Enquanto chuvas levavam calamidade à Bahia, presidente dava cavalo de pau em jet ski e visitava parque temático
Itamar Vieira Júnior, Geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”
Folha de São Paulo – 09/01/2022
Todo ano o rito se repete: retrospectivas, balanços e confraternizações por toda parte. Constato, contudo, que o tempo não é mais o mesmo. Atravessamos um ano —não qualquer um, mas um ano difícil— e quase não o vivemos por inteiro.
Entre as atividades do cotidiano, as pequenas conquistas e as dores, que abundaram como nunca, não conseguimos nos dar conta de que os dias passavam velozes.
Mas este é um tempo diferente dos demais que já atravessei. É possível que não quiséssemos mais os dias de volta e eles escoaram como um rio que não retorna.
Na Bahia, as chuvas levaram calamidade a uma grande área do estado. Foram as mais volumosas para o período, se considerarmos as áreas onde há medição. Quase 1 milhão de pessoas foram afetadas e cerca de um terço dos municípios decretaram emergência.
Reflexo de nossas ações predatórias, que começaram há muitos e muitos anos, mas se acentuaram neste tempo de uma maneira incontrolável e desafiadora. Eis uma palavra que cada vez mais fará parte de nosso cotidiano: injustiça climática.
Isso porque as alterações ambientais afetam as pessoas de maneira distinta. A interseção injustiça climática e desigualdade social é a crise anunciada atingindo de forma desigual os desiguais.
Quem dispõe de infraestrutura e saneamento e quem pode se deslocar e promover melhorias em suas habitações é menos impactado. Quem apenas sobrevive será testado em outro limite.
E como fez falta a mão que o senhor presidente da República poderia ter nos estendido em solidariedade. Ele preferiu permanecer de férias onde não chovia, dando cavalo de pau em jet ski e visitando parques temáticos sem transmitir nenhuma palavra de conforto.
Não surpreende, claro, mas sou incorrigível quando se trata de esperança na humanidade. Até porque, se olharmos por uma perspectiva histórica, demos significativos passos para uma convivência mais justa entre nós mesmos e o planeta.
Se pensarmos que há pouco mais de um século escravizar outros seres humanos era aceitável, sim; ou que mulheres não podiam votar e precisavam da autorização dos maridos em muitas situações de sua vida social. Ainda há muito por fazer, mas os primeiros passos foram dados muito antes de nós. Cada um à sua maneira foi desafiando o sistema.
Por isso, não posso perder a esperança de que qualquer ser humano seja capaz de transformar a si e seu entorno.
A pandemia do coronavírus deu ao presidente uma grande chance, talvez a mais importante de sua vida, de demonstrar que se importa com alguém, mas ele preferiu sabotar as medidas sanitárias e a vacinação da população no tempo necessário. Ensaiou fazer o mesmo com as crianças.
Sua insensibilidade nos levou a registrar perdas humanas em proporções nunca vistas em nossa história. Era um momento para deixar de lado as diferenças e ter unido o país em torno de um bem comum, mas o resto da história já sabemos como se deu.
Ao longo do mandato, Bolsonaro perdeu grandes chances de demonstrar empatia pelo outro. O slogan de seu governo, “Pátria amada, Brasil”, evoca a palavra pátria, comunidade imaginada onde estamos reunidos virtualmente, de forma desigual, mas ainda assim unidos.
Evocar a palavra pátria é evocar sentimentos que podem nos unir como uma comunidade, e, para que essa comunidade exista, é preciso que ela seja reconhecida por meio de nossas subjetividades. Esperamos dos líderes sentimentos de compaixão por sua família, seu grupo ou sua comunidade.
Digo isso porque, ao longo do tempo, conheci inúmeros agrupamentos humanos onde essa premissa se confirmou. Não que fossem comunidades perfeitas: havia divergências, desigualdades, disputa por poder, mas ainda assim as dores eram compartilhadas de maneira coletiva.
Daí a minha modesta militância pela literatura. Em “Comunidades Imaginadas”, o cientista político Benedict Anderson escreveu sobre o papel de jornais e romances, ainda que circulassem apenas entre a elite letrada, na construção do ideal de uma comunidade imaginada.
Em “A Invenção dos Direitos Humanos”, Lynn Hunt fala em “empatia imaginada”, fruto da fruição de uma obra literária. “É imaginada não no sentido de inventada, mas no sentido de que a empatia requer um salto de fé, de imaginar que alguma outra pessoa é como você”, escreveu a autora.
Talvez seja isso —precisamos de mais educação, mais leituras para dar esse salto de fé. Continuo a acreditar.