Livro relaciona ação na segurança pública à volta dos militares à política

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‘Dano Colateral’ examina erros de GLOs, mas não convence ao ligá-las ao governo Bolsonaro

Igor Gielow

DANO COLATERAL – A INTERVENÇÃO DOS MILITARES NA SEGURANÇA PÚBLICA

Autor Natalia Viana – Editora Objetiva (352 páginas) – R$ 59,9

A volta dos militares ao centro do debate público é um dos fatores mais notáveis, por repetitivo na vida republicana desde 1889, da história recente do Brasil.

Ao tentar mapear a cronologia do processo, que culmina na presença ostensiva de generais e de outras patentes no governo do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro, a jornalista Natalia Viana optou por um caminho de duas mãos.

Fundadora da Agência Pública, ela acaba de lançar “Dano Colateral – A Intervenção Militar na Segurança Pública” (Ed. Objetiva, 352 págs.).

Um dos pilares da obra é boa reportagem, focada no objeto do subtítulo do livro. Viana analisa 35 mortes de civis em conflitos com forças militares brasileiras nas chamadas GLOs (Operações de Garantia da Lei e da Ordem).

Instituídas há quase 30 anos para garantir o sossego de dignitários na Rio-92, as GLOs foram um instrumento abusado por presidentes ao longo do tempo. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) chegou a ter 11 dessas ações em curso em um só ano, 2000.

Elas ajudaram a cimentar a fama de “posto Ipiranga” dos fardados e ganharam destaque principalmente ao lidar com questões de violência urbana, 16% das 144 operações de lá para cá, e com a segurança de grandes eventos como a Copa-2014 e as Olimpíadas-2016 (27% do total).

Ao mesmo tempo, as GLOs recebiam duras críticas de militares e especialistas civis pela inadequação de usar em policiamento os soldados treinados para a guerra.

Aqui, o pilar reportagem do livro se sustenta bem. O leitor é apresentado ao conceito de Apop (agente provocador da ordem pública), termo que na prática coloca traficantes armados até os dentes e inocentes no mesmo balaio.

Viana bebe na fonte que gerou clássicos como “Rota 66 – A História da Polícia que Mata”, de Caco Barcellos (1992), e reconta histórias das vítimas e de como as Forças Armadas trabalham um ciclo de impunidade na apuração dos incidentes.

De forma notável em um texto com viés esquerdista, há espaço também para os soldados do outro lado e para o contraditório vindo principalmente de uma conversa com um general central deste período, Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional de Michel Temer (MDB).

Há lacunas, contudo, que parecem querer reforçar a tese central do livro: aquela segundo a qual as crescentes intervenções militares, somadas à experiência dos fardados na chefia da longa missão de paz das Nações Unidas no Haiti (2004-17), deitaram os trilhos para o trem cheio de militares chegar à Esplanada de Bolsonaro.

Todo o emprego das GLOs no governo FHC, por exemplo, que foi o que mais lançou mão do recurso (5,9 ações por ano, em média), passa em branco.

Na cronologia de Viana, tudo começa com a malfadada Operação Arcanjo, que de certa forma trouxe a experiência haitiana para o Complexo do Alemão, em 2010, com os resultados conhecidos.

Ela ainda acerta ao apontar a degradação sugerida do contato das tropas com a criminalidade, até mesmo do ponto de vista operacional, com a desastrosa ação que culminou nas mortes do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador Luciano Macedo em 2019, já em pleno governo Bolsonaro.

Mas há também generalizações sem prova que são lugares-comuns nos grupos que lidam com o assunto e redes sociais à esquerda. Mesmo Viana reconhece que o universo de problemas com os militares é ínfimo, por exemplo, se comparado com o das polícias estaduais.

O livro tem menos sucesso, contudo, ao tentar caracterizar as GLOs e o Haiti como berços do militarismo do governo federal.

Há evidentes pontos em comum: 6 dos 9 comandantes de força brasileiros tem alguma cadeira pública de relevo sob Bolsonaro, e o ministro da Defesa é o general Walter Braga Netto, ex-interventor federal na segurança do Rio em 2018.

A ideia de que os militares gostariam de ampliar seu raio de ação por terem sido empregados em tais ações tem sentido, mas o fato é que a realidade é mais nuançada, até porque Haiti e GLOs foram mais sintomas do que causas.

A ideia que falta desenvolver em “Dano Colateral” é acerca da tibieza do poder político brasileiro ao lidar com os fardados, motivo da desenvoltura da caserna já no enfraquecido governo Temer e da debacle na relação com os governos do PT.

Foi o poder civil que, ao fim, convidou os fardados para a festa ao ignorar a necessidade de debater defesa nacional nos anos pós-ditadura.

O recente livro-depoimento do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, é bastante mais elucidativo acerca dos desígnios da turma —ainda que, natural numa elegia, arrogue para si o caráter de “estar fazendo o correto”.

Viana elenca vários elementos, mas sua análise não os amarra de forma límpida. A prosa, algo truncada, é pontuada por algumas simplificações que não ajudam a iluminar o contexto, como na unidimensionalidade nas citações ao impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Isso dito, a obra vai na linha correta ao constatar a tutela presumida dos militares, que encontra eco em episódios ao longo da história da República, com a ditadura de 1964 como seu exemplo mais claro.

Um símbolo disso é o famoso artigo 142 da Constituição de 1988. A autora reconta o vaivém que manteve os militares com papel na tal “lei e ordem”, definido no texto, e lembra como Bolsonaro torce a interpretação do texto sempre que lhe convém.

Como todo livro-reportagem feito a quente, “Dano Colateral” tem a favor e contra si o fato de comentar um processo ainda inconcluso. Seu maior mérito, contudo, reside no que tem de mais factual e objetivo do que na especulação e análise apresentadas.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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