Para Tatiana Roque, pactos entre ciência, sociedade e poder precisam ser refeitos
Cristiane Fontes
Marcelo Leite
Folha de São Paulo – 09/12/2021
OXFORD E SÃO PAULO
A matemática, filósofa e historiadora Tatiana Roque acaba de lançar “O Dia em que Voltamos de Marte: Uma História da Ciência e do Poder com Pistas para um Novo Presente”. No livro, ela detalha os avanços tecnológicos e disputas em torno dos paradigmas científicos nos últimos 400 anos.
“Nós vivemos tempos inéditos, tempos sem precedentes, que demandam respostas originais”, afirma. Para Roque, um dos principais problemas do neodesenvolvimentismo latino-americano, como no caso do PT, é o de se apoiar numa concepção historicamente datada, uma vez que a crise climática coloca em xeque justamente o modelo industrial do pós-guerra.
“Não é tanto pensar o que nós podemos fazer pelas mudanças climáticas e sim o que as mudanças climáticas podem fazer por nós”, defende. “Ver as mudanças climáticas como uma oportunidade de reformular completamente a nossa vida social e a nossa vida política, que, afinal de contas, não está funcionando tão bem.”
Para ela, o mais interessante da COP 26 (Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas) foi o contraponto de uma sociedade civil brasileira ativa a um governo catastrófico, com destaque para o movimento negro colocando o racismo ambiental como uma questão central.
A questão é como transformar essa movimentação social em renovação político-partidária, não só de pessoas, mas de agendas. “Vejam os discursos incríveis que Lula fez na Europa, mas, na hora de falar de desenvolvimento, ele falou do quê? De carro!”
O que levou você a escrever “O Dia em que Voltamos de Marte”? O que a história diz sobre os caminhos que nos trouxeram até aqui? Resolvi escrever um livro histórico, porque a história presente não encontra paralelos. Nós
vivemos tempos inéditos, tempos sem precedentes, que demandam respostas originais.
Esse é um dos argumentos principais do livro, tentar mostrar que nós vivemos tempos que não têm comparação com nada que a gente já viveu anteriormente e, portanto, esses pactos entre ciência e sociedade, entre ciência e poder, precisam ser refeitos e não vão mais se refazer imitando ou reproduzindo aquilo que foi feito em outros momentos históricos.
Portanto, não há paralelos. Mas aí, qual passa a ser o guia? Essa é uma dificuldade que a gente precisa reconhecer para encontrar soluções. No livro, uso muito o historiador Dipesh Chakrabarty, que fala sobre essa interseção entre duas histórias.
A gente sempre costumou pensar as mudanças atmosféricas e geológicas como mudanças que se localizavam num tempo muito longo, incompatível com o tempo da vida humana. Agora, a gente está vendo esses dois tempos se cruzarem, e o homem passou a ser uma força geológica. Como se servir de guias do passado quando a gente vive esse momento em que a vida humana está ameaçada de extinção pela ação da própria humanidade?
Você diz no livro que é preciso repensarmos a vida na Terra. A partir de que pistas a gente tem de enfrentar essa empreitada? O principal guia é o combate às mudanças climáticas. Não é tanto pensar o que nós podemos fazer pelas mudanças climáticas e sim o que as mudanças climáticas podem fazer por nós.
Ou seja, não é ver as mudanças climáticas como um empecilho, como algo que a gente precisa ultrapassar para continuar vivendo como sempre viveu, é ver as mudanças climáticas como uma oportunidade de reformular completamente a nossa vida social e a nossa vida política, que, afinal de contas, não está funcionando tão bem.
Como agir no presente para cuidar do futuro considerando uma sociedade como a brasileira, que tem enormes desigualdades sociais e grave e longa crise política e econômica? O Brasil se identificou bastante e por muito tempo com esse mito do país do futuro. Isso nos atrapalha muito, porque as soluções são sempre jogadas para depois.
Existe uma relação com o tempo que acaba nos impedindo de resolver esses problemas, porque a questão da desigualdade depende de alguma coisa por vir, não é o desafio principal presente.
