadas pela disputa eleitoral, isso atrapalha um pouco. Vejo que houve entre analistas de bancos e consultorias certa decepção nos últimos anos com o crescimento baixo. No fundo, tinha-se a seguinte ideia: o crescimento médio dos últimos 30 anos ficou entre 2,5% e 3%, mas isso foi porque tivemos a hiperinflação, os planos de estabilização, o confisco do Collor, a flutuação cambial, depois a vitória eleitoral do Lula. E há uma interpretação segundo a qual a gente tinha virado tigre asiático, o país ia crescer 7% ao ano e, agora, devido aos erros da política econômica, crescemos, no máximo, 2%. Mas poderíamos voltar a crescer 4%, se a política for correta, uma política chilena, de menos intervenção.
Valor: O sr. concorda com isso?
Lopes: A dúvida é essa. Será que 4% é o normal, ou será que é 3%? Do jeito que o PIB é medido hoje pelo IBGE, será que o Brasil consegue crescer 4% de forma sustentada? Eu tenho dúvidas.
Valor: Esse pessimismo não tem bases reais?
Lopes: Acho que há um equívoco por trás do pensamento dos economistas, segundo o qual o crescimento normal possível é 4%. Pelos dados vemos que não é. No período do Fernando Henrique foi entre 2% e 2,5%. Há um período no Lula, o segundo mandato, em que se tem 4,5% de média. Mas ali foi uma condição muito especial. Em compensação, no mandato seguinte do PT, o da Dilma, estamos indo para 2%. Quando se faz a média entre 4% e 2%, se chega nos 3%.
Valor: O que tem agido contra um crescimento maior?
Lopes: Estou mais otimista do que a média do mercado, que fala em 2%. Há gente reservadamente falando em 1,5% e projeto 3% em 2014. Há dois fatores que atuaram de forma importante em 2012 e 2013 e acredito que não vão atuar em 2014. Primeiro, a taxa de câmbio. Depois da crise de 2009, o Brasil teve apreciação enorme da taxa de câmbio. Acho que foi um grande erro de política deixar o câmbio chegar a R$ 1,50. No fim do ano voltamos a R$ 2,30. Na verdade, nos últimos dois anos, o Brasil fez uma desvalorização em termos reais de quase 20%, que é uma mudança muito grande. Em 2012 e 2013, o maior problema foi o crescimento baixo da indústria de transformação, medíocre e muito abaixo da média histórica. E aí pesaram bens de consumo não duráveis, como alimento, e bens intermediários de modo geral. Ao mesmo tempo, nos últimos dois anos, o quantum de importações cresceu mais de 20% nesses dois segmentos. Olhando a economia, vejo que a demanda está crescendo no normal e a produção não está crescendo porque a capacidade bateu no teto, falta trabalhador, e porque fizemos uma política cambial errada. Na medida em que a evolução da taxa de câmbio real é parte da explicação, isso gera um otimismo importante para 2014.
Valor: Que outro fator afetou o PIB negativamente em 2013?
Lopes: A outra área que foi importante, apesar de o peso não ser tão grande, mas não é desprezível, é a produção de petróleo, que chegou a ter variação negativa no período, e a Petrobras está prometendo que vai ter crescimento agora.
Valor: Mas ocorreram erros na condução da política econômica?
Lopes: Essa questão envolve entender a política econômica do governo. A ideia de que não está havendo investimento no Brasil me parece equivocada. Vejo um mundo de construção civil sendo feito, como metrô, estradas, portos. A formação bruta está crescendo 8% ao ano nos últimos anos. E vemos a indústria automobilística fazendo fábricas. Converso muito com empresários e vejo que as pessoas estão preocupadas com a política econômica, com a percepção de descontrole, de excesso de intervenção. Mas aí se pergunta se eles vão parar de investir e dizem que não, por razões estratégicas, porque estão a plena capacidade e têm que fazer uma fábrica nova.
Valor: Esse empresário não está sendo injusto com o governo? Afinal tudo o que ele pediu o governo fez…
Lopes: Tem um jogo político, do lobby, e o governo, muitas vezes, é ingênuo e cede a esse tipo de pressão. Esse é um dos erros de política econômica. O governo, muitas vezes, talvez por falta de convicção clara do que está fazendo, parece operar na defensiva, movido um pouco a medo. Um setor diz que não vai investir, que vai gerar desemprego, aí o governo pergunta o que ele quer e ele pede um crédito subsidiado do BNDES e o governo dá em linhas absurdas. O PSI é um absurdo, se financia a juros negativos. E por que o governo faz isso? Alguém diz que é eleitoreiro, acho que pode ter esse elemento, mas é por insegurança também, por falta de convicção no que está fazendo. Até por falta de ser capaz de dizer, olha, não vamos crescer 4%, o que esse país consegue crescer é 3%, do jeito que a gente mede o PIB. E não é tão ruim assim. Agora, como é que faz para crescer 4%, aí é outra discussão…
Valor: Se a gente se aproximar mais do Chile, crescemos 4%?
