“É difícil levar uma pessoa a entender alguma coisa
quando o seu salário depende de não a entender.”
Upton Sinclair
Parasitagem da riqueza social. Paraísos fiscais. Advogados. Políticos “tolerantes”. Um herdeiro que conviveu com o 0,01%, revela como esta “nova classe” multiplica sua riqueza e poder – e quanto sonha viver num mundo sem sociedades e Estados
Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 21/03/2022
O caos financeiro mundial e brasileiro que enfrentamos tem um sentido: favorecer os mais ricos. Nos 30 anos do pós-guerra, entre 1945 e 1975, o capitalismo apresentou um razoável equilíbrio entre os lucros dos empresários, a remuneração dos trabalhadores, e as políticas públicas indispensáveis ao desenvolvimento equilibrado. Com Reagan os EUA e Thatcher na Grã-Bretanha, o capitalismo se desloca para um sistema em que os lucros financeiros passam a dominar os processos produtivos. A mudança é profunda, e se baseia em três eixos de mudança.
Primeiro, com a informática e a conectividade planetária, a moeda deixa de ser algo impresso pelo governo e passa a ser um sinal magnético emitido pelos grupos financeiros. O dinheiro imaterial passa a navegar no espaço planetário instantaneamente, passa a ser “liquidez”. Não precisa abrir mala na alfândega. Segundo, o sistema financeiro passa a ser planetário, no chamado high frequency trading, com derivativos, paraísos fiscais, e outros mecanismos de escala global, enquanto os governos, ou seja, a capacidade reguladora financeira dos Estados e dos bancos centrais, estão limitados à escala nacional: os poderes públicos perdem grande parte da sua capacidade reguladora, em particular de poder orientar recursos financeiros em função das necessidades do desenvolvimento.
Terceiro, essas mudanças levaram à formação de um novo setor econômico, a indústria de gestão de ativos (asset management industry), que passou a administrar o gigantesco estoque de fortunas nos espaços privados dos bancos, hedge funds, investidores institucionais, fortunas privadas (family offices), e evidentemente nos paraísos fiscais, visando assegurar o máximo possível de evasão fiscal, de elisão fiscal (no limite da legalidade, aproveitando complexidades jurídicas), de lavagem de dinheiro, de fuga nos casos de conflitos matrimoniais, de compra de políticos e tantas outras portas que abre um sistema internacional descontrolado. Não há governo mundial, e mesmo no plano nacional as leis são frequentemente feitas para tornar legal o que não é legítimo, e muitas vezes escandaloso.
Estamos falando de um estoque de centenas de trilhões de dólares, e de um volume de movimentações incomparavelmente maior. Para ter uma ordem de grandeza, lembremos que o PIB mundial é da ordem de US$90 trilhões. As fortunas do 1% dos mais ricos, segundo o banco Crédit Suisse, é da ordem de US$190 trilhões, enquanto a metade mais pobre da população mundial, 4 bilhões de pessoas, tem apenas US$5,5 trilhões, 1,3% da riqueza. A desigualdade, como sabemos, está explodindo no mundo, essencialmente por meio de ganhos financeiros, explorando, travando a base produtiva em vez de fomentá-la. É o “capitalismo extrativo” tão denunciado por inúmeros economistas e até por pessoas indignadas do próprio “mercado”.
Chuck Collins, que recebeu de herança uma pequena fortuna quando jovem, e que tem, portanto, entrada no mundo dos afortunados, concentrou o estudo The Wealth Hoarders (poderíamos traduzir como guardiões de riqueza) no que aparece mais claramente no subtítulo: “Como bilionários pagam milhões para esconder trilhões.” É importante dizer que não se trata de um panfleto anti-ricos: se trata de um estudo muito sistemático e bem documentado sobre como funciona o grande mundo financeiro que administra e assegura o aumento exponencial do grande dinheiro. Porque os donos de grandes fortunas não correm atrás de mais dinheiro: contratam empresas especializadas, bem remuneradas, que detêm conhecimentos impressionantes sobre as frestas e lacunas nas leis, que países ou territórios são mais corruptíveis, como criar “family offices”, trustes, empresas laranja (shell companies), que políticos são mais acessíveis.
