Desmonte da CLT em nome da modernização econômica açulou o escravismo
Angela Alonso, Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
Folha de São Paulo, 13/03/2023
As joias árabes ofuscaram o vidro sujo das garrafas gaúchas. A última presepada do finado governo merece, sem dúvida, a escarafunchada. Mas o espetáculo nababesco da corrupção empanou a miséria do mundo do trabalho, com colares e relógios roubando a atenção do vinho avinagrado. Vinho lá do Sul, que, como as salsichas, ninguém perguntava como é feito.
Nos barris de carvalho, envelheceram bem ingredientes centenários, os do escravismo. A escravidão acabou na lei, mas se prolongou nas relações de trabalho. Isto souberam imigrantes que atravessaram o Atlântico enlatados na terceira classe de navios fétidos. Na chegada eram “contratados” para as lavouras. Aspas porque as condições de trabalho pouco distavam das escravistas, dadas as longas jornadas e a alimentação precária. A diferença seria o salário.
Seria, porque em muitos casos se estabeleceu, desde o fim legal do trabalho compulsório, a prática flagrada agora entre os gaúchos. Funcionava singelamente: o contratante monopolizava o comércio de víveres e o que ali se ganhava ali mesmo ficava. A venda de João Romão, em “O Cortiço”, detalhou em 1890, o processo que as notícias da semana passada recontaram.
A modalidade contemporânea não é exclusividade gaúcha. O estado está lá para o fim da fila no levantamento da Comissão Pastoral da Terra, com 327 ocorrências entre 2003 e 2020. Os paraenses é que são os campeões nacionais, com cerca de um quinto (10.427) do total de 49.076 pessoas libertadas de servidão involuntária no período. Mas o resto do país não se faz de rogado: em Minas, Goiás e Mato Grosso se encontraram em torno dos 4.000 trabalhadores em situação análoga à escravidão, Tocantins e Bahia ficaram na casa dos 3.000, e Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio e Maranhão, na dos 2.000. Mácula sobretudo no campo (incluído o garimpo), mas 32,7% às vistas, em áreas urbanas.
Isso é o que a fiscalização alcança. Debelar trabalho forçado depende de ação estatal, como de legislação que o impeça. A CLT evitou cenas como a sulista de permanecerem como a regra, ao regular horas, idade e remuneração mínima, além de férias, assistência na doença e na velhice.
Esse regime de proteção social garantiu a dignidade de milhões de brasileiros.
O desmonte recente deste sistema em nome da modernização econômica açulou o escravismo a tirar as manguinhas de fora. Ante reclamações patronais com os gastos com a mão de obra, embutidas no eufemismo “custo Brasil”, desmontou-se muito da política trabalhista. Andou junto a terceirização de partes da produção e dos serviços. Empresas top, globalizadas e modernas, emagreceram em empregados. A parte menos nobre do pacote foi expelida delas, via delegação de tarefas a “empreendedores” autônomos, como os motoboys, desassistidos de direitos. São as que, como a Salton, a Aurora e a Garibaldi, têm face pública limpinha, sem se interessar em saber se a matéria-prima de suas fornecedores é suja de lágrimas e sangue.
A extinção efetiva do trabalho escravo depende de leis e vigilância, como de uma política de empresários e acionistas. Cabe também a este nicho, no qual se fala tanto em liberalismo, zelar pela liberdade dos trabalhadores que produzem seus insumos. As vinícolas gaúchas se desculparam, alegando desconhecimento da cozinha alheia. Mas apenas desconhece quem não quer olhar. E se a vista se desviar, capaz da parceira, que se chama Fênix, renascer das cinzas.