Lopes: Talvez. Precisamos ver se o Chile mede o PIB igual à gente. Acho que a primeira coisa que precisa fazer para crescer 4% ao ano é botar dez Ph.Ds no IBGE. Depois tem essa questão de que é preciso investir em educação, infraestrutura e, na verdade, as coisas estão sendo propostas pelo governo. Existe a questão da eficácia, se o governo consegue fazer. Uma crítica que se faz é que a gestão é ruim e, portanto, os planos não são realizados, mas não tem muito como julgar isso. Para mim, falta convicção no que se está fazendo. Ficar subsidiando determinados setores, na verdade, é uma redistribuição espúria de renda, pois está se transferindo para quem não precisa.
Valor: Tudo isso não faz parte da chamada nova matriz econômica?
Lopes: Aí existem duas questões importantes: a política de reduzir os juros e a questão fiscal. Não condeno e nem acho que foi um equívoco a política de redução de juros, porque ela teve uma consequência da maior importância, gerou a correção da taxa de câmbio. Foi o que nos tirou de uma taxa de câmbio de R$ 1,50 para o nível atual. Isso teve um custo inflacionário, mas foi feito dentro de certos parâmetros. Na hora em que a inflação passou a incomodar, o BC reverteu a política. Acho que esse é o grande problema que terá que ser resolvido no futuro por qualquer que seja o governo. Não faz sentido ser o país de maior taxa de juros do mundo. Acho que vamos voltar a operar com juro real de 5% a 6%, mas isso se justifica transitoriamente como estratégia de controle da inflação. Mas, como posição permanente, transforma o Brasil em uma economia de rentistas. Quando se baixou o juro, a minha tia que tem dinheiro na poupança achou ruim, dizendo que a poupança não estava dando nem mais a inflação. Então, como se quer que esse país tenha investimento? E aí se diz, não tem poupança. Como assim, o brasileiro é gastador inato? A base factual para explicações convencionais é muito frágil.
Valor: E o questão fiscal?
Lopes: A tese de que o Brasil tem déficit público muito grande não é verdade. Em comparação com outros países, a posição fiscal brasileira é muito favorável e isso graças a um enorme esforço de ajuste fiscal que foi feito desde o governo FHC.
Valor: Mas se diz que a dívida líquida não indica mais nada, que é melhor olhar a dívida bruta…
Lopes: Do ponto de vista de formulação econômica, o que interessa é a dívida líquida. Os mercados gostam de olhar o conceito de dívida bruta, porque os governos frequentemente usam os mecanismos da dívida líquida para esconder coisas. Quando se analisa a dívida bruta, de 60% do PIB, tem que considerar que quase 20% tem a contrapartida de reservas. Acho que deveria se criar um conceito que é a dívida bruta menos o valor em reais das reservas. Acho a posição fiscal do Brasil confortável e todo mundo reconhece isso. A dívida bruta de outros países é de 90%, 100% do PIB.
Valor: Mas se todo mundo reconhece isso por que a preocupação com o grau de investimento?
Lopes: Acho que a comunicação do governo nessa área é um desastre total. O governo deveria deixar claro que tem uma meta, que eu acho que ele efetivamente tem, que é a de estabilizar a dívida líquida como percentual do PIB, assumindo que vai usar a folga fiscal que tiver para fazer gastos sociais, por exemplo. Se pode discordar dessa posição, achando que o Brasil deveria levar a dívida líquida para 20% do PIB, que é mais importante do que fazer gastos sociais. Mas o governo não explicita isso, e fica tentando fazer um jogo de parecer bem comportado, dentro de uma concepção de política econômica que não é a dele.
Valor: O sr. disse que a política de juros foi correta, câmbio vem se ajustando, fiscal não é problema. O sr. está quase defendendo a política econômica do governo, não?
Lopes: O governo FHC fez um trabalho fundamental, de construção institucional. Criamos um Banco Central de primeiro mundo, independente de fato. Essa questão da legalização da independência é de importância menor, pois é o Copom que torna o BC independente de fato. Criamos a Lei de Responsabilidade Fiscal, agências reguladoras. Por trás desse esforço está a concepção de política econômica que domina a maioria dos analistas de mercado: nela, o FHC montou a base e nós queremos que o governo tenha um mínimo de intervenção. Recentemente, em um debate com economistas lúcidos do PT, eles diziam que essa é uma posição financista da coisa. Eu diria que é mais correto chamá-la neoliberal, no extremo. O papel do governo é não intervir, é deixar o mercado fazer a sua mágica. A intervenção deve ser meramente regulatória. Nessa concepção, é irrelevante que distribuição de renda vai surgir, se 1% da população vai ter 50% da riqueza, já que o governo não tem o papel de ficar tentando mudar o resultado do jogo econômico. Por trás dessa concepção está o famoso teorema da mão invisível e, no fim das contas, esse é o melhor dos mundos, mesmo para as classes de renda mais baixas. Vai permitir que o país cresça e, ao final, tudo bem que as classes mais altas vão ter um grande ganho porque, com o crescimento, todo mundo vai se beneficiar. Essa é a visão do mercado do que é política correta. E aí vem o governo do PT, com uma visão diferente que não é claramente articulada, gerando muitos dos problemas que eu vejo.
