A desonestidade do Estado e de parte da sociedade brasileira com seus jovens é constrangedora
Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Folha de São Paulo, 12/02/2022
A perversa e persistente estratégia de desenvolvimento nacional, fundada em altos níveis de concentração de renda, baixos padrões educacionais, desigualdade social, racismo estrutural e na violência e arbítrio como formas de ordenação social, nunca foram tão evidentes como no presente momento.
Dois relatórios publicados recentemente escancaram o quanto a sociedade brasileira, leia-se os adultos, temos descumprido nossas obrigações, plasmadas no artigo 227 da Constituição Federal, de assegurar às crianças e adolescentes “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação… à dignidade…, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
A desonestidade do Estado e de parte da sociedade brasileira com seus jovens é constrangedora, comprometendo não apenas o processo de desenvolvimento econômico e social do Brasil, mas, também, a própria aspiração de vivermos em paz, sob o estado democrático de direito.
O movimento Todos pela Educação, que vem mapeando o desempenho da educação brasileira nas últimas décadas, sinaliza em seu último relatório um preocupante crescimento de 66,3% no número de crianças, entre 6 e 7 anos, que não foram alfabetizadas.
Se é fato que uma parcela substantiva desse crescimento se deve à Covid-19 e ao fechamento das escolas públicas, onde estudam mais de 80% de nossos alunos, predominantemente pobres, o que mais preocupa, como argutamente aponta Claudia Costin, nesta Folha, é que esse crescimento se dá sobre um número já extremamente alto de crianças —cerca de 55%— que não se encontra alfabetizada no 3º. ano do ensino fundamental. Mantidos esses padrões educacionais, o Brasil jamais conseguirá ingressar numa economia cada vez mais pautada no conhecimento, ficando fadado à produção de commodities.
Nossas crianças não têm apenas uma educação deficiente, em face de políticas educacionais insuficientes. Como aponta o relatório “Tiro no Futuro”, recentemente publicado pelo Centro de Estudos de Segurança Pública e Cidadania (CESeC), a violência, em grande medida decorrente de uma política equivocada de “guerra às drogas”, tem tido um forte impacto sobre a trajetória educacional, psíquica e social de jovens que vivem em comunidades, encontrando-se expostas ao tráfico, a operações policiais bélicas, tiroteios e balas perdidas.
Nada menos do que 1.115 escolas públicas ficaram expostas aos 4.346 episódios de trocas de tiros registrados na cidade do Rio de Janeiro, em 2019. Os alunos de 57% dessas escolas presenciaram dez tiroteios; de 11% das escolas, 30 tiroteios; já as crianças de 0,3% dessas escolas ficaram expostas a 95 casos de troca de tiros em um único ano.
Os pesquisadores apontaram as perdas educacionais coletadas junto à secretaria de educação e estimaram as perdas econômicas decorrentes da exposição à violência. Indicam, no entanto, que há inúmeras outras sequelas que acompanharão esses alunos ao longo de suas vidas.
Chamo a atenção, aqui, para a dificuldade que essas crianças, que não tiveram seus direitos mais básicos respeitados, terão em se conformar ao Estado de Direito. A insinceridade dos adultos e do Estado brasileiro no cumprimento de suas obrigações morais e legais em nada favorecerá a que esses jovens reconheçam os códigos de respeito recíproco indispensáveis numa sociedade democrática. Sem que sejamos capazes de reconfigurar nosso projeto de desenvolvimento, estaremos conspirando contra o futuro de nossos próprios filhos e netos.