Esses profissionais constituem a tropa de choque do mundo da alta finança, dos UHNW (Ultra High Net-Worth individuals), buscando maximizar os seus rendimentos, assegurar o segredo das transações e minimizar o pagamento de impostos. Estão administrando os interesses não mais dos “capitães da indústria” de outrora, General Motors e semelhantes, mas a rede mundial do 0,01% e do 0,001 dos detentores de riqueza acumulada. De certa forma, é a classe política do mundo financeiro, os que administram a riqueza real dos bilionários.
Para dar uma ordem de grandeza, a BlackRock administra US$10 trilhões, seis vezes o PIB do Brasil. Junto com Vanguard e State Street, três grupos privados administram US$20 trilhões, o equivalente ao PIB dos Estados Unidos, de US$21 trilhões. Biden está batalhando para conseguir liberar 3 trilhões de dólares para os próximos 10 anos.
Olhando o conjunto que formam as grandes fortunas privadas mundiais por um lado, e a máquina de gestão dessas fortunas por outro, constatamos que hoje existe uma oligarquia financeira mundial com poder político e econômico dominante, que deforma tudo o que temos chamado de política e de democracia. Não são bem capitalistas, mais bem constituem uma aristocracia financeira que explora inclusive o capitalismo produtivo. E evidentemente cada um de nós.
As novas tecnologias redimensionaram essas políticas, na medida em que o dinheiro imaterial escapa facilmente aos controles, mas também pelo fato que permitem a micro drenagem do bolso de bilhões de pessoas pelo mundo, por exemplo pela tarifa incluída no que pagamos com o cartão de crédito. Com a sofisticação das plataformas globais, pequenas taxas ou aumentos de preços generalizados no planeta, o dinheiro da base da sociedade, inclusive das empresas privadas, flui para o topo da pirâmide, que não precisa ter contribuição produtiva: mas precisa sim de bons informáticos, advogados, políticos e administradores que constituem, precisamente, os que recebem milhões para esconder trilhões. Collins detalha como funciona a máquina.
No conjunto, apesar das inúmeras tentativas de controle da rede de ilegalidades, descritas em detalhe no livro, o sistema criou vida própria: “Vivemos num sistema crescentemente globalizado, com o capital desvinculado (delinked) dos estados nacionais. Essa “classe capitalista transnacional”, como a descreve William Robinson, está alterando o sistema econômico. Com a evolução do sistema, pessoas ricas e empresas transnacionais estão tentando se tornar apátridas (stateless) e desvinculadas das regras nacionais…Neste sistema, os oligarcas e cleptocratas globais têm mais em comum uns com os outros do que com cidadãos dos seus estados de origem.”(150)
Igualmente significativo é o papel dominante que exerce “o mundo de fala inglesa”, na expressão de Collins: “Os centros econômicos dos Estados Unidos e do Reino Unido são as forças motrizes no sistema global de riqueza escondida. O mundo de fala inglesa carrega uma responsabilidade desproporcional pela criação dessa confusão (this mess) e por manter o sistema – e tem também um tremendo poder para o alterar.”(152)
Um livro pequeno, de leitura simples e transparente, e que acende a luz neste universo obscuro dos que tanto falam do seu “merecimento”, mas se apoiam numa estrutura paralela de poder que não presta contas a ninguém, apenas recebe os seus milhões por serviços prestados. Neste sentido, o livro de Collins converge muito com outros livros que resenhamos, como A Arapuca Estadunidense do Pierucci, ou as Confissões de um Assassino Econômico de John Perkins: mostram o mecanismo interno real, as engrenagens, do universo que temos qualificado de “mercados”, mas que constituem um sistema parasita que drena a renda das famílias, a capacidade de investimento das empresas produtivas, e os recursos públicos que asseguravam as políticas sociais. O resultado é o drama planetário que vivemos: o aquecimento global e outras tragédias ambientais, a desigualdade explosiva, e a paralisia econômica. O dinheiro acumulado pela aristocracia financeira não provém da sua contribuição produtiva, mas da máquina extrativa que hoje se tornou o mecanismo dominante de enriquecimento no planeta.