A pobretologia a serviço dos Estados Unidos da América: O imperialismo brando do Banco Mundial

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Autor: Eleonora de Lucena

A despeito dos diferentes discursos que assumiu ao longo de seus quase 70 anos, o Banco Mundial sempre coadunou sua atuação à política externa dos EUA, diz autor de estudo sobre a história política e ideológica do banco, num projeto de “imperialismo brando” que visava ao desenvolvimento capitalista da periferia.

O FIM DE SEMANA foi marcado por mais uma reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (Bird) com a nata do poder econômico. Banqueiros, ministros de Estado e economistas terão avaliado as projeções de crescimento, os números de déficits, o estágio da guerra das moedas. Até o velho tabu do controle de capitais foi trazido à mesa.
A atual crise financeira revigorou a importância dessas duas criações da conferência de Bretton Woods (1944), que moldou o mundo no pós-Guerra. Há pouco tempo, FMI e Bird eram classificados como decadentes por alas da esquerda e da direita nos EUA. O vento mudou.
O FMI nunca emprestou tanto e tão rapidamente como na segunda metade de 2008. Os desembolsos do Banco Mundial pularam de US$ 24,7 bilhões (R$ 39 bi) em 2008 para US$ 58,7 bilhões (R$ 93 bi) em 2010. Ao mesmo tempo, a disputa por poder nas instituições foi intensificada.
Ao receber Barack Obama, em março, a presidente Dilma Rousseff falou da “lentidão das reformas nas instituições multilaterais que ainda refletem um mundo antigo”. Em recente declaração, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, também defendeu mudanças no FMI e no Bird.

INTERESSES Para entender o que está por trás desses movimentos e os interesses que explicam a história da dupla FMI-Bird, é muito esclarecedora a leitura de “O Banco Mundial Como Ator Político, Intelectual e Financeiro” [Civilização Brasileira, 504 págs., R$ 59,90], de João Márcio Mendes Pereira, 33. O livro é resultado de sua pesquisa de doutorado em história na Universidade Federal Fluminense (UFF). Mostra como, desde a sua origem, o Banco Mundial serviu aos interesses da expansão capitalista liderada pelos EUA, metamorfoseando-se conforme os ditames da potência.
Assim, atuou para ajudar empresas norte-americanas na reconstrução dos países devastados pela guerra. Depois, virou propagandista de ações na periferia para bloquear revoltas, criando o que o autor chama de “pobretologia”. Incorporando uma retórica de esquerda, passou a financiar ONGs e aderiu ao discurso verde. Ao mesmo tempo, disseminou o Consenso de Washington, alardeando privatizações.
Se nas organizações da ONU cada país tem um voto, no Banco Mundial o poder foi sempre balizado pelo dinheiro, sem considerar, por exemplo, o tamanho das populações.
Pereira assinala que “o poder de voto de cada membro está condicionado pela sua subscrição de capital”, refletindo as desigualdades mundiais. Ou ainda: “A posição de cada membro é resultado da relação complexa entre a dinâmica internacional da acumulação capitalista e o exercício do poder político”.

DÓLAR A partir daí, o historiador narra várias fases do banco. Conta como a Grã-Bretanha, logo no início, teve que assumir sua nova posição, subalterna aos EUA, para que o Bird fosse estabelecido e enviasse dinheiro para a reconstrução europeia. O dólar passava a mandar. Veio o Plano Marshall.
De início desconfiada em relação ao novo banco, Wall Street logo percebeu que os empréstimos seriam lucrativos para as empresas norte-americanas e úteis para a política externa -marcas que continuam firmes até hoje.
Nos primeiros anos, o banco se preocupou em abrir mercados para produtos e capital norte-americano, buscando também matérias-primas. Muitos empréstimos foram então destinados a áreas coloniais de interesse das metrópoles. Nenhum dólar era desembolsado para hospitais, escolas, saneamento básico.
A Guerra Fria mudou esse quadro e trouxe a retórica do desenvolvimento. A ordem era investir na periferia para evitar a sedução por mudanças. Foi a época dos projetos para a agricultura, voltados para irrigação em grandes propriedades e que abriram os mercados para fertilizantes e pesticidas.
Era a “revolução verde” promovida pelo banco, que, no entanto, desprezava temas como reforma agrária, distribuição de riqueza e ensino fundamental de massa. É uma fase bem detalhada pelo autor, que também escreveu “A Política de Reforma Agrária de Mercado do Banco Mundial: Fundamentos, Objetivos, Contradições e Perspectivas” (Hucitec, 2009).

