Crise na China evidencia risco de manter “crescimento fictício”

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Por Marcelo Ninio – 25/09/2021

Para levar adiante seu plano de frear a oferta de crédito fácil, é preciso aceitar uma queda significativa nos números do PIB, abrindo mão do “crescimento fictício”. Mas essa é uma ação que esbarra em grande resistência política, afirma Pettis, que há anos alerta para os riscos do excesso de endividamento para a economia chinesa.

Como a situação chegou a esse ponto?
Por muito tempo as incorporadoras cresceram rápido demais. Seu sucesso era puxado por três fatores: alto endividamento, muita liquidez e grandes lucros brutos. O problema é que nos últimos anos a liquidez desacelerou, chegando a ser negativa em agosto. O governo passou a ficar tão preocupado com o volume de endividamento no setor imobiliário que começou a impor limites. Não é a primeira vez que isso acontece. Há anos o governo fala em tomar medidas. Mas toda vez que tentava frear o crescimento das incorporadoras havia recuos, porque isso afeta a economia, reduz o preço dos imóveis e desacelera o setor imobiliário, que tem enorme importância na economia chinesa. Eles representam 25% do PIB e empregam milhões de pessoas, direta e indiretamente. Só a Evergrande tem 200 mil funcionários. Por isso é muito difícil exercer controle. Não há uma saída fácil. A Evergrande significa um grande dilema para os reguladores. Se querem eliminar a cultura da dívida é melhor não intervir. Mas sem uma intervenção há o risco de os problemas se alastrarem rapidamente e afetarem a população. Quanto maior a intervenção mais difícil será solucionar o problema. Acho que os reguladores se surpreenderam com a rapidez com que a economia ficou sob risco e estão ansiosos para aplicar uma solução que ponha um fim nisso.

Se uma intervenção parece inevitável, porque o governo ainda não se pronunciou?
É muito complicado. Se o governo faz um anúncio é para cessar o pânico. Isso significa que é preciso pensar em todos os componentes. O que fazer com as pessoas que investiram em ativos da Evergrande? O que fazer com os funcionários da Evergrande? O que fazer com as pessoas que pagaram adiantado por imóveis da Evergrande que não estão finalizados? O que fazer com a indústria de tinta, que está prestes a falir por ter fornecido enormes quantidades à Evergrande e não foram pagos? O que fazer com as construtoras que trabalhavam para a Evergrande e suspenderam os pagamentos a seus operários? Há muitos elementos nessa equação e é preciso encontrar uma solução para todos. Uma solução pela metade não serve. Quando o governo entrar em cena deve ser para acabar com o pânico.

Há vários tipos possíveis de intervenção, da máxima, em que o governo garante todos os pagamentos e acaba com a crise ao outro extremo, em que não há intervenção alguma. O governo deverá escolher algo no meio, mas qual? Uma solução política melhor talvez leve a uma solução econômica pior e vice-versa. É muito difícil apresentar uma resposta que agrade a todos. Na realidade não há tal saída, é preciso encontrar uma solução que basicamente agrade a Xi Jinping, Liu He [principal assessor econômico] e as pessoas em torno deles.

Sabia-se que o setor imobiliário chinês era “viciado em dívida”. Porque o governo não agiu com mais firmeza para reduzir essa dependência?
Por que as bolhas crescem? Politicamente é muito difícil esvaziá-las. Quem faz isso é acusado de destruir algo que estava funcionando. É muito difícil argumentar que se a bolha não for esvaziada em algum momento ela explodirá e causará grandes danos. É algo muito difícil de provar. Como disse um presidente do Fed [BC americano], o trabalho do Banco Central é cortar a bebida quando a festa está ficando animada. Fica todo mundo furioso, porque enquanto estão bebendo as pessoas não costumam pensar na ressaca do dia seguinte.
Evergrande para promover as correções necessárias, ao impor no ano passado limites à alavancagem das incorporadoras, as chamadas “três linhas vermelhas?

As três linhas vermelhas são o gatilho, não a causa. A causa é o vasto e excessivo endividamento do setor imobiliário. Em algum ponto isso ia ter que parar, seja por medidas regulatórias ou porque a situação ficou tão fora de controle que haveria uma crise. Os reguladores decidiram botar um fim nisso, mas não havia meio de fazê-lo sem causar danos. Há anos as autoridades têm tentado colocar um freio, mas toda vez que eles agem há prejuízos e torna-se politicamente inaceitável e eles recuam.

O governo está disposto a aceitar um crescimento menor do PIB para frear o endividamento?
Claro que as pessoas que podem responder a essa questão jamais irão discuti-la. Meu palpite é que o crescimento real é menor do que eles pensam. Portanto, mesmo se eles acreditam que é possível abrir mão do crescimento fictício gerado pelo setor imobiliário, o custo político de uma queda no PIB pode ser difícil de aceitar. E mesmo se conseguirem se livrar do mau crescimento, parar de construir apartamentos que ficarão vazios e não trazem nenhum valor econômico, de construir pontes desnecessárias e estender ferrovias a lugares que não fazem sentido, qual será o crescimento real da China? Eu acho que será bem menor do que eles esperam. Por muitos anos o crescimento do PIB foi maior que o da renda das famílias. Então em teoria hoje poderia haver uma grande queda no crescimento do PIB sem uma queda drástica no crescimento da renda. Politicamente é muito difícil.

Quais os riscos da crise na Evergrande para a economia mundial?
Acho que são bastante limitados. O perigo de um contágio financeiro é pequeno. O sistema financeiro chinês ainda é em grande medida fechado. A razão de os mercados terem reagido tão mal à crise da Evergrande é que há muita confusão sobre a China. Então sempre que algo acontece na China a reação dos mercados é recuar. Se a Evergrande forçar um reajuste na economia chinesa, com menos investimento e mais consumo, tudo o que a China importa para investimento, como minério de ferro, terá uma demanda menor [com impacto sobre exportadores como o Brasil]. Não quer dizer que isso se dará imediatamente, mas em algum momento isso acontecerá. A China não pode continuar tendo o maior nível de investimento da história, isso já há 20, 30 anos. Se a Evergrande é o que levará a essa mudança nós não sabemos, é esperar para ver.

O governo tem capacidade de promover essa mudança?
Tem, mas lembre qual o papel da dívida. A dívida vem crescendo rapidamente na China desde os anos 1980, mas isso não era muito notado porque o PIB crescia na mesma velocidade. Só nos últimos dez ou 15 anos a dívida acelerou e o PIB desacelerou. E a razão disso é que a dívida foi usada em investimentos desnecessários. O Brasil passou pelo mesmo nos anos 1970. O papel da dívida é manter os investimentos em alta, que por sua vez são necessários para manter o crescimento do PIB, empregos, etc. Mas se você quer se livrar da dívida é preciso aceitar um nível bem menor de investimentos e um crescimento do PIB muito mais baixo. É sempre um problema político. Todos querem ter altas taxas de crescimento, o problema é que num certo ponto não dá mais para jogar esse jogo e os ajustes se tornam extremamente perigosos. Por isso, quanto antes os ajustes são feitos, melhor.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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