Economia global pode entrar na Terceira Grande Depressão

"Economia global pode entrar na Terceira Grande Depressão" - NIALL FERGUSON

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Historiador da Universidade Harvard prevê estagnação não tão profunda quanto a da década de 1930, mas longa, com um período de baixo crescimento dos EUA e deflação em vários países
Para o historiador, a decisão de permitir a continuidade de instituições “grandes demais para quebrar” vai contra um dos benefícios das crises financeiras: o fim de modelos que não funcionam e a criação e transformação de novos caminhos, bem-sucedidos. O professor de Harvard afirma que a crise pode levar a uma aceleração de um processo, que já vem acontecendo, de declínio dos Estados Unidos e ascensão da China como nova potência. “Seria perfeitamente familiar, do ponto de vista histórico”, diz. Em uma ou duas décadas, os PIBs dos dois serão
equivalentes, aposta. O livro, que figurou na lista de mais vendidos do “New York Times”, será lançado no Brasil nesta semana. Leia abaixo a entrevista concedida por Ferguson à Folha, por telefone.

FOLHA – Em uma palestra sobre seu livro, o senhor disse que acabou a “era da alavancagem”. Em que era estamos entrando agora?
NIALL FERGUSON – Temo cada vez mais que estejamos entrando na Terceira Depressão, não tão severa quanto a de 1929-33, mas provavelmente tão longa quanto a de 1873-1878. Temos pela frente um período de crescimento baixo na maior economia do mundo, os EUA, e também um ou dois anos de deflação em muitas economias.

FOLHA – Olhando historicamente, existe alguma diferença entre essa Terceira Grande Depressão e as anteriores, para a população?
NIALL FERGUSON – Uma das grandes diferenças é que os atuais sistemas de bem-estar social e de apoio aos desempregados são muito melhores que os anteriores. Os governos tiveram um papel muito mais ativo na condução da economia, então vimos ações extraordinárias dos bancos centrais para injetar liquidez no sistema -e também enormes déficits dos governos enquanto tentam impulsionar a economia. Isso vai ser diferente e é por isso que não estamos vendo um colapso severo como o dos anos 30. Mas não dá para conseguir tudo. Estamos começando a ver os limites das respostas monetárias e keynesianas a esta crise.

FOLHA – O senhor fala em “destruição criativa”. Da quebra dessas empresas, vamos ter um novo tipo de economia. Que nova economia vai emergir dessa depressão?
FERGUSON – Há duas coisas diferentes. Primeiro, vai ser uma economia mundial em que países como China, Índia e, claro, o Brasil terão um papel muito maior, com os EUA, a Europa e o Japão menos dominantes. O segundo ponto importante é que as economias desenvolvidas, particularmente os EUA, não serão capazes de reavivar o antigo modelo de securitização [em que dívidas são aglutinadas, transformadas em títulos e vendidas como investimento], de bancos de investimento e de crédito ao consumidor. O que vamos ver nos EUA e também na Europa é um retorno a um modelo financeiro mais antiquado. Digo isso com alguma hesitação, porque neste momento os governos desses países estão falando em novas regulações que parecem mirar em reviver esses dinossauros e mantê-los vivos. Em outras palavras, medidas estão sendo tomadas para impulsionar instituições que eram vistas como “grandes demais para quebrar”. E eu concordo com os que dizem que, se algo é grande demais para quebrar, é grande demais mesmo, e provavelmente não deveria existir. Mas a tendência da nova regulação é a de manter esses dinossauros vivos, o que vai criar mais problemas. O que mais precisamos neste momento é um retorno a instituições financeiras menores e menos vulneráveis, mas o que vamos pegar é um tipo de megassuperbanco nacionalizado.

FOLHA – Então, nesse caso, o curso natural da história não está sendo respeitado e pode ser a semente de uma nova crise mais para a frente?
FERGUSON – O perigo de intervir desse modo é acabar com um tipo de “década perdida”, no estilo japonês, em escala global. Minha esperança é que serão tomadas medidas para quebrar esses gigantes perigosos, como o Citigroup e o Bank of America. Se essas instituições forem divididas e houver novas instituições, aí pode haver razões para otimismo. Senão, as perspectivas são bastante ruins.