Valor: Quais?
Lopes: A crítica que o PT faz, e que chama de posição dos financistas, é dizer que essa história de que o mercado vai gerar o melhor dos mundos parece com aquela do Delfim [Netto] de crescer para redistribuir depois. O mercado diz, se o Brasil virar Chile, em vez de 3%, vai crescer 4%. Ele diz, eu não quero isso. Para o governo, para os 20% mais pobres é melhor fazer uma redistribuição de renda na marra usando o Estado. Aí, a renda dele vai crescer 6% ou 8%, e não 3%. E isso é inegável: o governo do PT está fazendo uma redistribuição muito intensa de renda. É só pegar o Bolsa Família, a política de reajuste de salário mínimo, que é uma política de indexação que aumenta a inflação. Essa intromissão do governo na atividade não é incólume. Eu chamaria essa concepção de política econômica do governo do PT de socialista, que é diferente da concepção liberal moderna.
Valor: Dá para combinar isso com o tripé macroeconômico?
Lopes: Algo que me deixa otimista em relação ao governo do PT é que apesar dessa concepção socialista ele não rompeu com a base institucional criada pelo governo FHC. No regime de metas de inflação, a ideia é focar os 4,5% para criar estabilidade de preços. Aí o governo do PT olha que 6,5% é o máximo e decide que vai trabalhar no máximo. E a mesma coisa na área fiscal. Vejo o governo do PT tentando levar ao máximo a condução da política econômica, claramente com o objetivo de redistribuir renda, de, como diz a Dilma, fazer um país de classe média. Ainda que o custo seja ter um período maior de inflação alta, ou uma posição de dívida pior. Em vez de reduzi-la para 20% do PIB fica em 35%. A questão que se coloca é se isso é sustentável. Em que medida posso fazer uma política de testar os limites sem que isso destrua a estrutura. O que vejo de ruim é que há um governo com uma concepção socialista e com uma falta de convicção de tornar isso claro. Falta explicitação.
Valor: E essa explicitação pode vir em 2014, durante as eleições?
Lopes: Não. E aí vamos ver o que vai acontecer. Se muda o governo ou não.
Valor: Mas se o PIB for mais para 3% não ajuda a reeleição?
Lopes Não sei. Se a inflação estiver em 6,5%, o governo consegue se reeleger?
Valor: Mas o sr. não parece apreensivo com a possibilidade de reeleição…
Lopes: Acho que se o governo se reeleger significa que a sociedade fez uma opção por uma política econômica socialista diante de uma alternativa liberal. E a política socialista tem riscos. Vivemos em um mundo em que a avaliação do exterior usa o mesmo parâmetro liberal moderno. Então, o Brasil pode perder rating, pode ser rebaixado. E isso pode ter consequências, pode haver um ataque especulativo contra o real. O Brasil não é China, não é Coreia do Norte. Então, se o país começa a desenvolver uma política muito diferente do normal, pode perder capacidade de atrair investimentos, certamente vai perder reputação na área financeira. Mas aí acho que se sobressai a importância da base institucional criada pelo governo FHC. O PT é um partido que tem um projeto socialista que não foi abandonado. Vamos parar com essa história de que o PT mudou e que é favor do Consenso do Washington. Nunca foi e nunca vai ser. Se isso termina em desastre? Acho que não. Na medida em que o governo fica tentando redistribuir renda, mas mantendo austeridade, operando no limite ao respeitar as regras do jogo.
Valor: O sr. vê o Aécio ou o Eduardo Campos sendo mais ortodoxos na condução da economia?
Lopes: Não sei. Acho que o Aécio tem dado sinais de voltar a uma política mais ortodoxa como proposta no governo de FHC. E acho que está correto. É bom para o país voltar a privilegiar o combate à inflação, a austeridade fiscal, privatização. Do mesmo jeito que acho que a oposição, ao fazer isso, está realçando qual o DNA do PT, que é redistribuir renda, mesmo que envolva mais inflação, mais intervenção de governo. Quanto ao Eduardo Campos e a Marina, não sei o que vão propor. Tem esse lado da economia verde. Mas seria útil se o debate sobre a concepção de política econômica fosse colocado. Mesmo que não tenha efeito em 2014, pode ter para 2018.
Valor: O sr. abandonou a ideia de escrever um livro sobre a passagem pelo BC?
Lopes: Estou escrevendo um livro sobre psicanálise. É meu hobby e já tenho dois terços dele. Só não sei como vou fazer quando for lançá-lo. Ele é divertido, não tem nada a ver com economia. A economia acadêmica ficou muito chata.
Valor: Ao mergulhar na psicanálise conseguiu ver algo diferente na economia?
Lopes: Boa pergunta. Na economia não sei, mas nos economistas certamente. Passei a entendê-los melhor.