Em novo livro, professor afirma que as bases da civilidade perderam espaço no planeta
Folha de São Paulo, 31/05/2021
Plinio Fraga, Jornalista, doutorando em comunicação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de “Tancredo Neves, o Príncipe Civil” (Objetiva)
[RESUMO] Em novo livro, Muniz Sodré, um dos principais pensadores da área de comunicação no país, afirma que a cultura do algoritmo levou a uma sociedade incivilizada, que rejeita os avanços da cidadania, as diferenças e o discernimento crítico, em nome do capital financeiro e do desmonte do Estado e da política.
A cultura do algoritmo deixou a sociedade civil como definida por Gramsci de cabeça para baixo, aponta em novo livro Muniz Sodré, o pesquisador em comunicação mais citado na produção científica nacional. O espaço da sociedade civil está ocupado agora pela “sociedade incivil”, que dispensa negociação pública das diferenças, cooperação, solidariedade, discernimento crítico e amizade cívica.
“A Sociedade Incivil” (ed. Vozes), título do novo livro de Sodré, pode ser definida como um ordenamento humano regido globalmente por tecnologias de comunicação desestabilizadoras das formas clássicas de representação do mundo.
Rejeita as ideologias de bem-estar social, é refratária às instituições tradicionais e é inimiga dos avanços da cidadania. Na governança, fórmulas ocas hibridizam política estatal, demagogia e publicidade.
A política perde seu papel de mediação entre cidadãos e o Estado. O privado toma lugar do público. O burguês produtivista dá lugar ao rentista. Efemeridade e volatilidade passam a ser as bases do turbocapitalismo financeiro, alimentado por informação instantânea.
No mundo incivil, diz Sodré, a força da convicção é maior do que a da verdade. É tempo de saber sem sabedoria, de fala sem diálogo, de ação sem pausa e reflexão. A emoção substitui a fé, e a dopamina toma o lugar de Deus.
Em vez do monopólio da fala dos tempos televisivos, os algoritmos promovem o sequestro da fala por meio da total dissemetria entre aqueles que captam os dados, os oligopólios das big techs representadas no acrônimo FAANG (Facebook, Apple, Amazon, Netflix e Google), e aqueles que os fornecem, os usuários da sociedade em rede. As placas tectônicas do conhecimento se deslocam e deixam o humano sem solo firme para pisar.
É vivida a era da democracia das emoções, do enterro da discussão argumentativa. Era do segredo do voto desconstruído pela exposição informacional. Era do jornalismo sem povo, porque dominado pela busca única do clique.
Em suma, a sociedade incivil reflete a hegemonia do capitalismo financeiro e da cultura algorítmica. É uma nova máquina tecnossocial, articulada por meio da informação e da midiatização.
A velha sociedade civil morreu porque as mutações socioeconômicas desconstroem os laços representativos das instituições em benefício de formas tecnológicas e mais abstratas de controle social.
Essas mutações constituiriam evidências do evanescimento da sociedade civil, tal como interpretada pelo pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937), desenvolvendo conceitos estabelecidos antes por Hegel (1770-1831) e Lênin (1870-1924).
A sociedade em rede pode ser, no entanto, veneno e remédio. Pode ser a possibilidade de contramovimentação social necessária para a requalificação do político. Como o apoio da comunicação, que é separação e ponte, na definição do educador Paulo Freire, como citado por Sodré.
Aluno de Roland Barthes (1915-1980) e Emmanuel Carneiro de Leão, amigo de Jean Baudrillard (1929-2007) e Gianni Vattimo, Sodré é professor emérito da UFRJ e autor de 45 livros, sendo 42 de teoria da comunicação e três de ficção.
Aos 79 anos, domina sete línguas, luta caratê, toca violão e segue dando aulas e conferências. Contraiu Covid-19 no ano passado. Entre maio e junho, permaneceu internado por 43 dias. Precisou de respirador mecânico duas vezes, ficando 14 dias incubado. Contou lembrar-se de ter tido experiências extracorporais nesse período.
Ao deixar o hospital, por quase dois meses teve de se submeter à hemodiálise. Usou o tempo da convalescença para concluir “A Sociedade Incivil”, que lança agora. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu à Folha.
O leitor desavisado pode associar de imediato a expressão sociedade incivil aos tempos do governo Bolsonaro. Apesar de em seu livro não haver nenhuma referência direta ao bolsonarismo, concorda que o senhor acaba por explicá-lo ao esmiuçar como a sociedade está ligada a projetos autocráticos populistas? Concordo absolutamente. Não mencionei Bolsonaro para não particularizar demais o conceito. Aparentemente, “sociedade incivil” pode parecer um trocadilho.
Pode parecer um jogo de palavras, mas na verdade é um conceito. É um conceito da sociedade civil como falado por Lênin, Hegel e aprofundado mais plenamente por Gramsci.
Mas é um conceito de sociedade civil de ponta cabeça, de cabeça para baixo. Porque é um esvaziamento daquilo que sustentava classicamente a sociedade civil: o esvaziamento da representação político-parlamentar.
É um conceito da ausência de representatividade política da sociedade contemporânea. Isso é geral no mundo, ainda que com gradações diferentes. Na maioria dos países latino-americanos, os partidos não têm importância. São máquinas burocráticas que giram ao redor dos interesses próprios, de verbas orçamentárias.
Não é possível fazer revolução pelo voto, mas sempre foi possível fazer reformas pelo voto. Mas esse poder se esgotou, porque ficou na mão da tecnoburocracia. O sistema político como um todo, a política de partidos, a política parlamentar, passou a não valer mais nada. São apenas jogadas entre grupos para se revezar no poder.