FOLHA – Seu livro vai até a origem do dinheiro. Sempre é feita a comparação da economia de agora com a da década de 30, mas, sob um ponto de vista mais amplo, com que outros pontos da história a atual era pode ser comparada?
FERGUSON – Há muitos paralelos. Parte do objetivo do livro é mostrar como a história financeira explica a geopolítica. Pense no declínio dos impérios português e espanhol, que nos 1600 pareciam os protagonistas da economia global. O declínio da Espanha foi claramente financeiro, porque a disponibilidade de prata do Novo Mundo teve o efeito de minar a saúde institucional do império espanhol e abrir o caminho para novas potências financeiras. Primeiro a Holanda, e depois, claro, a Inglaterra. A França era um império poderoso no século 18, mas, financeiramente, um império fraco, que em última análise caiu exatamente por isso -a Marinha britânica era muito maior, porque os franceses não tinham um mercado de “bonds”, não tinham a capacidade de se financiar naquela escala. No século 20, é o Reino Unido que está em problemas, como consequência de dívida e baixo crescimento, especialmente depois de 1945. Então seria perfeitamente familiar, de um ponto de vista histórico, se essa crise financeira levasse a uma aceleração da mudança dos Estados Unidos para a China. Nós já vimos nos últimos dez anos que a liderança parece estar mudando em direção à China. Embora isso leve tempo e seja imprevisível -já que a China pode sempre entrar em dificuldades-, é razoável dizer que em 10 ou 20 anos os PIBs da China e dos EUA não serão diferentes.

FOLHA – O senhor cria a “Chimérica” no seu livro, o que é isso?
FERGUSON – Meu argumento é que, para entender a economia mundial, é necessário entender a relação entre a China e a América [EUA]. A China exportadora, a América importadora. A China poupadora, a América gastadora. Essa relação esteve no centro da economia global nos últimos dez anos, e o interessante é perguntar se a crise levará ao fim da “Chimérica”. A China tem reclamado cada vez mais do modo como os EUA lidam com a crise.

FOLHA – A China tem falado constantemente numa alternativa ao dólar.
FERGUSON – Isso tem se tornado tão frequente de Pequim que parece que eles realmente querem dizer isso. Eles têm US$ 1,5 trilhão em títulos em dólar e ficam muito nervosos com os EUA tomando medidas que podem enfraquecer o dólar e, assim, suas reservas. Isso pode parecer o fim desse casamento. Quando cunhei essa expressão, pensei na palavra quimera, uma criatura mítica. Não acho que seja uma relação estável.

FOLHA – É possível ver uma trajetória linear na evolução econômica do mundo ou é algo errático? Estamos indo em alguma direção ou não?
FERGUSON – O paralelo que eu traçaria é um que me bateu quando eu estava na Bolívia, observando os Andes. Olhando as linhas das montanhas, dei-me conta de que estava olhando algo parecido com os índices do mercado financeiro, os picos, as quedas bruscas, os pontos agudos. E acho que essa analogia é válida. Na economia, as coisas quebram, no sentido de seleção natural, existe a sobrevivência, inovações ou mutações acontecem, novas instituições são criadas. São as bem-sucedidas que sobrevivem e se multiplicam. A diferença é que, ao contrário do mundo natural, temos intervenção de reguladores e legisladores, o que previne o processo natural de acontecer. Uma das maiores diferenças entre evolução natural e evolução financeira é que essa pode ser interrompida, os dinossauros podem ser salvos da extinção, e os mamíferos, impedidos de herdar a Terra. É um pouco isso o que está acontecendo, com instituições que deveriam ter quebrado, mas interviemos para mantê-las vivas.

FOLHA – Mas um dos argumentos é que, se quebrassem, o sofrimento para a população seria enorme, como nos anos 30. Não faz sentido?
FERGUSON – Isso é correto, e o Fed [banco central dos EUA] fez um bom trabalho em evitar a catástrofe. Se os bancos tivessem quebrado em setembro passado, estaríamos numa situação muito pior. Mas existem diferenças entre medidas temporárias e reformas de longo prazo. As medidas iniciais foram tomadas para prevenir o pânico. Mas, uma vez que isso foi feito, temos de dizer: depois do que você fez, não há a menor possibilidade de continuar como antes. Quando vimos o Goldman Sachs, que recebeu todo tipo de benefício, voltando aos negócios como sempre, os bancos sobreviventes simplesmente voltando ao que eram antes, tudo isso é muito frustrante. O Goldman vai ter em 2009 o mesmo lucro de 2007, ou maior. É difícil acreditar que os contribuintes colocaram seus recursos para prevenir uma depressão, não para que os bancos tivessem um ótimo ano de 2009.

FOLHA – Isso pode levar a reações mais agressivas da população?
FERGUSON – Isso é parte da dificuldade do público de distinguir entre milhares e milhões. Quando você tenta explicar para as pessoas o que está acontecendo, é complicado, porque, para elas, é difícil distinguir 1 milhão de 1 bilhão. Um dos objetivos do meu livro é encorajar o “alfabetismo financeiro”, para que o leitor comum não se sinta intimidado quando ler palavras como derivativos, trilhão. A ideia de que os mestres do universo de Wall Street precisam nos explicar o que está acontecendo é absurda. Está muito claro que a crise financeira foi causada por um grosseiro erro de cálculo e de administração pelas pessoas que geriam os bancos. E o fato de que muitos deles continuam a comandar os bancos é profundamente irritante.

Jornal Folha de São Paulo – 13/07/2009

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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