O governo federal colocou em prática a estratégia de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental por meio de ‘reformas infralegais’
Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Folha de São Paulo – 26/03/2022
A Constituição de 1988 assegurou a todos o “direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado… impondo ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, antecipando de forma premonitória as ameaças impostas pela crise climática que hoje constitui um dos principais desafios para a humanidade.
Em atendimento a esse verdadeiro pacto intergeracional estabelecido pelo artigo 225 da Constituição Federal, o Brasil adotou em 2004 um Plano de Ação para Prevenção e Controle de Desmatamento na Amazônia Legal, que foi consolidado pela lei 12.187, de 2009. A implementação desse plano contribuiu de maneira efetiva para a redução de 83% do desmatamento na Amazônia Legal entre 2004 e 2012, contrariando interesses de grileiros, madeireiros, garimpeiros ilegais e de setores envolvidos em projetos agrícolas insustentáveis.
Incapaz de alterar a Constituição e as leis de proteção ambiental, para atender sua base de apoio, o governo federal colocou em prática a estratégia — explicada por Ricardo Salles na escatológica reunião ministerial de 22 de abril de 2020 — de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental, por meio de “reformas infralegais”, como se não houvesse amanhã.
Combinada com estrangulamento orçamentário, nomeação de pessoas inaptas e atos parainstitucionais que estimulam o desmatamento, o infralegalismo autoritário de Bolsonaro vem permitindo ao seu governo amesquinhar a ação de agências de proteção ambiental como Ibama, ICMBio, Inpe e mesmo a Funai.
De 2018 para cá, houve uma queda de 82,7% na imposição de embargos a atividades de desmatamento; assim como uma redução de 80,7% nas apreensões realizadas pelo Ibama. No mesmo sentido, mais de 5.000 autuações por infrações ambientais correm risco de prescrever em decorrência de deliberada omissão governo.
O resultado desse plano macabro e inconstitucional é a impunidade e o aumento do desmatamento. A estratégia do infralegalismo autoritário, aplicada ao campo ambiental, contribuiu para um aumento de 76% no desmatamento na Amazônia Legal em 2021, se comparado a 2018. O desmatamento em terras indígenas (TI) e nas unidades de conservação (UC) cresceu respectivamente 138% e 130% nos mesmos três anos (Prodes/Inpe). O índice de emissões causadoras de emergência climática superou três vezes a meta estabelecida pela Política Nacional de Mudança Climática.
O Supremo Tribunal Federal, que vem assumindo um papel fundamental na defesa das instituições democráticas e na proteção do direito à vida e à saúde da população durante o período Bolsonaro, terá nos próximos dias uma oportunidade única de interromper essa espiral perversa de devastação ambiental.
Não se trata de interferência indevida do Supremo em esfera de competência do Executivo, mas de mero exercício da missão reservada ao Supremo de proteger a Constituição de atos e omissões que a afrontem. Ao Supremo não se requer a criação de uma política ambiental, mas apenas que faça cumprir aquilo que foi estabelecido pela Constituição e pelas leis.
Mais do que a preservação das florestas, do regime de chuvas, da pujança do agronegócio ou da preservação de nossa matriz limpa de energia —que dependem de nosso regime de águas—, o que está em jogo nesse julgamento é o bem-estar de nossos filhos e netos e, no limite, a própria sobrevivência das futuras gerações.