POBREZA ABSOLUTA Sob o impacto do desastre no Vietnã, Robert McNamara assumiu o banco preocupado com segurança e com a força política do campesinato. O ex-secretário de Defesa dos EUA e arquiteto daquela guerra quis dar ênfase ao combate à pobreza, especialmente a rural, para minar as rebeliões que rondavam os países pobres. No banco, a discussão sobre equidade foi substituída pela da “pobreza absoluta”. Foi quando apareceu a questão do “foco” na abordagem social. Os negócios continuaram como sempre.
Para Pereira, “o banco se tornou uma agência capaz de articular e veicular um projeto mais abrangente de desenvolvimento capitalista para a periferia, ancorado a um só tempo na ‘ciência da pobreza’ e na ‘ciência da gestão política da pobreza’, pela via do crédito e não da filantropia”.
Dissecando a miríade de projetos, ele conclui que os recursos beneficiaram, quase que diretamente, a acumulação privada de capital. Do ponto de vista político, o alinhamento com Washington era total: empréstimos negados a Allende saíram para Pinochet.
O arrefecimento da Guerra Fria fez o banco engavetar os projetos da área social. Nos anos 1980, fica clara a posição de vanguarda ideológica da instituição. O Bird traz temas como a reforma do Estado. Receita a liberalização do comércio, desvalorizações cambiais, endividamento.

NEOLIBERALISMO A crise mexicana (1982) e a estagnação da periferia provocam uma nova adaptação no discurso. Depois da queda do Muro de Berlim (1989), o neoliberal Consenso de Washington se instalou sem pejo, propagandeando a desregulamentação financeira, a privatização em massa e o aniquilamento de direitos sociais.
Até hoje, com alguma reciclagem, de acordo com o autor, essas seguem sendo as diretrizes do banco. Mas há nuances. Uma delas foi a incorporação do discurso ambientalista, que atraiu e domesticou ONGs pasteurizadas. Pereira classifica esse movimento de “imperialismo brando”, que “consiste em manter uma vasta rede de ONGs presas às planilhas de pagamento”.
A adesão ecológica aconteceu depois de vários fiascos de seus projetos no terreno ambiental. Um dos mais ruinosos foi em Rondônia, a mesma que vivenciou recentemente a rebelião dos peões da construção civil.
Lá, escreve Pereira, o Bird financiou devastação, violência e concentração fundiária ao dar seu apoio ao Polonoroeste e à construção da rodovia BR-364, no início dos anos 1980.

CÁUSTICO Pereira, professor adjunto de história da América contemporânea da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, é bastante cáustico ao relatar desde os critérios para concessão de créditos até a produção intelectual do banco. Condena também a falta de transparência. Desanca a elaboração de relatórios e estudos, mostrando direcionamentos, censuras internas, omissões e erros.
Conta, por exemplo, como o ponto de vista japonês -que dá ênfase ao poder estatal- foi sabotado em trabalhos do banco, que acabavam sendo feitos sob encomenda dos interesses norte-americanos.
Nesse ponto, Pereira relata as ginásticas feitas pelo Bird sobre a alardeada contradição entre Estado e mercado. Sua opinião: “O rechaço à tese do ‘Estado mínimo’ [em 1997] foi uma manobra política inteligente, pois fez crer, para muitos, que estava em julgamento algo que, na verdade, nunca existiu. […] A reestruturação capitalista neoliberal foi menos um desmantelamento e mais um redirecionamento da ação do Estado em favor da fração financeira mais globalizada do capital e da ofensiva capitalista contra direitos sociais e trabalhistas”.
Falta ao livro um mergulho na relação Brasil-Banco Mundial. Afinal, o país é um dos principais clientes do banco e pouco se conhece sobre os bastidores dos sucessivos governos com a instituição. Em entrevista à Folha, Pereira reconhece essa lacuna e conta que está esboçando uma nova pesquisa a respeito.

FEUDOS BUROCRÁTICOS O historiador ressalta como o banco criou nos países feudos burocráticos simpáticos a suas políticas.
Mostra como seduziu, com sua aura científica, lideranças políticas, empresariais e a mídia, usando o mote de promover uma “engenharia institucional amistosa com o mercado”.
Essa faceta ideológica segue sendo primordial para o banco. Se o montante de dinheiro desembolsado cresceu com a crise, ele ainda é relativamente pequeno. Basta lembrar que a soma de todos os empréstimos realizados pela instituição desde 1947 é de US$ 639 bilhões (R$ 1 tri), menor que o socorro dos EUA aos bancos em 2008, de US$ 700 bilhões (R$ 1,1 tri).
Aqui, como em todo lugar, a política se sobrepõe.

Desconfiada em relação ao novo banco, Wall Street logo percebeu que os empréstimos seriam lucrativos

Os recursos beneficiaram a acumulação privada de capital. Do ponto de vista político, o alinhamento com Washington era total

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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