A gente precisa inverter essa temporalidade e pensar que a gente tem de, primeiro, combater as desigualdades e pensar a partir daí em um novo modelo de desenvolvimento.
O que saiu de mais interessante na COP6, e o que mais preocupa no que foi discutido e definido em Glasgow? No caso do Brasil, a gente mostrou que tem uma sociedade civil ativa, apesar de o governo ser uma catástrofe. Do ponto de vista das negociações, acho que é muito aquém daquilo que a gente precisa. Temos um problema de governança global, não é só na COP, e quase todo mundo reconhece isso.
Esse modelo em que tomadores de decisão assumem compromissos voluntários, em que eles podem cumprir ou não, em que não há nenhuma forma de regulação, é algo que já mostrou bastante insuficiente.
Quais são os temas mais urgentes para o Brasil, considerando as eleições presidenciais do próximo ano? Pensar um modelo de desenvolvimento que não deixe a questão climática e ambiental em segundo plano. A gente tem um longo caminho para renovação da esquerda brasileira e latino-americana. A esquerda tem uma tendência a ser um pouco nostálgica do paradigma do New Deal.
Como recuperar um paradigma industrialista e baseado em um Estado de bem-estar social que funcionou em algumas partes do mundo e não funcionou totalmente nos países do sul? Como recuperar esse paradigma em um momento de crise climática, que coloca em xeque o modelo industrial do pós-guerra? Acho que o problema do neodesenvolvimentismo é justamente se apoiar em uma concepção historicamente datada em face da questão climática.
A ciência continua sendo fundamental para a superação de qualquer crise, especialmente, da crise climática. Como restabelecer a confiança na ciência dentro do fortalecimento do negacionismo e do desmantelamento das políticas públicas de ciência e inovação no Brasil? Acredito que, no Brasil, a crise da confiança na ciência não seja muito profunda. O exemplo das vacinas é muito bom. A gente tem grande confiança nas vacinas, justamente porque as políticas públicas de vacinação têm histórias de sucesso, das campanhas atingirem muita gente, disso ser algo reconhecido pela população.
A confiança na ciência não se dá no vazio. Essa valorização depende de como as pessoas enxergam o impacto da ciência nas suas vidas. Algumas pesquisas sobre confiança na ciência com as quais venho trabalhando mostram justamente isso, que a confiança tem uma correlação com o impacto que as pessoas percebem ou não no seu cotidiano.
Talvez a gente precise se mirar nisso para tratar a ciência de um modo mais implicado na sociedade.
A crise climática finalmente deixou de ser um assunto só da ciência e agora é também um assunto político, econômico, das artes. Quais as pistas para o novo modelo que você aponta? No Brasil, sem dúvida alguma, quem aponta novos paradigmas são os povos indígenas, que apresentam outros modos de vida e formulações muito impactantes, como as que estão no livro “A Queda do Céu”, do [Davi] Kopenawa ou “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, do Aílton Krenak.
Fora isso, tem toda a organização da sociedade civil, o movimento negro, os quilombolas, se organizando e trazendo o racismo ambiental como questão essencial para organizar essas agendas.
O que falta é a gente saber como essa mobilização social e as contribuições científicas, que no Brasil são muitas e muito importante para a questão climática, podem servir para uma renovação política. Ela não vai acontecer sem uma renovação político-partidária, e isso tem de chegar nas agendas dos candidatos, dos partidos.
O campo que tem condições de produzir essas transformações é o da esquerda, mas a gente ainda não conseguiu renovar as nossas lideranças. Vejam os discursos que Lula fez na Europa, incríveis sob muitos pontos de vista, mas, na hora de falar de desenvolvimento, ele falou do quê? De carro! Falou da nossa produção de automóveis e nem mencionou transição energética, carro elétrico, nada disso.
RAIO-X
Tatiana Roque, 51
Professora de matemática, história das ciências e filosofia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, foi presidente do sindicato docente da UFRJ e liderou campanhas contra os cortes de verbas para as universidades e a ciência. Foi candidata a deputada federal pelo PSOL em 2018.