Incluo nisso também o PT. O que existe são apenas tonalidades afetivas diferentes.
O fenômeno da sociedade incivil, assim, é mundial, com intensidades diferentes. O Brasil vive um desastre incivil.
A política perde força, o Parlamento perde força. Por mais em crise em que estivessem, sempre foram garantias de civilidade, de preservação da sociedade civil.
O governo Bolsonaro exerce a necropolítica. Que importa se morrem 400 mil pessoas? O que importa é a economia. Como diria Gramsci: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”.
Gramsci não usou a expressão sociedade incivil, um conceito que eu criei, mas ele pressentiu a morte da sociedade civil no que chamou de crise orgânica.
O sr. associa a sociedade incivil às políticas conservadoras de desmonte do Estado, de aniquilação da política e da predominância do capital financeiro. Elas crescem juntas? Crescem juntas. O neoliberalismo é o ativismo direto do capital. É o discurso desse novo capitalismo. O rentismo é uma nova forma de capitalismo. O neoliberalismo é um discurso, é uma nova forma de consciência do capitalismo.
No livro, o sr. afirma que do “monopólio da fala”, numa referência principalmente à televisão como elemento cultural central do passado, a sociedade algorítmica passou para o “sequestro da fala”. Este seria a perda de autonomia das pessoas? A ideia do monopólio da fala não desapareceu por completo porque ela se confunde com o monopólio econômico que explica as big techs. É fato que o monopólio da fala se refere inicialmente à televisão, em razão da impossibilidade de interatividade desse canal.
Verificamos agora que a fala contemporânea está condicionada por um sistema tecnológico, matemático, que funciona à base de algoritmos.
Esses algoritmos são um outro discurso, um outro universo, fundado com outras regras. Os algoritmos constituem uma língua própria porque eles são capazes de produzir mensagens, incitar comportamentos. E nós não sabemos que língua é essa, só dominada por seus programadores.
A sociabilidade que a rede gera, que o algoritmo gera, é uma sociabilidade de plataforma. Não é a sociabilidade histórica real. Não é a subjetividade vivida. É uma sociabilidade programada por algoritmos. Isso é o sequestro da fala, é pior do que o monopólio. É a produção de uma fala própria que, aos poucos, vai dominando a nossa. É a fala do robô. O algoritmo é um robô por software.
A ideia do monopólio da fala continua válida? Parecia que a interatividade viria a resolver o problema da possibilidade de resposta à televisão, mas não é bem assim. O monopólio da fala se deslocou para sistemas ainda mais remotos que formam a rede mundial de computadores, comandada por algoritmos. O supermonopólio da fala agora produz o sequestro da fala.
O que quer dizer quando afirma que a rede algorítmica produz um tipo novo de jornalismo, o jornalismo sem povo? O povo no Brasil ficou como um enigma étnico. A partir de 1964, tornou-se mesmo subversivo. Quando me refiro ao jornalismo sem povo quero dizer que a democracia sempre precisou de povo. E o jornalismo também.
O jornalismo tem de se reinventar. A forma de emprego não se esvaziou só no jornalismo. O emprego está sendo esvaziado no setor fabril, em todo lugar. A imprensa que elogiamos é o discurso de intervenção que o jornal faz na esfera pública. E esse discurso é necessariamente político.
A imprensa informa dentro do quadro de um povo específico. Na rede, você vê usuário de computador, mas não vê povo. Esse povo, como símbolo de exercício de soberania, pode se constituir na rede? Eu acho que pode.
O veneno seria também a cura? A rede é um megafone. Tem um poder de mobilização muito grande. Ela leva para rua, expõe. É a ideia do fármaco: veneno e cura. Paulo Freire dizia que a comunicação é separação e ponte. O jornalista é o curador da mediação. É um lugar ainda não bem pensado, mas que já é real.
É o lugar do desenvolvimento do jornalismo: investigação e curadoria, ou tratamento da mediação que pode assumir a forma da rede. O conceito de notícia se fragmentou tanto que desvalorizou a notícia. O jornalismo é um meio de busca da civilidade e, por consequência, da democracia.
Por que o sr. diz que a “democracia das emoções” é uma das construtoras da sociedade incivil? Vimos aparecer toda uma tecnologia emocional que não damos conta. A manipulação de todas as máquinas criadas pelas big techs é emocional. No cotidiano, a razão argumentativa dá lugar à razão sensível. As estratégias das redes, as táticas de aproximação, de discussão, de aproximação são estratégias sensíveis. São nessas estratégias que as emoções se encontram.
Esta é uma era, por exemplo, em que a própria ideia de fé pode ser substituída por impulsos, por dopamina [neurotransmissor que modula as emoções, também conhecido como hormônio da felicidade]. Esse fundamentalismo evangélico funciona com base na dopamina, não na fé. O discurso do pastor tem a ver com a emoção, com a dopamina.
O sr. conclui o livro lançando duas questões fundamentais. Os homens ainda podem ser ditos humanos? E as democracias ainda podem ser ditas democráticas? Pode parecer que estou abraçando a visão apocalíptica de mundo, da destruição, do esvaziamento, mas no livro abordo a possibilidade de recomposição do político, em articulação com as redes.
Acredito na política, como acredito no jornalismo. No jornalismo como força cívica. A democracia, por mais imperfeita que seja, é algo pelo qual temos de nos debater. Buscar algo radicalmente humano é buscar algo político.. Buscar algo radicalmente humano é buscar algo político.